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Leituras de Dezembro de 2020

Depois de assinar com a Editora Bandeirola para escrever um guia de pesquisa e leitura de ficção científica brasileira, logo mergulhei na leitura do material que deve ser tratado no livro. Muitos desses trabalhos eu tenho comigo há décadas, esperando a chance de serem apreciados sistematicamente. Outros, reli buscando uma familiaridade maior. 

 

Espaço: Série Projeto Barnard, de G. Carmo. São Paulo: Ibrasa, 1984, 108 páginas. Texto de Orelha de Gumercindo Rocha Dorea. Arte de capa e ilustrações internas não creditadas. Brochura. Comprei este livro em Campinas, na saudosa livraria Papirus, provavelmente perto do ano de lançamento. Dei uma olhada, mas o guardei por achar que não seria do agrado. Chegou a hora de terminar a leitura e refletir sobre os objetivos de G. Carmo. Talvez típico de uma FC das décadas de 1960 e 70 no Brasil, este opúsculo em prosa poética empresta imagens e situações do gênero para expressar preocupação e desencanto com a humanidade. A narrativa, dividida em três “livros”, propõe ser o relatório de três ETs — os astronautas X1, X2 e X3 — vindos da Estrela de Barnard para investigar a Terra. Tratando (com algum conhecimento de ciência) da formação do universo, do Sistema Solar e da Terra como preâmbulos, discute, no primeiro livro, o amor; no segundo, a evolução humana e o seu fracasso ético; no terceiro, as mazelas sociais e a guerra. Há praticamente um parágrafo, numerado na lógica do relatório, por página. O cristianismo de Carmo aparece na página 73, em que o eu lírico pretende para si uma trajetória heroico-prometeana como a de Cristo: “pelo bem que fiz me condenaram à morte, em recompensa…” Em muitos momentos, o lado FC desaparece dos tópicos, ficando a poesia convencional:

 

“15. A estrelas estão no céu e as areias estão no mar… pode o tempo passar o tempo que quiser, mas nada há de mudar do céu que está na terra… pode o tempo mudar as minhas faces, pode o tempo mudar os arvoredos, pode o tempo mudar o curso d’água, mas não irá mudar o doce encanto, a loucura infinita de te amar… o teu amor tudo pode, pode criar o fascínio, pode criar a beleza, pode criar o mistério, amor que é amor tudo vence, todo constrói, tudo pode… amor que é chama invisível, amor que é flor tão suave, amor que é vida, emoção, amor que é noite de estrelas… que é poesia e canção.” —G. Carmo. Espaço: Série Projeto Barnard, página 37.

Mesmo sendo prosa poética singela e sem sofisticação, alcança uma certa força final pela eloquência e pelo sentimento. A elogiosa orelha de Gumercindo Rocha Dorea testemunha que ele ainda se associava à FC brasileira, antes de conhecer o Clube de Leitores de Ficção Científica em 1987 e retomar a publicação do gênero. Espaço tem como sequência Odisséia no Planeta Terra: Série Projeto Barnard 2 (1989) e Terra, o Planeta Poluído: Série Projeto Barnard 3 (1993). Uma trilogia que começou antes da Trilogia Padrões de Contato (1985 a 1991), de Jorge Luiz Calife, mas terminou depois.

 

Arte de capa de Graciela Rodriguez.

O Dia das Lobas, de Nilza Amaral. São Paulo: Editora Escrita, 1984, 70 páginas. Arte de capa de Graciela Rodriguez. Prefácio de Uilcon Pereira. Brochura. Outro livro da mesma época, do mesmo ano, que eu havia deixado passar. Esta noveleta venceu o concurso Prêmio Escrita de Ficção 1984, organizado pela editora de Wladyr Nader, autor da coletânea de FC Lições de Pânico (1968), lá atrás na Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira. No ano anterior, Nader havia promovido o concurso Conto Paulista, que revelou outra autora de FC da Segunda Onda, Finisia Fideli, com o seu conto agora clássico, “Exercícios de Silêncio”. No júri do Prêmio Escrita 1984 estiveram o próprio Nader, o escritor Roniwálter Jatobá, muito ativo na época, e o professor de Filosofia Uilcon Pereira, então na Universidade de São Paulo. No prefácio “Milhares de Anos-Luz à Frente da Prosa Comercial”, Pereira louva o caráter vanguardista da narrativa.

O Dia das Lobas cairia bem no Ciclo ou Onda de Utopias e Distopias: trata de um futuro distópico em que existe apenas ensino à distância por meio de microcomputadores que também atualizam os membros da sua sociedade arregimentada quanto às leis sempre variantes, e no qual até mesmo as neuroses mais profundas estão articuladas aos interesses do Estado. No topo da pirâmide social — em que as classes parecem ser mais definidas por comportamento do que pela renda — estão os sociólogos, categoria que faz as vezes do sempre atacado tecnocrata das distopias brasileiras. Assim como em “O Casamento Perfeito” (1966), de André Carneiro, e em Adaptação do Funcionário Ruam, de Mauro Chaves (1975), os computadores estabelecem os casais. A ambientação é urbana, a história ocorre em um futuro indefinido, certamente próximo por todos os índices quotidianos reconhecíveis ao leitor. O texto tem formatação incomum, “experimental” ou “formalista”, com diálogos isolados na mancha de texto, e parágrafos ora com tabulação, ora sem (como em, por exemplo, Piscina Livre de Carneiro, livro de 1980). De saída, não acho que seja um recurso efetivo. O ponto de vista narrativo salta de um personagem a outro sem transições marcadas.

Uma mulher que se define como “loba” encontra um homem no metrô, e eles vão ao prédio dela. O contexto é de degradação ambiental e social, com um clima agravado — talvez herdado do anterior Não Verás País Nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão. O fato mais estranho desse futuro é um calendário em que as pessoas têm a liberdade de ventilar seu desassossego sob a forma de violência coletiva (clichê da ficção científica visto, por exemplo, no recente Uma Noite de Crime, filme de James DeMonaco lançado em 2013). Essa é a providência pública, mas há uma secreta: a “Organização” (o regime) separou uma espécie de reserva de caça e um dia licenciado para as “lobas” do título atacarem incautos pré-selecionados, no metrô da cidade. Os temas da violência e do sexo reprimidos também estão em uma jovem telepata que precisa se acorrentar para não dar vasão a esses fatores. O lado distópico é reforçado por um sociólogo ocupado em organizar para o Estado a campanha do “dia de matar bandido”. Uma novela com índices da ficção urbana que logo iria imperar na Geração 90 da ficção mainstream nacional: encontros e desencontros, sexualidade reprimida e violência, e alguma dose de absurdismo. Um texto melhor organizado teria ajudado, mesmo porque o leitor se acostuma com as idiossincrasias da diagramação e passa a ler sem estranhamento. No século 21, Nilza Amaral publicou Expulsão do Paraíso (2012).

 

A Grande Guerra Nuclear, de Mário Sanchez. São Paulo: Editora Lance, 1973?, 116 páginas. Brochura. Embora publicado no começo do Ciclo de Utopias e Distopias (1972-1982), A Grande Guerra Nuclear se conecta mais ao período anterior, a Primeira Onda. A preocupação com a Guerra Fria e a ameaça nuclear é característica do período, assim como o desejo de Mário Sanchez de explorar as convenções e o dialeto próprio do gênero. As mesmas preocupações fizeram parte da Onda de Utopias e Distopias, mas o aspecto pulp é diluído pelas estratégicas formais da ficção pop brasileira. Sanchez já havia publicado, em 1959, Além da Curvatura da Luz, obra de especulação filosófica. Assim como o fez José Maria Doménech T., em O Terceiro Milênio, Sanchez se associa ao futurista Alvin Toffler, pelo menos na orelha do livro, que também afirma: “Ninguém mais pode negar que a ficção científica entrou na vida de todos nós, com os computadores eletrônicos, reatores nucleares, mísseis espaciais. televisão, revistas e jornais.” A introdução, por outro lado, é quase um manifesto pacifista contra a ameaça da guerra termonuclear global entre as superpotências EUA e URSS.

Nessa novela, um “território” indeterminado (possível representação velada de Cuba) passa por uma revolução, e o seu grande líder barbudo abriga uma elite de cientistas determinada a impor a sua concepção de paz, depois de singrar os mares do mundo em uma espécie de Náutilus. Essa figura da elite de cientistas é anterior, óbvio, remontando talvez ao romance de H. G. Wells, The Shape of Things to Come (1933), filmado como Daqui a Cem Anos (Things to Come) em 1936 (direção de William Cameron Menzies). Na época da escrita do livro de Sanchez, a série alemã Perry Rhodan já havia apresentado uma “terceira potência” humana que põe em cheque a Guerra Fria e evita o conflito nuclear. Com Sanchez, a sociedade de cientistas rechaça a invasão de tropas patrocinadas por potências armamentistas, e, depois que o quadro geopolítico global se deteriora, tenta uma tecnologia de captura de mísseis atômicos no ar (o autor não compreendeu a tecnologia das ogivas múltiplas de reentrada, introduzidas em 1970). Mas os cientistas haviam construídos abrigos subterrâneos (como nos filmes de 007, caríssimas instalações secretas abundam sem deixar o menor rastro financeiro) e se refugiam nele com parte da população do país revolucionário, para ressurgir e repovoar a Terra, cem anos depois.

A narrativa, que é intermeada por poemas, tem muitos diálogos e o dispositivo didático de um repórter que chega aos cientistas ao investigar os segredos do regime revolucionário, para desaparecer da narrativa subsequentemente. Assim como Jeronymo Monteiro, o autor se dedica a uma crítica moralizante dos azares da humanidade, em uma época em que eles estavam escancarados, mas seu pacifismo não resiste ao impulso de dramatizar o apocalipse atômico. Não obstante as ingenuidades científicas, políticas e narrativas, o livro guarda uma certa energia pulp que faz o leitor chegar à sua conclusão.

 

Arte de capa de Chico Coelho.

Encontro Inesperado na Terceira Lua, de Rosana Rios. São Paulo: Editora Scipione, Série Diálogo, 2002 [1996], 112 páginas. Arte de capa de Chico Coelho, ilustrações internas de Getúlio Delphim. Brochura. Premiada autora de livros para crianças e roteirista de televisão, Rosana Rios é um dínamo prolífico e agregador, criadora do Grupo de Estudos de Literatura Fantástica. Aqui ela ataca com esta rara space opera sob a forma de uma espécie de “Romeu e Julieta no espaço”, dirigida ao leitor pré-adolescente. Curiosamente, seu livro também abre com um manifesto pacifista. Ela, porém, teve mais sorte no desfecho, talvez por ter se apoiado em toques de qualidade mítica, uma das suas especialidades como pesquisadora.

A história se passa em um sistema com 26 planetas, dois deles em perpétuo conflito, Argh e Zarg. Trata do jovem casal Ariel e Zahira, destinados a harmonizar as coisas. A narrativa alterna capítulos, quase sempre curtos, em primeira pessoa, ora na voz de Ariel, ora na de Zahira, com outros em terceira pessoa e compostos quase que apenas de diálogos. Os dois protagonistas se encontram quando a pesquisadora Zahira penetra em território arghiano. Ao invés de entregá-la às autoridades, o vigia Ariel passa a atuar com ela, depois que ela lhe conta sobre sua busca por dois braceletes lendários, de poderes curativos e que facultam aos seus usuários comandarem poderes fabulosos que os tornam capazes de se teletransportar de um mundo a outro. Enquanto o casal busca os objetos mágicos (ou hipertecnológicos), travam contato com outros povos e suas lendas e conhecimentos, orientados por uma antiga profecia, e são perseguidos pelas duas forças em conflito.

A autora criou uma história dinâmica e divertida, escrita com precisão e devendo algo ao filme épico de fantasia científica de Peter Yates, Krull, de 1983. As ótimas ilustrações em preto e branco de Getúlio Delphim, com traço enérgico e figuras elegantes como as de Alex Raymond, ampliam os conteúdos de FC e de referência. A capa de Chico Coelho não está à altura.

