17 "Perry Rhodan"

Pandemias na Ficção Científica

Em 15 de maio de 2020, a Editora Seoman promoveu uma live no Instagram com a pesquisadora e ficcionista Cláudia Fusco e o criador do Universo GalAxis, Roberto Causo, reunidos para discutir o tema “Ficção Científica na Quarentena: Pandemias e Distopias“. Antes, Causo havia tocado no tema em sua coluna “Ficção Especulativa“, na revista Perry Rhodan, da SSPG Editora. Este artigo reaproveita a coluna e expande parte do que foi discutido na live.

 

 

 

O tema da praga global é consideravelmente antigo dentro da ficção científica. A tradição milenarista cristã o vincula fortemente às narrativas de fim de mundo. The Encyclopedia of Science Fiction (Third Edition) coloca tais narrativas entre as mais antigas da proto-ficção científica — ou da “fantasia futurista pré-século 20”, como o verbete prefere —, juntamente com a utopia e os contos cautelares.

Alguns dos exemplos mais antigos de narrativas envolvendo pandemias que “destroem o mundo” incluem o romance O Último Homem (The Last Man; 1826), de Mary Shelley, e a novela A Praga Escarlate (1912), de Jack London. London é o conhecido autor clássico americano de O Chamado Selvagem e Presas Brancas, e a inglesa Shelley é a famosa autora de Frankenstein (1818), um dos primeiros romances da FC moderna. Ambos os livros têm edições no Brasil, datando do início deste século. Juntos, eles expressam duas possibilidades clássicas (com alguma superposição) da questão das grandes pragas dentro da FC: se a história conta o que ocorre durante, trata-se de uma narrativa de fim de mundo; se conta o que ocorre depois, é uma narrativa de pós-apocalipse — subgênero da FC normalmente associado à guerra nuclear.

As narrativas de pandemia, em especial, desde cedo formaram uma das formas mais coerentes de especulação sobre o futuro, já que fazem parte da experiência histórica da humanidade. Basta lembrar da terrível Peste Negra que assolou a Europa no século 14, matando, estima-se, entre 75 a 200 milhões de pessoas em sete anos. Na ficção científica, a Peste Negra foi assunto do excelente romance de Connie Willis, O Livro do Juízo Final (The Doomsday Book, 1992). Antes dessa praga, a antiguidade registrava a Peste Antonina (165 dC), que teria tomado aproximadamente cinco milhões de vidas, e a baixa idade média a Praga de Justiniano (541-544 dC), que teria vimado vinte e cinco milhões. E quando London escreveu a sua novela, a sexta epidemia transnacional de cólera ainda estava em curso, e o próprio London teria escapado a um surto de peste bubônica que atingiu San Francisco na virada do século 19 para o 20.

Armas, Germes e Aço (Guns, Germs and Steel: The Fates of Human Societies, 1997), de Jared Diamond, é um livro dedicado a demonstrar como a continuidade geográfica entre Europa e Ásia deu vantagens aos povos eurasianos sobre o resto do mundo. Entre essas vantagens, a resistência a doenças epidêmicas que colocaram outros povos de joelhos após o primeiro contato. Ganhou o Prêmio Pulitzer, entre outros. Nele, Diamond “argumenta contra a ideia de que a hegemonia eurasiana se deva a qualquer forma de superioridade eurasiana intelectual, moral, ou inerentemente genética”. Nisso ele, felizmente, contradiz a tese de Victor Davis Hanson em Carnage and Culture (2001), de que a algo de inerentemente superior nas práticas bélicas das nações ocidentais (Hanson exclui o Brasil, a propósito, desse rol).

Como um dos editores da Seoman, Adilson Silva Ramachandra, observou durante a live Ficção Científica na Quarentena: Pandemias e Distopias“, o romance clássico de invasão de H. G. Wells, A Guerra dos Mundos (The War of the Worlds, 1898), também toca no tema da infecção causadora de mortes em massa. Mas da morte dos marcianos invasores, que caem presa dos micro-organismos terrestres, para os quais não têm defesa, apesar da sua tecnologia bélica superior. O recurso é um deus ex-machina que salva a humanidade no último instante, mas ao mesmo tempo expande um tanto do sentido do romance, sempre considerado como alegoria anti-imperialista que devolve aos europeus a experiência devastadora que eles levavam aos povos de todas as outras partes do mundo.

No Brasil, temos a experiência dos indígenas amazônicos, cuja população e nível civilizatório teriam sido muito maiores do que o imaginado antes, segundo revela a arqueologia dos últimos vinte anos. O livro de Michael J. Heckenberger, The Ecology of Power: Culture, Place, and Personhood in the Southern Amazon A.D.1000-2000 (2004), defende a possibilidade de que aquilo que conhecemos a respeito dos indígenas dessa região seja uma versão, deformada pela depopulação causada pelas pragas trazidas pelo europeu, de uma cultura que teria sido bem diferente e mais expressiva. Em outras palavras, esses povos indígenas vivem no pós-apocalipse da sua civilização — possibilidade que explorei no meu conto tupinipunk de fim de mundo “Para Viver na Barriga do Monstro” (2012), publicado na antologia original editada por Alícia Azevedo & Daniel Borba, 2013: Ano Um.

Na segunda metade do século 20, dois romances se tornaram marcantes, certamente com o segundo sendo influenciado pelo primeiro: Só a Terra Permanece (Earth Abides, 1949), de George R. Stewart, e A Dança da Morte (The Stand, 1978), de Stephen King. No primeiro, um sobrevivente do fim do mundo causado pela praga registra o seu esforço para preservar o pouco que pode da cultura e do conhecimento humanos. É um romance imensamente melancólico, enquanto o bojudo livro de King imagina uma praga que se origina em laboratórios militares, tem componentes de ação e também de ficção religiosa, já que, nos Estados Unidos, os sobreviventes dividem-se em dois grupos: um de concentração mística, solidário, tranquilo e humanista; e o outro de concentração técnica, competitiva e violenta — liderada por uma figura de contornos demoníacos e de líder fascista carismático, Randall Flagg.

Flagg é interessante por demonizar justamente a confluência do conceito de Friedrich Nietzsche da “vontade de potência” com o espírito americano. A vontade de poder seria uma constante da FC anglo-americana, segundo o pesquisador Adam Roberts em A Verdadeira História da Ficção Científica: Do Preconceito à Conquista das Massas (The History of Science Fiction, 2006), cuja segunda edição (2016) foi publicada no Brasil justamente pela Seoman, em 2018. Em Flagg, uma interpretação fascista da figura do Übermensch de Nietzsche, King mostra como os piores momentos da humanidade ainda serão motivo de manipulação por parte de grandes espertalhões — como vemos no Brasil, nos EUA e em países em que um autoritarismo de direita ou de esquerda tenta ganhar capital político com a desgraça de todos.

 

A Dança da Morte (The Stand) foi uma minissérie exibida pela rede ABC em 1994.

A Dança da Morte virou minissérie em 1994, pela rede ABC, e algo que Stephen King “acertou” foi a noção de que a praga mais contagiante possível seria uma gripe, uma das doenças virais de maior disseminação e transmissibilidade humana. O romance de Stewart está disponível no Brasil pelas Edições GRD, e o de King faz parte do catálogo da Suma, editora que o vem republicando intensamente nos últimos anos. É claro, muitos livros e filmes sobre a pandemia de zumbis também podem ser lidos como dramatização fantástica da ideia da praga global, com um ângulo particularmente interessante: aquela pessoa que é absolutamente normal e mesmo atraente em certo momento, torna-se um inimigo desumanizado, bestializado, depois de “convertido” ou “infectado” pela praga zumbi.

Nesse sentido, no thriller de FC Ordens do Executivo (Executive Orders, 1996), de Tom Clancy, têm-se um comentário perfeito sobre essa perspectiva: uma improvável aliança entre chineses, iranianos (que incorporaram o Iraque) e traidores americanos trama para contaminar o país com uma variante agravada do terrível vírus hemorrágico ebola. Em dado instante, um general especialista em guerra biológica observa:

“Essa é a elegância da guerra biológica. São as suas vítimas que causam a maioria das mortes.” —Tom Clancy, Ordens do Executivo.

Uma rara obra que imagina como prevenir que uma pandemia leve ao fim do mundo, pelo combate efetivo de uma praga artificialmente criada, é justamente Ordens do Executivo, que saiu aqui pela Record com tradução de Sylvio Gonçalves. Sob o comando do herói Jack Ryan (elevado a presidente da república por um atentado terrorista realizado no livro anterior da série, Dívida de Honra), os Estados Unidos controlam a epidemia com medidas de saúde pública, de isolamento e de interrupção de transporte interestadual e internacional — medidas que Donald Trump, o presidente da vida real, hesitou e hesita em assumir perante a pandemia da COVID-19. No romance, em uma reunião decisiva, na qual se avalia a necessidade da operação “Chamado da Cortina”, o mesmo general informa:

“Pior possibilidade? Vinte milhões de mortes. A essa altura, o que acontece é que a sociedade entrará em colapso. Médicos e enfermeiros fugirão dos hospitais, as pessoas se trancarão em suas casas, e a epidemia se desgastará de forma muito parecida com o que aconteceu com a Peste Negra do século XIV … O problema, senhor, é que se não tomarmos nenhuma medida e depois descobrirmos que a doença é muito poderosa, então será tarde demais.” —Tom Clancy, Ordens do Executivo.

