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O Poder do Deserto

O PODER DO DESERTO

 

 

O canadense Denis Villeneuve se consolida como um cineasta ambicioso e fortemente vinculado à ficção científica — algo relativamente raro, se pensarmos que um Ridley Scott ou um James Cameron não aparecem todo dia — ao trazer o épico da space opera exótica, Duna, de Frank Herbert, de volta às telas dos cinemas. A pandemia da covid-19 ameaçou comprometer o seu desempenho, mas, ao que parece, nada poderia passar uma rasteira nessa notável produção.


 

Duna (Dune: Part One) Inglaterra, 2021, 155 minutos. Warner Bros. Dirigido por Denis Villeneuve. Escrito por Eric Roth, Jon Spaihts & Denis Villeneuve, baseado no romance de Frank Herbert. Produzido por Mary Parent, Cale Boyter, Joe Caracciolo Jr. & Denis Villeneuve. Música de Hans Zimmer. Cinematografia de Graig Fraser. Montagem de Joe Walker.

Com Timothée Chalamet, Rebecca Fergusson, Zendaya, Oscar Isaac, Jason Momoa, Stellan Skarsgård, Stephen McKinley Henderson, Josh Brolin, Javier Barden, Sharon Duncan-Brewster, Chang Chen, Dave Bautista, David Dastmalchian, Charlotte Rampling, Babs Olusanmokun, Benjamin Clémentine.

 


Romance de Frank Herbert publicado originalmente em 1965, Duna (Dune) tem uma história tanto de adaptações realizadas quanto abortadas. Em artigo na revista britânica SFX #84 (novembro de 2001), o articulista John Gosling recorda que o primeiro a tentar a adaptação foi o produtor Arthur P. Jacobs, famoso pela primeira franquia moderna de ficção científica, O Planeta dos Macacos, juntamente com o roteirista e fã de Herbert, Robert Greenhut. O famoso David Lean de Lawrence da Arábia chegou a ser sondado para a direção (é tudo passado no deserto, não é?), mas ela acabou caindo nas mãos de Charles Jarrott, ganhador do Globo de Ouro de Melhor Diretor em 1969, com Ana dos Mil Dias. Outro roteirista experiente, Rospo Pallenberg, foi recrutado para trabalhar o roteiro — ele vinha da experiência de adaptar outro épico complexo, para uma frustrada produção de O Senhor dos Anéis a ser dirigida por John Boorman (famoso pela fantasia arturiana Excalibur).

O projeto de Jacobs, que seria parcialmente filmado em uma região vulcânica da Turquia, começou a descarrilhar com a morte do produtor, em 1973. Mais tarde, acabou abraçado pelo escritor e cineasta chileno Alejandro Jodorowski, a partir de 1975. A sua versão nunca realizada se tornaria um dos filmes abortados mais famosos de todos os tempos. Isso se deu, em grande parte, pelas ideias surrealistas e heterodoxas que ele havia enfiado no enredo, mas principalmente pela qualidade dos artistas envolvidos na pré-produção. Entre eles estiveram figuras de grande impacto como Moebius, H. R. Giger, Chris Foss e Richard Corben. O produtor e roteirista Dan O’Bannon trabalhou no projeto como diretor de efeitos especiais, e levou com ele Moebius, Giger e Foss para o projeto de Alien: O Oitavo Passageiro (1979), de Ridley Scott. com roteiro de O’Bannon e Ronald Shusett.

Cartaz do documentário Jodorowsky’s Dune, dirigido por Frank Pavish.

Com o naufrágio do seu projeto, Jorodowski se associou a Moebius na épica space opera em quadrinhos O Incal (1981-1988), e mais tarde com o brilhante Juan Giménez na Saga dos Metabarões — ambas as narrativas devendo muito ao cruel exotismo de Duna, sendo que o criador chileno continuou expandindo a space opera do Universo dos Metabarões até 2003. A experiência frustrada da adaptação cinematográfica é o assunto do documentário Jodorowski’s Dune (2013), de Frank Pavich.

Raffaella De Laurentiis, filha do famoso produtor Dino De Laurentiis, alavancou a primeira adaptação que chegou a termo, o filme de David Lynch lançado em 1984. Recentemente, Ridley Scott comentou a respeito do seu envolvimento com esse projeto, já que ele foi recrutado antes de Lynch para a direção. Basicamente, o diretor inglês se assustou com as condições do estúdio armado por Dino na Cidade do México, e pulou fora. Ele vinha de realizar Alien, o Oitavo Passageiro (1979) e Blade Runner: O Caçador de Androides (1982). David Lynch escreveu e dirigiu o Duna da produtora De Laurentiis, um fracasso de bilheteria e de crítica, mas que possui os seus méritos, com um visual sombrio que reteve algo da arte de produção de Giger.

Em 2000, a adaptação foi pela primeira vez para a TV por assinatura — a minissérie Frank Herbert’s Dune, criada e dirigida por John Harrison e exibida no então Sci Fi Channel, mas acabou sendo uma produção trôpega, com um excesso de efeitos digitais. Não obstante, foi a única adaptação que rendeu uma sequência — baseada no romance Messias de Duna, também como minissérie, desta vez com direção de Greg Yaitanes, em 2003.

Por fim, Peter Berg, cuja experiência com ficção científica foi o blockbuster Battleship: A Batalha dos Mares (2012), foi aventado para adaptar o livro mais uma vez em 2008, pela Paramount. Mas ele abriu mão, talvez fugindo da complexidade do assunto e buscando a saída mais fácil da sua versão de um filme de Michael Bay. A Paramount desistiu em 2011.

Denis Villeneuve vinha do sucesso de crítica A Chegada (The Arrival; 2016), baseado em uma noveleta do escritor sino-americano Ted Chiang, e do respeitável Blade Runner 2049 (2017), inspirado, por vias muito  indiretas, no romance de Philip K. Dick, Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? Em ambos, ele havia demonstrado um senso estético superior, narrativa sólida e sensibilidade quanto aos estados emocionais dos protagonistas. Fã de Duna desde a infância, em entrevista também declarou-se fã de David Lynch, mas que sentia que ainda havia o que explorar de uma adaptação cinematográfica da obra de Herbert e enfrentar o desafio do romance “infilmável”. Falando com o jornalista Alex Arabian, declarou que seu ponto de partida para o filme foi se reconectar com as imagens e sentimentos evocados quando da sua primeira leitura:

Duna ainda é um dos meus romances favoritos. Há algo que ele diz sobre o mundo e a exploração de ecossistemas. Há tantos elementos nele que ainda me trazem — toda vez que o abro e começo a ler — aquela bela e melancólica felicidade que eu tive quando o li pela primeira vez quando menino.” —Denis Villeneuve.

Exibido pela primeira vez em 3 de setembro no Festival de Veneza, onde foi ovacionado, o filme de Villeneuve entrou no circuito americano em 21 de outubro, quando também, em decisão polêmica, foi disponibilizado em streaming pela HBO Max. Com orçamento de US$ 165 milhões, faturou mais de US$ 400 milhões, garantindo, ao que tudo indica, a produção da parte 2. Se de algum modo a sombra do filme anterior de Byrne pairou sobre a produção de Villeneuve, ela é afastada nos primeiros cinco minutos de exibição, marcados por um prólogo em que a fremen Chani (Zendaya) narra como os Harkonnen estão se retirando do planeta Arrakis, deixando as portas abertas para um novo opressor a mando do Imperium — o império galáctico da imaginação de Herbert. A fala está no lugar daquela da Princesa Irulan (a jovem Virginia Madsen, no filme de Lynch), e lembra a história de opressão sofrida pelos árabes nas mãos do Império Otomano e, mais tarde, potências colonialistas europeias.

A narrativa vai imediatamente ao úmido e selvagem mundo de Caladan, lar da Casa Atreides comandada pelo Duque Leto Atreides (Oscar Isaac), e articulada de modo a dar a entender que a figura de Chani fazia parte de um sonho do seu filho, Paul Atreides (Timothée Chalamet). Se o prólogo era aberto, ensolarado e com efeitos oníricos da especiaria — substância estratégica para o império, encontrada apenas em Arrakis —, a cena em que Paul toma o café da manhã com sua mãe Jessica (Rebecca Ferguson) é fechada e sombria, com reflexos de luz filtrados por janelas circulares gradeadas. Sem dúvida, grande parte da separação estética entre o Duna de Villeneuve e o de Lynch está nos interiores criados pelo designer de produção Patrice Vermette, inspirados na arquitetura brutalista brasileira, de todas as fontes possíveis. Os planos longos das superfícies de concreto, quebradas por estruturas semicirculares e nuançadas por luz e sombra fornecem a solução minimalista para expressar a monumentalidade épica e o exotismo que, no filme de Lynch, foi alcançada com muito rococó e retrofuturismo.