 

O Terceiro Milênio: Um Sonho no Espaço, de José Maria Doménech T. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2.ª edição, 1972 [1971?], 454 páginas. Prefácio de Ronaldo Rogério de Freitas Mourão. Posfácio de Rose Marie Muraro. Brochura. Doménech Tarafa, pode muito bem ter escrito o primeiro romance brasileiro de FC hard, O Terceiro Milênio. Na Primeira Onda (1957 a 1972), autores como Rubens Teixeira Scavone e Jeronymo Monteiro tinham tentado, mas erraram no tom ou no conteúdo científico. O conteúdo e o projeto editorial — que incluiu duas edições em 1972, uma delas ilustrada e a outra pela Editora Vozes, conhecida pela sua linha de sociologia, outra pelo Círculo do Livro (1974), uma adaptação em quadrinhos pela EBAL, e publicação nos Estados Unidos e em Portugal (1975) — expressavam o projeto desse autor catalão radicado no Brasil de se alinhar ao futurismo de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke (autores citados por ele na introdução) e de Alvin Toffler (a chamada da capa, “perspectiva de ficção científica para receber sem trauma o violento impacto do futuro”, inspira-se no conceito de Toffler do “choque do futuro”). Seu interesse pelo futurismo era antigo: sua tese “Oikospolis”, defendida em 1936 na Universidade de Barcelona, desenhava uma sociedade utópica do futuro.

A ambição, porém, é temperada por declarações como esta, no prefácio: “Este livro não é um tratado de futurologia e também não deve ser consultado como monitor científico, muito embora o que nele se descreve possa vir a acontecer em futuro mais ou menos próximo […].” Ao contrário da crítica à ciência embutida nas distopias inimigas da tecnocracia e do regime militar de então, o romance se alinha com a postura redentora de Asimov e Clarke, ao declarar: na “era supertecnológica que se aproxima em que todos os poderes” serão outorgados à humanidade, “inclusive o do controle remoto de sua própria genética, [haveremos de] galgar os últimos degraus que a separam ainda da plenitude total e da suprema felicidade, abolindo definitivamente da face da Terra a miséria, a ignorância, a doença e a maldade […].” Pesado em seu pendor ensaístico, o livro apresenta personagens e situações apenas no capítulo XVII, e a primeira linha de diálogo no capítulo XXXII. Propõe uma expedição extra-solar a vários planetas candidatos a colônia humana, dando pano para a comunicação de conhecimentos de astronomia e exobiologia. Mas a dilatação temporal faz com que a tripulação retorne — desapontada com os resultados — após uma avassaladora guerra nuclear, leitmotif herdado da Primeira Onda mas também na ordem do dia do novo momento.

O interesse da solução do autor está no retorno da tripulação levando-a a uma humanidade reformulada como sociedade de bem-estar e deleite. Mulheres liberadas, vivendo em uma colônia marciana, os recebem de braços abertos, situação que aponta para a revolução sexual. Por outro lado, se no ciclo chistoso de contos de FC do início do século 20 o recurso do “foi tudo um sonho” protege o autor da pecha de visionário louco, em O Terceiro Milênio (toda a exploração da guerra nuclear era um sonho do comandante da expedição extra-solar) ele mina o autor justamente da convicção do futurista.

Há pouco de Brasil no romance, e a ausência de um material subsequente pelo autor (o livro seria o primeiro de uma série) sugere que o seu projeto de assumir o manto de Asimov, Clarke e Toffler entre nós não progrediu. Seu vasto conhecimento científico-tecnológico e a propensão hedonista expressa nos capítulos finais encontram eco na figura de Jorge Luiz Calife, adepto da FC hard, autor de romances marcantes como Padrões de Contato (1985) e Horizonte de Eventos (1986), mais imaginativos do que a mera dimensão futurista e com um quê brasileiro, carioca, Bossa Nova, na proposição de uma sociedade espacial livre, amigável e harmoniosa.

 

A Cidade Proibida, de Álvaro Cardoso Gomes. São Paulo: Editora Moderna, 1997, 190 páginas. Prefácio de Carlos Felipe Moisés. Brochura. Tive aulas de Literatura Portuguesa com Álvaro Cardoso Gomes na FFLCH/USP. Era um professor meio áspero, com a mania de chamar os alunos de “mancebo” e as alunas de “santinha”… Não terminei o curso com ele. Mas fui atrás de adquirir esta novela, misto de FC e de ficção religiosa, e até peguei o autógrafo. Certamente, eu era melhor fã de ficção científica do que aluno.

No prefácio, Carlos Felipe Moisés associa o livro às HQs e RPGs, e aventa que seria “a primeira obra punkdark-gótica exclusivamente literária, em nosso idioma”. Se quis dizer algo próximo do cyberpunk, não se trata da primeira, evidentemente. De saída, a nota do autor diz que é um futuro distante, posterior a várias guerras nucleares e ao aquecimento global do planeta. Vivendo nesse cenário distópico, o protagonista sintomaticamente se chama Jó.

No plano do detalhe, a ambientação urbana e degradada lembra as imagens de Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão. As encrencas de Jó começam quando ele aceita guardar um objeto de um “pássaro” (gíria para homossexual) alvo de um abaixo-assinado exigindo a sua expulsão do condomínio onde vivem os dois, e que Jó se recusara a assinar. Na sequência, é atacado pelo síndico, e mais tarde testemunha o pássaro ser assassinado. Na metrópole meio cyberpunk, com chuva ácida e tudo, outdoors convocavam o público a visitar “o País da Cocanha” — onde, em Blade Runner, eram as colônias foramundo. Jó se confessa a um padre cético, e então vai à torre da Golden Yoshitame Corporation, onde trabalhar em um laboratório. Lá, protege uma cobaia gigante à qual se afeiçoou. Libertar a cobaia expressa seus próprios desejos libertários, mas o enredo ainda não chegou ao seu núcleo. Isso ocorre quando Jó vai ao bairro oriental, travando contato com um samurai que é alvo do desejo velado de Jó por transcendência — ele busca o vislumbre de um “anjo” que o redima. Mas o que o samurai faz é tomá-lo por membro da gangue rival de Solozzo, e o conduz ao líder local da Yakuza. O texto inclui diálogos enigmáticos, uma jovem chinesa entregue a Jó, a revelação do interesse do chefão por um certo talismã, a fuga de Jó e a garota para os esgotos da cidade, onde o herói reencontra a cobaia libertada por ele. Desembocam nos braços da máfia, desta vez. Solozzo extrai deles os meios de invadir a fortaleza da Yakuza. Surge uma gangue de motoqueiros punks. A partir daí, a narrativa se aproxima do tupinipunk, com um festival sincrético que conta com a presença de um “Papa Dalai Olodum” e a busca por um orgasmo espiritual. Gomes sai momentaneamente do território de Brandão e entra no de Fausto Fawcett. Mais situações cyberpunk se alternam rapidamente, o texto apenas tocando a superespecifidade característica do subgênero, mantendo-se sempre ligeiro e alusivo ao transcendente — concentrado na figura do talismã, que não poupa o livro de um final pálido.

A Cidade Proibida é exemplo de cyberpunk não tupinipunk, juntamente com A Ordem dos Futuros (1993),de Ricardo Gouveia, um livro para o leitor jovem; Megalópolis (2006), de Júlio Emílio Braz (idem); Cyber Brasiliana (2010), de Richard Diegues; e Rio: Zona de Guerra (2014), de Leo Lopes. Melhor sucedido é Pantokrátor (2020), de Ricardo Labuto Gondim.

 

Arte de capa de Cirton Genaro.

Atentado em Itaipu, de Martins de Oliveira. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1983, 184 páginas. Arte de capa de Cirton Genaro. Brochura. Li esta novela para saber se ela se enquadrava no subgênero da FC conhecido como guerra futura (negativo), já que a premissa é a de um atentado terrorista na barragem de Itaipu, visando causar uma guerra entre Brasil e Argentina. A mesma premissa foi usada muito positivamente por Henrique Flory em sua noveleta de FC “A Pedra que Canta” (1991).

No meio da abertura política, o romance aborda dois complôs, um do comunismo revolucionário liderado por um militante brasileiro (talvez moldado em cima do famigerado terrorista internacional venezuelano Carlos, o Chacal), e o outro conduzido pelos linha-dura da ditadura militar de então. Por um lado, uma guerra entre Argentina e Brasil para desestabilizar e humilhar dois governos militares; do outro, a persistência da ditadura brasileira. O suspense em torno desses dois fatos negativos, separados pela linha ideológica que marcou a Guerra Fria, garante o interesse da leitura, apesar da falta de um herói central ou de interesse humano maior. É claro, com o fim da ditadura marcado para as eleições presidenciais de 1984, este romance de intriga política estava no calor do momento.

Médico de formação, Martins de Oliveira começou sua carreira em 1966 com Outono Vermelho, romance no mesmo gênero. Em 1982, publicou Os Vinte e um Dias de Outubro. O crítico e cientista político Marcello Simão Branco abordou Atentado em Itaipu no site Almanaque de Arte Fantástica Brasileira, achando-o interessante e coerente com o quadro político de então. Incluiu-o em sua lista de “Ficções da Abertura”, um conceito de 2013. O romance por certo chama a atenção pela premissa e pelo retrato político. É escrito com firmeza e uma prosa jornalística que nunca absorve o leitor, mas ao mesmo tempo se esquiva do recurso buscado pela maioria absoluta dos thrillers e romances de intriga internacional, que é o de não abandonar o olhar contemporâneo e “salvar o dia”, reestabelecendo o equilíbrio das coisas que a tensão do atentado ameaçava destruir. Trabalhando com um futuro brevíssimo, se podemos ver assim, Oliveira tem a coragem de, no fim do livro, acionar o detonador.

 

Arte de capa de Carlos Rocha.

Shiroma: Phoenix Terra, de Roberto Causo. São Paulo: Malean Studio/Selo Miskdo, 1.ª edição eletrônica, 27 de dezembro de 2020, 10.984 KB. Arte de capa de Carlos Rocha. Ilustrações internas de Eduardo Brasil. E-book Kindle. Graças ao fabuloso trabalho de Taira Yuji, a minha noveleta Shiroma: Phoenix Terra existe agora como e-book. A primeira narrativa do segundo ciclo das aventuras de Shiroma, ela já havia aparecido em março na revista Universo GalAxis Anual 2019. Shiroma, agora sem o jugo de Tera e Tiago, o casal que a havia raptado ainda criança, precisa de recursos financeiros. Ela já foi caçada pelo principal empregador de Tera e Tiago, a organização criminosa interestelar Associação Céu e Terra da Era Galáctica. A única estratégia de longo prazo que Shiroma enxerga é investigar essa organização e prejudicar ao máximo a sua capacidade de ação.

Ela vai ao planeta Phoenix Terra, na Zona 3 de Expansão Humana, para se consultar com Torgo Borkien, um especialista em arte xenoarqueológica, visando vender algumas das peças que encontrou no planeta renegado, que herdou com a morte de Tera e Tiago. Valiosas por expressarem o ápice tecnológico de uma misteriosa civilização perdida, essas peças do que tem sido chamado de weirdcraft podem alcançar um preço alto no mercado. Mas o que Shiroma encontra no estranho planeta Phoenix Terra é mais conflito e violência. Embutida no suspense e na aventura, há uma reflexão crítica sobre o mercado da arte. Destaca-se nessa edição de Shiroma: Phoenix Terra, a deslumbrante ilustração de capa de Carlos Rocha, as atraentes ilustrações internas de Eduardo Brasil, e a diagramação de Taira Yuji. Este último elemento prova que o e-book pode ser muito mais elegante e criativo do que temos visto nos últimos anos.

 

Arte de capa de Italo Bianchi.

A Filha do Inca, de Menotti del Picchia. São Paulo: Martins/Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1980, 254 páginas. Arte de capa de Italo Bianchi. Brochura. Esta é a minha segunda leitura de A República 3000 ou A Filha do Inca (1930), referência de romance de mundo perdido dentro da FC brasileira, sendo que a primeira foi na infância. Apresenta uma utopia supertecnológica e socialista literalmente circundada pela selva do Brasil Central, montada ali por refugiados da Ilha de Creta que chegaram ao continente milhares de anos antes dos portugueses. Protegida por um campo elétrico que mata todo que o toca, tenta controlar o passado aprisionando a princesa inca do título; e o futuro, por meio de uma emigração em massa para as estrelas, onde deverá fundar uma nova utopia. Os habitantes também existem em um estado intermediário — entre o ser humano e a máquina. São ciborgues de corpos metálicos de hélices integradas às costas, e um olho só na cabeça em formato de capacete.

