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Leituras de Abril de 2020

Em abril, um mês de leituras particularmente interessantes, li dois livros de não ficção relacionados, de um modo ou de outro, com a astronáutica. E também ficção científica nacional e estrangeira, e alguns álbuns de quadrinhos antigos visualmente deslumbrantes.

 

Arte de capa de John Berkey.

Colonies in Space, de T. A. Heppenheimer. Nova York: Warner Books, 1980 [1978], 322 páginas. Prefácio de Ray Bradbury. Arte de capa de John Berkey. Fotos. PaperbackPensando em escrever uma história das Lições do Matador ambientada em uma estação espacial, recorri a este livro que trata dos projetos da década de 1970, de construção de habitats espaciais. Menos do que me trazer informações úteis especificamente para a história, me fez viajar a uma visão futurista retrô — isto é, um futuro que, infelizmente, a humanidade veio a desprezar.

O primeiro capítulo discute as dificuldades de se encontrar vida em outros mundos, a par com as dificuldades de estabelecer a vida humana em outros planetas do Sistema Solar e da galáxia. A solução explorada é construir colônias no espaço: habitats artificias, como os que aparecem no Universo da Tríade, de Jorge Luiz Calife. Na narrativa de Heppenheimer, a questão começa com o físico Gerard K. O’Neill perguntando a um grupo de pós-graduandos se a superfície de um planeta seria o melhor lugar para uma colônia fora da Terra. Daí surgiram ideias de cilindros rotacionais em certos pontos estáveis (os Lagrange) do sistema Terra-Lua. As ideias foram parar em um congresso, que, por sua vez, capturou a atenção da imprensa e da NASA. Novos projetos aperfeiçoaram as ideias originais, com eles surgindo planos de captar energia solar e enviá-la via emissões de microondas para receptores na Terra, fornecendo energia barata e ecologicamente responsável a bilhões de seres humanos, inclusive de países pobres, tudo devidamente calculado e com o rascunho da tecnologia necessária. O material para a construção das colônias também foi equacionado nos projetos: rastelados na Lua, colocados em órbita por um lançador e apanhado no espaço por uma espécie de luva de baseball gigante acoplada a uma nave espacial, e levado ao local de construção.

Após tratar da engenharia dos espaços internos, o livro mergulha na especulação típica da ficção científica, imaginando gerações nascidas nesse tipo de habitat espacial, e seu estilo de vida, economia, cultura e herança — milhões de anos no futuro, com as colônias funcionando como naves de gerações e chegado a outros sistemas planetários. A edição original do livro é de 1978, e sabemos que, 42 anos depois, nada disso veio a se realizar. A única coisa que temos no espaço orbital é a Estação Espacial Internacional, que é uma realização em si, mas muito aquém do que aqueles visionários haviam imaginado. Ao mesmo tempo, e mesmo reconhecendo o espírito positivista e pouco crítico do utopismo energético daqueles cientistas, ainda temos um mundo que sofre com as consequências ambientais da mesma política energética de então.

 

Arte de capa de Michael Whelan.

In Conquest Born, de C. S. Friedman. Nova York: DAW Books, 1.ª edição, 1987 [1986], 512 páginas. Arte de capa de Michael Whelan. Paperback. Este romance de space opera foi resgatado da substancial estante de literatura em inglês do agora fechado Sebo do Farah, no Centro Velho de São Paulo. Ficou muito tempo em uma caixa de papelão até que eu tornasse a ser cativado pela impressionante arte de capa do artista Michael Whelan. Claramente, sente-se nesta space opera exótica da autora C. S. Friedman a influência da série Duna, de Frank Herbert. Ela imagina duas sociedades em conflito, uma composta por aristocratas absolutos, escravagistas e perversos, além de geneticamente decadentes, os braxins; e a outra, os azeans, mais igualitária e dedicada à manipulação genética. Dois personagens representam as duas sociedades: o ambicioso Zatar, uma espécie de Júlio César que deseja unificar os braxins sob o seu poder; e Anzha lyu Mitethe, uma militar com poderes telepáticos, em ascensão na sua busca por vingança contra os braxins. Apesar de implacáveis e cruéis, cada um ao seu modo, eles são apresentados com simpatia e orbitam em torno um do outro em uma série de situações episódicas que forma um mosaico complexo, envolvendo de duelos com espadas a combates espaciais e atividades extraveiculares, sedução de adversários políticos, traições, intrigas palacianas e assassinato de amantes e de parentes. A fabulosa ilustração de Michael Whelan na capa captura com perfeição a dança entre os dois personagens obsessivos, e a natureza cinzenta da história.

Fica claro que Friedman pescou de Duna a estrutura feudalista que remete às monarquias imperiais dos séculos 18 e 19, e os elementos paranormais como fonte do grande exotismo do romance. Seu feminismo aflora aqui e ali em discussões da condição da mulher nas duas sociedades, especialmente na braxin. Mas, como costuma ocorrer nesse tipo de narrativa fundada em um pensamento darwinista social extrapolado para a sexualidade e a luta de classe sociais, qualquer discurso igualitário e progressista meio que se perde na enxurrada de violência e degradação. De fato, In Conquest Born, que tem uma sequência, The Wilding (2004), é exemplo exacerbado de um pensamento bem americano que naturaliza e advoga opressão e submissão em termos psicanalíticos e darwinistas. Vemos isso em Charles Moulton (o psicanalista William Moulton Marston), criador da Mulher-Maravilha, e no autor de alta fantasia John Norman (o professor de Filosofia John Frederick Lange Jr.), autor da Gorean Saga, que dramatiza situações de escravidão sexual e gerou uma espécie de “culto” S&M que ainda anda solto por aí.

 

A Verdadeira História da Ficção Científica: Do Preconceito à Conquista das Massas (The History of Science Fiction), de Adam Roberts. São Paulo: Seoman, 1.ª edição, 2018, 704 páginas. Apresentação de Silvio Alexandre. Prefácio de Braulio Tavares. Posfácio de Gilberto Schoereder. Tradução de Mário Molina. Brochura. Em dezembro de 2019, saiu nova edição da revista eletrônica Zanzalá, criada e editada por Alfredo Suppia. É a primeira revista acadêmica dedicada à FC e fantasia no Brasil. Este que é a sua terceira edição trouxe meu artigo “A Editor Seoman e a Ficção Científica”, no qual discuto os livros de não ficção dessa editora que são do interesse do pesquisador e fã de FC. São eles A Vida de Philip K. Dick: O Homem que Lembrava o Futuro (A Life of Philip K. Dick: The Man Who Remembered the Future; 2015), de Anthony Peake; Universo Alien: Se os Extraterrestre Existem… Cadê Eles? (Alien Universe; 2017), de Don Lincoln; A Verdadeira História da Ficção Científica: Do Preconceito à Conquista das Massas (The History of Science Fiction; 2018), de Adam Roberts; e O Guia Geek de Cinema: A História por Trás de 30 Filmes de Ficção Científica que Revolucionaram o Gênero (The Geek’s Guide to SF Cinema; 2019), de Ryan Lambie. Todos aí graças ao interesse do editor Adilson Silva Ramachandra. No afã de atender aos prazos da revista, pulei uns trechos (as notas, especialmente) deste importante livro de Adam Roberts, de modo que só completei a leitura mais tarde. Aqui, empresto alguns trechos do artigo em questão, e acrescento alguma coisa a título de apreciação final.

Roberts escreveu Science Fiction (2000), livro introdutório, parte da conhecida e popular série The New Critical Idiom. É bastante citado entre os jovens pesquisadores brasileiros de ficção científica. Nesse livro anterior, Roberts afirmou achar que a FC é moderna, surgida entre  1780 e 1830. Mas já no prefácio à primeira edição de A Verdadeira História da Ficção Científica, ele afirma:

“Sustento que as raízes do que hoje chamamos de ficção científica são encontradas nas viagens fantásticas da novela [sic] grega antiga” —Adam Roberts. A Verdadeira História da Ficção Científica, página 23.

A mudança de ponto de vista fica estabelecida, portanto, e o próprio autor explicita no prefácio que, com a escrita do livro, sua ignorância quanto à FC diminuiu e que as suas visões evoluíram. Ele nem emprega a expressão “proto-ficção científica” em seu livro, preferindo abandonar qualquer ambiguidade ou divergência do gênero que a expressão poderia indicar, para chamar diretamente de “ficção científica” as obras antigas que investiga.

A tese do novo livro com a nova perspectiva é a de que a FC como a conhecemos deveria muito a um ponto de clivagem até então insuspeito: a Reforma Protestante no século 16. Propõe que, entre a Antiguidade Clássica e o século 17, houve um hiato na escrita de viagens fantásticas, motivado pelas condições sócio-culturais da ordem feudal e do catolicismo. Para Roberts, o ressurgimento da FC vem junto com a reforma protestante. A teoria de Giordano Bruno da pluralidade dos mundos habitados, rechaçada pela Igreja, é um dos pilares desse entendimento da parte de Roberts, e que a imaginação da FC se atrela à cultura protestante ocidental. Imagino que uma primeira reação possível que esse tipo de argumento despertaria em nós seria a suspeita de que Roberts desejaria afirmar a superioridade da cultura protestante, e da colonização anglo-nórdica em detrimento da latina ou das culturas não-ocidentais, especialmente em uma época em que (ainda) se fala em “choque de civilizações” e se volta a falar em “guerra cultural”. Roberts evita o campo minado com argumentos sólidos que remetem mais à história das ideias e das mentalidades. Também foge de uma perspectiva chauvinista anglo. Mais que tudo, Roberts quer firmar uma nova visada dialética sobre a FC. Declara que, se fosse reduzir a tese do seu livro em poucas linhas, diria que

“a ficção científica é determinada com exatidão pela dialética entre os imaginários protestante e católico, que emergiu do particular contexto cultural-ideológico do século XVII. […] [O]s textos de FC são mediadores desses determinantes culturais com diferentes ênfases, algumas mais estritamente materialistas, outras mais místicas ou mágicas.” —Adam Roberts. A Verdadeira História da Ficção Científica, página 29.

Seguem-se capítulos altamente informativos sobre a evolução do gênero ao longo dos séculos, e com um muito bem-vindo viés internacional. De modo ainda mais bem-vindo, traz insights significativos sobre a FC da era dos romances científicos (século 19), da era pulp e sobre o gênero no cinema e nos quadrinhos. Há um esforço honesto em superar vícios críticos elitistas, o que põe o livro no topo das minhas considerações sobre como deve ser uma história da FC. Este é um livro que merece a atenção de todo pesquisador interessado na ficção científica, e de todo fã que deseje conhecer questões culturalmente relevantes por trás da história do gênero. Se me torcessem o braço para apontar um problema, eu diria que Roberts exagera na mecânica dialética quando se foca em minúcias, perdendo a força da afirmativa clara e aberta das suas posições.

 

Arte de capa de Teo Adorno.

Fanfic, de Braulio Tavares. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, 2019, 168 páginas. Texto de orelha de Bandeira Sobrinho. Brochura. Braulio Tavares não poderia faltar em uma coleção de livros montada por Luiz Bras. Um dos melhores contistas da FC brasileira e do nosso conto fantástico em todos os tempos, ele entra com uma coletânea de histórias reunidas sobre uma chave de modéstia literária que enfatiza a intertextualidade e o jogo metalinguístico de reconhecimento de influências. 