Mudança semelhante fora obtida com as evocações de Frank Lloyd Wright em Blade Runner 2049, mas me parece que com maior felicidade neste Duna, que tem grande parte das suas imagens criadas como composições geométricas e de espaço negativo. Mesmo os figurinos de Jacqueline West foram expressos em planos e linhas bem geométricas, especialmente as armaduras de combate e os uniformes cerimoniais, com uma dose de movimento extra agraciando as figuras esguias das mulheres.

O pendor minimalista chegou às interpretações, com o corte dos pensamentos em off vistos no primeiro filme, herança do uso desse recurso pelo próprio Herbert para abreviar sua narrativa e acentuar análise (quando o personagem que reflete tenta imaginar as reações de interlocutores e adversários) e cálculo (quando ele pesa as próprias reações). Em Lynch, o recurso era redundante em muitos momentos, funcionando mais como ênfase dramática e prenúncio de suspense futuro. Sem ele, porém, o roteiro de Villeneuve & Cia às vezes pesa um pouco no diálogo expositivo: repetidamente há alertas de que os Atreides, em Arrakis para substituir a administração e prospecção de especiaria feita antes pelos Harkonnens, estão caindo em uma arapuca montada pelo imperador. Há até uma dica visual: os enormes vasos de desembarque do duque, ao descerem sobre Arrakis, têm o perfil de peões de jogo de xadrez.

Também é possível reconhecer a legítima preocupação de se esquivar das cenas mais seminais de Lynch, adotando mudanças de dinâmica além de tom o atmosfera. Muito é feito do encontro, da fuga e da luta final de Duncan Idaho (Jason Momoa) — talvez tendo em mente um possível retorno do carismático personagem na Parte 2, pinçado do contexto de Messias de Duna (1969) —, e menos é feito da captura e do sacrifício de Leto. A crueldade sistêmica do Barão Harkonnen (Stellar Skarsgård, oculto sob camadas de próteses) é atenuada em favor de uma qualidade mais tétrica e de trejeitos de Marlon Brando em Apocalipse Now (1979). Ao mesmo tempo, o imperador ou sua filha, a Princesa Irulan, não aparecem, assim como o violento sobrinho do barão, Feyd-Rautha — deixados para uma entrada enfática, na Parte 2?

Fergusson faz uma Lady Jessica um pouco emocional demais no esforço de comunicar o temor pelo seu filho. Chalamet está adequado como Paul Atreides, talvez apenas por ser superior a Kyle MacLachlan no papel. Momoa como Idaho traz um quê natural que contrasta positivamente com o modo composto de Oscar Isaac e Josh Brolin (como o mestre de armas Gurney Halleck), e da totalidade do elenco de apoio. Como muito deveria ter sido comunicado a respeito dos fremen neste filme, até como preparação para o seguinte, me pareceu que apenas Javier Barden (como o líder Stilgar) conseguiu transmitir a força física e de caráter desse povo. O elenco negro, para o meu desencanto, assumiu o manto de estoicismo e autonomia fremen como uma distância emocional que me incomodou — especialmente a atriz britânica Sharon Duncan-Brewster, fazendo o ecologista imperial Lyet Kines, que adotou os modos nativos (feito pelo incrível Max von Sidow, no filme de Lynch), e Babs Olusanmokun como o guerreiro Jamis, o primeiro homem a ser morto por Paul — e não o último. A exceção deve ser Zendaya, apesar das poucas falas (seu carisma pessoal já havia sido trabalhado nas visões de Paul).

De fato, eu esperava mais do uso do componente diversidade, tão determinante nos dias de hoje. Mas talvez a perspectiva minimalista de Villeneuve impeça uma ênfase maior, de maior nuance e projetando mais força de personalidade. É interessante observar que, no seu tom carnavalesco, o Duna de Lynch fez mais em termos de um corpo de coadjuvantes mais exuberante e melhor marcado. Embora, também naquele filme, os fremen pareçam mais apagados do que a trupe de lacaios imperiais ou Harkonnen, ou mesmo a criadagem fremen da cidade murada de Arrakis (saudades de Linda Hunt como a camareira Shadout Mapes). Qualquer deficiência nesse quesito, porém, é abafada pela força do enredo e da composição das imagens.

Ápice da space opera exótica, Duna foi adaptado por Denis Villeneuve com admirável economia estética e elementos concebidos com grande bom gosto e posicionados com habilidade para comunicar o exotismo, a complexidade e a crueldade do império galáctico. Estratégia oposta ao do filme de David Lynch, e abrindo mão daquela comicidade que parece obrigatória na space opera juvenil de Star Wars, Battlestar Galactica, Inimigo Meu e outros filmes e séries de outro período, pertencentes ao subgênero, e que vemos até no Incal de Jodorowsky.

A batalha pela posse da fortaleza é o clímax do novo Duna, e do seu emprego de efeitos especiais. Com o bombardeio do gerador de campo energético, torna-se possível o uso de armas de alta energia, e um laser persegue do alto o ornitóptero (mais para odonatóptero, já que não se inspira em pássaros mas na libélula), em que Idaho foge. Dotados de escudos individuais, os combatentes em terra ainda precisam usar espadas e adagas. A racionalização restritiva de Duna, para justificar o romantismo da esgrima herdado da fantasia científica de Edgar Rice Burroughs, fica bem marcada na sequência da batalha. Ao mesmo tempo, o design monumental das naves, pairando sobre uma cidade que parece um grande organismo de concreto, evoca todo o controle da imagética da ilustração épica de FC, por parte de Villeneuve, já sugerido em A Chegada. Certamente, escapou daquela evocação torta de velhos filmes italianos do gênero épico, pelo filme da Dino De Laurentiis Company.

E, mais uma vez, curiosamente o mesmo Villeneuve meio que desperdiçou o “nu frontal” do verme de areia, na cena em que todo o seu gigantismo surge das dunas, perante um pequeno humano atordoado. A revelação, que deveria ser portentosa, simplesmente não tem a força exigida. O que ele vai aprontar com o clímax programado para Duna Parte 2 (lançamento previsto para 2023), provavelmente aquela em que os vermes invadem a cidade-fortaleza? Ele já andou declarando que a cena vai ser um “belo desafio”.

Mais preocupante foi a declaração de que, o primeiro filme tendo montado o palco, o segundo vai apresentar uma “quantidade maior de diversão”. Pode ter sido um jeito de animar os espectadores para verem o primeiro, acesso para o suposto grau superior de diversão esperado para o segundo. Ou pode mesmo ser o realizador se curvando à onipresente pressão dos produtores de Hollywood para o patamar de bilheteria alcançado pelos filmes da Marvel ou de Star Wars.

Da minha parte, garanto que se a segunda parte apresentar uma “marvelização” de Duna, alguém vai ter uma síncope. E esse alguém pode muito bem ser eu.

Ou você?

Roberto Causo

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Os Melhores de 2017

Veja aqui a lista dos melhores livros e melhores filmes lidos e vistos por Roberto Causo, em 2017.

 

Livros

1. Doomsday Book, de Connie Willis. Por boa margem, este foi o melhor romance de ficção científica que li este ano, uma história de viagem no tempo originalmente publicada em 1992, com edição brasileira pela Suma de Letras, em capa dura, lançada em 2017 — a tradução é de Braulio Tavares. Pouco publicada no Brasil, Willis é um dos grandes nomes da corrente humanista da FC pós-modernista americana.

Arte de capa de Kevin Murphy.

2. Adiamante, de L. E. Modesitt, Jr. Um romance compacto de ficção científica do futuro distante que, sozinho, oferece alternativa à enxurrada perpétua de ficção científica que propõe o genocídio preventivo como a estratégia básica das civilizações galácticas, no máximo imaginável de darwinismo social. A solidez do suspense está a par com a filosófica.

3. South of Broad, de Pat Conroy. O último romance do recentemente falecido Conroy, é um drama de várias décadas envolvendo um fiel e traumatizado grupo de amigos na charmosa capital sulista Charleston. Mistura ficção de crime, crônica social, reflexões sobre diversidade sexual, abuso e AIDS, da maneira ao mesmo tempo sentimental e incisiva que caracteriza a obras de Conroy.

4. The Divine Comedy, de Dante Alighieri. Edição em inglês da Divina Comédia, clássico poema épico de Dante, uma das maiores construções poéticas do Renascimento. A tradução do italiano é de outro poeta mestre, Henry Wadsworth Longfellow.