Anterior, O Enigma de Andrômeda (The Andromeda Strain, 1969), de Michael Crichton, foi um dos primeiros bestsellers nacionais da ficção científica nos Estados Unidos, levado ao cinema em 1971 por Robert Wise. Também imagina, em detalhe e disfarçando a sua narrativa ficcional com elementos de montagem como relatórios, tabelas e diagramas, como um laboratório bilionário de segurança máxima consegue determinar como combater um vírus trazido do espaço por um satélite americano. O vírus não é um invasor alienígena, porém, e sim o produto de experimentos secretos de guerra biológica.

Ao imaginar uma praga global que se originasse no Brasil, eu apelei para uma variante do hantavírus originária da selva amazônica. No meu conto “O Salvador da Pátria” (2000), um jovem tenente ferido no acidente aéreo do qual é o único sobrevivente, é convocado pelo espírito viajante temporal de uma xamã indígena, que vive no futuro marcado pela destruição causada pela praga, para matar traficante de drogas que seriam os primeiros a disseminar o vírus. Ao contrário do que propõe o nosso atual governo, no meu conto o futuro dos índios corresponde ao futuro do país, e o soldado que se sacrifica está a serviço da visão deles. A história saiu na antologia Phantastica Brasiliana, de Gerson Lodi-Ribeiro & Carlos Orsi, em comemoração aos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil.

Para escrever “O Salvador da Pátria”, consultei The Coming Plague: Newly Emerging Diseases in a World Out of Balance (1994), de Laurie Garrett, e Zona Quente (1994), de Richard M. Preston — dois livros de não ficção escritos no início do atual estágio da globalização que demonstram que o temor de uma plaga planetária já preocupava cientistas e administradores públicos. É interessante que o romanção de Clancy tenha sido publicado dois anos depois, e que, no ano seguinte, tenham aparecido os filmes Epidemia (Outbreak, 1995), dirigido por Wolfgang Petersen, e Os 12 Macacos (Twelve Monkeys, 1995), dirigido por Terry Gilliam. Obviamente, o assunto estava na pauta da vida pública de então — e obviamente, os seus alertas não foram respondidos pelas autoridades com mais investigação científica e estudos de protocolos de contenção. Àquela altura, pandemias como a da AIDS e epidemias assustadoras como a do ebola acionaram o sinal de alerta.

O subtítulo do livro de Garrett, “doenças recentemente emergentes em um mundo fora do equilíbrio”, informa de saída qual é o seu motivador principal: a destruição do meio ambiente e o contato cada vez mais íntimo e frequente de humanos com animais portadores de vírus desconhecidos. Na quarta capa da edição pela Editora Rocco do livro de Preston, por sua vez, aparece: “À medida que as florestas tropicais vão sendo destruídas, vírus antes desconhecidos se revelam, em padrões semelhantes ao da AIDS [que teria vindo de primatas africanos], e em escala apavorante.” Exatamente o que se supõe ter havido na China com respeito ao novo coronavírus, que migrou de morcegos ou raposas-voadores para os humanos, em razão do consumo da sua carne ou da ausência de boas condições sanitárias no seu abate e venda em feiras populares — tardiamente fechadas pelo governo.

Eu escrevo este texto em meio às restrições de mobilidade recomendadas pelo governador do Estado de São Paulo, em razão dos efeitos nacionais da pandemia da COVID-19. Digo “relativo” porque minha esposa, a também escritora da FC Finisia Fideli, é médica homeopata e continua atendendo aos seus pacientes, na medida do possível. De fato, parte deste texto foi escrito no consultório particular de Finisia, já que eu a acompanho no trabalho. Essa conjuntura é um lembrete da confluência inesperada entre a FC e a vida real — e entre o passado e o presente.

É cedo para saber que tipo de conclusão a pandemia assumirá. O que já se sabe, porém, é que a pressão para o retorno à vida normal tem sido danosa antes, durante, e o será depois da COVID-19. Antes, levou à atitude inicial da Organização Mundial da Saúde de minimizar o surto e a não propor medidas de contenção imediatas. Durante, está levando ao relaxamento potencialmente trágico dessas medidas. E depois, poderá conduzir novamente as autoridades a ignorar, enquanto atentam apenas aos apelo do status quo político, o dramático sinal de alerta do momento presente.

Teorias de conspiração são mais divertidas — como atestam livros como O Enigma de Andrômeda e Ordens do Executivo — do que a ideia de que mexer com animais selvagens, que deveriam estar isolados e protegidos, pode ter efeitos desastrosos em todo o mundo. Não obstante, este é o momento de se recordar que antes de apelarmos para hipóteses ideológicas, delirantes ou racialistas, a ciência e a experiência histórica já nos fornecem explicações sólidas e comprovadas. Elas também nos oferecem medidas claras e eficazes de enfrentamento das crises.

Finalmente, ambientalismo, preservacionismo e a luta contra a atual emergência climática (o aquecimento global facilita a proliferação de doenças antes confinadas a certas zonas climáticas, e o ressurgimento de vírus e bactérias confinados ao gelo do círculo polar ártico) também se mostram como mais do que componentes de uma visão “ideológica de esquerda” — lembrando que China, Rússia, Vietnã e Coreia do Norte têm um terrível histórico de devastação. São, na verdade, atuações necessárias para enfrentar, no médio e longo prazo, situações dramáticas como a atual pandemia.

—Roberto Causo

 

Causo agradece a Adilson Silva Ramachandra e a Carolina Bessa pela oportunidade de falar na live da Editora Seoman, e a Cláudia Fusco pela interação.

Temos 2 comentários, veja e comente aqui

Roberto Causo É Entrevistado no “Almanaque de Arte Fantástica Brasileira”

Marcello Simão Branco, jornalista, cientista político e fã histórico de ficção científica entrevistou o escritor Roberto Causo, criador do Universo GalAxis, para o Almanaque de Arte Fantástica Brasileira, que ele mantém com o seu colaborador de longa data, Cesar Silva.

 

 

O blogue Almanaque de Arte Fantástica Brasileira é uma poderosa ferramenta de acesso a recursos de ficção científica, fantasia, horror e literatura fantástica. Representa uma continuidade, em outro formato, do importante Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, que Branco & Silva publicaram ao longo de uma década.

A entrevista foi postada em 1.º de novembro de 2019, e nela Branco e Causo comentam os 30 anos de carreira do escritor e discutem o que mudou nesse tempo, no campo da ficção científica brasileira, a sua comunidade de fãs e com a recente produção intelectual e acadêmica voltada para a FC no Brasil.

O Universo GalAxis também é abordado, assim como a influência da série alemã Perry Rhodan sobre ele e as novidades e projetos futuros do universo que combina as séries As Lições do Matador e Shiroma, Matadora Ciborgue.

Marcello Simão Branco foi um dos criadores, com Renato Rosatti, do importante fanzine Megalon, e é um dos mais longevos observadores do campo da ficção especulativa no Brasil. Com Cesar Silva ele editou a revista HorrorShow e participou da Editora Pecas, além de fundar a Sociedade Brasileira de Arte Fantástica e organizar convenções de FC e de horror. Branco, que também é professor universitário de Ciência Política, editou as antologias Outras Copas, Outros Mundos (1998) e Assembleia Estelar: Histórias de Ficção Científica Política (2010), esta última com a noveleta das Lições do Matador, “Trunfo de Campanha”. É assim que ele abre a entrevista com Roberto Causo:

Conheço o Causo desde setembro de 1987, faz tempo, a partir de uma reunião mensal do Clube de Leitores de Ficção Científica, em São Paulo. Artista e militante em tempo integral, fez tudo e mais um pouco em prol da ficção científica e fantasia no país desde então. O que se faz com as perguntas a seguir é além de celebrar a longevidade de sua carreira, reconhecer sua importância, que se confunde com a trajetória e desenvolvimento do gênero no país. Pois se ele, numa visão de conjunto, se estabeleceu como um dos nossos autores mais relevantes, tem uma contribuição multiforme, e não menos significativa: fã, fanzineiro, ilustrador, crítico e ensaísta, editor, tradutor, pesquisador acadêmico, organizador de eventos.

A entrevista você encontra aqui.

Sem comentários até agora, comente aqui!

Leituras de Janeiro de 2019

O ano começou com uma boa dose de ficção científica… e outra de Harlan Ellison. Foi um mês de dobradinhas com Ellison e Charles Sheffield.