A cidade perdida é descoberta por uma expedição brasileira, agredida por indígenas. O drama que se instala perante os sobreviventes, Capitão Fragoso e Cabo Maneco, é o do cativeiro e da morte, prisioneiros da terrível inflexibilidade dos cidadãos da república: também estão lá prisioneiros há séculos os membros da realeza inca Capac e Raymi — esta, chamada pelos locais de “o monstro”, e por quem Fragoso se apaixona imediatamente —, mantidos vivos e jovens há séculos pelos cidadãos como lembrete do seu triunfo sobre os nativos do continente. São descendentes diretos de Manco Capac, o fundador do império inca no século 13. Um erro de Capac, atrelado às grandes máquinas que suprem a república de energia e mantêm a fronteira elétrica, condena-o à morte. O arbítrio capital é racionalizado pelos cidadãos da república como um ato de respeito à cultura dos incas derrotados por eles, séculos antes. A Fragoso e Maneco caberá substituí-los como símbolo do triunfo e como mão de obra no controle das máquinas.

A ciência da República 3000 seria mil anos mais avançada do que a do restante da humanidade. É predominantemente elétrica, com a transmissão sem fio pelo ar por meio de ondas, e com processos, que chamaríamos de “parapsíquicos”, de visão e audição à distância que permitiam aos seus sábios se manterem inteirados dos conhecimentos internacionais. Além disso, realizavam uma espécie de comunicação e hipnose à distância, pela “telenergia, de irradiação pessoal”. Muitas histórias de mundo perdido podem ser apenas nominalmente FC, por imaginarem geografias ou processos históricos desconhecidos, mas todas estas especulações de superciência reforçam a inserção do romance dentro do gênero, por mais ligeiras que possam ser. Mais do que a tecnologia imaginária, enfoca uma questão central para a FC: a evolução humana. O darwinismo é mencionado pelos ciborgues da república, e os restos encontrados na barreira elétrica testemunham, de modo confuso e anacrônico, a evolução animal e humana no continente. Para além da evolução passada, o romance olha para a evolução futura dos ciborgues pós-humanos da República 3000. Estão à beira de uma descoberta que vai lhes permitir dominar a “energia pura” do universo e “condicionar a lei da gravidade”, facultando aos ciborgues emigrarem do planeta em uma grande arribação que fornece o deus ex-machina para a escapada dos quatro prisioneiros. Esse momento de clímax é efetivo, mesmo que enfraqueça a agência dos heróis — algo comum na ficção científica nacional do período, tendo como exceção o clássico 3 Meses no Século 81 (1947), de Jeronymo Monteiro, e o ótimo O Rei do Mundo Perdido (1933), de Hamilcar de Garcia.

A compressão evolutiva presente na visão do passado, materializada nos restos da barreira elétrica, ao mesmo tempo que é falha fornece um contraponto à compressão evolutiva da visão especulativa futura, que a revoada dos cidadãos da república representa. Na utopia dos cretenses isolados no Brasil, a evolução para longe da condição humana é presentificada, torna-se visível, e o salto evolutivo testemunhável. Trata-se, é claro, de um conceito de evolução intermediada pela tecnologia — algo que a FC internacional iria trabalhar incansavelmente na segunda metade do século XX, em especial após o advento do Movimento Cyberpunk na década de 1980.

 

Arte de capa de Lila Galvão Figueiredo.

Xisto no Espaço, de Lúcia Machado de Almeida. São Paulo: Editora Brasiliense, Coleção Jovens do Mundo Todo, 8.ª edição, 1972 [1967], 76 páginas. Arte de capa de Lila Galvão Figueiredo. Muito republicada na década de 1970 e 80, Lúcia Machado de Almeida (1910-2005) marcou época nos gêneros ficção de crime (O Escaravelho do Diabo) e ficção científica (Spharion) para crianças. Este Xisto no Espaço, sequência de Aventuras de Xisto (1957), uma fantasia, foi ganhador do Prêmio Jabuti. Nisso, chegou antes da FC nacional adulta.

Reizinho do planeta Terra, Xisto recebe uma mensagem com uma ameaça interplanetária: “CASO XISTO NÃO VENHA ATÉ MINOS, ATACAREMOS VOSSO PLANETA QUANDO ESTE SAIR DE SEU EIXO. INÚTIL REAGIR. RUTUS, O QUE NÃO TEM SANGUE, SENHOR DE MINOS.” Xisto e seu sidekick trapalhão Bruzo logo embarcam em um foguete, provido de um bom suprimento de pastéis de queijo (o favorito do herói). O início do capítulo II testemunha o quanto a mecânica do lançamento de foguetes haviam penetrado na cultura brasileira. Os heróis saem do alcance do Cinturão de Van Allen e cruzam nuvens de estrôncio-90 [sic], para pousar no planeta Nívea, que, obviamente, não faz parte do Sistema Solar e onde encontram insetos gigantes — como no conto de Lúcia Benedetti (que também escreveu para crianças), “Correio Sideral” (1961). Nesse mundo, conhecem Kibrusni, o invisível “menino do espaço”, parte de uma espécie que já nasce falando. O pai dele é o grande sábio local, que explica as coisas a Xisto, a respeito de Rutus e o planeta Minos. Nívea é atacado por uma arma biológica disparada por Minos, a “gelatina da morte”, que destrói boa parte da vida no planeta. Um momento apocalíptico — novamente, reflexo da ameaça nuclear de então.

Em Minos, enfim, Xisto e seus amigos encontram um morcego gigante, o raio da morte, e um mundo cinzento e morto. O contrário do jardim em ponto grande visto em Nívea. Eles também descobrem a verdade sobre o vilão Rutus — um homem artificial criado por dois cientistas locais, um anão e um altão, ambos focados em destruir a infância e dominar todos os planetas que puderem. Por trás do technobabble hiperativo e da ilogicidade que, dizem os especialistas, encanta as crianças brasileiras em nossa literatura infantil, a descrição de Minos e dos cientistas aponta para o mesmo temor da desumanização e da agressão à natureza e à vida promovidas pelo cientificismo, que marcou tanto da Geração GRD.

 

Quadrinhos

Sargento Rock: Entre a Morte e o Inferno (Between Hell and a Hard Place), de Joe Kubert & Brian Azzarello. São Paulo: Opera Graphica Editora, 2005, 144 páginas. Prefácio de Joe Kubert. Tradução de Roberto Guedes. Capa dura. Salvo erro de memória, adquiri há anos esta vistosa edição especial em uma das minhas visitas à loja Terramédia — hoje Omniverse Hobby Store. Quando eu tinha entre 11 e 12 anos, fui um fã do Sgt. Rock, incomum personagem de ficção militar da DC Comics. Ainda possuo meus exemplares do 1 ao 41, com algumas lacunas e várias duplicatas, da edição publicada no Brasil pela EBAL na década de 1970.

Lançado originalmente pelo agora extinto (em 2020) selo Vertigo, da DC, Entre a Morte e o Inferno dá oportunidade da arte solta e vibrante de Joe Kubert encontrar uma expressão nova. O roteiro de Brian Azzarello, porém, começa com um clichê da ficção militar (e da experiência militar americana na II Guerra Mundial), que me soou estranho às histórias do Sgt. Rock: a hostilidade dos veteranos às tropas de reposição. Outra coisa difícil para um fã do personagem é ver a Companhia Moleza (Easy Company, igual a da série Band of Brothers) contemplando crimes de guerra. Claramente, Azzarello busca o Santo Graal dos quadrinhos americanos, desde o advento do romance gráfico na década de 1980: a transformação dos quadrinhos em uma arte reconhecidamente adulta.

Nesta narrativa que persegue o mistério de um assassinato triplo no meio da guerra, e que inclui duas ou três sequências de várias páginas sem balões de diálogo, Azzarello foi claramente bem-sucedido. Personagens sombrios agem heroicamente ou testemunham o heroísmo de figuras antes apagadas, o amor possessivo emerge no meio do ódio entre combatentes, um estupro coletivo é lembrado, clichês marciais são tratados com devastadora ironia. E no auge do combate a Moleza tem que se virar sem o seu líder, ao mesmo tempo em que se reconcilia com a sua liderança moral. Com tantas área cinzentas na narrativa, Kubert, que também assina o prefácio, escolheu abrir mão da cor e desenvolver tudo com uma aguada em sépia — e preservando o vigor do seu traço. Uma linda edição, na qual faltou apenas um capricho maior na tradução, que comete vários falsos cognatos.

 

Outras Leituras

Scientific American Brasil Ano 19, N.º 212, outubro de 2020, Nastari Editores, 66 páginas. A Scientific American surgiu em 1845 e veio a adotar um modelo em que textos de divulgação científica são em geral escritos por cientistas, mas editados inhouse. A edição especial dos 175 anos da revista foi marcado pela coragem de avaliar os erros da publicação desde a época em que chauvinismo sexual e racial eram a norma, o darwinismo social saudado como natural e correto, e a eugenia era considerada um conceito positivo e politicamente desejável. Tais revisões acontecem na seção especial 175 Anos de Descoberta, que abre com o curto artigo “Reconhecendo os nossos Erros”, de Jen Schwartz & Dan Schlenoff. O próximo, “Nosso Lugar no Universo”, de Martin Rees, cobre a expansão do entendimento das proporções do universo, enquanto “A Nossa Origem”, de Kate Wong, faz o mesmo quanto ao conhecimento da evolução humana. “Os Piores Momentos da Terra”, de Peter Brannen, aborda as extinções em massa que atingiram o planeta no passado, e, fechando a seção especial, “Os Manipuladores a Informação”, de Naomi Oreskes & Erik M. Conway, trata da inovação tecnológica e seu impacto. Nas seções fixas, o ensaio “A Pesquisa e as Más Companhias”, de Naomi Oreskes, reconhece os erros do presente, tendo como estudo de caso o relacionamento infeliz entre o mercador de sexo adolescente Jeffrey Epstein e a Universidade de Harvard. O brasileiro Salvador Nogueira trata da possibilidade de haver vida em Vênus, a partir da controversa descoberta de fosfina na atmosfera do nosso vizinho mais próximo.

—Roberto Causo

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Leituras de Novembro de 2019

Mais ficção científica sobre Marte neste mês, e também ficção de detetive, de horror brasileiro e história em quadrinhos.

 

The Galton Case, de Ross MacDonald. Nova York: Vintage Crime/Black Lizard, 1987 [1959], 242 páginas. Trade paperback. Uma visita ao blog Killer Covers, de J. Kingston Pierce, me lembrou o quanto gosto de ficção de crime hard-boiled. Um link que leva a um artigo dele sobre Ross MacDonald (nome verdadeiro: Kenneth Millar) no site Crime Reads me recordou que eu tinha uns livros do escritor guardados em algum lugar. Uma busca rápida revelou este The Galton Case. O exemplar que pertenceu a Walter Martins, autor da Primeira Onda da FC Brasileira que, pelos livros que ganhei dele, leu muita ficção de crime nas décadas de 1980 e 1990. O selo Vintage Crime/Black Lizard dava uma cara mais sofisticada aos clássicos do hard-boiled, mas perdia ótimas oportunidades de presentear o leitor com capas de arte pulp de qualidade.