5. Teoria do Drone, de Grégoire Chamayou. O mais importante livro de não-ficção que li em 2017, amarra e explicita todas as relações insidiosas de poder, guerra e alienação da opinião pública, em torno de um dos temas mais candentes do século 21: o uso de drones de ataque em “guerras” por atacado, conduzidas “contra o terror” pelos Estados Unidos. Certamente, um assunto que também tem tudo a ver com a ficção científica.

6. The Underground Railroad, de Colson Whitehead. Premiadíssimo romance afro-americano que toca o realismo mágico e a ficção científica, enquanto acompanha uma jovem que fugiu da escravidão em uma fazenda no Sul dos Estados Unidos, para descobrir outras dimensões da opressão racista conforme ela passa por outros estados e encontra extremos de organização social voltada para o controle da população negra.

7. Dragon Haven: Volume Two of the Rain Wilds Trilogy, de Robin Hobb. Segundo volume de uma tetralogia de alta fantasia ambientada no mesmo universo da Trilogia do Assassino e da Trilogia dos Mercadores de Navios Vivos. Hobb lida como ninguém com textura, caracterização, enredo e passo narrativo. Este não é o seu melhor, mas ainda acima da maioria.

8. Os Garotos Corvos, de Maggie Stiefvater. Primeiro de uma tetralogia de fantasia contemporânea para jovens, ambientada na Virgina e envolvendo o resgate, por um grupo de garotos esoteristas, de um rei celta sepultado no lugar, e incógnito há séculos. A prosa de Stiefvater tem uma vivacidade única e uma complexidade enganadora.

9. Beowulf’s Children Larry Niven, Jerry Pournelle & Steven Barnes. Um bojudo romance de colonização planetária escrito a seis mãos, que fiz questão de ler no ano em que Pournelle faleceu. Elabora e problematiza de modo engenhoso uma série de questões sobre liberdade, comunidade, sexo e ecologia.

10. Hunter’s Run George R R Martin, Gardner Dozois & Daniel Abraham. Outro romance de FC de colonização planetária — e outro escrito a seis mãos! Mas Hunter’s Run, que saiu no Brasil pela LeYa este ano como Caçador em Fuga, concentra-se no retrato psicológico de um único personagem, com muita aventura das antigas costurada no meio.

11. O Esplendor, de Alexey Dodsworth. Um dos romances brasileiros de FC mais ambiciosos dos últimos anos, este que é o segundo livro de Dodsworth compõe um diálogo com uma das obras-primas de Isaac Asimov, a noveleta “O Cair da Noite”. Rendeu ao autor o seu segundo Prêmio Argos (do Clube de Leitores de Ficção Científica) de Melhor Romance.

12. American Fascists: The Christian Right and the War on America, de Chris Hedges. Um necessário livro reportagem que disseca a direita cristã americana, por tabela lançando luz sobre a atual situação política os EUA — e a potencial situação política brasileira, já que também aqui essa corrente reacionária tem crescido.

13. Não Chore, de Luiz Bras. Uma novela de ficção científica tupinipunk, certamente o destaque de Luiz Bras em um ano no qual ele publicou três livros. Faz par com o seu notável romance rapsódico Distrito Federal, de 2015, embora os dois livros possam ser lidos separadamente.

14. O Homem que Caiu na Terra, de Walter Tevis. Clássico da ficção científica americana da década de 1960, virou filme e foi lançado no Brasil apenas em 2017, pela DarkSide. Uma FC sobre alienígena infiltrado na Terra, com um expressivo conteúdo existencialista.

15. Stories of Your Life and Others, de Ted Chiang. A primeira coletânea do multipremiado contista americano, incluindo a história título que foi base do filme A Chegada. Narrativas complexas, fabulation pós-modernista e especulação científica de alta qualidade.

 

Cinema

1. Logan, dirigido por James Mangold. A Marvel entra no terreno de Cormac McCarthy, neste que é um sério candidato a melhor filme de super-heróis da história. Filme duro, tecnicamente impecável e surpreendentemente emocional, estrelado por Wolverine e o Prof. Xavier num diálogo com os westerns do passado.

2. Fragmentado (Split), dirigido por M. Night Shyamalan. Outro incomum filme de super-herói (de supervilão, na verdade) conduzido de modo diferenciado — como um admirável filme de suspense, com ótimas interpretações e uma reflexão importante sobre trauma psicológico. Só não digo que com ele Shyamalan recuperou a sua glória passada, por que de fato ele nunca a perdeu — as críticas constantes dirigidas a ele são só implicância dos críticos.

3. Blade Runner 2049, dirigido por Denis Villeneuve. A sequência do clássico de Ridley Scott é um banquete visual e uma introspectiva viagem a um plausível mundo futuro dominado por uma megacorporação obcecada em recriar e controlar a vida. Mais forte em enredo e mais fraco em sugestões de transformação social do que o proto-cyberpunk de 1982. Ainda sim, celebração de uma FC séria e cinematicamente hábil.

4. 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey), dirigido por Stanley Kubrick. Minha esposa Finisia Fideli e eu tivemos a chance de ver uma reprise deste clássico do cinema de ficção científica, com roteiro de Kubrick e Arthur C. Clarke, em uma sessão no Shopping Pátio Higienópolis, em maio de 2017. A tela grande faz toda a diferença para a linguagem visual desse filme ainda inquietante.

5. Star Wars: Os Últimos Jedi (Star Wars Episode VIII: The Last Jedi), dirigido por Rian Johnson. O diretor Johnson devolveu a esperança ao prato principal da franquia agora dominada pela Disney, com uma história que prende a atenção, inverte construtivamente algumas expectativas, e mostra uma atuação dos jedi que vai além do usual kung-fu aéreo. Algumas premissas não estão em sintonia com o universo de Star Wars, e o roteiro insiste que devemos deixar para trás o que já sabemos sobre ele e aceitar como boas ovelhas o que será apresentado dali em diante. Esperem sentados.

6. Assassinato no Expresso do Oriente (Murder at the Orient Express), dirigido por Kenneth Branagh. O clássico de mistério de Agatha Christie tem uma adaptação engenhosa e criativa por parte de Brannagh, que usou o tom exaltado do teatro, movimentos de câmera e enquadramentos incomuns para arejar um romance em que a mãe desse subgênero de ficção de crime reflete, subverte e dignifica as próprias artimanhas.

7. A Vigilante do Amanhã (Ghost in the Shell), dirigido por Rupert Sanders. A primeira adaptação live action do anime cyberpunk original de 1995, dirigido por Mamoru Oshi, é um imbróglio pós-modernista de fluxos de capitais transnacionais plasmados em franquias e percepções étnicas em fluxo — ah, teorias pós-modernistas à parte, o filme é um triunfo da pré-produção, grande expressão do que a arte digital e as IGCs consegue realizar hoje em dia, e pouco mais do que isso.

O cinema é um grande prazer. Mas por algumas dificuldades sofridas em 2017, que incluíram falta de tempo, não vi tantos filmes quanto gostaria. Acima estão todos os que vi durante o ano.

—Roberto Causo

 

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Leituras de Novembro de 2017

Em antecipação ao lançamento de Star Wars Episódio VIII: Os Últimos Jedi no fim do ano, em novembro resolvi atacar alguns livros de quadrinhos dentro da franquia. Mas o mês não deixou de trazer a leitura de algumas obras significativas de ficção científica nacional e estrangeira.

 

O Homem que Caiu na Terra (The Man Who Fell To Earth), de Walter Tevis. São Paulo: DarkSide Books, 2016 [1963], 220 páginas. Capa dura. Tradução de Taissa Reis. Falecido este ano aos 92 anos, o escritor e crítico inglês Brian W. Aldiss afirmou em 1984 que a década de 1950 foi “um ápice” da ficção científica. A afirmativa fazia contraponto à ideia da Era de Ouro como sendo o período entre 1938 e 1948. A FC que Aldiss saudava era madura, capaz de explorar a psicologia dos personagens e discutir problemas contemporâneos com seriedade e controle de narrativa e estilo. Este romance de Walter Tevis, adaptado para o cinema por Nicolas Roeg em 1976, é de 1963 e portanto posterior, mas está dentro da prática da década anterior e lembra obras significativas como Flowers for Algernon (1959), de Daniel Keyes e que também virou filme, e Eu Sou a Lenda (1954) e O Incrível Homem que Encolheu (1956), de Richard Matheson — todos eles sobre a solidão do sujeito em um mundo de circunstâncias sociais em rápida transformação.