 

Arte de capa de Larry Price.

Odyssey, de Jack McDevitt. Nova York: Ace Books, 2006, 410 páginas. Arte de capa de Larry Price. Hardcover. Ano passado eu li Omega (2003), de McDevitt. Este Odyssey é a sequência na série The Academy — ou Romances de Priscilla Hutchins. Aqui, o experiente autor americano parte de uma premissa rara e instigante: avistamentos de OVNIs no espaço. Quem mais pensou nisso? No seu livro In Search of Wonder Essays on Modern Science Fiction (1956), Damon Knight menciona um romance com essa premissa. Em Odyssey, os OVNIs são chamados de moonriders e são vistos ao longo de uma rota turística que cobre vários sistemas solares.

Nesse momento, a Academia está sob ataque de políticos atrás do seu orçamento. O esforço de colonização de outros mundos não trouxe os resultados esperados, e a humanidade não fez contato com nenhuma civilização alienígena com presença espacial. Além disso, o aquecimento global tornou-se uma questão urgente, e muitos defendem o uso de recursos no combate às suas consequências, e não na viagem interestelar. Isso acontece lá por 2230, com aquilo que se projeta acontecer, em termos de mudança climática catastrófica, por volta de 2050. A perspectiva derrotista começa a mudar com o acúmulo de avistamentos e com a revelação de que tais objetos não-identificados conseguiriam mover asteroides — primeiro contra um dos poucos planetas com vida animal complexa, conhecido da humanidade, e depois contra um hotel espacial. Uma nave fora enviada para investigar os avistamentos. Na tripulação, um jornalista cético e contrário aos gastos com as viagens interestelares, uma competente pilota grega, um executivo de RP que resolve se meter na ação, e a filha adolescente de um senador americano. MacAllister, o jornalista, teve sua vida salva por Priscilla “Hutch” Hutchins no romance Deepsix (2001), que eu não li. Amy, a adolescente, quer ser piloto e tem um contato imediato de “quarto grau”, em que um alienígena personificando Hutch manda um recado à humanidade por meio dela. Na Terra, MacAllister e Hutch independentemente descobrem que a maior parte dos avistamentos são farsas organizadas por grupos de interesse, para marcar a importância do voo interestelar e da militarização da viagem espacial. Mas de tudo, o contato imediato de Amy permanece sem explicação. Por isso Hutch reage a ele enviando naves de resgate à uma gigantesca estação espacial europeia construída como um acelerador de partículas. Esse acelerador busca sondar os mistérios mais profundos do universo, criando microburacos negros. Existe a perspectiva de uma ruptura no tecido do espaço-tempo que levaria ao fim do universo — premissa semelhante à de Forever Peace (1997), premiado romance de Joe Haldeman. Todos os cientistas com que os Hutch e MacAllister falam se apressam em afirmar que a possibilidade disso acontecer é muito pequena. Mas obviamente os alienígenas, que surgem de fato nos momentos finais do romance, discordam. A arte digital de Larry Price na capa captura com dinamismo a forma esférica com que suas naves são descritas, e deu um jeito de colocar uma nave em forma de disco na arte. No texto, a ironia em torno dos OVNIs é divertida e bem realizada, ainda que com discrição. A crítica à política, à burocracia e às obsessões da ciência é bem estabelecida e de ironia mais marcada, já que mesmo diante da morte e da destruição, as pessoas se agarram às suas perspectivas limitadas e mesquinhas. McDevitt tem em Odyssey mais um exemplo da sua capacidade de criar um suspense natural a partir de reflexões sobre as faltas da sociedade e de sua fé nas qualidades individuais humanas como a coragem e o auto-sacrifício.

“Certos tipos de decisão pode ser ignorado com segurança. Algumas questões irão embora com a passagem do tempo, outras vão se desenvolver tão lentamente, que os tomadores de decisão terão partido antes que os resultados da sua negligência se tornem manifestos. O que nos traz ao meio ambiente.” —Jack McDevitt, Odyssey.

 

Arte de capa de Bob Eggleton.

Between the Strokes of Night, de Charles Sheffield. Nova York: Baen Books, 1985, 346 páginas. Arte de capa de Bob Eggleton. Paperback. Este romance de Charles Sheffield também menciona as consequências catastróficas do aquecimento global, e em 1985! Mas enquanto McDevitt parece ter errado para mais quanto a incidência dessas consequências, Sheffield, projetando-as para 2010, errou para menos. Em cima das tensões causadas pela mudança climática e superpopulação, Sheffield colocou uma guerra termonuclear total e um inverno nuclear. Por sorte da espécie humana, um trilionário investiu sua fortuna (outra antecipação brilhante de Sheffield: o cara fez sua fortuna em ações de empresas de computação) em habitats espaciais. A primeira parte do livro, de fato, é dedicada a descrever como esse visionário recrutou um instituto de pesquisas sobre o sono, vinculado a ONU, para se instalar em seu principal habitat.

O romance dá um salto de dezenas de milhares de anos, para um contexto de muitas colônias humanas em outros planetas. Um grupo de jovens é selecionado, a partir de uma grande competição, para visitar um outro mundo. De um modo bem próprio da FC hard americana, um deles sofre um acidente potencialmente fatal. O único modo de salvá-lo é um de seus colegas colocá-lo em uma espécie de hibernação química. Quando desperta, ele e seus amigos estão em uma nave espacial desconhecida. Aos poucos é revelado a eles que parte da civilização humana na galáxia é composta de pessoas que vivem no “espaço-S” — uma percepção do passar do tempo milhares de vezes mais lenta do que a do espaço normal. Isso é fruto dos experimentos do instituto apresentado na primeira parte, e o recurso funciona como um modo de driblar a velocidade da luz como lei universal, sem rompê-la. Em alguns momentos, ele também lembra a história de H. G. Wells, “The New Accelerator” (1901), e o episódio da invasão dos Druufs, na série alemã Perry Rhodan. A outra coisa que o espaço-S faz é permitir o contato com estranhas criaturas que vivem flutuando no espaço, sendo que algumas podem ser inteligentes.

O pessoal do instituto e dos primeiros habitats ainda está vivo e atuando como dirigentes invisíveis da humanidade. A competição planetária que selecionou o grupo de protagonistas da segunda parte do romance é um modo desses dirigentes renovarem os seus quadros com pessoas competitivas e intelectualmente aptas. Mesmo porque um efeito colateral do espaço-S é a impossibilidade da reprodução humana. O grupo visita a Terra do pós-apocalipse, ainda não recuperada de uma era glacial, e então descobre onde fica realmente o centro das decisões. Ao chegarem, descobrem que são esperados. O grande segredo é contado a eles: experimentos para uma ampliação ainda maior da percepção são realizados, para que o voluntário possa observar eventos de milhões e bilhões de anos. A necessidade dessa perspectiva vem do fato de que um daqueles seres espaciais ter comunicado a visão de um futuro em que alguma força desconhecida iria converter todos os sóis do nosso braço da Via Láctea em anãs-vermelhas, tornando impossível a vida humana. Uma parte do grupo de aventureiros decide abrir mão desse novo “espaço” — e do espaço-S — ao se mudarem para um segundo centro de pesquisa. É como a Segunda Fundação, de Isaac Asimov, e lá, gerações dos seus descendentes, vivendo um tempo de vida normal, poderão se dedicar à solução dessa ameaça com maiores chances de sucesso. Como acontece com muita FC hard, o romance não oferece protagonistas simpáticos, interessantes ou mesmo bem realizados. Sheffield também tem a tendência de expor o assunto mais por meio de monólogos do que diálogos. Por conta disso tudo e das especulações que ele apresenta, há uma face muito estéril para esse estranho futuro. Um toque interessante e que mostra a sua autoconsciência como autor, está no fato de seus protagonistas terem escolhido a opção mais humana para enfrentarem o problema que enfrentam. É uma luz particularmente brilhante, nesse romance estranho. Mas o maior fator mesmo é o senso do maravilhoso que ele comunica e a dimensão “stapledoniana”, como dizem os anglo-americanos, das suas especulações.