The Galton Case é um romance da série protagonizada pelo detetive Lew Archer, que eu conhecia dos filmes de Paul Newman da década de 1960 (nos quais o detetive se chamava “Harper”). Aqui, ele é contratado por advogado para atender à vontade da sua adoentada cliente, uma multimilionária do petróleo que deseja reatar os laços com o filho, Anthony Galton. O rapaz abandonou a família e a sua riqueza alienante para perseguir o sonho romântico de se tornar um poeta e romancista proletário em San Francisco. Archer vai para lá e segue as pegadas tênues do personagem até uma cidadezinha, onde uma ossada humana é encontrada. Teria a esposa de classe baixa de Galton vendido o marido pelo dinheiro que ele havia deixado para trás? Ou o assassinato teria sido cometido por outros extorsionistas, saindo de controle? Quando a pista parece estar esquentando, uma tremenda reviravolta abala Archer: aparece um filho de Anthony Galton para encerrar o caso. Algo estranho em tudo leva o determinado detetive a continuar a investigação, levando-a até o Canadá (onde Millar nasceu). Trata-se de um daqueles enredos em que as mentiras se empilham e a verdade se embaralha. A trilha leva a um complô muito mais próximo da família Galton — e do próprio Archer — do que as primeiras pistas davam a entender.

Contudo, mais do que reviravoltas no enredo, que em MacDonald soa mais bem encaixado do que os de Raymond Chandler, a quem ele é comparado, o romance oferece complexidade moral e uma premissa que de início soa como uma espécie de “McGuffin” superficial (o espírito livre que abandona a fortuna), mas que ganha profundidade porque a caracterização indireta de Anthony Galton o torna uma espécie de fantasma que assombra a textura do romance. E que acaba de contaminar também a premissa igualmente superficial de início, do seu filho. Grande parte do efeito vem da noção subjacente de que na verdade é a riqueza que assombra os personagens, como uma espécie de atrator do mal.

 

The Martian Race, de Gregory Benford. Nova York: Aspect, 2001 [1999], 448 páginas. Arte de capa de Don Dixon. Paperback. Com este livro eu dou continuidade à minha leitura do ciclo de Marte na FC hard da década de 1990, iniciada mês passado com Mars, de Ben BovaThe Martian Race deixa explícito o contexto que inspirou o ciclo, e que inclui a declaração do presidente americano George Bush (pai) de patrocinar uma missão a Marte. Ele logo esqueceu o assunto, depois que a NASA, em um momento especialmente megalomaníaco, apresentou um orçamento de 450 bilhões de dólares. A solução de Gregory Benford espelha o concurso X Prize (hoje, Ansari X Prize) que, em 1996, instituiu um prêmio de 10 milhões de dólares a quem conseguisse, na iniciativa privada, lançar um veículo espacial de construção própria. No romance, o prêmio é de 30 bilhões a quem conseguir montar uma operação que leve seres humanos a Marte, realize pesquisa científica lá, e os traga de volta em segurança.

O magnata John Axelrod entra na corrida, mas o romance segue basicamente a astronauta americana Julia (erroneamente chamada de “Julie” na contracapa) no processo de formação da tripulação (com percalços), promoção da empreita de Axelrod, casamento com o cosmonauta Viktor, a jornada até Marte e o que acontece lá evolvendo a esquipe adversária. Assim como no romance de Bova, aqui muito é dito sobre as encrencas com a mídia, especialmente a popular. A equipe concorrente é patrocinada por europeus e chineses, daí o romance antecipar algo das atuais tensões entre EUA e China. Interessante que a nave desse consórcio tenha um propulsor atômico. Por conta disso, e embora tendo partido antes da nave de Axelrod (lançada com o apoio da NASA), ela não precisa de uma janela  tão estreita quanto esta, e se não chegar primeiro, voltará primeiro.

O romance tem uma narrativa leve, sem grandes mergulhos ou momentos diferenciados. Mas surge muito de suspense e da tensão da aposta de Julia, uma bióloga, de que conseguirá descobrir vida no planeta se dispor de um pouco mais de tempo. Também assim como em Mars, há muito sobre a questão de existência de vida em Marte, mas enquanto Bova apostou no fundo dos cânions marcianos e sua suposta condição de preservação da umidade, Benford aposta em túneis de lava e fumarolas vulcânicas. Martian Race vai além, apresentando uma rica especulação sobre formas de vida subterrâneas do tipo conglomerado vegetal ou bacteriano. Sendo um cientista praticante (físico), Benford é extremamente competente no manuseio de conceitos científicos e tecnológicos. (O lobista Robert Zubrin também aparece aqui como figurante.) Além disso, as necessidades da pesquisa científica são afirmadas acima das necessidades comerciais e políticas, e, para o meu prazer, mesmo no contexto da corrida espacial, a importância da cooperação é afirmada acima da competição. O destino de Julia e Viktor ficou para ser definido em uma sequência, The Sunborn (2005), os dois livros compondo a série The Aventures of Viktor and Julia.

 

Moving Mars, de Greg Bear. Norwalk, Connecticut: The Easton Press, Masterpieces of Science Fiction, 2001 [1993], 408 páginas. Introdução de George Zebrowski. Arte de frontispício de Marc Fishman. Encadernação Especial. Junto com Gregory Benford e David Brin, Greg Bear forma o assim chamado “Killer B” dentro da FC hard americana. Este romance premiado com o Nebula 1994, na época em que esse e outros dos grandes prêmios ainda significavam alguma coisa. O Prêmio Hugo e o Locus ele perdeu para Green Mars, de Kim Stanley Robinson, outro romance do ciclo de Marte da década de 1990. Li nesta edição da coleção Masterpieces of Science Fiction, mas tenho também exemplar da primeira edição em capa dura, autografada, que adquiri no sebo Livraria Papagalis, quando ele ainda existia aqui no meu bairro. Na interessante introdução, George Zebrowski faz uma análise positiva do romance, defendendo a mal-afamada técnica de exposição conhecida como “infodump“, e destacando a protagonista de Moving Mars, primeiro uma estudante revolucionária e mais tarde administradora e governante Casseia Mojundar.

De narrativa escorreita e ocasionalmente empolgante, o romance aborda um Marte já colonizado, e as tensões do Planeta Vermelho com a ainda centralizadora Terra. Acompanha principalmente os encontros de Casseia com um colega universitário, o mais tarde físico quântico Charles Franklin, cujas pesquisas irão alterar para sempre as relações Terra-Marte e, ao final do livro, as possibilidades de presença humana no restante da galáxia. Só por aí dá para perceber o quanto Moving Mars se afasta dos romances de Marte de que já tratei antes: chegar a Marte e colonizá-lo são questões já resolvidas; e de maneira típica de Bear, o realismo das circunstâncias iniciais vai apoiando a entrada subsequente de conceitos científicos muito mais radicais, como no seu cyberpunk Blood Music (1985). Neste caso, uma possibilidade de tecnologia computacional que acessa a matriz quântica do universo, possibilitando a movimentação instantânea de grandes massas de um lugar para outros. Não há nenhuma celebração de cooperação no livro, porém — a descoberta também significa a existência de uma arma definitiva, cuja posse deve ser neutralizada por ataques furtivos em uma guerra de extermínio, que leva os dirigentes e cientistas de Marte a realizaram uma fuga planetária para outras regiões da galáxia. Assim como em Blood Music, é uma insistência determinista do cientista visionário que leva a um estado de coisas súbito e potencialmente apocalíptico para a humanidade.

Casseia Mojundar é uma rara personagem redonda dentro da FC, cujas falhas pessoais (que incluem arrogância e impertinência, covardia e inabilidade) a tornam mais próxima do real e valorizam os momentos de superação e de aprendizado. Se o romance tem uma “barriga”, é quando Casseia visita à Terra pela primeira vez, em seus primeiros passos como burocrata — um “passeio no zoológico” que certamente é pior do que qualquer infodump, e que descreve uma Terra exótica, repleta de restrições nascidas do nosso passado humano de guerras e conflitos, e extensões virtuais de sexualidade e comportamento, de lastro pós-cyberpunk evidente. Porém, no todo Moving Mars fornece uma grande leitura, sólida, intrigante e plena de sentido do maravilhoso.

 

Arte de capa de Wayne Barlowe.

 

 

Arte de capa de Gilber Mirândola.

O Cântico do Súcubo, de Georgette Silen. Paracatu-MG, Buritu Editora, 2013, 68 páginas. Arte de capa de Gilber Mirândola. Livro de bolso. A escritora paulistana e diretora de teatro Georgette Silen está em atividade desde a primeira fase da Terceira Onda da FC Brasileira (iniciada em 2004). Seu trabalho dentro da literatura especulativa se volta em geral para o horror, como é o caso evidente de O Cântico do Súcubo que adquiri da autora em um evento de fãs em São Paulo. Trata-se de uma noveleta que acompanha Giacomo, um frei bonitão em épocas medievais, que se envolve com um súcubo (demônio sexual) ao encontrar ruínas romanas em um bosque mal-afamado. Ele prossegue até o mosteiro ao qual se dirigia, e lá os membros do lugar passam a ser assediados e mortos pelo súcubo — que se comporta basicamente como uma vampira, bem representada em sua forma humana pela arte bastante atmosférica de Gilber Mirândola na capa.

Mais conhecida pela série Lázarus de romances de horror, publicados pela Giz Editorial, Silen constrói muito bem as cenas e a atmosfera de horror, não se esquiva dos aspectos eróticos nem do sangue e vísceras. Inclusive, leva o clímax da história a um momento do tipo “eros e tânatos”, depois que Giacomo consegue superar sua passividade e consegue enfrentar o monstro. Apesar do excesso de adjetivos no início, e de uma cena meio que pendurada na história envolvendo um outro religioso, O Cântico do Súcubo tem boas qualidades narrativas. Acena com o nascimento do herói de uma nova série, no final.

 

Arte de capa de São Pedro.

Crianças na Escuridão, de Júlio Emílio Braz. São Paulo: Editora Moderna, Coleção Veredas, 3.ª edição, 1993 [1991], 56 páginas. Arte de capa e ilustrações internas de São Pedro. Falei de Braz nas minhas leituras de fevereiro, intrigado com a crueldade que aparece nos seus livros, mesmo nos dirigidos ao público infantil. Resolvi conferir, pegando este livro curto, voltado para o assunto das crianças de rua e comprado há anos no Sebo do Messias, na região da Praça da Sé. É narrado em primeira pessoa por uma menina abandonada pela mãe em um supermercado, e que logo se une a uma gangue formada por outras meninas que catam papelão e cometem pequenos roubos pela cidade de São Paulo. A paisagem da metrópole paulistana é muito bem explorada por Braz, que a contamina com toda a violência que as meninas sofrem: violência policial, abuso sexual em casa, assédio de cafetões, estupro, falta de solidariedade da população e de assistência do Estado. Finalmente, também o assassinato. As frases curtas e os episódios montados pela voz infantil da menina Rolinha vão costurando este relato do abandono e da aspereza das ruas. A arte despojada de São Pedro, a traço rasgado e de certa ironia igualmente cortante, sublinha esse conteúdo mesmo quando não o retrata. O final não é feliz, só o que ele afirma é sobrevivência e continuidade. Apesar da brevidade do livro, ele costura uma complexidade emocional entre as meninas e entre as figuras que as orbitam, como um traficante de drogas, um mendigo intelectual e um violento pivete que anda armado. A prosa minimalista alcança momentos poéticos. Na nota biográfica escrita pelo próprio Braz, ele responde com clareza cortante à minha questão:

Crianças na escuridão fala da dor e do cotidiano. É propositadamente impiedoso com a fantasia e a dissimulação — não há nenhuma delas em suas páginas. Procurei falar de verdades que conheço, de injustiças que testemunhei, de dores que me contaram. Suas personagens podem ser encontradas em qualquer grande cidade do Brasil. A Praça da Sé é apenas um universo limitado, onde coloco todas as dores de crianças que conheci.

“Se apenas um coração jovem se indignar diante de tanto sofrimento e desesperança, terá valido a pena escrevê-lo.” —Júlio Emílio Braz. Crianças na Escuridão.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Dustin Nguyen.

Descender, de Jeff Lemire (texto) e Dustin Nguyen (arte). Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 1.ª edição, novembro de 2019 [2015], 144 páginas. Tradução de Fernando Scheibe. Arte de capa de Dustin Nguyen. Brochura. Este livro de quadrinhos é mais um que apareceu aqui em casa pelas mãos do meu filho Roberto Fideli e sua namorada, Gabriela Colicigno. É uma space opera de um futuro distante em que a galáxia está unificada sob uma única autoridade federativa, com um alto nível de robotização — até que gigantescas máquinas humanoides surgem com um poder bélico destruidor semelhante ao do Galactus da mitologia da Marvel. São chamados de ceifadores, em número de nove, e depois de levar à morte a centenas de milhões dos cidadãos da galáxia eles desaparecem sem razão aparente, do jeito que surgiram. Os robôs, porém, foram poupados — por que ou como, a HQ não explica (muito é contado e não mostrado). Isso leva os sobreviventes do massacre a se voltarem contra os seus antigos servos mecânicos.