O Homem que Caiu na Terra é um substancial romance de ficção científica sobre um alienígena oriundo de um planeta moribundo situado no Sistema Solar. Ele vem à Terra com um plano de influir positivamente na política humana durante a guerra fria. O objetivo é salvar nosso planeta da guerra nuclear e preparar o terreno para a vinda do restante da população do seu mundo para cá. Para isso, começa oferecendo a um capitalista uma série de desenvolvimentos tecnológicos da área do entretenimento. Enriquece rapidamente, a ponto de reunir os recursos para a construção de uma nave espacial privada, em uma propriedade do Kentucky. No meio do caminho, porém, ele conhece uma mulher que se torna sua enfermeira e companheira platônica, e um engenheiro químico tão curioso sobre suas invenções, que dá um jeito de ir trabalhar para ele e de se aproximar o suficiente para descobrir seu segredo. No caminho dos planos do alienígena, está menos a atenção do FBI e da CIA — que certamente lhe trazem graves problemas —, e mais o envolvimento de mesmo com a trivialidade da vida humana. Existencialista. Assim como no romance O Novo Adão (1939), de Stanley G. Weinbaum (1902-1935), o ET de Walter Tevis é um super-homem intelectual forçado a viver num drástico isolamento moral entre criaturas inferiores que ele de algum modo ama, mas com as quais não consegue se relacionar. Assim como em Eu Sou a Lenda, a solidão e o alcoolismo marcam os passos do protagonista. A novidade está na ambientação que é ou rural ou entre as altas rodas de cidades como Nova York e Chicago, mas de uma maneira pouco caracterizada. Bastante diferente do cenário desértico que o filme de Roeg, com David Bowie como o alienígena, escolheu explorar. A maior realização da prosa de Tevis está no tom melancólico e interiorizado, que sublinha esse aspecto existencial. Isso faz deste livro um romance sofisticado, mas que de certo modo fica na superfície das suas indagações.

 

Animais Fantásticos e Onde Habitam: Os Animais: Guia Cinematográfico (Fantastic Beasts and Where to Find Them Cinematic Guide: The Beasts), de Felicity Baker. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2017, 64 páginas. Tradução de Regiani Winarski. Capa dura. O filme de se tornou o favorito de 2016 entre minha mulher, Finisia Fideli, e eu. Parte do universo iniciado com a série Harry Potter, de J. K. Rowling, parece se dirigir a um público mais adulto. Ambientado na Nova York de 1926, tem um ótimo elenco e situações divertidas, um herói incomum e personagens secundários valorizados. Quem curtia os velhos filmes de Frank Capra, como eu, tem nele uma viagem de lembranças e referências. Mais importante, é um filme que celebra a imaginação e a atitude liberal, solidária e agregadora.

O desenho de produção de Animais Fantásticos é excepcional e resultou em uma profusão de elementos de design gráfico que expandem o conteúdo do filme e estão no centro dos dois outros livros do filme que temos aqui: Mergulhe na Magia, o Bastidores de Animais Fantásticos e Onde Habitam, de Ian Nathan; e o maravilhoso A Maleta de Criaturas: Explore a Magia do Filme Animais Fantásticos e Onde Habitam, de Mark Salisbury, que imita a mala de Newt Scamander (com direito a fecho magnético e imitação de costura nas bordas) e tem dentro uma infinidade de coisas como folhetos, mapas e panfletos que você pode desdobrar ou puxar de um envelope. Este guia também tem fotos muito bonitas dos ambientes e objetos, conta resumidamente a história, mas se concentra nos bichos fantásticos um esquema de fotos e fichas. Comete um engano, porém — a autora Felicity Baker confunde o gira-gira com a fada mordente! E só por aí já dá pra sentir com virei um nerd de Animais Fantásticos…

 

Stories of Your Life and Others, de Ted Chiang. Nova York: Vintage Books, s.d. [2016? 2002], 284 páginas. Trade paperback. Este é um livro que comecei a ler na edição de 2016 pela Intrínseca, com tradução de Edmundo Barreiros, mas terminei com esta edição da Vintage. É que em 6 de novembro estive na Universidade Federal de São Paulo, campus de Guarulhos, para uma atividade com alunos e colegas da Prof.ª Suzanna Mizan — com quem partilhei há alguns anos a orientação do Prof. Lynn Mário Trindade Menezes de Souza — para discutir justamente o filme A Chegada (Arrival, 2016), de Denis Villeneuve, e a história de Ted Chiang em que ele se baseou, “História da sua Vida” (“Story of your Life”). Suzanna me presenteou com esta edição em inglês. Chiang tem sido um grande nome da ficção científica americana desde sua estreia em 1991, e a feliz adaptação da sua história deu a chance que os leitores brasileiros esperavam para conhecer o seu trabalho.

“História da sua Vida” (1999) é uma narrativa madura e sofisticada, que incorpora muitos procedimentos da ficção pós-modernista americana, com uma forte qualidade emocional. Essa premiada noveleta é a melhor do livro, mas ele traz outros textos importantes, como a premiadíssima história de 2002, “O Inferno É a Ausência de Deus” (“Hell Is the Absence of God”). Outro seria “Torre da Babilônia” (“Tower of Babel”, 1991), seu texto de estreia, ganhador do Prêmio Nebula de Melhor Noveleta. Estes dois, juntamente com o divertido e engenhoso “Setenta e duas Letras” (“Seventy-two Letters”), que eu já conhecia da antologia Steampunk (2008), de Ann & Jeff VanderMeer, são fabulations — narrativas que questionam o realismo ou a mímese na literatura, mas com a lógica sólida e a caracterização minuciosa que são as marcas de Chiang. Outra marca, presente na coletânea, é o ethos universitário expresso, por exemplo, nas histórias “Divisão por Zero” (“Division by Zero”), “A Evolução da Ciência Humana” (“The Evolution of Human Science”) e “Gostando do que Vê: Um Documentário” (“Liking What you See: A Documentary”). Neste último, há uma sátira aos movimentos de justiça social, aqui num ataque às vantagens que a beleza física traz — uma história que entrou na The James Tiptree Award Anthology 3 (2007). O melhor texto desta bem-vinda coletânea de um dos nomes fundamentais da FC contemporânea, continua sendo “História da sua Vida”.

 

Expulsão do Paraíso, de Nilza Amaral. São Paulo: Arte Paubrasil, 2012, 94 páginas. Brochura. A escritora Nilza Amaral é conhecida do fandom de FC por sua premiada novela distópica de 1984, O Dia das Lobas. Aqui temos outra novela, publicada com a ajuda e a chancela Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo. A narrativa acompanha dois personagens, o retirante descrente Severo Justo, e a crédula ribeirinha Joana Sabina. Os dois vivem em pontos diferentes daquilo que é obviamente o Brasil, mas que é chamado pelos dois de “lugar nenhum” — um espaço de fábula que evoca o Nordeste místico e a Amazônia folclórica. Ambos são personagens confusos que se deparam com eventos maravilhosos. Vagando na tentativa de aplacar a fome, Severo retalha a carcaça de um jegue morto há pouco. Um cão vadio (talvez referência à cadela de Vidas Secas, de Graciliano Ramos) e um trio de velhas chamadas por eles de “bruxas” o acompanham. O ato se transforma imediatamente em um tableau mágico, como num inesperado ritual de invocação. Mais tarde, surge no caminho do ainda faminto Severo, uma vaca vermelha que cava um imenso açude…

Joana, por sua vez, é uma adolescente fascinada por seu despertar sexual, que cede à sedução de um boto, antes de ser perseguida pela Boiúna, serpente gigante descrita aqui como tendo um gosto por jovens que deixaram de ser virgens… No meio das águas do grande rio, ela acompanha em uma ilha fluvial a luta de seu pai, um pescador, para deter a fera. O estilo de Amaral, neste livro, busca sentenças longas e complexas, evocativas e rítmicas, com a interiorização do discurso indireto livre, em tudo sublinhando o clima onírico da sua novela. É tentador afirmar que um personagem flerta com a vida em face da morte, e uma outra que flerta com a morte enquanto persegue a vida. Mais para o fim do livro, aparece Mara Lúcia, moradora de São Paulo que de algum modo indefinido — imaginação ou informação? — toma conhecimento dos outros personagens. Num toque metaficcional, sua reação mundana trivializa o mágico e o fabuloso das experiências dos outros. Como se afirmando a distância entre o nosso cotidiano e esse mundo de mito, sonho e desejo. O assunto muitas vezes me fez pensar no realismo mágico, mas falta realismo na mistura, e por isso a impressão maior de se estar diante de uma fábula.

“O amor entre os dois foi divinal na extensão genérica da palavra, preparado pelos deuses e pelos mitos da região, disposto para o prazer do encontro do desejo, da sedução e da fantasia, pronto para a continuação da prole do boto-homem, para que não morrendo a lenda, não se findasse a encantaria da terra, mesmo que depois do coito, o usurpador do corpo da donzela fosse morte, como sói acontecer aos rapineiros de corpos femininos quer sejam lendários ou não, querendo parecer que tal ação, mesmo sendo em nome do amor, merece o castigo da terra como dos céus.” —Nilza Amaral, Expulsão do Paraíso.