 

Sight of Proteus, de Charles Sheffield. Nova York: Del Rey, 1988 [1977; 1978], 248 páginas. Paperback. Neste romance de Sheffield, o mundo está novamente na beira do precipício, por causa da superpopulação. Inclusive, Sight of Proteus faz par com a sequência Proteus Unbound (1989) mas menciona situações e tecnologias vistas na série Crônicas de Arthur Morton McAndrew. A impressão geral é bem diferente daquela do livro One Man’s Universe, porém. Isso porque a principal novidade tecnológica presente em Sight of Proteus é a modificação da morfologia humana, permitindo a customização do corpo e até que ele adquira a aparência de animais. Uma dupla de investigadores está na cola de um supergênio da área, que teria usado cobaias humanas, crianças, em seus experimentos. Capman, esse cientista, some do mapa mas deixa pistas que levam os investigadores a uma jornada que os leva à galeria do grotesco que é o Palácio dos Prazeres; ao acesso à genética de alienígenas que viveram milhões de anos atrás no planeta Loge, um gigante gasosos que, ao ser destruído, gerou no cinturão de asteroides do Sistema Solar; a uma equação para o equilíbrio econômico-populacional da humanidade; e a um asteroide em forma de bola de gude oca, transformado em nave espacial interestelar. No fim das contas, Capman é encontrado mas a questão em torno dele já havia se dissipado há algum tempo. Inclusive, o experimento com crianças era na verdade uma tentativa de rejuvenescimento. A imagem final é menos positiva do que assustadora, pelo número de pessoas que, sorridentes, abandonam uma humanidade conhecida em favor de uma visão alternativa, ainda desconhecida, de humanidade. O leve tom farsesco, presente inclusive na quantidade de ideias de FC empilhadas e pouco problematizadas, reforça os percalços de uma leitura que não conduz o leitor a um futuro que parece coerente e interessante de se conhecer. Não obstante, vale refletir sobre a hipótese de Sheffield ter refletido ou expressado ainda na década de 1970 (uma versão do romance apareceu primeiro na revista Galaxy em 1977) ansiedades sobre o controle e a radicalização do corpo — que na década seguinte estariam no cyberpunk, e que hoje estão na política de identidade.

 

Arte de capa de Glen Orbik.

Web of the City, de Harlan Ellison. Londres: Titan Books/Hard Case Crime, 2013 [1958; 1957; 1959; 1956], 284 páginas. Arte de capa de Glen Orbik. Trade paperbackDesencarnado no ano passado, Harlan Ellison foi um dos escritores mais inquietantes da FC e do horror americanos, e uma das suas figuras mais polêmicas. Quando estive no Festival Utopiales em Nantes, em 2002, flagrei Brian W. Aldiss perguntando a Norman Spinrad se o “little guy” (o baixinho Ellison) ainda seguia sem ter escrito nenhum romance. De FC, bem entendido, pois Ellison no começo de sua carreira ele publicou este romance de ficção de crime, escrito enquanto ele fazia o treinamento básico no Fort Benning. Mais tarde, quando ele escrevia uma coluna de resenhas de paperbacks para o jornal do Fort Knox, onde servia, encontrou, em uma caixa de livrinhos enviados pela Pyramid Books pra serem resenhados, o seu romance — que ele havia submetido à Lion Books como Web of the City (a teia da cidade). A Lion fechou e o seu inventário foi comprado pela Pyramids, que lançou o livro como Rumble.

Web of the City é centrado no delinquente juvenil Rusty Santoro, e contam as lendas que como pesquisa para o livro Ellison teria se enfiado em uma gangue de verdade. Rusty é o líder da sua gangue, mas alguma coisa das admoestações do professor Carl Pancost cala nele. Ao tentar se afastar da violência, ele passa a ser acossado pelos seus ex-amigos. Poupa o seu

A edição original do romance de estreia de Harlan Ellison, pela Pyramid Books.

adversário em uma briga ritual de canivete, pela liderança do bando. Quando as coisas parecem estar se assentando para ele, sua irmã, que entrou na gangue influenciada por ele, é assassinada brutalmente, e a mãe o responsabiliza. Atormentado, Rusty se lança em uma fiada de atos de violência no território de gangues rivais, enquanto caça o assassino. Na introdução, Ellison reconhece que o livro tem os seus problemas. Mas a leitura revela o pendor precoce do autor pelo over the top e pela linguagem vigorosa, expressiva, e o seu interesse pelos tipos estranhos que se encontra nas ruas. O clima é forte e as situações são tensas, a textura dos bairros pobres e dos seus espaços violentos é muito presente. O romance alcança um senso trágico genuíno.

Ao pessoal que descuidadamente define “ficção de gênero” como sendo apenas ficção científica, fantasia e horror, é bom lembrar que ficção de crime também é gênero literário, e a ficção sobre delinquência juvenil foi um subgênero popular na década de 1950, nos Estados Unidos. A informação está na mui útil Encyclopedia of Pulp Fiction Writers (2002), de Lee Server. O mesmo livro menciona Wenzell Brown como um dos “três mais” do subgênero, e pode ser que o romance de Ellison tenha sido rebatizado como Rumble para entrar no rastro de um livro de Brown, The Big Rumble (1955). Eu vi muitos filmes na madrugada, pertencentes ao subgênero — e que não eram Amor Sublime Amor. Três histórias curtas de Ellison, “No Game for Children” (1959), “Stand Still and Die!” (1956), e “No Way Out” (1957), noveleta que fornece o primeiro material empregado em The Web of the City. “No Game for Children” combina a violência juvenil com a cultura dos hot rods (carros envenenados), em uma história em que um acadêmico sossegadão se mostra mais implacável do que os bandidinhos das ruas, quando provocado por um deles. O selo Hard Case Crime tem feito um trabalho maravilhoso com a ficção de crime hard-boiled, resgatando obras antigas e publicando material novo, mantendo um amor saudosista pelo formato do paperback e pela arte pulp que invariavelmente colore as suas capas. Esse material pulp e o projeto gráfico já rendeu até matéria e capa da revista de arte alternativa Juxtapoz. Algumas edições especiais aparecem em trade paperback, de dimensões semelhantes àquelas dos livros em brochura que temos aqui no Brasil. Confesso que se tivesse grana, enchia uma estante com todos os livrinhos da Hard Case Crime (já tenho uns oito). Glen Orbik, que assina esta capa e várias outras do selo, é um mestre da arte pulp oriundo dos quadrinhos.

 

Angry Candy, de Harlan Ellison. Nova York: Plume, 1989, 334 páginas. Trade paperback. Nesta coletânea de histórias, caí direto no centro da produção de Ellison, em termos de ficção científica, fantasia e horror. Já tinha lido outras coletâneas, mais antigas, mas nesta encontrei uma grande concentração de histórias premiadas, instigantes, sugestivas, nostálgicas e incômodas. Na um paia introdução, Ellison (famoso pelos comentários e introduções) comenta que, depois de montada a coletânea, ele se deu conta de que a tônica das histórias era a morte. Alguns páginas registram nas margens quem partiu entre 1985 e 1987, incluindo gente como Theodore Sturgeon e Frank Herbert. A primeira história, “Paladin of the Lost Hour”, acompanha um jovem que salva um idoso do ataque de uma dupla de assaltantes num cemitério, abriga o velho, aprende a tratá-lo como a um pai, aí descobre que era tudo um teste para que o homem lhe passe o bastão na tarefa de impedir o fim do universo. O bastão na verdade é um relógio que não pode tiquetaquear. Ao mesmo tempo, o objeto mágico confere desejos, mas ao custo de um tempo com o relógio funcionando. O teste final é negar ao velho a graça, em troca de um minuto, de rever sua esposa falecida. Uma bonita alegoria da responsabilidade, próxima daquela que Stephen King e Richard Chizmar fazem com A Pequena Caixa de Gwendy, que discuto mais abaixo. A noveleta de Ellison ganhou o Prêmio Hugo 1986. “Footsteps” é uma história de horror sobre uma vampira que seduz suas vítimas, até que encontra um semelhante. Mais curta (dua páginas), “Escapegoat” tem três viajantes temporais no Titanic, com o propósito da missão deles oferecendo um final surpresa. “When Auld’s Acquaintance Is Forgot” é um conto de FC quase-cyberpunk sobre um homem que recorre a um serviço clandestino de remoção de lembranças, por causa de uma lembrança ruim. “Broken Glass” é outra FC, mas sobre telepatia e com o toque perverso de Ellison, que narra como uma garota que sofre um estupro mental devolve a agressão com fantasias sexuais violentas ao atacante, levando-o à loucura. “On the Slab” é uma história meio lovecraftiana, com o toque ellisoniano de evocação da cultura popular cotidiana (também como Ray Bradbury fazia): um empresário do showbiz desencava o que parece ser a múmia de um ser imemorial, que ele põe em exposição — até que testemunha um inimigo igualmente imemorial surgir para vingar-se da sua descoberta, em um final intenso. “Laugh Track”, que eu conhecia da Asimov’s Science Fiction, evoca igualmente a cultura popular americana, ao tratar com leveza de uma risada gravada e empregada em diversos sitcoms e de um dispositivo tecnológico que, a partir dessa gravação, acessa a alma da tia do protagonista, a dona da risada. Também em primeira pessoa, “Prine Myshkin, and Hold the Relish” mostra que Ellison também consegue dialogar com a alta cultura literária, mas com o seu próprio twist: o narrador visita uma lanchonete onde sempre se encontra com um amigo pra discutir Dostoievsky; um terceiro ouve os dois debatendo a violência do autor russo contra as mulheres, e resolve contar uma fiada dos seus casos com o sexo feminino, todos resultando em algum tipo de acidente/incidente trágico, fatal ou aleijante — um tremendo pé frio para as mulheres.