Em uma lua distante, em que uma operação mineradora foi devastada,, por um vazamento de gás, antes do surgimento dos ceifadores, alguns robôs locais foram poupados. Entre eles o pequeno Tim-21, que tem a aparência de um garoto de dez anos, muito bonzinho, criado e programado para ser o companheiro de uma criança humana de idade compatível. Mas aparentemente Tim guarda um segredo importantíssimo, que o conecta aos ceifadores, e uma força tarefa é montada para recuperá-lo nesse local abandonado. A partir daí existe muita aventura e reviravoltas, com a formação de uma equipe de heróis. Interessante que a metade dela seja composta de robôs. Um dos humanos é o cientista responsável por uma revolução da robótica na galáxia, e outro é a filha de uma figura importante da sua liderança.

A história, porém, não tem um desenho especialmente interessante e a revelação final, de que o cientista não seria tão hábil e genial quanto se declara, parece incongruente. De fato, muita coisa tem esse aspecto, levantando a possibilidade de alguma influência da série Saga, de Brian K. Vaughan, e sua abordagem nonsense da space opera. A derivação do filme I.A.: Inteligência Artificial (2001), de Steven Spielberg a partir de um projeto de Stanley Kubrick e inspirado em conto de Brian W. Aldiss, é evidente na figura de Tim e de detalhes como uma arena em que robôs são sacrificados. Também em momentos de melodrama pós-modernista, no qual o autor parece não acreditar muito nas emoções que desafia o leitor a ter. Dustin Nguyen é um artista celebrado, que já trabalhou com Batman e The Authority, tendo recebido o Prêmio Eisner 2016 de Melhor Pintor por seu trabalho aquarelado em Descender. Mas eu achei que a arte cai às vezes ao nível de esboço, e se apoia demais no espaço negativo. A história tem aspectos intrigantes e um final surpreendente, além do gancho montado na arena dos robôs, que devem garantir o interesse na leitura do próximo volume.

—Roberto Causo

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Leituras de Fevereiro de 2019

Só livros de brasileiros lidos em fevereiro, quando resolvi atacar a pilha de títulos aguardando leitura, alguns há um bom tempo. Inclui ficção científica, fantasia, horror e poesia de cordel. Há também um brasileiro na minha leitura de quadrinhos nesse mês.

 

Sob o Trópico de Capricórnio, de Pedro Carcereri. Belo Horizonte: Letreramento, 2018, 98 páginas. Brochura. Nelson de Oliveira me passou este romance curto do roteirista e cineasta Pedro Carcereri. É uma ficção científica dentro do subgênero distopia, muito em voga na literatura dos millennials e muito significativo hoje em dia, diante do quadro político atual. Mas aqui temos, rascunhado em traços rápidos e num estilo mais introspectivo, fusão de preocupações atuais e o tom das distopias brasileiras da década de 1970 — o Ciclo de Utopias e Distopias, dentro da ficção científica nacional. Isso provavelmente é mais resultante das escolhas pessoais de Carcereri, do que de uma pesquisa ou leitura prévia de trabalhos de autores como Ignácio de Loyola Brandão, Ruth Bueno, Silveira Júnior ou Mauro Chaves.

Também é interessante que o autor empregue temas bastante recentes e relevantes, nestes tempos de globalização: alimentos transgênicos por toda parte e a proibição estrita do plantio de qualquer coisa que o governo centralizado desaprove; o cultivo de plantas e a criação de animais não-transgênicos, como meio de resistência político-econômica. O premiadíssimo The Windup Girl (2009), de Paolo Bacigalupi, aborda tema nessa linha, projetado para um futuro de construção mais rica. A ideia de “vales” em que comunidades agrícolas guardam um princípio utópico está em Sob o Trópico de Capricórnio e também no romance tupinipunk do político verde Alfredo Sirkis, Silicone XXI (1985). A novela de Carcereri começa na Zona Oeste de São Paulo (exatamente a região em que eu moro), com o protagonista Daniel sendo sequestrado por um desses grupos de resistência. Ele acaba cooptado por eles para realizar uma ação em particular, e o grupo se move pelas ruas de Sampa para realizá-la, mas com o aparelho repressor em cima deles. A história tem muito movimento, com os personagens viajando por São Paulo Capital e Interior, como na novela pós-apocalíptica A Terceira Expedição (1987) de Daniel Fresnot. Mas o final é abrupto, como se o livro fosse a primeira instância de um trabalho maior ou de uma série a ser desenvolvida.

 

Quatro Soldados, de Samir Machado de Machado. Porto Alegre: Não Editora, 2013, 320 páginas. Brochura. O escritor gaúcho Samir Machado de Machado me enviou este seu romance um ou dois anos depois do seu lançamento. Com três leitores compulsivos na casa, o livro acabou passando de mão em mão e desapareu. Ano passado, Christopher Kastensmidt me recomendou o livro om muita ênfase, e passei várias semanas procurando-o sempre que surgia um momento livre. Como acontece invariavelmente nesses casos, achei o livro quando não o procurava. Valeu muito a leitura, de qualquer modo. De fato, este é um romance que, com vênia para o fato de ele poder ser lido como uma apropriação histórica ficcional muito própria da ficção pós-modernista, pode ser visto com um marco da fantasia brasileira. Fantasia histórica, é claro, por ser ambientado no Sul do Brasil do século 18.

Há três coisas meio que obrigatórias, na ficção pós-modernista que se estabelece na segunda metade do século 20, e que a gente encontra no romance de Machado de Machado: metaficção (a ficção que comenta a ficção), um espírito brincalhão ou iconoclasta, em torno da forma ou do assunto, e a fragmentação da narrativa. O romance é divido em quatro livros ou partes. Longas epígrafes precedem cada uma dessas partes. Em outros trechos, há uma reprodução da dicção e da grafia arcaica do português de então. O primeiro soldado foi abandonado pelo pai e acabou recrutado. A caminho de uma missão jesuíta, são perseguidos por uma criatura monstruosa até um labirinto. Desaparecidos, são seguidos pelo seu comandante, que tem melhor sorte contra o monstro. A narrativa corta então para contar o que houve com o jovem sobrevivente, que foi abrigado por um inventor e erudito que apresenta a ele a obra de Shakespeare — e um discurso literário elitista. O segmento termina com a chegada do oficial pronto para o resgate. Na segunda parte, o soldado resgatado encontra-se com mais um erudito, mas livre-pensador, irônico, boêmio e com a característica incomum de enxergar melhor no escuro do que a maioria das pessoas. O elemento fantástico surge como um novo monstro, que os dois enfrentam em subterrâneos lovecraftianos de clima pesado e descrições arrepiantes. Na terceira parte, o oficial que aparece na primeira é tratado com mais profundidade, na narrativa que investiga a sua infância e juventude, enquanto ele se coloca no caminho de um assassino psicopata em missão secreta dos poderes coloniais, num episódio com direito à aparição da versão gaúcha do anhangá. Na parte final, ficamos sabendo mais sobre o psicopata, e retornam o homem dos olhos especiais e um enredo de mistério criminal. A força da criação de Samir Machado de Machado está na textura e na evocação, no toque transformador do estranho e do sobrenatural, e na estrutura narrativa engenhosa. Mesmo tendo em mente que esta edição do seu romance se beneficiaria de mais um polimento, Quatro Soldados vai para a mesma prateleira com O Caçador de Apóstolos (2010), de Leonel Caldela, e A Bandeira do Elefante e da Arara (2016), de Christopher Kastensmidt, dos romances brasileiros de fantasia mais destacados dos últimos anos.

 

Arte de capa de Mozart Couto.

As Horripilantes Narrativas Alimentares do Clube Canibal, de Júlio Emílio Braz. São Paulo: Devir Brasil, 2018, 96 páginas. Arte de capa de Mozart Couto. Brochura. O autor mineiro Júlio Emílio Braz começou escrevendo roteiro de quadrinhos para revistas e fanzines na década de 1980. (Mozart Couto, o artista da capa, é um dos mais experientes e respeitados desenhistas de quadrinhos do Brasil.) Eu tava lá, eu vi. Ele teve uma experiência escrevendo westerns de bolso, sob pseudônimo, para a Cedibra, depois fez o salto para a literatura infanto-juvenil, onde encontrou fama e sucesso como um autor afro-brasileiro respeitado nacional e internacionalmente, ganhando um Jabuti com o seu livro de estreia em 1988. Mesmo nos seus livros para jovens, ele costuma ser bastante duro. Este livro sobre canibalismo certamente não passaria como literatura juvenil.

O título e os textos de abertura dão a entender que as histórias reunidas no livro formam um conjunto coeso em torno do tema do clube canibal. Como as histórias são ambientadas em Porto Alegre, é possível que Júlio Emílio tenha se inspirado no caso dos “Crimes da Rua do Arvoredo” naquela capital, ocorridos entre 1863 e 1864 e envolvendo um trio de assassinos e o açougue de um deles. Meu pai costumava citar esse caso para embasar a sua pouca fé no ser humano…

A falta de um índice com os contos reforça a ideia de que o livro deveria ser lido como uma espécie de novela fix-up. Na minha leitura, porém, não é o que acontece e os seis textos ficcionais acabam tendo uma individualidade maior do que o necessário para isso, mesmo com todos eles narrados na primeira pessoa. Em uma das histórias, por exemplo, uma mulher traída serve ao marido a amante dele — mas nada do clube. Na história seguinte, sim; um serial killer é contratado para abastecer a associação. No próximo conto, o narrador cínico cede ao narrador horrorizado ao descobrir que seu noivado com uma aristocrata rural de origem germânica vai ser celebrado com um terrível ritual, mas aí não se trata do mesmo clube. O mesmo acontece na última história, narrada por um agente funerário que se envolve com uma família de canibais, mas não germânica e sim espanhola. De qualquer modo, o livro é efetivo tanto em criar um clima pesado apropriado ao gênero, quanto em evocar o horror do canibalismo. Há também uma atmosfera de sordidez urbana brasileira que casa muito bem com o projeto. Júlio Emílio Braz teve um conto incluído ano passado na antologia As Melhores Histórias Brasileiras de Horror (Devir Brasil), editada por Marcello Simão Branco & Cesar Silva.

 

A Eva Mecânica e Outras Histórias de Ginoides, de Daniel I. Dutra. Praia Grande-SP: Editora Literata, 2013, 126 páginas. Prefácio de Gerson Lodi-Ribeiro. Brochura. Conheci Daniel Dutra na Odisseia de Literatura Fantástica de 2013, onde adquiri seu livro de contos com o tema da fembot ou ginoide (o feminino de “androide”). As histórias dialogam com os contos do pioneiro da FC brasileira Berilo Neves (1899-1974), best-seller no seu tempo com contos e crônicas publicadas em revistas e jornais e reunidas em livro. Neves frequentemente brincava com o que a tecnologia faria em termos de alteração do comportamento sexual e social humano, se, por exemplo, homens e mulheres artificiais fossem inventados, ou uma encubadora que permitisse a reprodução fora do útero.