 

O Esplendor, de Alexey Dodsworth. São Paulo: Editora Draco, 2016, 402 páginas. Brochura. Este é o segundo romance do brasileiro Dodsworth, um ganhador do Prêmio Argos do Clube de Leitores de Ficção Científica com seu livro de estreia, Dezoito de Escorpião. Certamente, O Esplendor não existiria se Isaac Asimov não tivesse escrito a sua célebre noveleta “O Cair da Noite” (“Nightfall”, 1944), já que as duas obras imaginam um planeta que tem meia dúzia de sóis na sua abóbada celeste — tantos que a noite é um fenômeno desconhecido, lendário. Dodsworth também se aproxima da FC da Golden Age praticada por Asimov em outros sentidos. A sociedade alienígena que ele imagina para o seu planeta é composta de telepatas que enfrentam disputas ferozes entre religião e ciência, conservadorismo intelectual e a necessidade íntima do se buscar o conhecimento. Assim como na história de Asimov, eles apresentam números associados aos seus nomes próprios.

Ao mesmo tempo, O Esplendor tempera essa tendência com outras bem atuais: diversidade sexual (completa com uma designação de não gênero, com o uso do símbolo “@”) e racial (os alienígenas têm pele negra e sua cultura se inspira na cultura afro, como o próprio nome do planeta indica: Aphriké), prosa jovem, informal, e a aproximação da FC e a fantasia. A trama envolve o surgimento de uma espécie de prometido, mutante cujo corpo parece mais com o nosso, e que mais tarde ganha o nome de Itzak (Isaac?). Ele é o sujeito que, acercado de um pequeno grupo de simpatizantes, enxerga a realidade dos fatos e a catástrofe iminente. Assim como no primeiro livro do autor, há uma conexão entre um mundo alienígena e a Terra, representado por uma outra personagem especial, a albina Lah-Ura. As semelhanças com “O Cair da Noite” são tão presentes, que às vezes o livro vai além de uma homenagem, parecendo mais uma releitura da história de Asimov. Além disso, como a narrativa é em primeira pessoa pela voz de uma historiadora (com acesso à mente dos protagonistas), boa parte da primeira metade do romance se lê mais como dissertação do que narração, com muito de uma abordagem de ficção científica antropológica tipo A Mão Esquerda da Escuridão (1969), de Ursula K. Le Guin. É especialmente interessante que a historiadora Tulla descreva uma civilização livre de muitos dos nossos preconceitos — enquanto mantém os seus próprios, dentro de uma rigidez de penamento conservador muito característica. O final tem muito dinamismo e confrontos em sequência, como os de Brandon Sanderson na alta fantasia. De qualquer modo, este foi um dos romances brasileiros de FC mais conceitualmente ambiciosos de 2016, e dos últimos anos. Certifica Alexey Dodsworth como um autor a se acompanhar. A Draco também republicou Dezoito de Escorpião.

 

A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil, de Kátia Regina Souza. Porto Alegre: Editora Metamorfose, 2017, 174 páginas. Capa e ilustrações internas de Jacira Fagundes. Introdução de Jana Bianchi. Brochura. Há alguns meses, a jornalista Kátia Regina Souza me procurou como um de uma longa lista de escritores e editores brasileiros de ficção científica, fantasia e horror, para uma entrevista sobre a situação desse literatura no Brasil. Em novembro, agora, recebi um exemplar autografado. O livro acaba sendo o primeiro centrado na situação atual da ficção especulativa brasileira — vale dizer, do contexto da “Terceira Onda”, como tenho insistido aqui e em outros lugares. Um pioneirismo extraordinário, que emana do próprio interesse da autora, ela mesma escritora da área.

A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil é pautado pelas entrevistas, é claro, e tenta definir a vocação do escritor no quadro muito ativo mas frequentemente frustrante da escrita de ficção especulativa, com as opções de meio indo do livro tradicional ao e-book e a plataformas como Wattpad. E de ferramentas que vão da autopublicação paga, autônoma (na Amazon, por exemplo) ou coletiva, leitores betas, editores profissionais ou semiprofissionais, e agentes literários. O primeiro nome procurado por Kátia Souza foi Christopher Kastensmidt, autor da fantasia heroica A Bandeira do Elefante e da Arara (Devir Brasil, 2016). Estão lá, além de Christopher, muitos outros autores e editores conhecidos: Ana Cristina Rodrigues, Ana Lúcia Merege, André Vianco, Artur Vecchi, Camila Fernandez, Carlos Orsi, Cesar Silva, Cirilo S. Lemos, Claudia Dugim, Clinton Davisson, Cristina Lasaitis, Duda Falcão, Eduardo Kasse, Eduardo Spohr, Eric Novello, Erick Sama, Felipe Castilho, Gianpaolo Celli, Giulia Moon, Helena Gomes, Jana P. Bianchi, Jim Anotsu, Karen Alvares, Marcelo Amado, Martha Argel,  Nikelen Witter, R. F. Lucchetti, Richard Diegues, Rodrigo van Kampen, Rosana Rios e Simone Saueressig — citando aqueles com quem já tive algum contato. É certamente uma amostragem de peso, trazendo muitos detalhes significativos sobre as carreiras e os dilemas da maioria desses nomes. O texto é leve e se dirige, muitas vezes, ao escritor iniciante que tentar entrar no mercado, talvez alertado pelas ponderações equilibradas que o livro coleciona. Em sua resenha muito positiva do livro, Cesar Silva viu nele, que apesar

“da proposta da autora de produzir um manual para novos autores — confissão expressa na primeira orelha —, o resultado é um valioso instantâneo do estado atual da ficção fantástica brasileira, que pode servir como farol para autores e editores em atividade, sejam eles novos ou veteranos.” —Cesar Silva, no blog Mensagens do Hiperespaço.

Mas uma certa falta de contextualização maior de quem é quem (autores e editores) e de qual é qual (gêneros e editoras) faz o livro parecer um pouco um trabalho de insider para insider. De qualquer modo, é um trabalho interessante, que forma um quadro coerente da problemática viva, atual, do escritor brasileiro desse campo.

“Desejo dar voz aos personagens que compõem a cena da literatura fantástica brasileira e oferecer um espaço seguro no qual escritores possam se ver representados, seja pelas inseguranças ou vitórias pessoais dos entrevistados.” —Kátia Regina Souza. A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil.

Quadrinhos

Arte de capa de Stuart Immonen, Wade von Grawbadger & Justin Ponsor.

Star Wars: Confronto na Lua dos Contrabandistas (Star Wars Volume 2: Showdown on the Smuggler’s Moon), de Jason Aaron, Simone Bianchi e Stuart Immonen. Barueri-SP: Panini Comics, 2017 [2016], 134 páginas. Capa de Stuart Immonen. Brochura. Este livro compilando vários números da revista Star Wars é continuação direta de Star Wars: Skywalker Ataca, que começa a contar as aventuras dos heróis da franquia inicial, depois da destruição da Estrela da Morte — e que eu examinei aqui em junho. A história trata do que os heróis fizeram depois do episódio IV, e pega onde o livro anterior parou: por um lado, Han Solo e Leia Organa estão cercados pelos caças imperiais na superfície de um improvável planeta tempestuoso, às voltas com a cínica “esposa” de Han, Sana; por outro, Luke Skywalker descobre que o diário de Obi-Wan Kenobi não tem muito a lhe trazer em termos de técnicas jedi, e resolve ir até o antigo templo da ordem em nada menos do que Coruscant, a antiga sede da República e atual coração do império. Antes, porém, ele precisa de transporte, que procura em Nar Shaddaa, a tal lua dos contrabandistas, onde, depois de um pega-pra-capar numa cantina de fazer inveja à de Mos Eisley, acaba prisioneiro de um hutt fisiculturista que coleciona justamente itens que pertenceram aos jedi.