Alguns contos foram vistos em outras reuniões dos seus textos admiráveis, mas o segundo olhar me revelou, por exemplo, a criatividade vibrante presente na exótica space opera “The Ghost in the Machine” [sic], cujas notas-glossário explicitam o jogo da influência e o diálogo específico mantido pela ficção científica. A riqueza da linguagem irônica remete à New Wave e é de fazer inveja a um Brian W. Aldiss ou a um Samuel R. Delany. Já “Finegão Zuêra”, que abre o livro, pode se ligar ao romance Finnegans Wake (1939) de James Joyce, pela brincadeira irônica com o título e pela densidade de neologismos e jogos de palavras na narrativa precipitada em parágrafo único. Em oposição, “O Homem que Perdeu seu Reflexo” é conto fantástico, curto, em tom memorialista. Urbano e violento, “Haxan” caberia bem em uma antologia tupinipunk. “Sete OVNIs” é episódico, composto de pequenos parágrafos-narrativas, um para cada personagem diferente, em locais diversos mundo afora. “Fenda no Espaçotempo” é anedótico e divertido, enquanto “Concerto Noturno” é um conto de horror. Também curto (muitos dos contos devem ter sido pescados da coluna diária que ele mantém no Jornal da Paraíba), “A Estética Eliminacionista” é um ensaio ficcional, e “Universos Tangenciais” é outra narrativa metaficcional, sobre o poder da leitura. “A Arca” é texto poético aliterativo que lembra, pelos parágrafos curtos, as narrativas de Ivan Carlos Regina, enquanto “A Demanda do Bosque Sombrio” retoma o tom mais introspectivo e de parágrafos e sentenças longas, num dos contos mais compridos e de maior expressividade lexical. “A Propósito da Difração Quântica nas Regiões Periféricas da Consciência” saiu na edição especial da revista Ficções: Revista de Contos, editada por Dorva Rezende em 2006, e é um dos contos de melhor equilíbrio entre enredo e estilo. “Um Só seu Filho” é conto fantástico irônico, com um fundo de ficção religiosa, e “A República do Recurso Infinito” dialoga com Kafka, na figuração fantástica da burocracia. “O Vale da Maldição” é uma divertida história de pós-holocausto nuclear, e “Gronk” é outro conto humorístico, sobre um intercâmbio não entre gente de países diferentes, mas de planetas diferentes. “Aquele de Nós” é narrado em primeira pessoa por uma entidade coletiva, e “O Polvo” é um conto de horror com final surpresa. Em “A Ilha ao Meio”, o narrador investiga uma ilha dividida “cirurgicamente” no meio — como em muitas das suas histórias, o estranho desemboca em alguma reação impulsiva que parece descarregar o estranhamento acumulado pelo componente descritivo da narrativa.

Duas histórias mais longas, e com um envolvimento maior, fecham o livro: “Frankenstadt” e “O Molusco e o Transatlântico”. O primeiro explora o conceito da realidade virtual e é outra história em primeira pessoa. O último, “O Molusco e o Transatlântico”, partilha dessa característica, em narrativa que trata de um psíquico sendo treinado em uma estação espacial, envolvido com o contato com alienígenas. Embora eu anseie por ver Braulio retornando com FC aos formatos da noveleta e do romance, aqui se tem uma amostra do vigor e da versatilidade deste estilista. Muito adequado para o espírito geral da Coleção Futuro Infinito.

 

Piquenique na Estrada, de Arkádi & Boris Strugátski. São Paulo: Editora Aleph, 2017 [1972], 370 páginas. Prefácio de Ursula K. Le Guin. Posfácio de Bóris Strugátski. Tradução de Tatiana Larkina. Capa dura. Ainda me lembro do renomado escritor João Silvério Trevisan me recomendando a leitura deste romance, em uma oficina literária coordenada por ele em 1988. Minha primeira tentativa de lê-lo, poucos anos depois em edição da Caminho Ficção Científica com o título de Stalker, foi frustrada. Desta vez eu apanhei a bela edição da Aleph e fui até o fim. O romance clássico dos irmãos Strugátski parte da premissa de que alienígenas incognoscíveis passam pela Terra a caminho de alguma outra destinação, deixando para trás restos hipertecnológicos na sua passagem. A analogia é com o lixo deixado para trás depois de um piquenique à beira da estrada. Ocorre que existe um grande interesse humano por esses restos, com os autores irmãos construindo consistentemente relações científicas e de mercado negro em torno dos artefatos encontrados nos arrabaldes da cidade britânica de Harmont. Estruturalmente, o romance também é relativamente engenhoso, com saltos temporais e a narrativa a partir de personagens-pontos de vista diferentes. Grosso modo, porém, a história segue o “stalker” Redrick Schuhart, primeiro um funcionário do instituto de pesquisas, especialista em entrar na zona proibida e encontrar e resgatar os artefatos. Para isso ele precisa contornar pontos perigosos em que as leis da física são alteradas por forças desconhecidas resultantes dos artefatos, frequentemente com resultados fatais. Muito depende da caracterização de Red, um cara duro mas amoroso, especialmente com a mulher e a filha — que nasceu com algum tipo de sequela causada pelas emissões dos artefatos. O personagem precisa representar ao mesmo tempo o que há de caloroso, valoroso e insensato no ser humano. Fora do instituto, Red se torna um requisitado contrabandista. A história de Red é intercalada pela canalhice de autoridades como a do representante industrial Richard Goonan, que comanda o mercado negro local e um dos bordéis mais concorridos. Red acumula um resíduo de emoções e ressentimentos ao longo dos anos, que alcança uma descarga genuinamente pungente no final.

O romance, que pode ser lido como uma crítica ao capitalismo e o seu aceno constante de um “Santo Graal” de fama e fortuna, foi proibido na União Soviética em razão da linguagem chula de Red e de outros personagens, num texto visto como “pouco edificante” pelos burocratas do regime. O fato, porém, é que o romance, a partir da sua premissa e do final, motiva um leque de interpretações: o alienígena como o inescrutável, o maravilhoso trivializado e objetificado pelo comércio e pela busca pelo poder, a incapacidade de canalizarmos os nossos impulsos utópicos para algo que de fato dignifique a condição humana. Na sua articulação de sentidos, é um romance que expressa, como poucos, a insensatez do empreendimento humano na era da ciência. O posfácio de Bóris, com os bastidores da escrita e da publicação do romance, é um documento que vale ser conhecido por si próprio.

 

The Way of the Explorer: An Apollo Astronaut’s Journey Through the Material and Mystical Worlds, do Dr. Edgar Mitchell & Dwight Williams. Nova York: G. P. Putnam’s Sons, 1996, 230 páginas. Hardcover. Muitos vão discordar, mas um dos grandes índices dessa insensatez é a divisão estrita e frequentemente belicosa entre ciência e religião. Esse é um dos pontos balizares deste livro do astronauta americano Edgar Mitchell (1930-2016), que foi à Lua como parte da missão Apollo 14, em 1971. Nos anos seguintes, eu (que nasci em 1965) me lembro de ter lido e visto programas de TV que mencionavam que ele teria feito experimentos de paranormalidade durante o voo espacial. O livro — que adquiri no curto período em que fui assinante do Book-of-the-Month Club — trata disso, é claro, mas os primeiros capítulos são um esboço biográfico de Mitchell. Há muita informação interessante sobre a sua atividade como astronauta.

A caminho da Lua — expressão que uso impunemente porque o sujeito de fato esteve lá e trabalhou no satélite natural da Terra por mais de quatro horas —, Mitchell conduziu um experimento solitário, realizado com o conhecimento de apenas quatro pessoas. Mentalizou um conjunto de números aleatórios combinados com os símbolos das cartas Zener, enquanto na Terra outros aguardavam para reproduzir as combinações “emitidas”. No retorno, ele repetiu o experimento. Mas o livro registra mais do que isso, centrando-se em uma epifania sentida por ele, também no voo de volta:

“Conforme olhei para além da própria Terra, para a magnificência da cena mais ampla, houve um espantoso reconhecimento de que a natureza do universo não era o que me havia sido ensinado. Meu entendimento da qualidade distinta e separada e da relativa independência de movimento daqueles corpos cósmicos foi estilhaçada. Houve uma irrupção de novo insight combinado com um sentimento de ubíqua harmonia — um senso de interconexão com os corpos celestiais que cercavam a nossa espaçonave.” —Dr. Edgar Mitchell. The Way of the Explorer, página 58.

Ele não define essa epifania como religiosa, e nos anos seguintes buscou explicá-la e aos resultados dos seus experimentos à luz de investigações científicas ou paracientíficas, que o levaram a fundar o Institute of Noetic Sciences. A partir de muitas pesquisas e leituras, além do contato com supostos paranormais como Uri Geller e Norbu Chen, ele convocou a mecânica quântica, o xamanismo e a tradição de misticismo oriental para propor o seu “Modelo Diádico da Realidade” (Dyadic Model), no qual as qualidades de consciência e intenção são propriedades partilhadas pelo cosmos, com o campo de ponto zero (da mecânica quântica) servindo como órgão de ressonância das consciências. Isso explicaria os fenômenos paranormais e a sua “não-localidade”.

“Matéria e consciência são uma díade inseparável, não um dualismo com dois reinos irreconciliáveis.” —Dr. Edgar Mitchell. The Way of the Explorer, página 160.

Para ele, consciência e experiência são informação, que, por sua vez, é uma forma de organização de energia. E energia pode ser transformada e assumir outras formas. Argumentos empregando funções quânticas para explicar a consciência têm se tornado mais comuns e consistentes, ao longo dos anos. Roger Penrose e Stuart Hameroff propuseram — na teoria da Redução Quântica Orquestrada — que estruturas celulares conhecidas como “microtúbulos” teriam um número de átomos pequeno o suficiente para amparar fenômenos quânticos, e que a água ordenada no interior das células impediria a interferência do ambiente sobre esses efeitos. A maioria dos cientistas que trabalha com teorias semelhantes não assumem o misticismo de Mitchell, e aqui cabe lembrar de algo que ele disse, nos primeiros capítulos do seu admirável livro, tão bem escrito e tão instigante:

“O público foi lançado ao espaço exterior pelas experiências dos astronautas. Através deles, caminharam em outros mundos.” —Dr. Edgar Mitchell. The Way of the Explorer, página 160.

O mundo das experiências humanas foi ampliado pelos astronautas, para fora da atmosfera terrestre, para a órbita e até a Lua. Mas a maioria dos astronautas, cosmonautas e taikonautas do mundo nos prestaram um desserviço, quando limitarem os seus testemunhos aos de garotos-propaganda das suas nacionalidades, e ao se restringirem a posturas de engenheiros e militares. O alargamento das nossas experiências exige poetas, filósofos, visionários — e místicos. Edgar Mitchell foi um astronauta que — não importa o que possamos pensar objetivamente das ideias que ele veio a desenvolver — ousou dar esse passo adiante na sua representação do olhar humano fora do nosso planeta.

 

Arte de capa de Frede Marés Tizzot.

Uma Cidade Flutuante (Une ville flottante), de Jules Verne. Curitiba: Arte & Letra Editora, Coleção EM Conserva, 2010 [1870], 208 páginas. Tradução de Beatriz Sidou. Arte de capa de Frede Marés Tizzot. Livro de Bolso em estojo de metal. Este é o último livro do lote que adquiri na mesa da Arte & Letra, na feira do livro da Universidade de São Paulo, em  29 de novembro de 2017. Outros foram A Sombra do Abutre, de Robert E Howard; A Fúria do Cão Negro, de Cesar Alcázar; Três Viajantes, de Thiago Tizzot; e Fábulas Ferais: Histórias dos Animais de Shangri-lá, Conforme Relatadas no Atlas Ageográfico dos Lugares Imaginários, de Ana Cristina Rodrigues.

Este romance curto é provavelmente um dos menos conhecidos de Jules Verne. Faz parte da Coleção EM Conserva, que inclui outros autores clássicos em domínio público: Liev Tolstói, com Nota Falsa; Émile Zola, com As Aventuras do Grande Sidoine e do Pequeno Médéric; Charles Dickens & Wilkie Collins, com A Viagem Preguiçosa de Dois Aprendizes Vazios; e Robert Louis Stevenson, com O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Sr. Hyde. Um material muito bom, com uma apresentação bastante original: além das ilustrações de capa de Frede Marés Tizzot, que imitam as ilustrações de miolo em xilogravura comuns no século 19, os livros vêm dentro de uma latinha de metal — daí o nome Coleção EM Conserva, o que pega bem com a ideia de se publicar clássicos.

Uma Cidade Flutuante é uma aventura de amor e violência ocorrida a bordo do maior navio do mundo, segundo a descrição, minuciosa, de Verne. O SS Great Eastern existiu de fato, e Verne discorre longamente sobre as dificuldades de se manter, operar e navegar o colosso de 211 metros de comprimento. O narrador é amigo de um militar inglês, o Capitão Fabian MacElwin, que, uma vez a bordo, descobre que o amor de sua vida, a jovem Ellen Hodges, também está na viagem, acompanhada do seu marido abusivo, Harry Drake. Vários acidentes trágicos acompanham a viagem, que parece amaldiçoada, e, por proximidade, alimentam de tensão palpável o duelo eminente entre MacElwin e Drake. É um texto que se lê com grande prazer, fluido e com pitadas de humor e sugestão do sobrenatural no denouement.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Juan Giménez.

Leo Roa Book 1: The True Tales of Leo Roa (Leo Roa tome 1: le veritable histoire de Leo Roa), Juan Giménez. Hollywood, CA: Humanoids Publishing, 2001 [1992], 60 páginas. Arte de capa de Juan Giménez. Álbum capa dura. Giménez, um dos meus artistas de quadrinhos favoritos em todos os tempos, desencarnou no dia 2 deste mês de abril. Foi uma das primeiras vítimas, no mundo nerd/geek, da COVID-19. Confesso que foi uma morte que me atingiu. Além de admirar muito o trabalho dele, tinha-o como uma influência. Este álbum gigante eu adquiri há alguns anos na antiga loja Terramédia — hoje Omniverse. Me deparei com ele durante uma das minhas faxinas da madrugada, e o peguei prontamente para ler.