Com mais sofisticação, Dutra tenta examinar que transformações a introdução das ginoides trariam à sociedade humana. No prefácio, Gerson Lodi-Ribeiro conta que tudo começou com a publicação de “A Mulher Imperfeita” na antologia de histórias originais organizada por ele, Erótica Fantástica 2 (Editora Draco, 2012). Mas obviamente Dutra já visava um livro com o tema, pois submeteu ao todo quatro histórias para a antologia. As quatro estão no livro, junto com outras quatro. “A Eva Mecânica” é relativamente curto, narrado em primeira pessoa, e conta como o narrador recorreu a um contrabandista para garantir a sua ginoide, já que não se qualificava para possuir uma. No fim, descobre que depositara o seu afeto em um produto falsificado. Há uma certa ironia aí, de que a valorização da mulher mecânica não passa de projeção do macho da espécie. O conto parece estar aí mais para apresentar o histórico da inovação tecnológica sobre o qual o livro especula. Vem então “A Substituta”, também em primeira pessoa: o narrador mata a esposa em uma briga de casal, confessa a um amigo que revela ter substituído sua mulher por uma ginoide, e oferece a ele essa possibilidade, com resultados trágicos. Há aí ecos do romance de Ira Levin, As Possuídas (The Stepford Wives, 1972), segundo Lodi-Ribeiro assinala no prefácio. A terceira história, “Ela, a Ginoide”, abre com as Leis da Robótica de Isaac Asimov, e narra como uma ginoide-babá foge dessas leis — “enlouquecida”, mata a todos os que lhe parecem ameaçar sua protegida. “A Mulher Imperfeita” é mais filosófico e explora os sentimentos que levariam um homem comum a priorizar a mulher artificial sobre a natural, e também outras situações de relacionamentos poliamorosos por causa do excedente de humanas disponíveis, agora que elas têm de concorrer com as máquinas. “Veronica Lake Fake” satiriza um movimento pelo “amor cibernético”, contrário à proibição das ginoides; “A Casa da Dor” se apresenta como um depoimento colhido no julgamento de um homem que descarrega secretamente seus impulsos sádicos nas mulheres artificiais; e em “Sabine”, uma mulher idosa usa um aparato de realidade virtual para experimentar uma vida mais jovem como uma ginoide. A noveleta “A Última Mulher da Terra” dialoga diretamente com o conto de Berilo Neves, “A Última Eva”, que Braulio Tavares incluiu na sua antologia Páginas de Sombra: Contos Fantásticos Brasileiros (Casa da Palavra, 2003).

Imagino que exista uma variedade de modos em que se pode assumir uma postura crítica feminista na literatura, para além da representação positiva ou idealizada da mulher. Histórias que expõem as ilusões ou vícios do comportamento masculino, por exemplo — como “A Mulher Imperfeita” e outros momentos em que os homens não estão bem na foto, nos contos de Dutra. E também histórias que expõem as ilusões ou vícios do comportamento feminino — como “A Última Mulher da Terra”, em que a última mulher, salva de uma cápsula criogênica secreta na Amazônia, é uma bisonhona cheia de ilusões sobre seu apelo perante homens que vivem há séculos só com ginoides. Lendo suas histórias depois das histórias de Angry Candy, do qual tratei mês passado, me ocorreu que Harlan Ellison também usa dispositivos semelhantes para revelar os azares dos relacionamentos humanos. Falta a Dutra, porém, menos adesão às fôrmas alegóricas das suas especulações, e justamente mais ironia para temperar as narrativas. Parte da produção contística de Berilo Neves cabia no tema da “guerra dos sexos”, que também apareceu na noveleta “Éden 4” (2001), de Alexandre Raposo, na qual um astronauta é revivido milhares de anos no futuro, quando não existem mais homens na Terra.

 

Os Domínios do Rei Peste, de Evaristo Geraldo. Fortaleza: Edição do Autor, junho de 2015, 16 páginas. Folheto. Evaristo Geraldo foi outro cordelista a quem Braulio Tavares me apresentou no maravilhoso estande do IMEPH na Bienal do Livro de São Paulo, em 2018. Assim como Rouxinol do Rinaré fez com o seu A Sombra do Corvo, Evaristo Geraldo se inspira em um texto de Edgar Allan Poe, desta vez um conto de horror, “O Rei Peste” (“King Pest: A Tale Containing an Alegory, 1835). Na história, que não é uma das mais famosas do celebrado escritor americano, dois marinheiros malandros vão parar em um bairro de Londres que concentrava os doentes da peste. Inadvertidamente, a dupla, descrita como um cara muito alto e o outro um anão, deparam-se com uma bizarra cena que se desenrola em uma funerária. O poeta brasileiro desenvolve um certo humor, até que o clima de horror se fixa nessa cena em especial, muito bem expressa no poema.

O cordel é completado por um segundo poema narrativo de Evaristo Geraldo, “O Camponês Ganancioso”.

 

 

Arte de capa de Maércio Siqueira.

A Árvore de Todos os Frutos (Lenda Indígena), de Evaristo Geraldo. Alto Santo-CE: Edição do Autor, setembro de 2017, 12 páginas. Arte de capa de Maércio Siqueira. Folheto. Evaristo Geraldo retorna aqui usando uma lenda indígena como inspiração para o seu cordel, representada na xilogravura de Máercio Siqueira. Um elogio à cultura indígena abre o poema narrativo, que conta do amor da Lua pelo Sol. Um eclipse possibilitou a união amorosa dos dois corpos celestes. Um curumim foi o fruto desse encontro, Macunaíma, incumbido de proteger uma árvore que dava todos os frutos encontrados na floresta. O herói mágico distribuía os frutos aos homens e mulheres dos Macuxis, de acordo com sua sabedoria — registro lendário daquilo que os antropólogos chamam de “chiefdom“, o domínio do chefe que exerce esse direito a partir de um capital simbólico que o autoriza a organizar a sociedade. Mas o povo ganancioso passa por Macunaíma e ataca a árvore pensando em plantar um pomar a partir dos seus ramos. Mas ela morre, privando o povo da sua magia e fazendo o herói reagir com uma fúria que incendeia a mata e transforma trechos da floresta em rochedos estéreis. O tom do poema é mais solene e captura bem a lógica lendária dos mitos.

 

Quadrinhos

 

Arte de capa de Marini.

Arte de capa de Marini.

Batman: O Príncipe Encantado das Trevas, Volume 2 (Batman: The Dark Prince Charming Volume 2), de Marini. Barueri-SP: Panini Books, 2018. Arte de capa de Marini. Álbum capa dura. A investida do artista francês Enrico Marini na mitologia de Batman, criado por Bob Kane & Bill Finger, termina com este segundo volume. A qualidade da arte e da narrativa se mantém, enquanto a luta de Bruce Wayne para resgatar a menina Alina, que pode ser sua filha, das garras do Coringa engata a terceira marcha. Como Batman, Wayne patrulha as ruas, ataca uma gangue de motoqueiros tietes do Coringa. Mas é o supervilão, descrito como um psicopata que mata em rompantes, quem precipita as ações, e enquanto não assassina seus colaboradores como alívio de tensão. Ele aborda o multibilionário Wayne para que ele adquira um colar de diamantes — sonho de consumo da sua namorada Arlequina (Harley Queen). No meio do caminho, a joia vai parar nas mãos da ladrona Mulher-Gato, que mais tarde segue Batman até o local do desenlace da história. O interessante dessa sequência final é como, feito um malabarista habilidoso, Marini faz com que todos os personagens participem da ação: Batman, Coringa, o mordomo Alfred, a Mulher-Gato, Arlequina, o palhaço anão e suicida Archie, e a própria Alina. A menina, em particular, demonstra ser cheia de recursos. Isso não só traz maior interesse para o desfecho da minissérie, como também funciona como prenúncio do final surpresa — que sugere que ela pode não ser de fato filha de Bruce Wayne. O desenho e o uso de cor e tonalidade por Marini continua deslumbrante, mesmo que neste segundo volume ele não tenha realizado painéis duplos de tirar o fôlego, como no primeiro. Em sua aventura dentro da mitologia de Batman, Marini levou algo da dualidade da sua série Gypsy, cujo herói hiperviolento faz o que for necessário para proteger uma menina inocente — irmã menor, em Gypsy; suposta filha, aqui.

 

Arte de capa de Darrick Robertson.

Astronauts in Trouble: Live From the Moon, de Larry Young (texto), Charlie Adlard e Matt Smith (arte). San Francisco, CA: AIT/Planet Lar, 2.ª edição, 2001 [1999], 144 páginas. Introdução de Warren Ellis. Arte de capa de Darrick Robertson. Trade paperback. Folheei este livro de quadrinhos várias vezes na loja Terramédia (hoje Omniverse), e o desenho que empresta recursos do autocontraste nunca me passou muita confiança. Me convenci a comprá-lo por causa da recomendação de Warren Ellis, no seu livro de não-ficção Come in Alone. Ellis assina a introdução do livro, onde reafirma a sua paixão pela astronáutica, algo também presente na sua ótima HQ Ministério do Espaço (Devir Brasil).

A história criada por Larry Young, primeiro publicada em 1999, é ambientada em 2019, quando o pouso da Apollo 11 na Lua faz cinquenta anos. Nela, uma equipe de telejornalismo é envolvida na fuga de um megaempresário para o satélite natural da Terra, depois que as suas indústrias são atacadas por supostos ecoterroristas. Aos poucos, o empresário se mostra uma espécie de supervilão como um Dr. No, de 007, pronto para chantagear o mundo depois de conquistar o derradeiro terreno elevado — a Lua. Ele até patrocinara a suposta organização terrorista contra si mesmo, para lhe dar a desculpa para fugir para o satélite, sem supervisão governamental. Embora apareçam senadores corruptos na história, o executivo do governo americano nunca é acionado. Num truque narrativo estranho e bizarro, é uma espécie de máfia que lança uma trinca de misseis contra a Lua. O ápice da de Astronauts in Trouble divide-se entre o empresário e a equipe televisiva, tentando escapar do ataque. A narrativa é irônica e divertida, com muitas referências à cultura popular em diálogos extensos, mas é às vezes confusa e eclíptica. O fato do artista Matt Smith ter abandonado o trabalho nas páginas finais, assumidas por Adlard, não ajudou. De qualquer modo, passado o estranhamento inicial, a arte acaba sendo envolvendo o bastante. Fecha o livro uma história independente da narrativa principal, em que macacos tripulando cápsulas em voos-teste dão espaço para o humor sarcástico de Larry Young. O livro reitera a importância da iniciativa privada nas histórias de FC de viagem interplanetária, algo firmado pelo escritor Robert A. Heinlein e pelo editor John W. Campbell, Jr. O ano de 2019 com o cinquentenário da Apollo 11 está aí, e o megaempresário Elon Musk já anunciou seu desejo de chegar à Lua “o mais cedo possível”.

 

Ate de capa de Danilo Beirut.

Astronauta: Entropia, de Danilo Beyruth. Barueri, SP: Panini Books, 2018, 98 páginas. Arte de capa de Danilo Beiruth. Álbum. Mais astronautas pra nóis, no quarto álbum da série criada por Danilo Beiruth para a Maurício de Sousa Produções, em sua linha de “graphic novels“. O terceiro, eu discuti aqui em junho de 2017. Nele, o Astronauta foi apresentado à uma versão dele mesmo e de sua família, formada em um universo paralelo, e acaba ficando com a filha adolescente, Isabel.

Os dois estão perdidos em uma região inexplorada da galáxia, sem contato com a agência espacial do Astronauta, a BRASA. Isabel sugere que eles busquem sinais de civilizações alienígenas que possam lhes dizer onde estão. Encontram um sinal e chegam a um aglomerado de naves espaciais, o Sargaço, habitado por náufragos e piratas em conflito. Os dois são pegos nessa guerra e acabam separados. Astronauta faz um trato com a liderança dos piratas, e vai com a bela alien Shie’r — que mais tarde se revela como protótipo beyruthiano da personagem Cabeleira Negra, vista em histórias anteriores do personagem. A ideia de uma estação espacial habitada por uma subclasse de desclassificados também pode ter surgido da pena de Heinlein, para se tornar um clichê absurdo que chegou a alcançar até as séries Babylon 5. Mas Beyruth lida bem com essa parte da trama, e o caótico desenho de Sargaço faz homenagem a várias naves da FC, incluindo aquelas de Star Trek. A HQ investe nas qualidades da cooperação e da luta contra a tirania, e seu final deixa um gancho para complicações futuras, num quinto volume. Já neste ponto, Astronauta é uma série de álbuns vitoriosa dentro do campo dos quadrinhos nacionais de ficção científica. Algo que o próprio Mauricio de Sousa celebra no introdução.

—Roberto Causo

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Leituras de Novembro de 2018

Em novembro de 2019 aconteceu o IV Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional, nas dependências da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Fui convidado pelo organizador Flavio García para apresentar uma conferência, e na preparação dessa conferência pouco tempo sobrou para as leituras habituais. Mesmo assim, o mês trouxe alguma leitura de ficção científica e, especialmente, da pioneira antologia das melhores histórias brasileiras de horror, organizada por Marcello Branco & Cesar Silva.