“The Region Between” se afasta da tendência principal de Ellison, por ser uma FC que acompanha um homem aparentemente comum que assume diversas identidades por vários planetas, e em torno de quem o destino derradeiro do universo passa a orbitar. A história, uma noveleta, é bem New Wave e inclui diagramação especial e ilustrações feitas pelo artista de FC Jack Gaughan, com direito a recursos concretistas, incluindo um texto composto em espiral. (Ellison foi um dos nomes centrais da New Wave americana.) “Eidolons” é outra história em primeira pessoa, narrada por um ser sobrenatural que encontra um outro, disfarçado de proprietário de uma loja de soldadinhos de chumbo. O encontro coloca nas mãos do narrador um pergaminho com o segredo da imortalidade, e boa parte do conto é composto de 13 excertos enigmáticos desse pergaminho. A história ganhou o Prêmio Locus 1989, assim como “With Virgil Oddum at the East Pole” (uma FC sobre um homem misterioso que cria uma obra de arte para alienígenas nativos de um outro planeta, enchendo o narrador de inveja), que o recebeu em 1986, e “The Function of Dream Sleep” (também em 1989, sobre um homem que vê um monstro quando da morte do seu melhor amigo, desenvolve problemas de sono e vai ver um homem misterioso que explica a ele como é o além da vida). A melhor história do livro, porém, deve ser “Soft Monkey”, ficção de crime que ganhou o American Mystery Award 1988 — conto sobre uma moradora de rua que testemunha um crime e passa a ser caçada pela máfia, fugindo pelos becos e no meio das multidões de Nova York. É uma história dura, com muito sangue derramado Mas ela conserva um conteúdo trágico, porque a sem-teto é uma pessoa enlouquecida por alguma perda em seu passado, carregando uma boneca que ela chama de Alan, e que fará tudo para proteger. O que surge como contraponto à toda a dureza do conto é portanto esse ponto de ternura insana, que serve apenas a alguém que sempre esteve sozinho. Angry Candy ganhou o World Fantasy Award. Um testemunho das razões de Ellison ter sido considerado por tanto tempo como um dos melhores contistas do campo, e, por alguns, da literatura americana.

 

Irlanda: Os Lugares e a História (Irlanda: I luoghi e la storia), de Rosalba Graglia. Lisboa: Verbo, 2001 [1996], 136 páginas. Tradução de Rui Pires Cabral. Capa dura, formato grande. E eu que achava que travelogues e guias de viagem deviam ser o máximo da leitura chata… O texto da escritora italiana Rosalba Graglia faz a diferença, neste livro sobre a Irlanda. Espirituoso, informativo e inteligente, ele também se destaca pela sua simpatia pelo povo irlandês. O livro chegou às minhas mãos emprestado por Taira Yuji, que por sua vez o emprestou de Cristiana Vieira. Muito bem organizado, comenta a história, a paisagem, os costumes, as contribuições literárias (W. B. Yates, James Joyce) e artísticas da Irlanda para o mundo. Mas não deixa de fora o lado mais triste do lugar, mencionando a história de abusos promovida pelo Reino Unido sobre a população irlandesa, nem a questão separatista e a violência entre as duas Irlandas — Norte e Sul —, que perdurou por tanto tempo. Lindas fotografias marcam cada página, mas é o texto de Rosalba Graglia que distingue o livro. Li o livro de arte para embasar um segmento ambientado na Irlanda do século 13, do romance multivolume “Archin”, um projeto de Taira Yuji e do seu Desire Studio.

 

Arte de capa de Ben Baldwin.

A Pequena Caixa de Gwendy (Gwendy’s Button Box), de Stephen King & Richard Chizmar. Rio de Janeiro: Suma, 2018 [2017], 168 páginas. Arte de capa de Ben Baldwin e ilustrações internas de Keith Minnion. Tradução de Regiane Winarski. Capa dura. A mais famosa colaboração de Stephen King com outros escritores é o romance O Talismã (1983), com Peter Straub. Mas ele tem outras, inclusive com os filhos Joe Hill e Owen King. Esta, com Richard Chizmar, editor da revista Cemetery Dance, com a qual King chegou a colaborar, veio ao Brasil em 2018 com um belo tratamento editorial que inclui capa dura e ilustrações internas, em preto e branco (grafite) de ótima qualidade de Keith Minnion, com efeitos granulados muito sutis.

A história começa na década de 1970. Acompanha uma garota de Castle Rock — a cidade ficcional em que King ambientou muitas das suas histórias e romances de horror —, que aos 12 anos recebe de um homem de preto (outro leitmotif favorito de King) uma caixa com botões. Apertando um deles, uma gavetinha abre com um chocolate dentro. Apertando um segundo, a gaveta revela uma moeda de alto valor para colecionadores. O terceiro botão, se apertado, pode vir a causar alguma tragédia longe dali. É bem o tipo de dispositivo fascinante que a dark fantasy americana vem imaginando desde Richard Matheson (1926-2013), cuja história “Button, Button” (1970) virou o filme A Caixa (The Box), de 2009. O próprio King já havia empregado premissa semelhante em “Tudo É Eventual” (“Everything’s Eventual”), uma novela de 1997. A Pequena Caixa de Gwendy passa a acompanhar a menina do título, contando como ela enxuga o seu corpo rechonchudo, ganha formas atléticas, torna-se confiante e capaz, arruma um namorado, perde uma amiga… e também como ela apertou o botão do terror pela primeira vez e qual é o fato terrível que ela imagina ter provocado. Com leveza, a novela explora a psicologia da moça, suas dúvidas, ansiedades, e como ela constrói sua força de vontade para evitar o emprego de um poder tão maior do que ela. Sem dúvida, assim como a protagonista de The Girl Who Loved Tom Gordon (1999) e outros livros e histórias de King, Gwendy é uma personagem feminina encantadora pela sua determinação. A sua história sugere o quão poderoso pode ser um ato de imaginação na construção tanto de um caráter sólido, marcado pela autodeterminação, quanto de um desproporcional sentimento de culpa e de responsabilidade por tragédias que estão além do nosso poder individual de controlar.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Shane Davis.

Superman: Terra Um (Superman: Earth One), de J. Michael Straczynski (texto) e Shane Davis & Sandra Hope (arte). Barueri-SP: Panini Books, 2012, 138 páginas. Arte de capa de Shane Davis. Tradução de Rodrigo Oliveira & Paulo França. Capa dura. Sou eu, ainda procurando os quadrinhos de autoria de Straczynski, e estendendo as minhas leituras do Super-Homem. Na verdade, passei um bom tempo refletindo se valia a pena adquirir este livro em que Straczynski recria a origem do personagem. É sempre um risco, e muitos esforços semelhantes derrapam. Felizmente, não é o caso aqui. De fato, valeu muito o investimento. Na verdade, fiquei surpreso com a resposta emocional que essa HQ despertou em mim. Essa atenção para com a “lógica emocional” (nas palavras da escritora de FC Kelly Robson), ou mesmo lógica moral, do que ele narra é uma das características que distinguem o roteirista conhecido pela criação da série Babylon 5. 

A história começa com Clark Kent arriscando a sorte na cidade grande — Metrópolis, onde faz teste para um time profissional de futebol americano, e para uma vaga em uma empresa de materiais. Fisicamente ele excede, e intelectualmente também, o que é um detalhe importante, considerando o quanto gêneros e formas artísticas populares tendem a se esquivar de personagens inteligentes. A caminho de realizar o sonho americano, Clark hesita quando sua mãe lhe diz que ele deve buscar a ocupação que lhe trouxer felicidade e que melhor empregue seus supertalentos. O rapaz então visita a redação do jornaleco Planeta Diário, onde conhece o idealista Jimmy Olsen e a durona Lois Lane. Enquanto ele reflete sobre as suas possibilidades profissionais, a história, que ia muito bem, retrabalhando o material conhecido da mitologia do herói, de modo que as variações do autor caiam com naturalidade e também de modo interessante e sugestivo, nas fendas antecipadas pelo leitor que conhece essa mitologia, se transforma em uma ficção científica de invasão alienígena, completa com naves gigantes e tropas com armaduras robotizadas. Nesse ponto, achei que o enredo iria se perder, mas mesmo durante as sequências de ação os flashbacks vão preenchendo as lacunas da formação do personagem e garantindo o interesse. Os alienígenas estão na Terra atrás do próprio Superman. Buscam terminar o serviço iniciado com a destruição do planeta Kripton. Essa é uma inovação de Straczynski, eu imagino: a destruição do planeta seria resultado de uma guerra de gerações entre Kripton e um outro mundo do mesmo sistema planetário. A briga de Superman contra o líder dos invasores acontece entre os arranha-céus de Metrópolis, e aí há semelhanças com o filme Homem de Aço (Man of Steel; 2013). Há ainda uma linha narrativa coadjuvante, em que uma cientista militar analisa a nave que trouxe o personagem de Kripton. Os personagens dessa linha não interferem muito no enredo, mas a nave é crucial para virar a mesa sobre os invasores. Para sublinhar a sua participação, Straczynski trouxe uma interessante ideia de ficção científica: os próprios átomos da nave apresentam um código ativado quando Superman sonda um fragmento dela, com a sua supervisão.