Talvez o melhor trabalho dele tenha sido a arte da criação de Alejandro Jodorowsky, a Saga dos Metabarões (publicada aqui pela Devir Brasil), mas a série Leo Roa também é uma space opera exótica. A tônica, porém, vai para o cômico: Leo é um telejornalista medíocre que sonha em ser um grande herói aventureiro, admirado pelas garotas. Ao tropeçar em uma informação decisiva sobre a identidade do mais notório pirata da galáxia, descobre que a sua ambição heroica é mais complicada e perigosa do que nos seus sonhos. Com a ajuda do primo Meke, um roqueiro ainda mais atrapalhado do que ele, Leo tenta escapar dos seus perseguidores, atrás do mesmo segredo. Vai parar nas garras do dito cujo, o pirata Capitão Drake, um ciborgue megalomaníaco, e da sua ninfomaníaca primeira em comando, Crapula.

A narrativa rocambolesca inclui escapadas, monstros cheios de tentáculos e um outro muito ciumento de Crapula, uma batalha espacial e feitos sexuais do herói atrapalhado mas dotado de estranho sex-appeal. Há uma ironia específica aí, já que o sonho de interessar as garotas se realiza sem que ele banque o herói, mas como está sempre na correria para salvar a vida, aproveita pouco. Crapula, aliás, está no gancho fixado para o volume 2. Com uma arte e uma cor aquarelada mais luminosa e arejada do que na Saga dos Metabarões, Giménez exibe aqui o seu imenso talento para o desenho de estruturas e veículos, artefatos hipertecnológicos e vestimentas. Mesmo com a modulação voltada para o humor, ele fornece aquele sense of wonder tão apreciado, na ficção científica.

 

Arte de capa de Richard Corben.

Den 1: Neverwhere, de Richard Corben. Kansas City, MO: Fantagor Press, 1991 [1978], 112 páginas. Arte de capa de Richard Corben. Álbum. Outro dos tesouros encontrados na madrugada, Den era um velho conhecido das páginas brilhosas da revista Heavy Metal, e também do filme antologia de 1981. Naquela época, quando eu mal sabia ler em inglês, tive contato apenas com fragmentos deste volume 1 e dos posteriores. Ler o volume completo agora me permitiu desfrutar muito mais das referências intertextuais ao Edgar Rice Burroughs da série Barsoom, e ao H. P. Lovecraft dos Mitos de Cthulhu.

A história abre com um parrudão tipo Schwarzenegger aparecendo em uma planície rochosa, sem roupas e sem pelos, aos poucos se lembrando de ter sido um nerd franzino chamado David Norman, que descobriu, nas anotações do tio desaparecido, como construir uma espécie de máquina de transmigração da alma. Apanhado na máquina, ele ressurge no mundo de Neverwhere como Den. Aparentemente, como a história vai contando, Den também era a persona do seu tio, de modo que ele não herda apenas o corpanzil, mas uma história de conflitos nesse mundo. Mal pôs os pés lá, e se vê em uma intriga envolvendo uma perversa rainha e um degenerado imortal, pela posse de um objeto mágico, Loc-Nar, necessário para invocar o Grande Uhluhtc (Cthulhu ao contrário). No caminho, Den luta com todas as armas disponíveis, conhece inimigos e aliados valorosos mesmo entre os habitantes bestiais do lugar. A cada passo da sua jornada, encontra mulheres que seguem um mesmo padrão conhecido dos fãs de Corben: rechonchudas, peitudas e depiladas. Primeiro a moça indígena de adereço asteca da cabeça, e que tenta alimentar um dragão com ele; depois a Rainha que o assedia na cara dos seus súditos; e a escritora inglesa Katherine Wells, que também veio da Terra, mas do século 19. Den se apaixona por Kathy, que acaba nas mãos do vilânico imortal Ard. A arte de efeitos tridimensionais de Corben, sua iluminação e cor quase psicodélica e o dinamismo que ele dá aos personagens capturam o olhar e a imaginação. A diagramação dos balões e outros textos, porém, ficou meio perdida nessa edição da Fantagor. A nudez é impossível de ser desvinculada desta obra. Trabalhando com o material de Burroughs e de Lovecraft não nas décadas de 1920 e 30, mas na década de 1970 pós-revolução sexual, Corben “dessublima” o conteúdo sexual do romance planetário heroico e do horror cósmico, tornando-o explícito e celebrado.

—Roberto Causo

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Machado e Poe

Em outubro de 2020 completam-se três anos do desencarne do meu amigo, mentor e alvo de admiração sincera, Douglas Quinta Reis, sócio-fundador da Devir Brasil e um herói nacional do mundo nerd/geek. Desejando não deixar a data passar em branco, resgatei da gaveta virtual este que foi o último texto encomendado a mim por Douglas, introdução para uma pretendida edição bilíngue do famoso poema “O Corvo”, de Edgar Allan Poe, empregando a tradução de Machado de Assis. O texto foi entregue a ele em setembro de 2017, e um mês depois Douglas teria nos deixado. Fica a minha homenagem a ele, em reconhecimento a todas as oportunidades que ele deu a mim e a tantos outros artistas e escritores do Brasil.

—Roberto Causo

 

 

Machado de Assis em 1904. Foto: Wikimedia Commons.

Nascido em 21 de junho de 1839 no Rio de Janeiro, Joaquim Maria Machado de Assis conquistou a consagração literária ainda em vida, como romancista, poeta, contista e cronista popular, autor de livros que vendiam bem e chamavam a atenção da intelectualidade. Era influente entre seus pares no Brasil e em Portugal. Para Erico Verissimo, em Breve História da Literatura Brasileira (1945), aos 50 anos de idade Machado “era a figura mais distinguida e respeitada da cena literária brasileira”. Eleito para a Academia Brasileira de Letras, instituição que ele lutou para criar, em conjunto com outros intelectuais do Brasil em fins da década de 1890, foi escolhido o seu presidente perpétuo. É tido pela maioria dos críticos como o maior autor brasileiro do século 19 — se não de todos os tempos. No plano da literatura mundial, é comparado a Henry James pela investigação psicológica dos seus protagonistas.

A obra literária de Machado é geralmente dividida entre uma primeira fase na qual ele aderiu ao Movimento Romântico, e uma segunda, a partir da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), na qual se aproximou do Realismo. Mas alguns críticos entendem que muitos dos procedimentos literários adotados por ele e a abordagem de alguns de seus romances o tornam um precursor do Modernismo na literatura. Desse modo, o autor fluminense faria a ponte entre o século 19 e o 20, pavimentando a literatura brasileira no caminho da sua tendência dominante. José Luiz Passos, em Romance com Pessoas: A Imaginação em Machado de Assis (2007), aponta, por exemplo, Mário de Andrade e Graciliano Ramos como escritores impressionados pela contribuição de Machado ao romance brasileiro, marcada pela representação dos atritos “do indivíduo perante a comunidade”.

Desde cedo, essa foi a tônica da obra de Machado, a exploração das tensões entre o autoconhecimento do sujeito e as máscaras sociais que ele é forçado a usar ou que identifica nos outros como dissimulação moral. Também segundo Passos, logo com Ressurreição (1872) já se tem “um tema novo para o conjunto da narrativa brasileira: a justa visão do outro desmantelada pelo império do autoengano; um tema ousado para a pena de um estreante no romance”.

Passos observa igualmente que, em 1878, Machado publica uma resenha de O Primo Basílio, de Eça de Queirós, demandando maior imaginação moral do autor português — uma exigência em sintonia com o seu próprio projeto literário. Na mesma resenha há, porém, um dado problemático da visão de mundo do escritor brasileiro, quando ele iguala ciência, consciência moral e arte: “Quando a ciência nos disser: a ideia é verdadeira; a consciência nos segredar: a ideia é justa; a arte nos bradar: a ideia é bela — teremos tudo.”

Em “O Alienista” (1882), por exemplo, Machado trata da chegada à pequena cidade fluminense de Itaguaí, ainda no século 17, do alienista Simão Bacamarte. O seu frio propósito científico é descrito como um sacerdócio de dedicação absoluta, visão romântica da ciência que também aparece na ficção científica O Doutor Benignus (1875), de Augusto Emílio Zaluar. Mas essa novela de Machado é basicamente uma comédia de costumes, na qual Bacamarte recolhe os insanos locais, mas logo expande sua ação para recolher os dotados de pequenas manias e faltas morais próprias da época e do contexto — ostentação financeira, vaidade, superstição…

Depois de uma revolta popular dirigida contra ele e os políticos locais que o apoiavam, o alienista muda o seu foco e passa a recolher os virtuosos, vistos por ele como improváveis no mesmo contexto e portanto mentalmente desequilibrados. É o mesmo esquema alegórico de A Luneta Mágica (1869), de Joaquim Manuel de Macedo, em que um jovem, incapaz de lidar com a realidade da vida, alterna óculos mágicos que o fazem ver tudo com lentes metafóricas escuras, com outros que pintam o mundo com cores róseas. Em “O Alienista”, assim como nas explorações de ideias “científicas” e “filosóficas” bizarras que apresentou em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e em Quincas Borba (1891), a busca pelo conhecimento não possui autonomia, leva ao desequilíbrio da consciência (como a do próprio Bacamarte), e soa como intrusão impertinente sobre a moralidade instituída.

Verissimo, que chama Machado de “nosso enigma literário mais intrigante”, tende a explicar o pessimismo do mestre fluminense e sua obsessão literária com a dissimulação e com o olhar julgamentoso da coletividade sobre o sujeito, pela própria biografia do autor: “Machado de Assis tinha seus padecimentos secretos”, escreveu. “Sofria de terrível doença. Era epilético. Temia a possibilidade de ter um de seus ataques na rua ou em qualquer lugar público. Abominava a ideia de ser um ‘espetáculo’.”

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A posição de Machado no compasso da história dos movimentos e ideias literárias é complicada pela sua grande e variada produção, e pela sua disposição de ocupar os espaços culturais disponíveis no seu tempo. Afinal, a ambição artística marca a trajetória de Machado desde a sua inserção, e o seu projeto literário é precoce: “Há grande ambição num escritor que, na sequência dos primeiros livros, tenta todos os [formatos] que a literatura do seu tempo lhe punha à disposição”, Passos observa; “inclusive um libreto de ópera que, aparentemente, não sobreviveu”.

“Aurora sem Dia”, por exemplo, é um conto que, mesmo escrito na fase romântica de Machado, faz crítica aos excessos do Romantismo e da conexão institucional entre literatura e política, na sua descrição de um pretensioso poeta tupiniquim. Juntamente com “A Chinela Turca” (1875), é talvez um conto antirromântico e parece dizer que em Machado as impropriedades intelectuais e artísticas se traduzem como impropriedades sociais. Passos isola “A Chinela Turca” como um marco na produção de Machado por expor “de modo evidente uma feição incomum à narrativa brasileira da época”: “o contraste entre os mundos interior e exterior, com a primazia do primeiro sobre o segundo”. Nele, um jovem é forçado a ler uma peça de teatro, que ele rejeita por conter os clichês e artifícios do Romantismo. O autor da peça, desagradado com sua reação, parte deixando-o sozinho. De imediato, porém, o protagonista é sequestrado e levado à força literalmente para dentro de um enredo de capa e espada. Soa profundamente irônico — exceto pelo fato de que era tudo um sonho (outro clichê romântico) —, e a mensagem do conto acaba alertando contra certa contaminação cognitiva ou moral, que aquela literatura ruim seria capaz de promover.

Passos, que chama a escrita de Machado de “realismo romântico de feição psicológica”, também observa que “uma obra vasta como a de Machado é uma região delicada, sujeita aos influxos da mirada anacrônica”. O lugar do fantástico — mais próximo do Romantismo do que do Realismo — nessa obra não é assunto de que Passos se ocupe, mas também ele pode ser explicado pela vastidão da atividade literária de Machado. “As Academias de Sião”, por exemplo, é um conto de fantasia ambientado em contexto orientalista muito próprio do Romantismo, e que propõe a troca temporária de corpos entre o monarca do antigo reino da Tailândia e uma de suas concubinas. Ela, como dirigente, revela-se mais implacável e eficaz do que ele. Além disso, ao mesmo tempo que troça das academias científicas e filosóficas, o conto permite a Machado explorar por um outro ângulo as suas mulheres calculistas e de personalidade forte.