De fato, a linha que acompanha Luke começa antes, com um prólogo escrito por Aaron e desenhado pelo talentoso Simone Biachi. Nesse prólogo, que lembra as situações do romance Kenobi (2012), de John Jackson Miller, o mentor de Luke conta como permaneceu incógnito em Tatooine zelando secretamente pelo menino. A ação é bem dividida, especialmente depois que Chewbacca e C3P0 partem para o resgate de Luke, e entra em cena Dengar, um dos caça-prêmios vistos em O Império Contra-Ataca. A essa altura ele já está uma arena como o fosso de Jaba, duelando contra um monstro aparentemente mais terrível do que o Rancor de O Retorno de Jedi. Jason Aaron sempre comparece com roteiros ágeis e enérgicos, de situações interessantes, um pouco mais duras do que nos filmes, e que reaproveitam cenas da trilogia original sem parecer subalterno. Às vezes, as soluções de transição são vagas ou pouco criativas, mas no todo oferece uma aventura vibrante e divertida. A arte de Stuart Immonen chamou minha atenção desde a FC Shockrockets (2000). Ele é um desses artistas extremamente versáteis que lida bem com a figura humana em ângulos incomuns, e com o design de roupas, arquitetura, paisagem, naves e interiores. Sua estilização é sutil, e embora ele não seja um grande fisionomista, dá conta do recado sem forçar a mão. Equilibra a estilização com a naturalidade das poses, parecendo sempre capturar, sem exagero, os personagens o início de um movimento. O livro é um prazer de se folhear.

 

Arte de capa de Mathieu Lauffray.

Star Wars: Herdeiro do Império: Trilogia Thrawn Livro Um (Star Wars: The Thrawn Trilogy Volume 1) , de Mike Baron (texto) e Olivier Vatine & Fred Blanchard (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2017, 162 páginas. Capa de Mathieu Lauffray. Tradução de Pedro Catarino & Paulo França. Capa dura. Há alguns anos, tive a chance de entrevistar o escritor americano de FC Timothy Zahn, e de pegar o autógrafo dele no primeiro dos seus romances da Trilogia Thrawn, republicados no Brasil pela Aleph. Como não sei se terei a oportunidade de ler a trilogia toda, esta versão em quadrinhos é a solução imediata para me familiarizar com uma obra que revitalizou o universo expandido de Star Wars (agora diferenciado das variantes atuais pelo selo “Legends”).

Depois que o Imperador Palpatine foi morto por Darth Vader no final de O Retorno de Jedi, e o taque rebelde destruiu a Estrela da Morte 2.0, Coruscant caiu nas mãos da Nova República. Mas o império, na pessoa do Grande-Almirante Thrawn, ainda tem esperança de reconquistar o poder. Ele é um comandante competente e um estrategista astuto, que parece estar sempre um passo adiante de Luke Skywalker, Han Solo e Leia Organa Solo (sim, Leia e Han estão casados, nessa fase do Legends), Chewbacca, Lando Carlrissian, R2D2 e C3P0. Assim como em The Crystal Star (1994), romance de Star Wars escrito por Vonda N. McIntyre que li na década de 1990, o casal Solo busca fortalecer a jovem república, enquanto Skywalker está focado em restabelecer a ordem jedi. Sabendo disso, Thrawn arma as suas armadilhas em busca de um trunfo especial — os gêmeos jedi que Leia gera em seu útero. Há mais intrigas, inclusive alguém dentro da Aliança Rebelde que passa dicas ao almirante, do paradeiro dos heróis; e o velho jedi Jorus ‘Baoth, espécie de anti-Obi Wan que se alia a Thrawn para ter acesso a Luke; e o acesso a um planeta que gerou um pequeno animal capaz de bloquear os poderes jedi. A galeria de novos personagens introduzidos por Zahn é bem interessante: o velho jedi o honrado contrabandista Kaarde; sua assistente Mara Jade — ex-associada de Palpatine, e que por isso odeia Luke com todas as suas forças; e o segundo de Thrawn, o Capitão Pellaeon. Há mais estratégia aqui, uma impressão de inteligência em funcionamento, e não apenas correrias e explosões. E menos ocorrências daquelas às vezes incômodas pedras de toque que nos remetem o tempo todo à primeira trilogia de Lucas. Um toque bem-vindo são ideias de FC hard (Zahn é um escritor de FC hard que se voltou para a space opera) como a visita a um planeta tão próximo do seu sol, que os visitantes contam com uma nave escudo solar, para ajudá-los a alcançar a superfície. Consta que Thrawn ressurgirá numa prequência em quadrinhos. Os artistas europeus que assumiram o roteiro também trazem uma variação interessante, menos técnica, mais romântica. Seu desenho é mais estilizado, menos detalhista, mas sem deixar de ser dinâmico e de compor bonitas imagens, especialmente de paisagens e ambientes. Entre um capítulo e outro, o livro traz bonitas composições de Mathieu Lauffray, usadas nas capas dos episódios da minissérie que deu origem ao volume.

 

Arte de capa de Alex Ross.

Star Wars Legends: À Sombra de Yavin (Star Was: In the Shadow of Yavin), de Brian Wood (texto) e Carlos D’Anda, Ryan Kelly, Facundo Percio, Stéphane Créty e Ryan Odagawa (arte). Barueri-SP: Panini Books, 2017, 480 páginas. Capa de Alex Ross. Tradução de Levi Trindade, Paulo França e Júlio Monteiro. Capa dura. O Herdeiro do Império e Confronto na Lua dos Contrabandistas são livros relativamente pequenos, cuja leitura se compara à da novela ou do romance curto. Perto deles, com suas 480 páginas, À Sombra de Yavin é o que mais perto se pode chegar da leitura de um romance de Star Wars com o tamanho médio dos livros da franquia. Mas assim como os livros anteriores, ele tem a sua própria versão do que acontece entre um filme e outro da primeira trilogia, ou a partir do fim da trilogia. Neste caso, a Estrela da Morte foi destruída, a base rebelde na lua de Yavin foi exposta, e a esquadra rebelde está em movimento constante, enquanto um grupo de caças asa-X comandado por Leia Organa cumpre missões de reconhecimento em várias partes da galáxia, em busca de um planeta que possa abrigá-los. Luke Skywalker e Wedge Antilles estão com ela, enquanto Han Solo e Chewbacca vão até Coruscant em busca de armas e suprimentos para a Aliança Rebelde. Essa divisão de ações é típica de Star Wars, mas mais interessantes aqui é a situação existencial dos personagens. Passando por cima da triunfal cerimônia que encerra o Episódio IV, Wood lembra que Leia, Luke e Wedge perderam muitos amigos na batalha, e no caso dela, seu planeta natal. Sua perspicácia também se dirige ao Império, sugerindo inclusive que Vader teria sido colocado  de escanteio pelo imperador, chegando a sofrer tentativas de assassinato (no N.º 0 da revista Star Wars Legends). Wood também reposiciona a saga mais para perto de uma space opera militar, lidando bem com elementos de equipamento, hierarquia e exigências militares — especialmente na primeira parte. Assim como em O Herdeiro do Império, a cada missão de reconhecimento o esquadrão de Leia é emboscado e perseguido. Obviamente, há um informante dentro da Aliança, mas de quem se trata resulta em uma reviravolta realmente engenhosa e em meio a um clímax mais do que satisfatório. Leia é retratada como uma líder firme e inteligente, boa piloto e combatente capaz. O subenredo em torno do esquadrão acaba fornecendo uma história de origem do Rogue Squadron, que já teve sua própria série de romances e de HQs. A história fica menos militar e mais exótica quando Leia, cansada, decide por um casamento real (ela é uma princesa, lembra?) com o príncipe de um planeta periférico, mas que pode oferecer refúgio à esquadra. Mais traições os aguardam, porém, e a ameaça de que Vader, numa cruel ofensiva para retornar às graças de Palpatine, venha a se aproximar novamente dos heróis. Essa bem trabalhada tensão é temperada pela angústias de Luke e Han quanto ao casamento de Leia. O lado pessoal do trio imortal da space opera de Lucas retorna nessa situação, mas também no capítulo de encerramento, que tem os heróis tentando resgatar uma amiga de infância de Leia, perseguida por um caça-prêmios. Nem tudo são perdas, e em alguns momentos há reencontros e reforço do amor fraterno entre os três, que costura boa parte da intriga da primeira trilogia. Agradeçamos à força pelas pequenas graças. Os artistas mudam muito ao longo da narrativa, mas Carlos D’Anda é o principal artista aqui. Ele não é um bom fisionomista e suas naves e maquinário são duros e indistintos, mas ele é expressivo na figura humana, apesar de algo de estranho com os pescoços que desenha… De qualquer modo, é a narrativa que importa mais, em À Sombra de Yavin, cuja história completa apareceu recentemente por aqui na revista Star Wars Legends. A edição em livro traz muitas artes de capa impressionantes de Alex Ross, Hugh Fleming, Sean Cooke (excelentes, lembrando John Berkey) e outros, entre os capítulos.

 

Arte de capa de Juan Giménez.