 

Home from the Shore, de Gordon R. Dickson. Nova York: Ace Books, 1.ª edição, 1979 [1978], 122 páginas. Ilustrações de James R. Odbert. Posfácio de Sandra Miesel. Paperback. Assim como na série Dorsai, em Home from the Shore o escritor canadense-americano Gordon R. Dickson (1923-2011) apresenta uma espécie de proto-divisão da humanidade entre conservadores e progressistas — estes determinados a encararem o futuro no espaço e em outros planetas. Neste romance curto, após duas gerações apenas, humanos que colonizaram os mares do nosso mundo começam a se diferenciar daqueles que ficaram em terra. Jovens são selecionados para se tornarem cadetes espaciais, mas a empreitada se transforma em um revés para toda a comunidade dos humanos do mar. Isso acontece depois que eles realizam um protesto, involuntariamente coletivo, contra a “caça para propósitos científicos” de uma espécie alienígena volante que vaga pelo Sistema Solar. De algum modo, o ambiente aquático desses jovens nutre uma sensibilidade incompreensível para os outros, e que permitiu uma empatia com tais seres, percebendo-os como sencientes. Vindos de uma sociedade libertária, quando passam a ser perseguidos pelas autoridades a deserção é a solução imediata.

O líder desse grupo é o jovem Johnny Joya, que, quando volta para a sua comunidade subaquática, descobre ser pai de um menino esperto e um tanto ressentido. Nesse ponto, a história muda substancialmente de tom, que se torna mais introspectivo e literário. A comunidade tem a habilidade de se desfazer em habitats autônomos chamados Lares, e por algum tempo é como um jogo de gato e rato, até que a trama se dirija a uma operação de resgate aos prisioneiros, enfiados numa instalação de Nova York. A missão é sabotada por um traidor muito próximo de Johnny, que, depois de perder a esposa, desiste do conflito e parte com o filho pequeno, Timo, para viver, sem os Lares high-tech, diretamente do mar como as gerações anteriores. Ele sugere o mesmo aos outros, em uma dispersão que vai dificultar que os humanos da terra continuem a persegui-los. No posfácio, Sandra Miesel, uma estudiosa da obra de Dickson, explica que Home from the Shore é parte de uma sequência completada com The Space Swimmers, protagonizada por Timo. Segundo ela, Dickson apresenta uma dicotomia entre inconsciente/conservadorismo e consciente/progressismo. Para além desse aspecto filosófico, o livro é uma aventura movimentada e colorida no espaço e no oceano, envolvendo golfinhos e orcas, e um ode à juventude e à simplicidade na vida.

Home from the Shore foi concebido como um livro ilustrado com elegantes desenhos em autocontraste de James R. Odbert, bem fundidos com o texto. Eles formam uma fusão equilibrada do conhecido e do futurista, e de linhas retas e formas ovoides e onduladas. Muitas vezes, Dickson soava bastante hiperbólico com respeito ao próprio trabalho e projetos, e neste caso ele afirma que a cooperação de texto e arte aqui seria única, não só no campo da FC quanto no âmbito editorial. Provavelmente, não é tanto assim, mas ele tem uma observação no prefácio que vale ser reproduzida:

“A ilustração sempre foi considerada como uma parte dos livros, até o começo deste século, quando ela começou a ser expulsa da maior parte da ficção por razões de custo editorial. A única exceção a essa tendência estava na ficção escrita para os jovens; e mesmo nesse tipo de material de litura elas foram severamente limitadas. Uma concepção errônea do editor cresceu para uma aceitação generalizada de que eram as palavras, e apenas as palavras, que os leitores adultos queriam, e não imagens.

“Como ocorre frequentemente no campo literário, essa concepção errônea foi gerada e aceita sem qualquer referendo real daqueles mais interessados — os próprios leitores. O resultado é que ela existia até bem perto do momento histórico presente, com uma exceção. A exceção era a ficção científica, a única área da literatura em que se tinha a oportunidade de responder diretamente aos autores tanto em pessoa quando por carta; e na qual, apropriadamente, eles expressavam sua preferência não apenas por ilustrações nos livros que leem, como por boas ilustrações — ilustrações não expressas apenas nas cores tipo poster da moda do momento e nos padrões frívolos da publicidade, sem qualquer preocupação real com a história na qual é aplicada. A ilustração que os leitores demonstravam desejar era aquela que verdadeiramente espelhava a história ilustrada; e que tentasse trazer para um foco agudo e artístico as imagens gerais dos personagens e cenas formadas na mente conforme a história fosse lida.” —Gordon R. Dickson.

Oneironautas, de Fábio Fernandes & Nelson de Oliveira. São Paulo: Editora Patuá, 2018, 90 páginas. Texto de orelha de Santiago Santos. Livro de bolso. Este livro é uma incomum colaboração entre dois nomes de peso dentro da ficção científica brasuca moderna — Fábio Fernandes, acadêmico e ficcionista da Segunda Onda da FC Brasileira, e parte do Grupo da Renovação que fez a ponte com a Terceira; e Nelson de Oliveira, autor consagrado no mainstream literário que, como o heterônimo “Luiz Bras”, é um dos autores mais interessantes da Terceira Onda e uma das suas melhores lideranças e cabeças pensantes. Uma nota no fim do livro observa que ele deveria ter saído em 2016, quando os dois escritores completariam 50 anos de idade. As eventualidades da escrita e da edição determinaram que sairia apenas em 2018. Eu o li enquanto aguardava meu voo para o Rio de Janeiro, onde ia participar, por obra e graça do Prof. Flavio García e da CAPES, do IV Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional.

A história enfoca uma dupla de viajantes do tempo que participam de uma festa eterna na qual encontram não apenas alienígenas mas também várias versões deles mesmos. No capítulo 3, porém, surge uma ex de Fábio, uma mulher negra que tentou matá-los em um outro contínuo do espaço-tempo. Além disso, os outros foliões estão atrás deles por terem espalhado um vírus de insônia entre os “oneironautas” — sendo que o salto entre os mundos paralelos se dá por meio de sonhos. A narrativa, cheia de referências culturais pop e surrealistas, se desenvolve em capítulos curtos, com diálogos exaltados e sempre apresentando um gancho no final. Cada capítulo é narrado em primeira pessoa, mas sob o ponto de vista alternado de um Nelson ou um Fábio (e vice-versa). Difícil saber, mas me parece que a narrativa foi construída como uma espécie de round-robin, sem planejamento, com um escritor pegando de onde o outro parou. Oneironautas é divertidíssimo, especialmente para quem conhece a dupla e consegue visualizar os dois trilhando o seu caminho entre as dimensões da Festa Eterna.

 

Arte de capa de Flávio Correia Lima.

As Melhores Histórias Brasileiras de Horror, de Marcello Simão Branco & Cesar Silva, eds. São Paulo: Devir Livraria, 2018, 272 páginas. Arte de capa de Flávio Correia Lima. Brochura. Há décadas que Cesar Silva e Marcello Simão Branco vêm contribuindo, individualmente ou em dupla, para o avanço da ficção científica e fantasia no Brasil. Os criadores do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica (encerrado em 2014) retornaram em 2018 com um trabalho fabuloso, esta antologia que se associa a outras que têm surgido em tempos recentes valorizando a ficção de horror e, em particular, o horror no Brasil. Entre elas estão a internacional Contos Clássicos de Terror, de Julio Jeha, ed. (Cia das Letras; 2018); e a anterior Páginas Perversas: Narrativas Brasileiras Esquecidas (Appris Editora; 2017), de Maria Cristina Batalha, Júlio França & Daniel Augusto P. Silva, eds.

As Melhores Histórias Brasileiras de Horror é um dos projetos deixados por Douglas Quinta Reis, no inventário de projetos que ele conduzia na Devir Brasil. É maravilhoso que tenha sido completado. A seleção de histórias começa lá no século 19 e vem até o início do nosso século 21. Inclui “A Vida Eterna” (1870, de Machado de Assis; “Acauã” (1892), de Inglês de Sousa; e o mais antologizado “Demônios” (1893), de Aluísio Azevedo. O destaque do período para mim, porém, é “Assombramento (História do Sertão)” (1898), de Afonso Arinos, conto mais longo e com fortes marcas regionalistas, que pinta um quadro bastante expressivo da casa mal-assombrada — uma casa-grande de fazenda, no caso, e que o corajoso vaqueiro Manuel decide enfrentar sozinho, passando a noite lá dentro. No que pode ou não ser um episódio sobrenatural, ele sai machucado mas de coragem intacta, em uma narrativa de força incomum — que encontra um estranho paralelo na bela ilustração de capa de Flávio Correia Lima.

A atmosfera tétrica, carregada de impressões de medo e de perturbações mentais, é a tônica das narrativas selecionadas do começo do século 20 — “O Defunto” (1907), de Thomaz Lopes; “A Peste” (1910), de João do Rio; e “Rag” (1922), de M. Deabreu —, até encontrarem o equilíbrio perfeito em uma obra-prima de Gastão Cruls, autor do clássico da FC de mundo perdido A Amazônia Misteriosa (1925): “O Espelho” (1938), em que a influência de Edgar Allan Poe se faz sentir da melhor maneira, numa história de obsessão sexual. Daí em diante, já na segunda metade do século 20, as histórias ganham variedade de enfoque, tom e tema, a partir de “Tuj” (1968), tentativa de uma espécie de impressionismo New Wave do autor da Primeira Onda da FC Brasileira Walter Martins, também publicada na França (na revista Antarès). Muito vista no campo da literatura infanto-juvenil, Márcia Kupstas está no livro com uma releitura de terror e erotismo da história de Pinocchio, com o conto “Geppeto” (1987). A década de 1990 é representada por “Bença, Mãe” (1992), de Júlio Emílio Braz; “Solo Sagrado” (1995), uma história de fanatismo religioso de Carlos Orsi; o meu “Trem de Consequências” (1995), uma história de trato com o diabo; até alcançar seu ápice na fusão da imaginação gótica e da exploração da herança histórica de violência brasileira, na novela de Tabajara Ruas, “O Fascínio” (1997). “Os Internos” (2007), de Gustavo Faraon, representa o século 21, mas é o conto de horror folclórico “Bradador” (2014), de Braulio Tavares, que fecha esta histórica antologia com chave de ouro. Um livro necessário, e uma realização importante de Branco & Silva, que aqui fornecem uma moldura para a produção de ficção de horror no Brasil, frisada pelo seu ensaio panorâmico e aprofundado, “Trajetória e Caracterização de uma Ficção de Horror Brasileira”, que serve de introdução ao livro.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Thomas Campi.

A História de Joe Shuster: O Artista por Trás do Superman (The Joe Shuster Story), de Julian Voloj (texto) & Thomas Campi (arte). São Paulo: Editora Aleph, 2018, 192 páginas. Capa de Thomas Campi. Tradução de Marcia Men. Há alguns anos, resenhei o livro Homens do Amanhã: Geeks, Gângsteres e o Nascimento dos Gibis (Men of Tomorrow; 2004), de Gerard Jones, para o Terra Magazine. Foi uma leitura fascinante, centrada na presença de artistas e empresários judeus na indústria dos quadrinhos, com muita interface com a ficção pulp de FC, detetive e aventura — e com a história da criação do super-homem pela dupla Jerry Siegel & Joe Shuster como principal estudo de caso. Afinal, a criação do homem de aço resultou no subgênero dos super-heróis nos quadrinhos. Depois de ler o livro de Jones, fica fácil de entender um romance como As Incríveis Aventuras de Cavalier & Clay (2000), de Michael Chabon, que explora a trajetória dos judeus-americanos no campo dos quadrinhos. Eu ainda adquiri, anos mais tarde em uma liquidação na loja Terramédia (hoje, Ominiverse), Man of Two Worlds: My Life in Science Fiction and Comics, de Julius Schwartz com Brian M. Thomsen, autobiografia de um agente literário e roteirista de quadrinhos que também atuou com Super-Homem.