Outro exemplo é a ficção científica “O Imortal” (1882), sobre um português chamado Rui de Leão que, nas guerras contra holandeses no Brasil, acaba convalescendo de um ferimento numa aldeia indígena, onde, depois de ser adotado pelo pajé local, bebe uma poção que lhe traz a imortalidade. Esse é um tema que a ficção científica herdou do romance gótico — sublinhado no conto pela narrativa do filho do protagonista, numa reunião com amigos em noite chuvosa… Herdou concomitantemente a posição de que a imortalidade física seria, no fim das contas, um fardo e um tormento. Essa é a posição de Machado, que, depois de traçar as várias aventuras do herói ao longo dos séculos e no Brasil e na Europa, encontra a solução para o tédio vivido por ele. Para João Adolfo Hansen, da Universidade de São Paulo, o traçado do enredo de Machado incorpora clichês do Romantismo, de modo que o seu enfileiramento na narrativa formaria mais uma crítica irônica dos excessos daquele movimento.

 

Edgar Allan Poe, circa 1847. Daguerreótipo de autoria desconhecida, restaurado por Yann Forget e Adam Cuerden.

 

Ao contrário de Machado de Assis, o escritor americano Edgar Allan Poe, nascido em 19 de janeiro de 1809 em Boston, só alcançou um largo reconhecimento postumamente. Sua vida foi difícil e incluiu a orfandade, o abandono da universidade e da academia militar para perseguir a atividade literária. Encontrou nesse esforço a penúria e a viuvez, e sua morte foi prematura — em 1849, cercada de controvérsias. A versão de que ele morreu bêbado na sarjeta é contestada pela hipótese de que teria sido drogado e arrastado por cabos-eleitorais de distrito em distrito, sendo forçado a votar várias vezes no mesmo político até ser jogado em algum canto, numa prática que se afirma ter sido comum nos Estados Unidos da época. Hoje, o consenso parece ser de que a memória de Poe foi vítima de um crítico literário malicioso chamado Rufus Wilmot Griswold, que teria fabricado a sua fama de “maldito” e “degenerado” — por ressentimento pessoal contra Poe, ou por oportunismo comercial, já que Griswold se tornou executor do legado de Poe após sua morte, e talvez achasse que essa “aura” venderia mais livros. O próprio Poe escreveu farsas durante a vida, na busca pelo sustento.

Assim como Machado de Assis, Poe escreveu crítica literária, sendo reconhecido com um crítico especialmente arguto e filosófico. Mas foi como poeta e contista que ele alcançou a fama maior. Considerado um dos grandes nomes do Romantismo americano, buscou com frequência o macabro e o insólito — daí a frequente confusão entre sua biografia e o conteúdo sombrio de suas narrativas. Ainda em vida, teve muitos admiradores, e sua influência sobre autores americanos de peso que vieram depois dele, como Ambrose Bierce e H. P. Lovecraft, é clara e significativa. Por meio desses e de outros nomes, Poe tornou-se central para certos ramos da ficção norte-americana nos séculos 19, 20 e 21. É especialmente instigante o fato de ele ter se tornado uma poderosa influência pioneira sobre alguns dos gêneros populares mais potentes a surgirem no século 19: a ficção de crime, a ficção científica e a de horror.

Apesar disso, observa-se que a reputação duradoura de Poe é na verdade devedora da sua recepção pelos intelectuais franceses da segunda metade do século 19. Isabelle Meunier foi uma das primeiras tradutoras, para o francês, dos seus contos. Mas logo ele chama a atenção dos mestres simbolistas Charles Baudellaire e Stéphane Mallarmé, sendo que, segundo Sandra M. Stroparo, que estudou a correspondência de Mallarmé, este teve mais tempo e energia para promover o trabalho do americano. Charles Kieffer aponta que “os simbolistas, jovens poetas que se reuniam no modesto apartamento de Mallarmé, na Rue de Rome, elegeram o autor de ‘O Corvo’ e ‘A Queda da Casa de Usher’ como seu profeta”.

Mallarmé e Baudelaire também traduziram obras de Poe para o francês, estendendo sua influência a vários países europeus e latino-americanos — inclusive o Brasil, que em fins do século 19 estava sob a influência cultural francesa. Baudelaire é responsável, por exemplo, pela coletânea de contos Histoires extraordinaires (1856), no Brasil traduzida do francês por ninguém menos que Clarice Lispector. Jules Verne foi um autor francês influenciado por Poe nas suas “viagens extraordinárias” — narrativas muito didáticas de aventura, precursoras da ficção científica.

Curiosamente, Poe também teve impacto sobre a música erudita francesa: Claude Debussy começou uma ópera baseada no conto “The Fall of the House of Usher” (1893), iniciada em 1908, “La chute de la maison Usher”, enquanto André Caplet escreveu a “Conte fantastique” (1924) inspirada no conto clássico do horror “A Máscara da Morte Rubra” (“Masque of the Red Death”; 1842), e Florent Schmitt compôs “Le palais hanté, Op. 49” (1900-1904), poema sinfônico baseado no poema “O Palácio Assombrado” (“The Haunted Palace”; 1839), de Poe. Na segunda metade do século 19, o inglês John Henry Ingram opõe a sua própria biografia de Poe, equilibrada e cuidadosa, às difamações de Griswold. É bom lembrar que no Reino Unido a influência de Poe se fez sentir sobre o escocês Arthur Conan Doyle, cujo detetive Sherlock Holmes foi inspirado no proto investigador criminalista de Poe, Auguste Dupin. Sobre Poe, Doyle declarou: “Suas histórias são um modelo para todas as ocasiões.”

 

 

Ilustração de John Tenniel (1820–1914) do poema “The Raven”, de Edgar Allan Poe.

 

O brasileiro Machado de Assis se encontra com o americano Edgar Allan Poe, da maneira mais célebre, com a tradução que Machado fez do poema canônico de Poe, “O Corvo” (“The Raven”; 1845). Publicada na Gazeta de Notícias em 1883, sua tradução é uma das mais famosas em língua portuguesa. Aparentemente, foi submetida pelo próprio Machado, e não encomendada pelo periódico. Para a maioria dos especialistas, Machado teria tomado conhecimento do trabalho de Poe por via das traduções francesas de Baudelaire.

“The Raven” é um poema rico em figuras sonoras, de ritmo marcado, aliterações reiteradas e rimas fechadas finais no original em inglês, rimas internas entrelaçando versos e sentidos, e em tudo compondo uma atmosfera de pesadelo: o eu lírico pertence a um homem entre o sono e a vigília que reage a pancadas que houve em sua porta. Ele inicialmente se recorda de sua falecida amada Lenore, e descobre, além da sua porta, um corvo que vem pousar sobre um busto de pedra, e que passa a repetir uma única elocução: “Nevermore” (“nunca mais”); ou “nada mais”, alternado por “nunca mais”, na tradução de Machado. Imaginando o pássaro como arauto do além-túmulo (os litorais de Plutão, o deus da morte), ele o interroga sobre Lenore e recebe sempre a mesma terrível resposta. O fato do corvo estar pousado sobre o busto de Palas, a deusa da sabedoria, representa um outro nível de ironia: o conhecimento humano não tem acesso àquele território. O poema expressa, portanto, uma indagação que Poe fez com uma das suas farsas, “Os Fatos no Caso de Monsieur Valdemar” (“The Facts in the Case of M. Valdemar”; 1845), publicada no mesmo ano — apresentando um outro resultado e provocando grande estardalhaço entre o público leitor americano e britânico —, e outras narrativas sombrias ao longo de sua carreira.

O crítico Cláudio Weber Abramo observa: “é possível afirmar-se, sem sombra de dúvida, que a tradução do escritor brasileiro é muito mais da versão francesa de Baudelaire do que do poema original.” As diferenças são muitas, e incluem a transformação das estrofes de seis versos, de Poe, em estrofes de dez versos, além da redução das reiterações que dão a cadência peculiar do poema original. Com rimas finais mais abertas e menor ocorrência de rimas internas, o poema assume um tom mais declamativo. Os professores Adriano Mafra e Munique Helena Schrull entendem que a versão de Machado busca adaptar o poema “intencionalmente a um novo contexto, buscando bases sólidas para a formação de uma identidade literária nacional”, adotando a recriação, de modo que “traz à tona novos elementos, incorporando em sua tradução as influências de sua formação literária”.

Os versos finais na versão de Machado implicam que a alma do personagem que interroga o corvo, sem consolo algum, é prisioneiro como em uma gaiola ou cadeia; enquanto em Poe a sombra do pássaro envolve a alma afundada pela depressão, que dali não conseguirá elevar-se ou alçar voo. Cada um a seu modo, costura uma inquietante fusão de imagens de opressão e voos abortados. Repetindo apenas uma única fala de desesperança, o corvo torna-se, nos dois casos com grande maestria, uma presença fixa e eterna na consciência do eu lírico, símbolo de perda e luto perene.

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A presença de Poe na obra de Machado de Assis não se limita à sua tradução de “The Raven”. É interessante, porém, que José Luiz Passos, por exemplo, aponte que Machado teria bebido extensivamente de William Shakespeare, e composto cuidadosamente suas influências a partir não apenas do Bardo, mas de Victor Hugo e Ivan Turgueniev. A influência de Shakespeare, especialmente, parece óbvia a quem conhece seus contos e romances, mas Passos foi além e fez um levantamento das ocorrências de Shakespeare, menções e citações, na obra toda de Machado — mais de 200, com ocorrências majoritárias de peças como Otelo e Hamlet.

É interessante notar, a propósito da inclusão de Poe como influência sobre Machado, que sua coletânea Várias Histórias (1896) traz diversas narrativas que se aproximam da aura dos contos do americano — que, inclusive, é citado na nota introdutória: “[meus contos não] são feitos daquela matéria, nem daquele estilo que dão aos [contos] de Mérimée o caráter de obras-primas, e colocam os de Poe entre os primeiros escritores da América.”

Não obstante a modéstia de Machado, há no seu livro histórias famosas, marcantes para a produção nacional de ficção curta, como “A Cartomante” (1884), que pode ser lido como conto fantástico (a cartomante sabia ou não que o herói seria vítima de vingança passional?), e que já foi adaptado para o cinema. “Entre Santos” é outra história que bordeja o fantástico, com um padre que, diz o narrador, sonha que ouve os santos conversando na igreja, sobre um fiel de quem o padre dificilmente saberia tanto. Outros famosos: “Uns Braços” (1885) e “A Causa Secreta” (1885) — este último uma história macabra digna de Poe, sobre um sádico estudante de medicina e sua morbidez que, no final da história, volta-se para o cadáver da esposa. “Viver!” assume a forma de diálogo entre Prometeu e o Judeu Errante (um imortal como Rui de Leão, e presente na literatura gótica) — um formato que Poe utilizou antes em textos como “A Palestra de Eiros e Charmion” (“The Conversation of Eiros and Charmion”; 1839) e “Colóquio entre Monos e Una” (“The Colloquy of Monos and Una”; 1841). É interessante notar ainda que a maior parte das histórias de Machado neste livro são posteriores à sua tradução de “The Raven”; i.e., possivelmente posteriores ao seu contato com a obra do americano.

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O diálogo entre Machado e Poe não passou despercebido a outros pesquisadores. No ensaio “Machado de Assis e Edgar Allan Poe: Dois Escritores da Modernidade” (2012), a Prof.ª Greyce Pinto Bellin compara os contos “O Homem das Multidões” (“The Man of the Crowd; 1840), de Poe, e “Só!” (1885), de Machado. “Não podemos deixar de ignorar o fato de que, para Machado, [Poe] foi uma inegável influência no que diz respeito ao uso do conto como forma de expressão artística”, Bellin escreveu, no ensaio que ressalta a atenção dada pelos dois escritores, às transformações sociais que dão origem à modernidade. Ana Maria Lisboa de Mello, da PUC do Rio de Janeiro, já havia coberto território idêntico no artigo “Edgar Allan Poe e Machado de Assis: Estranhamento e Sedução da Cidade” (2009).

Já a Prof.ª Fabiana Gonçalves, no ensaio “Sadismo ou Demonismo na Poética de Machado de Assis”, escreve: “Um dos escritores preferidos de Machado de Assis, Edgar Allan Poe, evidenciou no conto ‘O Gato Preto’ [‘The Black Cat’; 1843] que a violência não atinge apenas os humanos”, comparando essa formulação com o contexto de um conto de Machado já mencionado aqui: “A tortura infligida a um gato na narrativa de Poe assemelha-se muito com o martírio aplicado por Fortunato ao rato em ‘A Causa Secreta’.” E o diálogo intertextual entre o brasileiro e o americano é explorado pela Prof.ª Renata Philippov, em “Edgar Allan Poe e Machado de Assis: Intertextualidade e Identidade” (2011).