Um dos meus artistas de ficção científica favoritos, o quadrinista argentino Juan Giménez, apareceu nas bancas brasileiras em novembro, na capa da revista Star Wars Darth Vader 022 (Panini Comics, Barueri-SP). Justamente o número final da revista, que fecha o ciclo de aventuras do vilão criado por George Lucas em 1977 para a space opera Guerra nas Estrelas. Traz dois episódios, de roteiro assinado por Kieron Gillen e arte de Salvador Larroca, e uma coda assinada também por Gillen — esta última, uma história sem letreramento, ambientada em Tatooine e envolvendo o povo da areia, desenhada por Max Fiumara. Juan Giménez, que nasceu em 1943, é conhecido por “Harry Canyon”, um dos melhores segmentos do filme Heavy Metal: Universo em Fantasia (Heavy Metal; 1981), e pelos desenhos da HQ Saga dos Metabarões, com roteiro de Alejandro Jodorowsky e disponível em vários álbuns de luxo publicados aqui pela Devir Brasil. Recomendo muito, a propósito, essa space opera exótica e violenta, reminiscente do clássico Duna, de Frank Herbert, e que marca a parceria entre Giménez e Jodorowsky. George Lucas, é claro, também bebeu da mesma fonte.

—Roberto Causo

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Causo Fala Sobre o Filme “A Chegada”, na UNIFESP

Em 6 de novembro de 2017, Roberto Causo esteve no campus de Guarulhos da Universidade Federal  de São Paulo, para uma atividade da Semana do Inglês, dirigida aos alunos de graduação do curso de Inglês da Faculdade de Letras daquela universidade. O assunto foi o filme A Chegada (Arrival, 2016), dirigido por Denis Villeneuve, e a premiada noveleta do escritor sino-americano Ted Chiang que o inspirou, “História da sua Vida”.

 

 

O convite para falar no evento foi feito pela Prof.ª Suzanna Mizan, a quem Causo conheceu na pós-graduação na Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo, em 2014. Os dois foram acompanhados pelo mesmo orientador, o Prof. Lynn Mário Trindade Menezes de Souza. Esta foi a primeira Semana do Inglês realizada na UNIFESP de Guarulhos. Depois da exibição do filme em DVD, Causo falou sobre suas implicações e sobre a noveleta.

O filme de ficção científica de Villeneuve foi muito bem recebido pela crítica e rendeu uma indicação ao Oscar para a protagonista, Amy Adams. A resposta foi tão positiva, que logo o diretor canadense foi chamado para dirigir Blade Runner 2049. Contudo, o projeto da adaptação cinematográfica da história de Ted Chiang é do roteirista Eric Haisserer.

 

Quanto a Ted Chiang, sua carreira começa em 1991, quando é indicado e recebe o Prêmio Nebula pela noveleta “A Torre da Babilônia” (“Tower of Babylon”), publicada na revista Omni. As duas histórias estão presentes no primeiro livro de Chiang publicado no Brasil, História da sua Vida e Outros Contos (Histories of your Life and Others), pela Intrínseca. O fato de ele publicar esporadicamente e de ainda não ter se dedicado à escrita de um romance assinala o seu desinteresse em ter uma carreira comercial na ficção científica. Nesse mesmo sentido, suas histórias são vistas como altamente literárias e arrojadas. Dificilmente alguns dos seus textos deixa de ser indicado aos principais prêmios do campo da FC.

“História da sua Vida” pertence a um subgênero bastante específico da ficção científica, as histórias de primeiro contato. Um exemplo disponível nas livrarias brasileiras é o romance clássico O Fim da Infância (1953), de Arthur C. Clarke.

Como FC, a história combina elementos de ficção científica hard (centrada nas ciências exatas), e ficção científica soft (centrada nas ciências humanas). No caso, seriam respectivamente a física ótica e física quântica, e a linguística e a filosofia, respectivamente. É claro que, tanto no filme quanto na noveleta, o componente mais saliente é a linguística, já que o enredo gira em torno da decifração de uma língua alienígena, por uma linguista americana, a Dr.ª Louise Banks. Causo lembrou que o primeiro contato entre uma cultura e outra é um fato da vida real, e que o Brasil é pródigo em primeiros contatos (entre nossa cultura e as diversas culturas indígenas que interagem conosco).

Uma outra oposição que foi tratada na apresentação, é aquela entre ficção de gênero e ficção literária. The Encyclopedia of Science Fiction (1993), de Peter Nicholls & John Clute faz inclusive uma distinção, “genre sf ” e “non-genre sf” para destacar o fato de que um trabalho de FC pode ser apresentado ou não como parte dou gênero, ou ter uma tônica popular ou comercial (ficção de gênero) ou não (literária). Obviamente, a escrita de Chiang é mais literária, mas fica claro que o filme buscou aspectos da ficção de gênero, aproximando-se do thriller para garantir viabilidade maior nas bilheterias.

Como uma FC mais literária, “História da sua Vida” apresenta características exemplares da ficção pós-modernista americana atual: ausência de enredo ou de intriga; a descrição de slices of life ou instantes da vida; uma prosa complexa e com algo de experimental; o tema da perda pessoal; o caráter metalinguístico ou metaficcional; a ênfase na memória e na psicologia; a projeção de um ethos universitário nos valores e na linguagem representados; e referências literárias (no caso, a Jorge Luis Borges).

A complexidade da prosa de “Historia da sua Vida” aparece no tempo verbal que funde pretérito perfeito e futuro do pretérito. Além disso e igualmente refletindo a premissa central da história — de que o aprendizado de uma língua alienígena em que o tempo é circular e não linear —, ocorre, no plano estrutural, um embaralhamento da ordem cronológica das situações narradas.

Por sua vez, o filme se aproxima da aventura e da ficção de gênero, mas busca ser artístico a partir de elementos cinemáticos centrados no flashback, na atmosfera, nos recursos fotográficos, no estranhamento visual, na profundidade emocional da performance dos atores, etc. Ele “compensa” a adoção de elementos mais aventurescos, com uma linguagem específica do cinema.

Metalinguagem é a linguagem que discute a linguagem, e claramente noveleta e filme possuem essa característica. Nas duas obras, a decifração da língua alienígena e o seu poder de mudar a cognição são explorados de maneiras bastante engenhosas. Quando essas reflexões se expressam no plano narrativo, elas também se apresentam como metaficção — uma ficção que discute, dramatiza ou desafia o nosso entendimento imediato do que é a ficção.

Muitas questões interessantes surgiram ao final da atividade, por parte de Suzanna Mizan e suas colegas. É claro, a hipótese de que a linguagem afeta a cognição é conhecida da área dos estudos linguísticos. Além disso, foi observado que a figura dos alienígenas no filme lembrava os seres imaginados por H. P. Lovecraft, talvez havendo aí um elemento crítico e subversivo, considerando o horror que elas inspiravam nos eruditos de Lovecraft, numa reação contrária (passado o estranhamento inicial) à da Dr.ª Banks e do seu colega, o físico Donnelly. Mais tarde, quando Causo lembrou que, no filme, a improvável casa que Banks tinha à beira do lago faz uma oposição de sentido com a paisagem rural tétrica em que uma das naves se manifesta, a mesma pessoa apontou uma conexão om o gótico americano, em que o ambiente rural é fonte de fatos ou coisas terríveis.

Outra colega notou que, na subtrama envolvendo o general chinês (exclusiva do filme), também está presente o tema da perda, já que é por saber das últimas palavras preferidas pela esposa moribunda do general, que Banks tem uma abertura para a simpatia e a colaboração dele.

Roberto Causo recebeu da Prof.ª Mizan um exemplar da edição americana pela Vintage, de Stories of Your Life and Others, e deixou com ela um exemplar de Shiroma, Matadora Ciborgue, e para a biblioteca da universidade, sua antologia Contos Imediatos (Terracota Editorial, 2009), e o livro de M. Elizabeth Ginway, Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (Devir Brasil, 2005). Um exemplar extra de Contos Imediatos foi entregue a uma aluna de pós-graduação interessada em explorar a ficção científica nos seus estudos.

Os presentes concordaram que o filme de Denis Villeneuve e a história de Ted Chiang são escolhas interessantes de estudo, e se aventou a hipótese da ficção científica como assunto integrar novos eventos acadêmicos na Faculdade de Letras da Universidade Federal  de São Paulo em Guarulhos, no futuro.

 

 

 

 

Roberto Causo agradece à Prof.ª Suzanna Mizan pela oportunidade de falar na UNIFESP.

 

A Profa. Suzanna Mizan (no centro) e suas alunas e colegas.

 

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Luiz Bras, Fábio Fernandes e Roberto Causo no 11.º EBICC

Os escritores de ficção científica Luiz Bras, Fábio Fernandes e Roberto Causo estiveram no painel “Hiperconexões: A Ciência Cognitiva na Literatura Brasileira“, durante o 11.º Encontro Internacional de Ciência Cognitiva.