Lendo essa HQ, me pareceu que Hollywood tem quase que sistematicamente se apropriado das histórias de Straczynski para realizar produções de menor potencial — como em Thor (2011) e Doutor Estranho (2016). No início de Terra Um, Clark Kent é um jovem melancólico e ensimesmado. Está em busca do seu lugar no mundo, e o conflito indica a ele com clareza qual é esse lugar. Por isso, apesar de toda a morte e destruição, ele sorri no final. Shane Davis tem aquele desenho correto anatomicamente e versátil em termos da representação de roupas e arquitetura, que caracteriza a DC Comics. A arte-final cuidadosa de Sandra Hope reforça suas qualidades. O seu jovem Clark se parece com uma versão alta e corpulenta de Tom Cruise em A Guerra dos Mundos, completa com a jaqueta de capuz. Ao mesmo tempo, Davis homenageia alguns desenhos clássicos de Joe Shuster, o co-criador (com Jerry Siegel) de Superman. O livro é muito bem diagramado, a propósito. Por sua vez, Straczynski não perde o seu senso de lógica moral e fornece uma espécie de epílogo (disfarçado como uma entrevista do Superman dada a Kent) em que o herói não deixa de registrar as perdas sofridas durante a invasão, e faz a sua promessa de se dedicar à proteção da humanidade, sem se colocar a serviço do governo americano.

—Roberto Causo

Sem comentários até agora, comente aqui!

Roberto Causo em Antologia de FC Latino-Americana

O escritor Roberto Causo é o único brasileiro incluído na antologia de ficção científica latino-americana América Fantástica, editada por Mariano Villarreal para a editora espanhola Huso.

 

 

Brasa 2000” é o conto de Roberto Causo, selecionado por Mariano Villarreal, experiente editor espanhol, responsável pela série de antologias Nova Fantástica. O conto de Causo uma narrativa de guerra futura ambientada na cidade de São Paulo, durante uma guerra entre Brasil e Argentina, na qual drones de ataque são utilizados na grande metrópole. A história apareceu primeiro em Ficções: Revista de Contos N.º 15 (2006), e no mesmo ano na revista eletrônica argentina Axxón N.º 169 (2006), com tradução de Sergio Gaut vel Hartman, e em outra antologia de FC latino-americana, Qbit: Antología de la nueva ciencia ficción latinoamericana, editada por Raúl Aguiar para a Casa de las Americas, em Havana, Cuba, e publicada em 2012. O conto saiu ainda na revista eletrônica Perry Rhodan Volume 44, em 2016.

Histórias de guerra futura são raras no Brasil. Há precedentes, porém, como o romance A Invasão (1980), de José Antonio Severo, e o conto “A Pedra que Canta” (1991), de Henrique Flory. Mais tarde, a invasão do Iraque em 2003 levou a uma pequena onda de romances de guerra futura envolvendo o choque de uma superpotência tecnológica com o Brasil. A Guerra da Amazônia (2004), de Carlos Bornhofen, é um exemplo, assim como A Ira da Águia (2005), de Humberto Loureiro.

Villarreal calcula que, não havendo atrasos, “a antologia começará sua distribuição no mês de abril, dividida em dois volumes por razões comerciais (só o primeiro já ocupa 500 páginas)”. Fala-se em uma promoção do livro entre  17 e 20 de julho, quando “se celebra el Festival Celsius em Avilés, o evento literário mais importante do estado espanhol quanto à literatura fantástica e de ficção científica”. A Huso Editorial y Ediciones Cumbrias, de Madrid, é dirigida por Mayda Bustamante e possui um caráter bem internacional.

O índice de América Fantástica: panoráma de autores latinoamericanos fantásticos del nuevo milénio (abaixo) revela que “Brasa 2000“, na tradução de Sergio Gaut vel Hartman, é a única contribuição ficcional brasileira — uma honra para Roberto Causo, que também escreveu para Villarreal um ensaio curto sobre a ficção científica no Brasil, incluído no livro.

PRÓLOGO, por Mariano Villarreal

ARGENTINA
FANTÁSTICO Y CIENCIA FICCIÓN EN ARGENTINA, por Mariano Villarreal & Laura Ponce
BONSAI, de Martín Felipe Castagnet
EL DESENTIERRO DE LA ANGELITA, de Mariana Enríquez
LA CIUDAD DE LOS CÉSARES, de Carlos Gardini
EL CÍRCULO SE CIERRA, de Sergio Gaut vel Hartman
LOS REYES MUERTOS, de Teresa P. Mira de Echeverría
SIDGRID, de Laura Ponce
OCTAVIO, EL INVASOR, de Ana María Shua

BOLÍVIA
LA SEMILLA DE LA CIENCIA FICCIÓN BOLIVIANA, por Giovanna Rivero
NUESTRO MUNDO MUERTO, de Liliana Colanzi
LA CASA DE LA JERERE, de Edmundo Paz Soldán
PASÓ COMO UN ESPÍRITU, de Giovanna Rivero

BRASIL
CIENCIA FICCIÓN BRASILEÑA, por Roberto de Sousa Causo
BRASA 2000, por Roberto de Sousa Causo

COLÔMBIA
CIENCIA FICCIÓN COLOMBIANA: EN NUESTRO CASO ES ENCUENTRO, por Rodrigo Bastidas Pérez
SIMBIOSIS, de Luis Carlos Barragán
SACRIFICIO DE DAMA, de Julio César Londoño
EL NIÑO SIN BRAZO, de Cristian Romero

COSTA RICA
LA CIENCIA FICCIÓN EN COSTA RICA (1899-2018), por Iván Molina Jiménez
FRENTE FRÍO, de Jessica Clark
BICENTENARIO, de Iván Molina Jiménez

CUBA
LA CIENCIA FICCIÓN EN CUBA, por Daína Chaviano & Elaine Vilar Madruga
KAREL 5092, de Raúl Aguiar
NÍOBE, de Daína Chaviano
GOMEN NASAI, LORCA-SAN, de Michel Encinosa Fú
RECUERDOS DE UN PAÍS ZOMBI, de Erick J. Mota
MARIPOSAS DEL OESTE, de Elaine Vilar Madruga
AMBROTOS, de Yoss

CHILE
CIENCIA FICCIÓN A LA CHILENA, por Marcelo Novoa
MARIANA, de Jorge Baradit
PATRIA AUTOMÁTICA, de Álvaro Bisama
SPOILED, de Alicia Fenieux
LOS QUE NO VUELVEN, de Gabriel Mérida
EL ÚLTIMO VIAJE DEL TIRPITZ, de Alberto Rojas Moscoso

PRESENTAÇÃO DOS AUTORES
AGRADECIMENTOS

Temos 2 comentários, veja e comente aqui

Leituras de Março de 2018

Março foi um mês de leituras diversificadas, mas com destaque para o inquietante romance de ficção científica Kindred: Laços de Sangue, de Octavia E. Butler, e para a polêmica avaliação das deficiências morais da literatura brasileira, feita por Martim Vasques da Cunha no estudo A Poeira da Glória.

 

Arte de capa de Dennis Beauvais.

Aliens Book 1: Earth Hive, de Steve Perry. Nova York: Bantam Spectra, 1992, 280 páginas. Capa de Dennis Beauvais. Paperback. Conheço Steve Perry da coluna que ele tinha no fanzine de Orson Scott Card, Short Form, em 2015 li um livro de sua filha, S. (de Stephani) D. Perry, Aliens: Criminal Enterprise — também parte dos tie-ins originais inspirados nas situações surgidas com o filme Aliens (1984, de James Cameron). Pai e filha têm uma escrita dura e feroz, como o assunto exige. Este romance, em particular, é inspirado pelo filme, cujas situações ele cita: um cabo veterano dos Colonial Marines e uma garota institucionalizada são os únicos sobreviventes de um surto dos aliens. Quando os militares decidem organizar uma expedição de coleta de espécimes em um mundo infestado por eles, o cabo é convocado e, no caminho, resgata a jovem do hospício. Ao mesmo tempo, na Terra um laboratório militar já trabalha no estudo dos organismos xenomorfos, quando uma seita fanática de adoradores dos alienígenas resolve invadi-lo e espalhar a infecção pelo nosso planeta. Só pelo resuminho dá pra sentir que a narrativa salta de uma situação para outra, o que resulta, quase que obrigatoriamente, numa certa superficialidade. Nem por isso o livro deixa de passar a impressão de retratar uma humanidade que, por razões militares, comerciais ou religiosas, caminha célere na direção do apocalipse alien. Há aí aquele problema de escancarar de um modo um pouco frugal a falência daquilo que os primeiros filmes tinham como objetivo maior: impedir que essa forma de vida infecciosa alcançasse o planeta Terra. E como vieram muitos outros romances originais de Aliens depois — eu li dois em 2015, para entrar no clima de terra devastada e de um confinamento claustrofóbico que tentei realizar no inédito “Mestre das Marés”, o segundo romance da série As Lições do Matador —, fica a sensação de que Steve Perry teria se precipitado ao entregar as joias da coroa tão cedo aos alienígenas.