Entender a influência de Poe sobre Machado Assis, incluindo-a junto à de outros grandes nomes como Shakespeare e Hugo, só faz alargar o alcance e a profundidade da obra do mestre brasileiro.

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Leituras de Agosto de 2019

O pânico do leitor compulsivo é terminar uma leitura em situação que não permite engatar a seguinte. Uma vez, terminei um livro enquanto aguardava uma reunião que sofreu atraso, e corri até um sebo próximo, para garantir uma nova leitura no metrô de volta. A outra agrura do leitor compulsivo é começar muitos livros quase ao mesmo tempo, perdendo o foco e deixando de completar nenhum deles. Em agosto, comecei meia dúzia de livros. Um deles foi um título de não ficção para complementar uma pesquisa, sendo que li cerca de 100 páginas até entender que ele não me seria útil. Noutro caso, comecei um romance de ficção científica ambientado no futuro próximo e tendo um velho genioso como protagonista. Ele era tão chato que peguei outra FC, esta ambientada no futuro distante — mas também com um velho genioso como protagonista. Como acho que estou a caminho de me tornar eu mesmo um velho ranzinza, abandonei os dois. Então as minhas anotações deste mês correspondem aos poucos títulos que consegui terminar.

 

As Águas-Vivas Não Sabem de si, de Aline Valek. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2019 [2016], 294 páginas. Brochura. Este é um elogiado romance brasileiro de ficção científica, todo ambientado nas profundezas do mar — uma absoluta raridade no contexto da nossa FC, embora, se a memória não falha, Jorge Luiz Calife tenha explorado esse ambiente em suas histórias do Universo da Tríade. Eu estava de olho no livro de Aline Valek há algum tempo, e durante a Flipop 2019 meu filho Roberto Fideli me conseguiu um exemplar autografado.

As Águas-Vivas Não Sabem de si é um dos romances de melhor reputação, dentro da atual produção da Terceira Onda da FC Brasileira. Como acontece com vários outros exemplos da escrita desse período, me espanta a naturalidade com que a autora estabelece um tom agradável e introspectivo. Os diálogos marcados por aspas certamente contribuem para essa introspecção — que culmina com um segmento final em primeira pessoa.

A narrativa acompanha a mergulhadora Corina, seu colega Arraia, o cientista Martin e outros tripulantes de um submersível em missão de teste de um traje de mergulho profundo. Esse é o objetivo declarado, porque o interesse secreto de Martin é encontrar formas de vida inteligentes, lá embaixo. Isso é segredo não por questões científicas ou comerciais, mas porque o assunto pareceria excêntrico demais para a “ciência séria”. Mas, de fato, Corina e os outros se aproximam de um contato real com uma civilização submarina. Ao contrário daquela do filme de James Cameron, O Segredo do Abismo (The Abyss, 1989), a imaginada por Valek evoluiu incógnita aqui mesmo na Terra. O leitor fica sabendo detalhes muito sugestivos da evolução e da cultura desses seres. Como não há um esforço de estranhamento que distancie a experiência deles da nossa, os trechos que os acompanham — e a vários animais marinhos — têm às vezes um quê de fábula. Sem muito enredo, as complicações surgem em torno de uma doença que pode impedir Corina de mergulhar. Enfim, eu teria apreciado mais o romance se a sua técnica de personagem-ponto de vista fosse mais estrita, e com transições mais marcadas. Parece, porém, que sou o único que reclama desse tipo de coisa, considerando que essa é uma técnica amplamente desprezada pelos autores brasileiros.

 

Arte de capa de Jussara Gruber.

O Livro dos Seres Imaginários (El libro de los seres imaginários), de Jorge Luis Borges & Margarida Guerrero. Porto Alegre: Editora Globo, 1981 [1979], 214 páginas. Arte de capa de Jussara Gruber. Brochura. Parte da coleção da minha esposa Finisia Fideli, este é um livro de não-ficção do mitógrafo Jorge Luis Borges (1899-1986), um dos ficcionistas mais cultuados da América Latina e influentes do mundo, escrito com Margarita Guerrero.

Consta que a sua primeira versão chamou-se Manual de zoología fantástica e foi publicado originalmente em 1957. A versão comentada aqui foi expandida na Espanha e publicada primeiro em 1979. O título original sublinha a fusão frequente em Borges, da ficção e da não ficção, ou da ficção e do ensaio. O livro descreve seres imaginários dos mundos da religião, do mito, do folclore, e da literatura. Os verbetes ou entrada aparecem fora de uma ordem alfabética ou qualquer outra discriminação evidente, como a clássica, nórdica ou oriental. O primeiro ser é o dragão e o último. a “lebre lunar”. Entre um e outro, existem 114 seres, entidades ou monstros. Extraídas da literatura de fantasia e ficção científica há criações de C. S. Lewis, Edgar Allan Poe, Franz Kafka (o “odradek” e outros), H. G. Wells e Lewis Carroll. Há seres africanos, americanos, europeus e orientais. Os textos são críticos e levemente irônicos, descrevendo mas também dedicando algum comentário sobre o sentido de cada ser. Criaturas vistas comumente na literatura de fantasia, como trolls, gnomos, elfos e dragões, bem como golens, sereias, unicórnios, harpias e djins, merecem a atenção do leitor e do autor do gênero, para um entendimento mais aprofundado de cada uma, para além — ou sugestivamente distante — das suas explorações ficcionais costumeiras. As esparsas xilogravuras de Jussara Gruber (que mereciam reprodução mais caprichada) coroam esta edição que foi para a minha prateleira de livros de referência e de estudos.

 

Arte de capa de Anne Sudworth.

Enchanted World: The Art of Anne Sudworth, de Anne Sudworth & John Grant. Paper Tiger, 2000, 112 páginas. Capa dura. Minha esposa Finisia Fideli adquiriu este livro da Paper Tiger há alguns anos, em uma Virada Nerd na loja Terramédia — hoje Omniverse. A artista inglesa Anne Sudworth é uma pintora de galeria que ocasionalmente produz ou produziu capas de livros de fantasia. É um caso raro de coincidência temática de arte de fantasia (geralmente concentrada na ilustração editorial) e belas artes, lembrando a gente do conceito de arte mítica que o ramo da fantasia mítica de Charles de Lint e Terri Windling explora desde a década de 1980. É exatamente essa coincidência o que o escritor John Grant discute no texto que acompanha as reproduções. A primeira coisa que impressiona é que Sudworth realiza os efeitos de clareza e luminosidade próprios da tinta acrílica com o uso, muito incomum na pintura de quadros, de tintas pastéis. 

O capítulo 1, “Of Fantasy and Reality” apresenta Sudworth e traz paisagens, com os efeitos peculiares de luz que caracterizam a artista, e alguma pintura equestre (inclusive natureza morta) feita por ela. Mas ele começa apontando o conteúdo fantástico das obras de nomes de peso como Salvador Dalí e René Magritte, e a qualidade artística de ilustradores de FC com Ron Walotsky, Bob Eggleton, John Harris e Richard Powers que dobram ou dobraram como pintores de galeria ou que poderiam fazê-lo. O trabalho de Sudworth tende para o hiper-realismo e a fantasia está, muitas vezes, presente na atmosfera. Suas paisagens, frequentemente tomadas de lugares reais, formam uma defesa muito forte da conexão entre geografia física e histórica, folclore e fantasia. Trata-se, é claro, das ilhas britânicas. O capítulo “Of Leaf and Tree” explora árvores à noite, marcadas por luzes irreais que, para qualquer um que tenha dirigido ou caminhado, como eu, à noite em estradas de terra batida, capturam uma frutífera tensão entre a verdade do olhar e a da imaginação. Uma qualidade etérea tão discreta, que é como o seu hálito mal percebido em uma noite mal iluminada. Não tenho problemas em admitir que as imagens desse capítulo inspiraram o meu conto “Escultura Negra em Noite Escura”, na antologia Histórias (Mais ou Menos) Assustadoras (2019), da Agência Magh, editada por Grabriela Colicigno & Roberto Fideli.

“Of Dragon and Dreams” agrupa pinturas que se aproximam mais da pintura narrativa da fantasia como campo editorial, às vezes com alguma deficiência fisionômica de heróis e magos, ou simplificação na figura de quimeras e dragões. Mas sempre com muita atmosfera, como na pintura do lindo unicórnio que também vemos na capa. De fato, mesmo com a iconografia do gênero, a proposição subjacente, na sua arte, de que magia ou sobrenatural estão mais na atmosfera é sempre sublinhada. A força das suas paisagens retorna em “Of Spirit and Stone”, com duas pinturas estasiantes de Stonehenge e outros outros monumentos paleolíticos, além de castelos e ruínas. Nessa modalidade, a alternância das superfícies suaves e homogêneas dos pastéis, e os efeitos mais granulados, imbuem as pinturas da aura fantástica. A iconografia do gênero retorna com mais eficácia no último capítulo, “Of Visions and Views”, mas misturada com paisagens e naturezas mortas. É interessante que a qualidade épica das artes de capa de uma trilogia da escritora Storm Constantine é atenuada pela atmosfera noturna, que ampara a composição estática, evocativas da pintura de capa de livros de horror, mas sem nunca penetrar de fato nesse gênero. Torno a destacar a qualidade das análises de John Grant em cada um dos capítulos, mas os comentários da artista, dispostos como legendas das reproduções, não fica atrás na sua capacidade de iluminar os sentidos e os processos por trás de cada uma das pinturas.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Chris Scalf.

Star Wars Legends: Boba Fett Está Morto (Star Wars: Blood Ties: Boba Feet Is Dead), de Tom Taylor (texto) e Chris Scalf (arte). São Paulo: Panini Comics, 2014, 170 páginas. Arte de capa de Chris Scalf. Brochura. Mês passado eu li Boba Fett: Inimigo do Império, e neste mês decidi ficar com o mermo personagem de Star Wars. Desta vez, um sujeitinho chamado Connor Freeman, que tem uma cantina em Coruscant, partindo do planeta para investigar a morte de Fett, que o teria ajudado no passado. Pontuando a chegada dele ao planeta Sathiemon, há uma série de situações que mostram pessoas que testemunharam o suposto assassinato de Fett sendo mortas. Freeman entra na mira do Império, acaba ferido e resgatado por um cara que se revela como sendo o próprio. Fett conta o que aconteceu com ele, e os dois se juntam para visitar uma caçadora de recompensas chamada Sintas Vel, que Fett deseja proteger. Por trás da intriga em torno do grupo que deseja ver Fett morto e de como eles tentam caçá-lo, há a revelação de que o famoso caça-prêmio de armadura mandaloriana tem uma família. É um toque interessante por ser, justamente, humanizador do personagem. A arte digital de Chris Scalf tem pontos fortes, mas eu a achei de “pinceladas” meio frouxas e uma certa rigidez dos personagens, talvez por conta de algum apoio fotográfico na criação dos desenhos. Freeman retorna em outras histórias de Fett da sequência Blood Ties.

Em “Sacrifício”, Cam Kennedy, novamente ilustrando roteiro de John Wagner, por outro lado é preciso, solto, dinâmico e vigoroso em uma narrativa de quadrinhos que funciona bem mesmo sem balões. Além disso, o trabalho de colorização de Chris Blythe é bonito e inspirado, com um contraste entre tons quentes e frios que traz muita personalidade aos ambientes noturnos. Junto com o estilo de Kennedy, que diverge bastante do hardware e da visualidade de Star Wars, tem-se nesta HQ uma experiência estética mais européia. É claro, não há nada que humanize Boba Fett no roteiro cínico de Wagner, na história de como o caça-prêmio acaba auxiliando, por força das circunstâncias, um grupo de revoltosos. O filosófico líder dos rebeldes, por outro lado, é um personagem sólido e humano, que nos diz:

“Ele [Fett] não é maligno… É pouco mais que uma máquina, uma ferramenta para realizar um trabalho. Ele é um homem sem coração, sem sentimentos, sem nenhum interesse além do preço sobre a cabeça de outro homem. Nós, pelo menos temos alguém por quem vale a pena viver e morrer. Eu tenho pena de Boba Fett.” —John Wagner, “Boba Fett: Sacrifício”

Fecham o livro uma história de Ron Marz com desenhos da brasileira Adriana Melo; e uma quarta, bem estilizada, com roteiro de Thomas Andrews e arte de Francisco Ruiz Velasco.