 

O evento aconteceu na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, de 30 de outubro a 1.º de novembro de 2017.

Vale lembrar que desde cedo a ficção científica buscou explorar questões da percepção da realidade e dos condicionantes do pensamento, da mente e da razão. No gênero, a cognição aparece delimitada por fatores evolucionários ou relativos às leis da física, aos processos biológicos do cérebro, aos processos sociais formativos, a possíveis interfaces eletrônicas e à inteligência artificial, à própria linguagem e à subjetividade étnica ou de gênero, a culturas e rituais, a normas subjacentes de complexidade.

Na novela “Un autre monde” (1895), por exemplo, o escritor belga J. H. Rosny aîné conta a história de um super-homem — o primeiro de um salto evolutivo da humanidade — que, como uma das suas habilidades superiores, tem o poder de ver um outro mundo, com toda uma biologia própria, intercalado com o nosso. A metáfora aí é a evolução.

Na era das revistas pulp, nas décadas de 1920 e 1930, havia a exploração de “variações de pensamento” (thought variations), em que surgia uma espécie de mote nas revistas, levando à “glosa” feita por vários autores. Uma das mais comuns tratava do macro e do micro: o herói tem acesso, em razão de algum experimento científico, a uma percepção da grandeza do universo ou tem acesso a mundos inteiros existentes dentro de um átomo. A metáfora aí é, muitas vezes, a de passagem ou transição.

Uma versão mais sofisticada da sugestão de que a realidade da física teria efeito sobre a cognição está no romance Brain Wave (1954), de Poul Anderson, em que uma espécie de campo de força natural na galáxia afetaria negativamente a inteligência em certas áreas da Via Láctea. Vernon Vinge fez uma glosa tardia no premiado A Fire upon the Deep (1992), propondo que gradientes da gravitação organizariam os níveis de inteligência das diversas civilizações da nossa galáxia — e também a possibilidade da inteligência artificial e do voo mais rápido que a luz.

O escritor Howard Fast, conhecido pelo romance Espártaco (1951), propôs na novela “The First Men” (1960) que os casos de crianças criadas por animais selvagens sugeriam uma plasticidade tamanha da mente humana, que a mera libertação dos laços e fardos familiares, associada a um ambiente rico em conhecimentos, levaria um grupo de crianças selecionadas a uma ampliação da mente e poderes intelectuais e paranormais que também conduziriam a um novo estágio da espécie. A metáfora aí é a expansão da mente, e outra obra que se pode citar é a mais famosa história de “Mogli” da FC, Estranho numa Terra Estranha (1961), de Robert A. Heinlein, que conta a história de um jovem terrestre criado entre os mais desenvolvidos marcianos.

Ainda nas décadas de 1950 e 60, argumentos semelhantes de fuga das amarras sociais, mais a emergente cultura das drogas e de expansão da mente, levam a uma série de obras de conteúdo semelhante. Mas o escritor americano Philip K. Dick foi um dos melhores resultados desse quadro, caracterizando-se como o criador de histórias — muitas vezes filosóficas, intrigantes ou paranoicas — sobre realidades sintéticas.

Surgido na Inglaterra em meados da década de 1960, a New Wave (que Dick meio que integrou nos Estados Unidos) produziu muitas histórias em que a subjetividade afeta o ambiente e ambiente afeta a subjetividade, em histórias de Brian W. Aldiss e J. G Ballard. A expressão americana da New Wave, contando com trabalhos de Ursula K. Le Guin, Roger Zelazny e Samuel R. Delany, muitas vezes ajustava essa noção imaginando contextos de FC em que mitologias (como expressão do inconsciente dos povos ou de subjetividades étnicas ou culturais enraizadas) tinham vigência.

Quando o Movimento Cyberpunk explode na década de 1980, surgem os conceitos da “liberação em relação à carne” propiciada pela “realidade virtual“, ambos apresentados por William Gibson em Neuromancer (1984). A metáfora no cyberpunk é a da cognição e do cérebro como associados à computação, analogia existente desde fins da década de 1940 e também explorada por Aldiss na New Wave. No cyberpunk frequentemente há uma correspondência entre a estrutura e o funcionamento do cérebro e os processos eletrônicos da computação.

O cyberpunk também apontou o caminho para a discussão da pós-humanidade pelo aumento de capacidades (outra metáfora), pela tecnologia. O ponto mais extremo dessa hipótese é a singularidade pós-humana, em que a mente ou a consciência seria de algum modo digitalizada e postada em sistemas de computadores, levando a uma existência virtualmente imortal e de possibilidades ilimitadas.

Recentemente, o filme  A Chegada, de Denis Villeneuve, explorou a própria ideia de que língua e intelecção andam juntas, e que aprender uma nova língua muda a cognição. No caso desse filme baseado na noveleta “História da sua Vida”, de Ted Chiang aprender uma língua alienígena leva uma linguista a perceber a passagem do tempo de um modo diferente.

 

No Brasil

A Rainha do Ignoto, da escritora e professora cearense Emília Freitas, é um romance pioneiro publicado em 1899, no qual um grupo secreto de mulheres, as Paladinas do Nevoeiro, realizam missões de resgate de mulheres abusadas e de escravos apoiadas pela liberdade que a hipnose dá a elas, pois são percebidas pelas pessoas em torno como homens. Décadas mais tarde, André Carneiro falaria da auto-hipnose compondo a realidade de um sujeito — alternando a decoração de sua casa, a aparência de sua esposa —, no conto “O Homem que Hipnotizava” (1963).

No ótimo romance A Amazônia Misteriosa (1925), de Gastão Cruls, uma bebida alucinógena amazônica leva um médico a uma espécie de viagem no tempo em que ele fala com o Imperador Inca Atahualpa e testemunha as atrocidades dos conquistadores. A experiência vem colorir a sua passagem pela aldeia perdida das amazonas — que têm entre elas um cientista germânico que faz experiências atrozes com os meninos, que são o refugo da sociedade feminina das amazonas.

No seu clássico de 1963, “A Escuridão”, recentemente republicado na antologia The Big Book of Science Fiction (2017), de Ann & Jeff VanderMeer, André Carneiro propõe um misterioso fenômeno global que rouba da Terra todas as fontes de luz. Mergulhados na escuridão paulatina, um grupo de sobreviventes urbanos descobre que são justamente aqueles com a limitação da cegueira, os mais aptos a guiá-los durante o terrível fenômeno.

Na noveleta O 31.º Peregrino (1993), de Rubens Teixeira Scavone, um dos melhores textos da FC brasileira do final do século 20, um grupo de viajantes da Inglaterra do século 14 se depara com as hipóteses muito modernas do disco voador e da abdução alienígena, mas enxergam as ocorrências com que se deparam a partir do sistema de pensamento da sua época, religioso e místico, interpretando-os como visitações demoníacas e aparições celestiais.

Publicado em 2009, O Dias da Peste, de Fábio Fernandes, é um romance brasileiro que aborda a singularidade tecnológica — que, segundo expresso pelo próprio Fábio durante a mesa na EBICC, acontece quando redes de computador ganham consciência e se associam momentaneamente aos seres humanos como tutores às vezes inadvertidos.

O Alienado (2012), de Cirilo S. Lemos, é um complexo romance sobre sociedades secretas, memória, trauma e rejeição sexual, escrita e sublimação psicológica, tudo costurado em uma trama paranoica de realidade sintética. Um dos marcos genuínos da Terceira Onda da FC Brasileira.

Luiz Bras também investiu nas realidades sintéticas do tipo virtual, em várias histórias da sua coletânea Paraíso Líquido (2009), uma das mais experimentais dentro da FC brasileira, desde O Fruto Maduro da Civilização (1993), de Ivan Carlos Regina, e Mundo Fantasmo (1994), de Braulio Tavares.

 

No Evento

A perspectiva do trans-humanismo dominou o painel “Hiperconexões: A Ciência Cognitiva na Literatura Brasileira” — que aconteceu na terça-feira, dia 31 de outubro. Luiz Bras fez a mediação não apenas da mesa, como da audiência, pois a atividade foi bastante aberta e permitiu que as pessoas falassem diretamente. Fábio Fernandes resumiu em postagem no Facebook: “Uma mesa-redonda que começou falando sobre o pós-humano, depois (a pedido da plateia) acabou entrando no tema das distopias e utopias, e fechou com um papo sobre nossos métodos de trabalho.”

—Roberto Causo

 

Luiz Bras e Fábio Fernandes na Escola de Comunicações e Artes.

Luiz Bras, Fábio Fernandes e Roberto Causo.

Fábio Fernandes e Luiz Bras (mediando a plateia).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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