De onde vem o interesse pelo universo criado por Dan O’Bannon e Ridley Scott, com Alien: O Oitavo Passageiro (1979)? Em grande parte, em razão do adversário da humanidade ser uma forma de vida que age cegamente, sem intenções, malícia ou razões estratégicas ou geopolíticas. Nem sequer uma civilização ela possui. A outra coisa é uma representação da humanidade atirada na galáxia arrastando consigo seus vícios e azares. Com Aliens: O Resgate (1986), Cameron introduziu o tema da FC militar e sublinhou ainda mais o cinismo criminoso da Companhia. Daí o naturalismo duro e cínico que predomina na série e nos livros e histórias em quadrinhos, destacando esse universo ficcional da idealização e do lado plástico e juvenil que temos em Star Wars, Star Trek, Guardiões da Galáxia e outras franquias. Os personagens parecem estar sempre espremidos entre o darwinismo brutal dos aliens, e o darwinismo social, empresarial, de uma humanidade que deveria ter aprendido alguma coisa de cá (o presente) pra lá (o futuro interestelar). São pontos de uma atitude crítica que vale tanto hoje, quanto valia em fins da década de 1970 ou durante a década de 1980. Talvez até mais.

P.S.: No Facebook, o tradutor Carlos Angelo lembrou que este livro é novelização da minissérie de quadrinhos Aliens: Outbreak, escrita por Mark Verheiden com arte de Mark A. Nelson e Ron Randall.

 

Sonetos do Amor Obscuro e Divã do Tamarit (Sonetos del amor oscuro; Divan del Tamarit), de Federico García Lorca. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Folha Literatura Íbero-Americana vol. 2, 2012, 88 páginas. Capa dura. Tradução e apresentação de William Agel de Mello. Falta poesia na minha dieta literária. Para diminuir essa deficiência, peguei outro dia este livro do celebrado Federico García Lorca, que oferece uma leitura rápida e intrigante, num livro de capa dura gostoso de manipular. Também dramaturgo, Lorca foi o poeta número um da Espanha no século 20, a vítima mais famosa do regime da facção anti-republicana da Guerra Civil Espanhola. O volume em questão abriga alguns dos seus últimos poemas escritos, distribuídos em dois livrinhos juntados aqui sob uma mesma capa. Consta que o primeiro, Soneto del amor oscuro (1936) só foi publicado parcialmente, por ter um conteúdo homossexual explícito. É um livro bilíngue.

O que salta aos olhos é a riqueza de imagens poéticas, às vezes de um certo hermetismo, e a intrusão o tema da morte e da violência no soneto de amor, de saudação do objeto de amor e de desejo. Há uma ironia dissonante aí, frente a doçura do soneto, e que compõe o principal efeito dos poemas. O mesmo teor persiste em Divan del Tamarit (1936), variando apenas os formatos de versificação — que incluem o gazel, uma forma de poema lírico-amoroso; e a casida, uma forma herdada da poesia árabe. Dessa última, “Da Mulher Estendida” se tornou minha favorita.

 

A Poeira da Glória, de Martim Vasques da Cunha. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015, 628 palavras. Brochura. Ser um observador da ficção científica e outras formas de ficção de gênero no Brasil, como eu me imagino, significa também prestar alguma atenção a como a literatura brasileira se enxerga, se desenvolve e sente o papel da ficção popular. São poucos, é claro, os livros que realizam uma sondagem mais profunda e crítica da nossa literatura — e mais raros ainda aqueles que se debruçam sobre a ficção popular. Das minhas leituras, dá para citar exemplos como A Aventura Literária: Ensaios sobre Ficção e Ficções, de José Paulo Paes; O Espírito da Prosa: Uma Autobiografia Literária, de Cristóvão Tezza; e Muitas Peles, Luiz Bras.

Um modo de abordar a questão maior de onde se posiciona a ficção de gênero nacional nas nossas letras, é identificar e reconhecer as insuficiências da literatura brasileira como um todo, e confrontá-las com as faltas da literatura popular conforme percebidas pela crítica mainstreamA Poeira da Glória é um ensaio sobre o caráter da literatura brasileira, do século 19 ao presente, castigando suas tendências ao esteticismo e à falta de firmeza moral e do foco na liberdade interior da pessoa. É escrito num tom meio autocongratulatório e agressivo, mas o livro ainda é válido pelo que afirma e expõe. Cunha insiste que carece à literatura brasileira o foco em um eu íntegro que se expressa por um “fundo insubornável do ser”, expressão que ele toma do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, para indicar autor e personagem que rejeitam a postura do “quietismo político” e do “estetização da realidade”. Ele também condena aquela crença de que apenas a literatura salva o brasileiro da penúria existencial do país, mesmo enquanto ela se esquiva de encarar de frente a dura realidade da vida. No processo, acusa Machado de Assis de “dissimulado” e adepto do “quietismo político”; Lima Barreto de apegado ao “esteticismo”; e Mário e Oswald de Andrade de, a partir e obras omo Macunaíma (1928) e Serafim Ponte Grande (1933), terem colocado a literatura brasileira em um “beco sem saída”. O que não dá para negar, até por ser uma afirmativa feita antes, em linhas gerais, por gente como José Paulo Paes, é que as práticas modernistas instauram

“o divórcio entre o leitor e o escritor, a separação entre os intelectuais que deveriam produzir uma obra para aprimorar a nossa imaginação moral e o público comum que gostaria de entendê-la, justamente para compreender a si próprio.

“Esse divórcio de sensibilidades nasce em definitivo com o Modernismo, mas se tornaria uma espécie de método nos anos posteriores, até chegar ao ápice na obra de Guimarães Rosa. E acontece algo mais, algo que já não percebemos porque esta cisão está impregnada em nossa visão de mundo: no anseio de escrever numa ‘língua brasileira’, esquecemos que a literatura é antes de tudo uma forma de comunicação entre os nossos semelhantes — e trocamos os dilemas morais da condição humana, os que nos transformam em pessoas, por um lugar, por este ente abstrato, que nem sequer tem uma identidade nacional, chamado Brasil.” —Martim Vasques da Cunha, A Poeira da Glória.

Cunha isola alguns nomes que escapam da tendência que ele condena: Cecília Meireles, Nelson Rodrigues, Otto Lara Resende e outro punhado. Sua análise vem até momentos mais recentes, e aborda gente como Raduan Nassar, Daniel Galera e Bernardo Carvalho. Cunha é Mestre em Filosofia e seu enfoque parte desse campo do conhecimento, de modo que nem sempre a terminologia crítica bate com o que estou acostumado. A discussão se baseia na concepção platônica e aristotélica do Bom, o Verdadeiro e o Belo, trindade expressa na obra de arte. Por aí, a beleza deve conduzir às dimensões mais profundas do ser. Segundo Cunha, na literatura brasileira a ênfase estaria apenas no Belo, com o esteticismo levando ao desprezo pelo Bom e o Verdadeiro, e expressando aí a superficialidade da conjuntura cultural brasileira. Mas como entender a questão do “fundo insubornável do ser”? É o eu profundo do sujeito, que resiste aos julgamentos e às pressões do meio social. A leitura de Os Intelectuais e as Massas (1992) , de John Carey, me vacinou contra Ortega y Gasset, mas é possível chegar a uma aproximação via self-reliance — o apoiar-se em si mesmo de Ralph Waldo Emerson e outros Transcendentalistas da Nova Inglaterra. Mesmo porque a cultura popular está cheia de exemplos do homem self-reliant — em filmes de western como Da Terra Nascem os Homens (The Big Country; 1958), e em personagens como o detetive Philip Marlowe ou o astronauta Perry Rhodan. O conceito soa mais democrático do que Ortega y Gasset e os tons apocalípticos do seu pensamento modernista, e certamente vem me guiando nos meus próprios escritos. Daí minha simpatia pela coragem de Martim Vasques da Cunha em afirmar essa carência da literatura e da cultura intelectual brasileira, mesmo que eu não tenha tanta certeza quanto a sua extrapolação desse quadro para o contexto da militância intelectual de esquerda, simbolizada, para ele, pela figura do crítico Antonio Candido. É claro, nem de longe quero sugerir que Cunha encontraria na cultura popular uma alternativa possível para o quadro que ele expõe.