 

Arte de capa de Moebius.

Graphic Novel 11: Surfista Prateado, de Stan Lee (texto) & Moebius (arte). São Paulo: Editora Abril, maio de 1989, 64 páginas. Revista. Há pouco tempo, a Panini reeditou esta colaboração entre dois monstros sagrados dos quadrinhos internacionais em formato gigante e em capa dura. Eu encontrei esta primeira edição no Brasil em uma caixa de papelão e resolvi reler. A introdução de Stan Lee trata de como ele e Moebius (Jean Giraud) almoçaram juntos durante a Comic Con de San Diego em , quando surgiu a ideia de uma colaboração entre os dois. Moebius (1938-2012), então famoso por desenhar o Incal de Alejandro Jodorowski, se mostrou interessado no heróis Surfista Prateado, criação de Lee e Jack Kirby. Segundo os textos de apoio da publicação, o roteiro de Lee (1922-2018) tinha apenas seis páginas e era totalmente dissertativo, sem aquelas divisões de praxe entre texto dos balões e descrição da cena. O resultado é um comentário bem década de 1980 sobre tele-evangelismo, democracia de “massa”, distúrbios civis generalizados e, o mais importante, o fetiche do poder que está por trás de muito das organizações religiosas e políticas dos nossos tempos. Especialmente agora que a política, em várias partes do mundo, regrediu para a extrema direita.

Na história, o Surfista Prateado vive incógnito nas ruas de Nova York quando o seu antigo mestre, o superser Galactus retorna à Terra. Tendo prometido ao seu ex-batedor nunca mais usar o seu poder de destruição em nosso planeta, Galactus recorre a um estratagema: tudo o que ele lança sobre a humanidade é a sua presença e um discurso de anarquismo hedonista radical. O mundo moderno é o mundo do oportunismo, com os espertos sempre subindo no “bonde” do momento, não importando os estragos lá embaixo no nível da sarjeta. O super-herói filósofo se lança à defesa da humanidade disposto a um martírio quase crístico, conquistando o coração bem intencionado da jovem irmã de um tele-evangelista especialmente canalha. A narrativa é muito eficiente e põe um dedo necessário em certas feridas, mesmo enquanto mantém as estruturas narrativas pulps que fundamentam tanto das HQs de super-heróis, e a mitologia do Universo Marvel. O desenho de Moebius varia um pouco ao longo da história, que é relativamente curta. Ele racionaliza essa irregularidade, num dos textos que acompanham a publicação.

 

Príncipe Valente 1942, de Hal Foster. Editora Planeta deAgostini, 2019, 62 páginas. Tradução de Carlos Henrique Rutz. Introdução de Pablo Kurt Rettschalg Guerrero. Capa dura. Na introdução deste volume, o prefaciador Pablo Guerrero faz uma interessante defesa da arte e da cultura da Idade Média, declarando:

“A Idade Média, diferentemente do que se pode pensar, não foi um período estéril ou obscuro no desenvolvimento da intelectualidade.” —Pablo Kurt Retschalg Guerrero.

Na história em quadrinhos propriamente, o Príncipe Valente vai à Africa, depois de se associar ao pirata viking Boltar, que chegou a aparecer na adaptação dessa história em quadrinhos para o cinema, em 1954. No volume anterior, ele enfrentou uma tripulação de aloprados para evitar que eles se dedicassem à pirataria, e aqui ele segue com os piratas vikings. Esse é um dos pontos de contradição da saga criada por Hal Foster — seu herói é um herói cristão, quer dizer, ele promove civilização, lei e ordem sempre que pode, mas é ao mesmo tempo um aventureiro que topa o que aparece. O que importa é manter a aventura girando. Desse modo, o que era para ser um ataque dos vikings a uma aldeia dos nativos da África equatorial se transforma providencialmente no resgate dos nativos, quando Valente e os outros afastam de lá um grupo de gorilas que assustava os moradores. Improvável, já que os gorilas dificilmente se meteriam com humanos e suas lanças, zarabatanas e flechas. Mas o que importa é que o possível massacre dos nativos se transformou em um acerto em que eles foram livrados de um incômodo e recompensados com ouro.

Quando partem da África e chegam ao primeiro porto europeu, por uma dessas coincidências espetaculares que povoam a aventura como modo ficcional, Valente fica sabendo que seu amigo Sir Gawain foi feito prisioneiro por um lorde local, que quer cobrar o resgate por Gawain, da corte do Rei Artur. Ele paga o resgate, mas Boltar tem os seus próprios planos para reaver o ouro entregue ao vilão. É claro, a primeira coisa que o recém-libertado Gawain faz é flertar com uma senhora casada, o que leva a situações cômicas envolvendo o marido. O próximo encontro fortuito leva a dupla a se pôr a serviço de um nobre sitiado por um barão rival — e a uma situação do tipo Romeu & Julieta envolvendo a filha de um e o filho do outro, além de uns truques defensivos que Valente puxou da manga. A situação dramático-romântica sai de cena e entra uma outra, cômica, envolvendo dois cavaleiros idosos em uma ridícula justa, e as suas esposas. A dupla mal sai dessa situação, e se deparam com uma dama em apuros, que os leva a uma trama sobrenatural. A transição aqui é muito sutil, com as sombras do desenho e as árvores desgalhadas sugerindo o novo “clima”, em nova sugestão da versatilidade de Foster como artista. Virando a página, painéis sombrios, intrincados, fabulosos, e mais tarde um jogo de luz e sombra digno do cinema expressionista da época. A trama é trágica, genuinamente, e termina apropriadamente com o incêndio das ruínas. Tudo se clareia em antecipação ao reencontro com Boltar e Lancelot, precedendo, enfim, o retorno a Camelot — onde encrencas na fronteira norte, no que seria futuramente a Escócia, aguardam o herói. As peripécias são mais sérias, e incluem Val sendo feito prisioneiro pelos pictos, que o entregam a invasores vikings. Antes de ser resgatado por Gawain, para variar, ele sofre tortura e passa por longa convalescença. De volta a Camelot mais uma vez, ele expõe suas cicatrizes à corte em um dramático painel, motivando os bretões para uma incursão contra os vikings. Desse modo, o volume termina com uma das sequências de ação mais impactantes e cruéis desse período das aventuras do herói, o duelo de Val contra o guerreiro viking Thundaar e o seu machado de batalha.

Têm-se neste volume em particular um exemplo consumado das dinâmicas de leitura da página dominical, com curtos arcos desenvolvidos com rapidez, alternados com outros mais curtos e episódicos, e um mais longo de abertura mais lenta e intensidade superior. Desse modo, o leitor da época era apresentado a situações diversas, amparadas pelo lapso de atenção entre uma semana e outra, mas com o herói sempre conservando o foco e o interesse.

—Roberto Causo

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Leituras de Março de 2019

Em março, leituras de ficção científica, ficção literária e ficção militar brasileiras, além de ensaios de C. S. Lewis, um thriller de Justin Scott, e histórias em quadrinhos de Star Wars e do Superman.

 

17 Histórias: Alternativas, Cômicas e Futuristas, de Ataíde Tartari. Pará de Minas-MG: VirtualBooks, 2013, 172 páginas. Brochura. O paulistano Ataíde Tartari ingressou na Segunda Onda da FC Brasileira com o romance curto EEUU 2076: Um Repórter no Espaço (1988). Colaborou com muitas antologias, publicou no exterior pela Amazon e em inglês. Escreveu contos para o Jornal da Tarde e participou do Projeto Portal, de Nelson de Oliveira. É um nome de relevo da Segunda Onda, e boa parte da sua produção de contos está reunida neste volume.

Depois de publicar o conto “Meio que Abduzidos” na minha antologia Estranhos Contatos: Um Panorama da Ufologia em 15 Narrativas Extraordinárias (1998), histórias de Tartari narradas com uma espécie de registro sociolínguistico paulistano e cheio de gírias se tornaram uma das suas marcas registradas. Abrindo o livro, “Sacos de Lixo” (1999) expressa essa tendência. Sobre relacionamentos jovens em Sampa, é uma das histórias publicadas primeiro no Jornal da Tarde. Não há elementos fantásticos nela, ao contrário da seguinte, “Folha Imperial” (1996), uma história alternativa cômica, na qual a monarquia não foi deposta e a bandalheira da década de 1990 persiste com uma cultura de celebridades que envolve a nobreza tupiniquim. “Veja seu Futuro” (2009) apareceu na revista Portal Fundação, de Nelson de Oliveira, e na antologia Páginas do Futuro (2011), de Braulio Tavares. É uma história tipo Além da Imaginação sobre um objeto cotidiano que permite uma visão do futuro — dispositivo literário que está na FCB desde O Presidente Negro (1926), de Monteiro Lobato. Em “A Máquina do Saudosismo” (2009), um homem que descobre ter uma doença fatal recorre a uma empresa que o põe em criogenia, para despertá-lo no século 23, que ele passa a conhecer. “Diário de Marte” (1999) é um conto muito divertido, narrado em primeira pessoa (como num diário) por uma enfermeira que trabalha em um hospital da FAB, onde se apaixona por um alienígena capturado, ajudando-o a fugir e transando com esse Starman. O título se refere ao Campo de Marte, base aérea onde o E.T. ficou internado. Também humorístico e em primeira pessoa, “Ricardo Edgar, Detetive Particular” (2009) narra com dinamismo o caso do tal detetive seguindo uma mulher em Xangai, no futuro próximo.”Um FDP Blindado” (2012) volta para um contexto mais paulistano em texto cheio de gíria, sobre um dispositivo digital portátil que acompanha um rapaz encrenqueiro, comprada pelo seu pai e que conduz a história a outro final tipo Além da Imaginação. “A Sonda” (2010) é conto publicado em e-book em Portugal, sobre uma sonda alienígena descoberta nas escavações de uma construção, abrindo a porta para a invasão do nosso planeta. Em “O Bunker Cretáceo” (2010) é uma construção que arqueólogos encontram em escavação na Antártida, dando acesso a dinossauros inteligentes que passam a habitar a nossa época. A narrativa aqui é mais longa e, como em tudo o que Tartari escreve, desenvolvida com competência e sem tropeços. “Lenda Mineira” (2006) tem um grupo de garotos paulistanos caindo na peça de um velho mineiro que diz que consegue falar com os bichos, e armar uma lição escatológica para os moleques. “Irmão” (2006) é conto curto mainstream, provavelmente inspirado pelo movimento Literatura Marginal. “Craque na Família” apareceu na histórica antologia Outras Copas, Outros Mundos (1998), editada por Marcello Simão Branco. Nesse conto mais longo, um gadget japonês melhora o desempenho de um garoto que faz teste perante um olheiro de futebol. A história é FC, mas a função do dispositivo desconhecido é semelhante ao da fantasia “Veja seu Futuro”. “Saara Gardens” apareceu em outra antologia de Marcello Branco, Assembleia Estelar: Histórias de Ficção Científica Política (2011), e trata de um futuro em que a humanidade se uniu sob um único governo, e um mega empreendimento imobiliário sofre oposição de ambientalistas. “O Triângulo de Einstein” (2008) aborda uma nave espacial e sua tripulação sendo atingidas pela dilatação temporal causada pelo voo próximo ao limite da velocidade da luz.

A noveleta “A Grande Virada do Vitinho” (2013) é o texto mais longo do livro, tendo aparecido antes como e-book. É uma história de costumes sobre um escritor e tradutor, contemplando suas frustrações e infortúnios do passado, e discorrendo sobre novo emprego e seu relacionamento com uma mulher madura, conhecida da sua juventude. Escrito na segunda pessoa, “Você” (2000) fecha o livro com uma reflexão metaficcional. 17 Histórias propicia uma vista panorâmica da carreira de Ataíde Tartari e das suas virtudes: ótimos diálogos, atenção à vida miúda de São Paulo, e grande controle narrativo. Assim como Ademir Pascale projeta nos seus livros um ethos paulistano de classe média baixa com uma textura dura e detalhada, Tartari projeta um ethos paulistano de classe média jovem e irreverente. Ele se diferencia, porém, por conhecer ficção científica e ciência, e todas essas qualidades funcionariam muito bem com um projeto mais sofisticado de novela ou romance misturando FC e observação social, do tipo Connie Willis ou outros autores da Asimov’s. Eu ficaria feliz em ler.

 

Arte de capa de Adams Carvalho.

Escalpo, de Ronaldo Bressane. São Paulo: Editora Reformatório, 2017, 256 páginas. Arte de capa de Adams Carvalho. Brochura. Adquiri este exemplar direto do autor, em um encontro com Santiago Santos, autor de Na Eternidade Sempre é Domingo, no Centro Cultural São Paulo. No romance, acompanhamos um artista de quadrinhos afro-brasileiro chamado Ian Negromonte, original do Rio Grande do Sul mas radicado na cidade de São Paulo. Ele machuca a mão durante um protesto nas ruas da capital em 2015, passa por uma separação, e acaba aceitando fazer uma investigação particular para um chileno que vive no Brasil mas que procura uma filha de cuja existência ele não sabia previamente. O chileno, Miguel Ángel Flores, veio ao Brasil fugindo da ditadura no seu país, e se tornou aqui um bem-sucedido autor de ficção pulp de banca de revistas — tipo um Ryoki Inoue. Assim como Ataíde Tartari, Bressane explora bem a paisagem física e humana de São Paulo, com um estilo mais rico e visual. Mas o seu herói viaja, mergulhando no passado violento e cruel da ditadura do General Augusto Pinochet no Chile, e encontrando lá um lugar na cama de duas mulheres bissexuais. Como Negromonte não abre mão do seu estilo de vida dispersivo e de sexualidade aberta, para além da violência histórica o romance mergulha na textura daquilo que se costumava tratar, nas décadas de 1970 e 1980, como “mundo cão”. De algum modo, isso reforça o retorno literário à atmosfera das ditaduras chilena e brasileira daquela época.

Bressane escreve com energia, foge do minimalismo tão presente na Geração 90 a qual pertence, e faz um uso muito bom de momentos de hiper-realismo. O romance contém, por exemplo, a cena de sexo mais que deve ser a mais incômoda para o leitor, na literatura brasileira recente — por misturar justamente sexo e evocações de tortura. A tendência onipresente da ficção contemporânea pela metaficção é bastante refrescada em Escalpo, justamente pela seu foco na paraliteratura: história em quadrinhos, ficção de banca, ficção de crime e ficção científica. Nesse último aspecto, por explorar algo da contracultura dos anos das ditaduras, com a ufologia mística como uma das suas pedras de toque. Há traços de fabulation também, em como o herói se encontra, em um barco, com um artista estrangeiro que o acusava de plágio. É um intenso romance mainstream que, como costuma ocorrer com a literatura brasileira contemporânea e também na literatura pop das décadas de 1970 e 1980, arrasta o seu protagonista já estanhado com a sociedade e a vida, a uma desagregação crescente. O toque de FC fica realmente no plano da evocação.

 

Sobre Histórias (On Stories and Other Essays on Literature), de C. S Lewis. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018, 252 páginas. Tradução de Francisco Nunes. Capa dura. O ramo brasileiro da editora editora escocesa Thomas Nelson, de assuntos cristãos, tem investido na publicação entre nós da obra de C. S. Lewis, o divulgador cristão que também escreveu fantasia e ficção científica, como a série As Crônicas de Nárnia e o clássico Além do Planeta Silencioso. Os livros aparecem em capa dura e bom tratamento editorial, embora aqui a tradução de Francisco Nunes pareça um pouco rígida. É especialmente bacana para o interessado em fantasia e ficção científica que a Thomas Nelson tenha incluído Sobre Histórias na sua coleção de livros de Lewis. Já adianto que o recomendo enfaticamente.

Além de ser um autor importante para a fantasia e a FC britânica, Lewis foi um comentador privilegiado, tendo convivido com os fantasistas J. R. R. Tolkien, E. R. Eddison e Charles Williams, na famosa sociedade literária Inklings, em Oxford. Em Sobre Histórias há um ensaio sobre Williams e outro sobre Eddison, além de uma resenha de O Senhor dos Anéis, de Tolkien, e um segundo texto sobre o seu O Hobbit. A ficção científica tem um ensaio dedicado a ela, e há ainda um outro sobre George Orwell e a sua distopia maior. H. Rider Haggard também é contemplado, e o livro fecha com uma nova discussão, tripla, da FC na transcrição de uma conversa entre Lewis, Kingsley Amis e Brian W. Aldiss. Confesso que a voz ensaística de Lewis me fascina. Também me parece fabuloso “ouvi-la” sabendo que ele comenta a fantasia no momento em que ela se formava como gênero, e a FC quando ela ganhava atenção literária “séria”. Lewis, em Um Experimento em Crítica Literária (1961) e em outros ensaios, tenta investigar como o leitor pode extrair uma experiência profunda lendo uma literatura considerada superficial ou infantil (sobre isso, vale ler, por exemplo, “Sobre Três Modos de Escrever para Crianças” e “Sobre Gostos Juvenis”, neste Sobre Histórias). Entendo que ele observava a literatura em uma época em que o “elitismo edificante” do influente F. R. Leavis (1895-1978) pautava as discussões literárias, e a sua própria religiosidade coloria suas opiniões sobre a função da literatura. Apesar disso, não consigo ver Lewis como algo diferente de um anti-modernista que via relevância na ficção popular — ao contrário da visão que Stableford expressa na introdução de The Jungle Mushroom A History of Postwar Paperback Publishing (1993), de Steve Holland, enxergando Lewis como um elitista e esnobe social. Mas como ver ma afirmação como a seguinte, no ensaio “Sobre Ficção Científica”, como algo além de aberta e democrática?

“Não consigo compreender como alguém pode pensar que essa forma [a FC] é ilegítima ou desprezível Pode muito bem ser conveniente não chamar coisas assim de romance. Se preferir, chame-as de uma forma de romance específico. De qualquer [modo], a conclusão será a mesma: elas devem ser julgadas por suas próprias regras. […] Sem dúvida determinado leitor pode estar interessado […] em nada mais no mundo a não ser estudos detalhados de personalidades humanas complexas. Se assim for, ele tem uma boa razão para não ler livros [de FC], que não exigem nem admitem isso. Ele não tem motivo para condená-los e, de fato, nenhuma qualificação para deles falar. Não devemos permitir que o romance de costumes estabeleça leis pra toda a literatura: deixe-a governar-se em seus próprios termos. Não devemos ouvir a máxima de Alexander Pope sobre o estudo adequado da humanidade. O estudo apropriado do homem é tudo. O estudo apropriado do homem como artista é tudo o que dá um ponto de apoio à imaginação e às paixões.” —C. S. Lewis. “Sobre Ficção Científica”. In Sobre Histórias.

 

Pelotão de Fronteira, de Moacyr Barcellos Potyguara. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2003, 192 páginas. Brochura. Ficção militar é ocorrência rara no Brasil. Em algum momento da década de 1950 ou 60, o intelectual literário Boris Shneiderman, ele mesmo autor de um romance sobre o Brasil na Segunda Guerra Mundial, Guerra em Surdina (1964), reclamou da ausência de mais ficção sobre o assunto. Nem toda ficção militar é romance de guerra, porém. Parte dela é drama de academia, ou, no caso deste romance curto do Coronel Moacyr Barcellos Potyguara, retrato da vida de soldados em postos militares afastados. Os pelotões especiais de fronteira combinam base de patrulha de fronteira e aglutinador de populações nas áreas da Amazônia. Meu amigo da adolescência Carlos Palla comandou um desses, junto ao qual organizava a primeira linha de defesa e era sucedâneo de embaixador junto a militares dos países fronteiriços, atuando também como delegado de polícia e fiscal de crimes ambientais, além de ser, com a esposa Vanda, pilar da comunidade.

O tenente que comanda o PEF no livro de Potyguara tem atuação semelhante, mas em meados de 1966, na localidade de Curi-Curi, fronteira com a Colômbia. O médico do pelotão também é um homem dedicado e bem visto pelos locais. Tudo muda quando ele é chamado a um esforço para debelar uma epidemia na região, sendo substituído por um tenente dentista, de vocação oposta. Muitos médicos e dentistas fazem sua residência nas forças armadas, passam um tempo, qualificam-se e vão ganhar a vida no meio civil. Esse do livro mal pode esperar para montar seu consultório e fazer dinheiro. Não quer a responsabilidade de cuidar do povo local, e logo se revela corrupto. Bebe em serviço, cobra por vitaminas que seriam distribuídas gratuitamente, e abusa sexualmente de uma ex-prostituta que contratou como cozinheira. Tudo isso depois de o comandante do PEF ser transferido para fazer um curso, e o dentista assumir o comando do lugar. O caso dessa moça é um dos centros emocionais do livro, assim como a quase facilitação, por parte do dentista, de tráfico de indígenas brasileiros para a Colômbia, onde seriam vítimas de trabalho escravo. A população local se une para proteger a moça, e os sargentos para deter o mascate fluvial que levava os índios. Não há muitos finais felizes, porém. A vida é dura na fronteira. A vida é dura na selva amazônica. O dentista foi punido, mas certamente não como merecia. O livro tem personagens muito interessantes, mas trabalhados sem grandes aprofundamentos, e a técnica narrativa é crua. Compensa apenas pela veracidade que a experiência do autor comunica, inclusive pelos seus comentários simpáticos mas politicamente incorretos. Tenho tratado de livros de não-ficção da Biblioteca do Exército Editora. Geralmente são bem editados, mas este aqui é do começo do século e carece de uma revisão verdadeira. O romance curto de Potyguara encerra, como nas telenovelas, com um casamento triplo.

Interessante reconhecer que o militar é um dos poucos tipos sobreviventes do período glorioso da aventura como um grande campo literário popular, indo de meados do século 19 a meados do século 20, com o caubói, o explorador, o pirata, o grande caçador branco e outros tipos indo se despetalando pelo caminho. Na mesma chave, Pelotão de Fronteira é menos romance de aventura do que de observação social, de costumes. Quanto ao casamento triplo, ele é observado por um novo tenente, que diz a si mesmo:

“É… isso é que faz a grandeza deste país. Um crioulo, baiano, casa com uma cabocla, um caboclo com uma índia e um branco com uma cabocla. Todos ficarão aqui e terão filhos. Assim vai-se construindo uma pátria…” —Moacyr Barcellos Potyguara. Pelotão de Fronteira.

É uma observação bonita em si mesma, e o conteúdo do romance consegue reforçá-la tanto com emoção quanto com elementos de crítica social. Mas ela incorpora aquele argumento conservador brasileiro, muito repetido pelos militares, da formação racial tripla e harmoniosa do nosso povo. Um argumento que desautoriza a reivindicação de grupos étnicos e sociais atingidos pelo arbítrio dos poderosos. Nem por isso a experiência de leitura de Pelotão de Fronteira deixa de marcar uma interpretação diferente da sina dos seus personagens: a de pessoas de recursos espirituais limitados, que enfrentam, por meio da solidariedade e do afeto, as dificuldades da vida e o abuso imposto sobre elas.

 

The Nine Dragons, de Justin Scott. Nova York: Bantam Books, 1992 [1991], 456 páginas. Paperback. Confesso que sinto falta de um certo internacionalidade na minha vida, que na década de 1990 e no começo do século era suprida pela CNN, pela BBC e pelo C-Span. Mas a nossa operadora de cabo decidiu, sem nos consultar, que não merecíamos esses canais em nosso pacote básico, oferecendo, no lugar, a mal-afamada FoxNews… Justin Scott me trouxe de volta um pouco desse sentimento de internacionalismo neste Interessante thriller ambientado em Hong Kong no momento da entrega da cidade à República Popular da China, em 1997. Envolve crime, comércio internacional e especulação imobiliária, com uma antecipação tensa do tipo de distúrbios civis que 2019 acabou trazendo à cidade.

Scott trata de uma família de escoceses que possui empreendimentos comerciais de mais de um século em Hong Kong. As possíveis mudanças adversas que a entrega da cidade à China trariam levam o patriarca da família, Duncan Mackintosh, a fazer um acordo secreto com um militar aspirante ao controle do Partido Comunista chinês. Passando por uma crise de meia-idade e tendo assumido uma amante chinesa bem mais jovem do que ele e funcionária do conglomerado, Mackintosh acaba entrando na mira do vilânico empresário local e gangster Two-Way Wong. Wong tem planos para lançar a cidade em convulsão e obter apoio da Main China para se tornar o governador de Hong Kong (como a atual governadora Carrie Lam?). A protagonista do romance é, na verdade, a ambiciosa filha de Duncan, Vicky, mas quando ele é eliminado em um falso acidente de escuna e desaparece do enredo, The Nine Dragons perde um centro emocional insuspeito, e vai minguando até o seu pálido fim, apesar de toda a agitação em torno dos distúrbios civis e das manobras derradeiras do vilão. O que imagino que salvaria o romance seria uma aliança entre a explosiva Vicky e a serena amante do seu pai, Vivian Loh, para salvar a empresa e resistir às investidas de Wong, com toda a tensão que viria dessa associação entre duas mulheres fortes e ambiciosas divididas pelas suas versões do amor pelo mesmo homem. Mas Scott preferiu investir na vida sexual/amorosa de Vicky com dois rapazes chineses, alternadamente, e que não acrescentam muita coisa.