 

O Lobo do Espaço, de Fausto Cunha. Rio de Janeiro: Ciranda dos Livros, 1984, 80 páginas. Ilustrado. Brochura. A ficha catalográfica desta novela de ficção científica é de 1977, o que não deixa de compor uma advertência para os apressados escritores de hoje. Fausto Cunha é um dos três ou quatro grandes nomes da FC brasileira da Primeira Onda, junto com André Carneiro, Dinah Silveira de Queiroz e Rubens Teixeira Scavone. Ramiro Giroldo estudou a sua obra na tese de doutorado “Alteridade à Margem: Estudo de As Noites Marcianas, de Fausto Cunha” (2012). Ele andou morando nos Estados Unidos e se metendo com a NASA. Nesse sentido, tanto esta novela quanto a fabulosa noveleta “Última Stella” (1981) demonstram que ele poderia ter sido um dos mais significativos autores nacionais de FC hard, se tivesse sido mais produtivo nessa área. Um dos aspectos interessantes da sua abordagem, é que, como conhecedor do gênero, Cunha não abria mão das lições da New Wave.

Uma concessão que O Lobo do Espaço faz à literatura juvenil é embutir aquilo que é basicamente uma história de aventura espacial como uma narrativa que um avô (o Capitão Argo) faz ao seu netinho, contando como foi uma expedição em particular, nos bons e velhos tempos em que ele pertenceu a uma organização explorador anônima, como parte da tripulação internacional da nave O Cão Prateado. A aventura se passa fora da Via Láctea, na galáxia Messier 101, a 20 milhões de anos-luz da Terra. Em um planeta em particular, eles descobrem uma agressiva forma de vida que se pendura como móbiles na atmosfera. São seres luminescentes que manipulam a luz para, por exemplo, destruir o módulo de pouso do herói e seus companheiros. Depois de tentar um contato com uma máquina telepática que projeta conceitos, o Capitão Argo deduz que qualquer tentativa de comunicação teria de se basear menos em ideias e mais em imagens, em cores. Eles descobrem que as criaturas recuam diante da cor amarela, e mais tarde se escondem no fundo do mar, protegidos por uma camada de plâncton vermelho. A partir da manipulação das cores, uma operação de resgate é organizada. É esse truque em particular que parece dar o toque de New Wave à aventura pulp da novela. A arte de capa é creditada a Guilherme Camarinha Martins, “sobre uma concepção de Fausto Cunha”, e tem cara de ser uma colagem a partir de ilustrações apanhadas em revistas da época. O livro é ilustrado com desenhos não-creditados, de estilos diferentes, mostrando astronautas, sondas e satélites artificiais, que também parecem ser resultado de apropriações semelhantes.

 

Kindred: Laços de Sangue (Kindred), de Octavia E. Butler. São Paulo: Editora Morro Branco, 2017 [1979], 446 palavras. Capa dura. Tradução de Carolina Caires Coelho. Um dos principais lançamentos do ano passado no Brasil, certificado pelos jornais O Estado de S. Paulo e Quatro Cinco Um, que o incluíram nas suas listas dos melhores lançamentos literários de 2017. Essa distinção, somada ao fato de ser um romance original de 1979, também puxa a orelha daqueles fãs que eternamente reclamam das editoras por publicarem clássicos da FC ao invés das novidades. Assim como O Livro do Juízo Final, de Connie Willis, é uma história de viagem no tempo, violenta e dedicada a expressar o nosso despreparo em lidar com a dura realidade do passado. As diferenças estão no fato de que, no livro de Willis, a viagem no tempo é algo muito institucionalizado e científico, enquanto que em Butler ela é involuntária e sem explicação. A escritora já havia aparecido no Brasil com um par de histórias na Isaac Asimov Magazine, e a Editora Arte & Ciência do escritor de FC Henrique Flory já havia tentado publicar Kindred aqui, no começo do século. Meu exemplar foi comprado na feira do livro da USP, ano passado.

O romance é narrado por uma mulher afro-americana de 1976, Dana, que, por esse processo misterioso, é projetada no passado anterior à Guerra da Secessão. Isso acontece toda vez que um garoto branco chamado Rufus se encontra em perigo mortal. O livro abre com ela retornando acidentadamente em uma dessas viagens, para perder o braço em uma parede — como no conto do brasileiro Jeronymo Monteiro, “Um Braço na Quarta Dimensão” (1964). Antes disso acontecer, Dana salva Rufus seguidamente. Ela passa semanas e meses em uma época em que a cor de sua pele a tornava vulnerável ao arbítrio dos brancos, mas, quando ela mesma está em perigo, retorna ao seu presente para descobrir que pouco tempo havia se passado. Em algumas ocasiões,  viaja com o marido Kevin, um caucasiano. Os dois acabam separados, e quando se reencontram no passado, retornam a 1976 juntos. Mas Dana ainda tem missões a cumprir no perigoso século 19. Butler é sensível não apenas ao sofrimento da sua heroína, mas também à desorientação de Kevin, que tem dificuldade para se readaptar ao presente, depois de passar anos no passado. O centro do romance, porém, é a relação dela com Rufus, uma pessoa que, mesmo enquanto reconhece a importância de Dana em sua vida, está tão ciente do poder que a ordem escravagista lhe dá, que não hesita em usá-la para obter o que deseja: Alice, a outra antepassada da heroína. A protagonista que colabora, de maneiras diferentes, embora a contragosto, em situações sexuais envolvendo outras pessoas também está presente na série Xenogenesis de Butler (cujo primeiro livro, Dawn, saiu em Portugal como Madrugada). Espelha, certamente, a situação dos escravos submetidos a um contexto de casamentos arranjados pelos senhores. Por tudo isso, o romance, embora não narre cenas tão fortes e degradantes quanto aquelas de The Underground Rairoad, de Colson Whitehead, e nem se dedique a uma panorâmica do escravismo nos Estados Unidos, é emocionalmente escruciante, com uma tensão presente página a página, resultando em uma narrativa de força rara e até superior ao premiado livro de Whitehead.

Assim como o conto em tom de crônica da brasileira Zora Seljan, “O Carnaval do Ano 2170” (1978), Kindred nos lembra de que a única máquina do tempo disponível para a humanidade é o aparelho reprodutor feminino, que conecta passado, presente e futuro. Essa viagem temporal está sujeita a todas as vicissitudes da condição humana. Como eu mesmo me dei conta, ao escrever meu romance A Corrida do Rinoceronte (2006), sobre um afro-descendente brasileiro que vai trabalhar nos EUA, onde se depara com a política racial local, é duro nos darmos conta de que, para estarmos aqui, foi preciso que uma mulher fosse abusada em algum momento do passado histórico e familiar. Butler enfrenta essa dura realidade de frente, como a sua heroína. Mas ela também se lembra da lição dos contos de Richard Wright (1908-1960), de que a violência contra o opressor é o primeiro sinal de que não se está completamente subordinado. A melhor leitura que fiz neste ano, até o momento.

 

Jean Nouvel, de Marco Casamonti. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Folha Grandes Arquitetos Vol. 8, 2011, 80 páginas. Capa dura. Tradução de Marcos Maffei. Minhas leituras sobre arquitetura não pararam no mês passado. Com este perfil do arquiteto francês Jean Nouvel, elas caem por completo no futurismo/pós-modernismo, com uma conexão, apontada pelo autor Marco Casamonti, com a abordagem historicista de Le Corbusier, em que o arquiteto retorna constantemente às soluções do passado para encontrar inspiração para seus projetos. Esteticamente, é um dos mais ricos exemplos, com um pendor para o detalhe que filtra a luz e colore o ambiente interno e a fachada externa de tons, reflexos pontilhistas e texturas — como se vê pela sugestão mourisca dos painéis externos do Instituto do Mundo Árabe, em Paris (e na capa do livro). Os interiores da ampliação do Centro de Arte Reina Sofia também são um grande exemplo, assim como a cúpula da Torre Agbar, ambiente de ficção científica no topo de um arranha-céu bem feio por fora. As fotos do Museu do Quai Branly, em Paris, sugerem uma concepção desarticulada, mas as do Teatro Guthrie (EUA) e as do Auditório Danish Radio (Dinamarca) comunicam a aura de projetos inspirados, em que há uma dança de planos e de subtons que impressiona. As concepções artísticas de alguns projetos — como o do Centro de Espetáculos de Seul e o da Filarmônica de Paris — lembram o toque surrealista do artista de FC Paul Lehr, enquanto o do Louvre de Abu Dhabi parece um disco voador pousado sobre um espelho d’água. A seção “O Pensamento” é composta de excertos do seu “Manifesto Lousiana” (2005), que evoca a física do macro e do micro, e denuncia que

“a arquitetura está aniquilando os lugares, banalizando-os e violando-os.” —Jean Nouvel, “Manifesto Louisiana” (2005).

Ao mesmo tempo, Nouvel clama por uma arquitetura que transcenda ao revelar geografias, histórias, cores, paisagens e horizontes. Palmas.

—Roberto Causo

Sem comentários até agora, comente aqui!