 

Arte de capa de Júlio Vanzeler.

Laura e Lucas Descobrem Michelangelo, de Isabel Zambujal. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Folha Pintores para Crianças 5, 2019, 26 páginas. Arte de capa e ilustrações internas de Júlio Vanzeler. Capa dura. As anotações sobre a leitura deste livro para crianças vêm acompanhadas de uma anedota sobre situações editoriais: há uns dois anos, revisei para um estúdio de São Paulo cinco livros de uma série dirigida ao público infantil, em que um garoto viaja no tempo e convive com grandes pintores do passado. Texto e arte eram do mesmo autor (cujo nome não vou revelar). Tinham grande qualidade, especialmente as ilustrações pintadas, algumas reproduzindo as obras originais dos pintores e escultores clássicos. O autor nos contou que havia procurado a editora da Folha de S. Paulo para oferecer o projeto, mas foi dito a ele que precisavam de mais de 12 livros para compor uma coleção. Como ele fazia tudo sozinho (pesquisa, texto e arte), ficaria inviável. O tempo passou e obviamente os seus livros não saíram pela Folha, e também não saíram com o trabalho feito pelo estúdio junto ao qual trabalhei.

Surge então esta coleção vista nas bancas de todo o Brasil, aparentemente realizada por um estúdio português. Ela pode ou não ter sido inspirada pelo projeto do qual escrevi acima. O livro é simpático, mas a arte é mais esquemática, incluindo até fotografias compondo com o desenho, e o tratamento da situação da viagem no tempo é ligeiro, assim como a didática. De qualquer modo, a coleção cumpre o papel de educar nossas crianças  quanto ao mundo da pintura clássica.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Mathieu Lauffrey.

Star Wars O Último Comando: Trilogia Thrawn Livro Três (Star Wars The Last Command: Thrawn Trilogy ), de Mike Baron (texto) e Edvin Biukovic (arte). Barueri-SP: Panini Books, 2018, 148 páginas. Arte de capa de Mathieu Lauffray. Capa dura. Edvin Biukovic assumiu o desenho do terceiro e final livro da adaptação da trilogia de Timothy Zan para os quadrinhos, trazendo de volta um ar de HQ européia com o seu traço fluido e de linhas quase sempre completas delimitando as formas. Há competência na quadrinização sem extravagâncias, desenvolvida conforme o roteiro de Baron narra o confronto final entre os heróis da primeira trilogia de Star Wars (1977 a 1983) e o astuto Almirante Thrawn e o seu aliado incerto, o jedi louco C’Baoth. Os bebês gêmeos de Leia e Han Solo aparecem pela primeira vez, enquanto Mara Jade, a ex-aliada do Imperador Palpatine, passa a se aproximar cada vez mais do seu futuro marido, Luke Skywalker.

Uma galeria de coadjuvantes customizados por Timothy Zahn contribuem para enriquecer e intensificar a trama. Entre eles estão o contrabandista Talon Karrde e o traficante de armas Niles Ferrier acompanhado do seu trunfo: um alienígena que consegue ficar invisível. O enredo inclui Leia desmascarando um espião no seio da Aliança, e Luke, Mara, Han, Chewbacca e Lando Calrissian encarando, como a irmandade do Senhor dos Anéis, uma paisagem florestal e seus nativos, para alcançarem uma instalação ocupada por C’Baoth e reservada para o clímax da trilogia. Esse clímax, em que Luke duela com um clone de si mesmo diante dos olhos arregalados do jedi louco, parece ser um pouco da “redundância Skywalker” que aflige a franquia, mas gostei do truque e a sequência é excelente. Vale mencionar que a cor no livro começa esmaecida, aguada, e vai perdendo essa qualidade — provavelmente por razões de prazos. Mantém-se harmonizada com o desenho, embora perdendo um pouco do seu charme europeu e antigo. Depois de ler os quadrinhos e sentir a solidez e o interesse da criação de Zahn, estou disposto agora a ler os romances, publicados aqui há alguns anos pela Editora Aleph. Como de hábito neste tipo de livro, há reproduções de capas da primeira edição do seu conteúdo, como minissérie em revistas distribuídas em bancas e lojas especializadas. Feitas por Mathieu Lauffrey, estão entre as artes de Star Wars mais expressivas encontradas por aí, embora muitas vezes incorretas em termos de fisionomias e proporções anatômicas.

 

Arte de capa de Shane Davis.

Superman: Terra Um Volume Dois (Superman: Terra One Volume 2), de J. Michael Straczynksi (texto) & Shane Davis (arte) e Sandra Hope (arte-final). Barueri-SP: Panini Books, 2014, 132 páginas. Arte de capa de Shane Davis. Capa dura. Este volume eu encontrei em promoção na loja Geek.etc.br, no Conjunto Nacional, em São Paulo. Foi só abrir, e me fisgou. Nesta aventura, Clark Kent enfrenta as situações da redação do Planeta Diário, que incluem Lois Lane investigando o seu passado. Por sua vez, sua identidade como Super-Homem se envolve com a questão do poder absoluto e poder limitado — muito viva ainda nos nossos tempos turbulentos. Ao socorrer a população do país fictício Borada de um tsunami, o herói se depara com um cruel dilema: o ditador do país o proíbe de atuar, já que o maremoto atingiu a parte do país que apoia rebeldes que querem derrubá-lo. Para coagir o Superman, o ditador afirma que vai amputar o braço de uma pessoa, a cada minuto que ele permanecer no país. Mais tarde, o herói retorna a Borada para dar acesso a armas, por parte dos revolucionários, colocando o ditador contra a parede. Já vimos aqui que, na origem, o Super-Homem era um guerreiro da justiça social, durão e implacável contra quem cruzava a sua linha do certo e do errado. Em situação semelhante, jogou um torturador dezenas de metros no ar e obrigou os líderes de dois exércitos em guerra a lutarem entre si, em combate singular, até desistirem do conflito. Aqui, ele dá aos revolucionários acesso a armas, colocando o ditador contra a parede. Com essa ironia feroz, Straczynski recupera um traço do personagem, segundo Joe Shuster & Jerry Siegel o conceberam.

Mas o centro da aventura é outro: nos EUA, um serial killer, ao tentar apagar seus rastros, acaba se enfiando nos laboratórios Star, onde recebe uma carga de neutrinos que o transforma no supervilão Parasita (aparentemente, um vampiro energético primeiro apresentado em um desenho animado). A sede de poder do Parasita, voltada para a realização de sua predisposição para a tortura e o assassinato, encontra no Superman uma fonte, é claro, supra-humana. Enquanto isso, Clark arruma outro apartamento e, com ele, uma vizinha bonitona, que só não falta se jogar sobre ele porque ela efetivamente se joga sobre ele. O dilema aí é que danos ele, sendo um super-homem e supermacho, pode causar na garota se ele perder o autocontrole. Clark ainda busca encontrar os limites do seu papel como Superman. Certamente, ameaças como a o Parasita tornam clara a necessidade de ele se assumir como super-herói. O volume fecha, porém, com a reflexão de que o super-herói não consegue salvar todo mundo — neste caso, um jovem músico viciado em drogas, cuja amizade Clark passou a apreciar.

—Roberto Causo

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Causo Participa de Mesa na Uninove, em São Paulo

Em 6 de outubro de 2017, a convite do Prof. Elton Furlanetto, Roberto Causo falou na Jornada de Tradução e Interpretação, no âmbito do curso de Letras Inglês, juntamente com o escritor mainstream Mauro Paz.

A Universidade Nove de Julho tem um campus enorme na Av. Mattarazzo, em São Paulo. Em 5, 6 e 7 de outubro, o curso de Letras Inglês organizou a Jornada de Tradução e Interpretação. Um dos organizadores, o Prof. Elton Furlanetto, convidou Roberto Causo a participar de um bate-papo com o escritor Mauro Paz, autor do romance Entre Lembrar e Esquecer (Editora Patuá, 2017), para uma platéia de uns quarenta alunos e professores.

Elton Furlanetto e Mauro Paz.

Antes de irem para o palco, Causo tirou sua camisa xadrez, porque o padrão era quase idêntico ao de Mauro Paz. Isso deu chance a ele de exibir a sua camiseta de Star Wars…

Elton fez a mediação, perguntando como os dois escritores entraram no mundo da literatura, quais foram suas dificuldades iniciais, e o trabalho de cada um. Paz, que começou como letrista de banda de rock, falou do seu projeto Istacontos, de pequenas narrativas inspiradas em fotografias que ele mesmo realiza. Também das dificuldades iniciais, escrevendo ainda enquanto vivia em Porto Alegre, e reconhecendo que atualmente a abertura para a literatura brasileira é bem maior. Ele fez oficinas lá em Porto Alegre, como aquela famosa dirigida por Assis Brasil, e publicou pela primeira vez em 2002. Seu livro mais recente é Entre Lembrar e Esquecer, inspirado em um incidente real envolvendo o assassinato de um jovem negro em Porto Alegre, mas com circunstâncias familiares e sociais ficcionalizadas. Nele, Paz interroga o que é ser negro no Brasil — e no Sul, em especial, onde, segundo ele, a problemática é particularmente difícil. Roberto Causo notou que ambos têm esse ponto em comum: dois escritores caucasianos que escreveram sobre a situação do afro-descendente — Causo com o seu primeiro romance, a fantasia contemporânea A Corrida do Rinoceronte (2008).

Os dois escritores puderam usar um laptop com conexão de internet e Powerpoint para apresentar parte do seu trabalho aos presentes. Causo abriu justamente a página de GalAxis, Conflito e Intriga no Século 25. Paz mostrou os seus Istacontos. Também falou-se da importância da tradução para a formação dos dois escritores.

Da plateia veio uma pergunta sobre a ficção científica como aventura e como literatura de entretenimento, se ela se restringe a isso. Causo apontou que o gênero remonta ao século 19 e mesmo antes, e que sempre houve espaço para discussões sociológicas (como na utopia, um ramo ainda anterior). Noutro plano, o conto cautelar (como em alguns dos livros de H. G. Wells e nas histórias de guerra futura) discutia o status quo e as faltas da sociedade ocidental. Na década de 1950, a FC passa a ser vista com mais seriedade — mesmo porque a realidade se aproxima do gênero, com as armas nucleares, computadores e satélites artificiais —, e os escritores tornaram-se mais ambiciosos em termos literários. Na década seguinte, a New Wave promove uma aproximação ainda maior com o mainstream. Hoje, a FC está em parte tão misturada com o pós-modernismo americano, que tem gente reclamando dela ter perdido a sua originalidade inicial.

Mauro Paz lembrou que o novo filme de Denis Villeneuve, Blade Runner 2049, motivou um artigo no The Guardian apontando as razões do seu enfoque ser importante para o momento político que o planeta vive agora. Daí que a ficção científica tem o que dizer sobre a época e o que contribuir para discussões mais profundas e intelectuais.

Da plateia também veio uma pergunta sobre como lidamos com o bloqueio de escrita. Paz desse que nunca teve esse problema, pelo contrário, a dificuldade é explorar as suas muitas ideias dentro de um tema significativo como o de Entre Lembrar e Esquecer. A mesma pessoa perguntou sobre FC e feminismo, e Causo lembrou de Herland: A Terra das Mulheres (1915), de Charlotte Perkins Gilman, e de, antes dela, a brasileira Emilia Freitas e seu romance A Rainha do Ignoto (1899). Na década de 1960, Dinah Silveira de Queiroz em contos como o seu “O Carioca” (1960). Modernamente, Finisia Fideli, a esposa de Causo, trouxe em 1996 a discussão do lugar da mulher na FC, junto à comunidade brasileira de ficção científica. A Mão Esquerda da Escuridão (1969), de Ursula K. Le Guin também foi discutida por Causo e Furlanetto, e, seguindo uma dica dele, Causo mencionou o Manifesto Irradiativo — iniciativa local que busca trazer maior representatividade à literatura brasileira. A pesquisadora Libby Ginway também foi mencionada (Furlanetto passou uma temporada estudando com ela na University of Florida em Gainesville).

Livros foram sorteados e a mesa-redonda terminou com uma rápida sessão de autógrafos, antes da próxima atividade. Foi uma boa conversa, e Causo agradece o convite de Elton Furlanetto e a boa vontade dos outros participantes do evento, inclusive de Mauro Paz.

 

Roberto Causo e Mauro Paz: camisas quase iguais.

 

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