Este romance gráfico de Voloj & Campi é uma biografia panorâmica, contada a partir de um artifício interessante: idoso e empobrecido, Shuster é retirado de um banco de praça por um policial na década de 1970. O tira paga a ele uma sopa num diner, e ali, depois de se apresentar como um dos criadores do Super-Homem, ele narra a própria história. Nesse ponto, o estilo da arte muda de traço e cor para mancha e cor, até o momento em que a narrativa se reencontra com o personagem novamente na década de 1970. Os avós de Shuster eram judeus russos que saíram do país fugindo dos pogroms, indo primeiro para a Holanda. Seus pais se conheceram em um hotel de Roterdã e migraram para o Canadá, e então para Cleveland, nos EUA, onde seu pai foi trabalhar como alfaiate. O primeiro contato do pequeno Joe com os quadrinhos foi com as tiras e páginas dominicais das HQs “sindicalizadas” (distribuídos a diversos periódicos país afora) que seu pai lia para ele. Campi brinda o leitor com um lindo painel em que Joe folheia os jornais que continham histórias dos Sobrinhos do Capitão e de Little Nemo in Slumberland, sua tira favorita. Joe conhece Jerry Siegel no high-school e o interesse dos dois pela ficção científica das pulp magazines e pelos quadrinhos fortalece a amizade. A obra de Voloj & Campi mostra os dois editando fanzines e colaborando com jornais locais, e criando personagens juntos, seguindo o modelo da aventura — o campo literário mais forte nas pulps. No processo, a narrativa passa pela morte do pai de Siegel, um comerciante, de ataque cardíaco ao sofrer um assalto a mão armada. E também pelo instante em que Siegel antecipa o surgimento das revistas em quadrinhos ao produzir o projeto do que chamou de “revista pulp em quadrinhos” (na época, as HQs apareciam como anexos em revistas pulp normais), mas que não conseguiu realizar antes do lançamento de Detective Dan, a primeira revista em quadrinhos. A dupla muda seu foco para oferecer material à editora dessa publicação, controlada pelo escritor pulp Major Malcolm Wheeler-Nicholson. O Super-Homem, enquanto isso, já vinha sendo gestado na cabeça de Siegel — primeiro como um vilão de FC pulp no fanzine dos dois, Ficção Científica: A Vanguarda da Civilização Futura (pelo qual Siegel levou um puxão de orelha da sua professora de inglês). Siegel chegou a pensar que o Super-Homem viria do futuro, mas achou que um alienígena chamaria mais a atenção. O personagem só sairia na revista Action Comics em 1938, depois que o Major já havia passado adiante a sua editora, fazendo a dupla de criadores cair nas mãos de empresários de caráter duvidoso como o ex-pornógrafo Harry Donenfeld e Julius Liebowitz. Os pilantras compraram não apenas os direitos de reprodução do personagem, mas o próprio personagem, por US$ 412,00. Por mais que fosse uma graninha em 1938, toda vez que a dupla via um programa de rádio, um seriado ou um anúncio empregando o herói, ele percebiam que tinham sido engabelados. A luta por uma compensação justa pelo personagem ocupa grande parte do romance gráfico, tudo narrado com grande habilidade e brilho artístico que tornam este livro uma joia para o fã de quadrinhos e também desse momento pujante do capitalismo literário da era pulp americana. Há detalhes interessantes como o interesse romântico de Joe pela modelo Jolan/Joanne que posou para ele mas que acabou se casando com o amigo; o fato de ninguém menos que Stan Lee ter escrito contos de Super-Homem para que as revistas tivessem um benefício dos correios americanos; a vergonha que Joe sentia por ter desenhado fetiche e bondage para revistinhas do submundo da pornografia, nos tempos das vacas magras; e a possível morte violenta de Donenfeld (que tinha conexões com a máfia).

Quando digo que esta é uma biografia panorâmica, em parte é por detalhes que falam também da época e de como os quadrinhos sofreram com campanhas moralizadoras, com a caça às bruxas do macartismo e também da situação dos judeus na sociedade americana. Esta é a história de dois nerds que abriram um campo que hoje é bilionário — o dos super-heróis — e que criaram um dos personagens mais icônicos da cultura popular. Meu fascínio pelo contínuo pulp da FC e dos quadrinhos é igualado e recompensado por Voloj & Campi quando eles incluem notas ilustradas no final do livro, uma leitura tão deliciosa quanto a HQ propriamente dita. Apesar da tradutora ter sido presa de falsos cognatos aqui e ali, e da narrativa não ter mencionado algumas fontes conhecidas na inspiração para o herói, recomendo o livro com grande ênfase e alegria. Muito grato à Aleph, que tem abordado muitos produtos cult como Watchmen e a FC clássica, e que acertou na mosca com A História de Joe Shuster.

—Roberto Causo

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Leituras de Agosto de 2017

Este foi um mês de novas leituras de fantasia e de ficção científica, mas com espaço para não-ficção, quadrinhos e ficção literária.

 

Arte de capa de Kevin Murphy.

Adiamante, de L. E. Modesitt, Jr. Nova York: Tor Books,1998 [1996], 312 páginas. Capa de Kevin Murphy. Paperback. Assim como Jack McDevitt, comentado mês passado, Modesitt é um escritor que se repete muito mas sempre entrega um trabalho consistente, despretensioso e, muitas vezes, instigante. É o caso deste Adiamante, obra de impacto que se expressa como exercício de filosofia moral numa ficção científica de futuro distante. Nesse futuro, a humanidade se dividiu em três grupos: os demi[gods], os cyb[orgs] e os draffs. Num passado indeterminado, o cybs se insurgiram e foram expulsos da Terra. No tempo do romance, eles retornam com uma esquadra de naves superpoderosas feitas com a substância mais resistente que a tecnologia humana é capaz de produzir: o “adiamante” do título.

Uma das características do autor é narrar na primeira e na terceira pessoas. Aqui o livro acompanha, na maior parte, a narrativa do protagonista, Ecktor. Ele é o Coordenador planetário da Velha Terra, indicado quando os cybs ressurgem. A sociedade que representa e fundada no respeito ao indivíduo, no aproveitamento energético (até a classe dirigente tem que prestar serviços à comunidade, quando consome energia com caprichos) e na recuperação ambiental. Ecologia é um tema de Modesitt — o primeiro livro dele que li foi um ecothrillerThe Green Progression, escrito com Bruce Scott Levinson. Em Adiamante, a humanidade, escolada em guerras e poluição em escala planetária, aprendeu as lições da história. Os demis adotaram um código estrito de conduta ética e integraram a própria ideia da resistência pacífica aos seus genes — exatamente dentro da conclusão de Reinhold Niebuhr em Moral Man and Immoral Society (1930), que discuti aqui em julho. A maior parte do intenso suspense que surge do romance vem de sabermos o tempo todo que os demis têm poder para destruir os cybs (Ecktor tem um pedaço de adiamante como peso de papel), mas evitam fazê-lo até que as intenções dos invasores, por seus próprios atos, fiquem claras. A única coisa que eles jamais farão, é um ataque preventivo, coisa que virou doutrina oficial americana durante a administração George W. Bush.

“Poder sem moralidade é o desastre; moralidade sem poder é inútil.” —L. E. Modesitt, Jr. Adiamante.

Além disso, a impossibilidade de comunicação quando os sistemas de valores são opostos também é marcada ao longo da narrativa, com Ecktor padecendo de um isolamento moral em relação aos cybs, que é partilhado por toda a coletividade de demis. Esse grupo escolhe o sacrifício de grande dos seus quadros, para que não cometessem um ato que iria corromper e destruir as bases da sua sociedade — eles têm sua própria versão da “psico-história” de Asimov, com previsões de alta percentagem indicando isso. Uma escolha tão singular, que só encontrei exemplos semelhantes em duas outras ocasiões, nas minhas leituras: na novela “Zanzalá” (1938), do brasileiro Afonso Schmidt (mas em tom farsesco), e no romance Pastwatch: The Redemption of Cristopher Columbus (1996), de Orson Scott Card. A FC costumava ser assim… romances compactos que dramatizavam com engenhosidade conceitos éticos e sociais caros à civilização. Esta foi uma das minhas melhores leituras neste ano, até aqui. A capa de Kevin Murphy é simples mas busca o tipo de textura de materiais que o mestre inglês Jim Burns costuma realizar.

“Apesar de todas as nossas redes, de todas as nossas comunicações, os humanos — cybs ou demis — são alienígenas, alienígenas uns para os outros, e para o universo, e é por isso que devemos ter confiança.” —L. E. Modesitt, Jr. Adiamante.

 

Arte de capa de Paola Giometti.

O Chamado dos Bisões, de Paola Giometti. São Paulo: Andross Editora, 2017, 144 páginas. Capa e ilustrações internas de Paola Giometti. Brochura. Ramo talvez recursivo da fantasia — hipótese enfatizada pela série Redwall do escritor inglês Brian Jacques (1939-2011) —, a fábula de animais é um pouco rara no Brasil. Eu gosto de bichos, e desse tipo de fábula desde que li uma num livro da Disney, quando era menino. Por sorte, tenho feito a preparação de texto da série de fábulas sobre animais norte-americanos escrita por Paola Giometti, e que inclui O Destino do Lobo (2014) e O Código das Águias (2016). Todos têm a mesma moldura: um jovem que viaja da cidade para zonas mais ermas, florestas e montanhas, onde ouve fábulas de animais importantes para a cultura nativo-americana, pela boca do seu sábio bisavô. O bicho deste terceiro volume é o bisão americano, e o tema é a migração como rito de passagem na formação de uma pequena bisonte que se separou da mãe e do rebanho. Quem conhece os volumes anteriores é premiado com aparições de personagens que viveram as aventuras precedentes. Todos os livros da trilogia tratam dos atritos muito ambíguos entre os animais e os seres humanos. Há um leve toque místico, no culto aos antepassados, pelas várias espécies. Parte da diversão desse tipo de fábula é como os animais são humanizados — aqui, com a inclusão de atitudes e modos de falar dos jovens. A função moralizante da fábula é explicitada pelas reações do jovem que ouve a história contada pelo avô. Com este livro, lançado em 12 de agosto na Biblioteca Viriato Corrêa, a série Fábulas da Terra se completa como uma trilogia. O lançamento contou com convidados muito especiais, duas corujas e uma águia-chilena mantidas pelo grupo de criadores Turma do Gavião, sendo que a águia Ragnar e a coruja Sansão aparecem como personagens no livro. (Minha esposa Finisia Fideli adorou ver os bichos e conversar com os criadores.) Giometti, que escreve com graça e vivacidade, e ilustra os próprios livros, pretende escrever agora narrativas de realismo mágico.

 

Arte de capa de Steve Stone

Dragon Haven: Volume Two of the Rain Wilds Trilogy, de Robin Hobb. Nova York: EOS, 1.ª edição, 2010, 508 páginas. Capa de Steve Stone. HardcoverEste é o segundo livro da tetralogia Rain Wild Chronicles, de Robin Hobb. E parte de uma longa série muito maior, iniciada com a Trilogia Farseer, conhecida no Brasil como Trilogia do Assassino. Hobb é o pseudônimo de Megan Lindholm, que apareceu na Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Científica com esse nome. Hobb/Lindholm é uma das melhores autoras de fantasia que conheço. Seu vasto mundo secundário é complexo e humano. A Trilogia Liveship Traders termina com o retorno de um dragão aos céus desse mundo. Um número de serpentes marinhas consegue se instalar no Rio Rain Wilds, onde criam casulos que vão chocar os dragões. Na Trilogia Tawny Man, dois personagens marcantes da Trilogia Farseer, Fitz e o Bobo, integram expedição a terras distantes e geladas, em busca de um dragão congelado. O Bobo diz que o seu objetivo na vida é trazer os dragões de volta ao mundo — uma loucura, na visão de Fitz. Para quê trazer feras destruidoras, famintas e arrogantes de volta? Para equilibrar a arrogância humana. Um projeto que tem a minha simpatia, e é a razão não religiosa mais abstrata possível para o preservacionismo ambiental.

No primeiro livro das Rain Wilds Chronicles, Dragon Keeper (2010), um grupo de dragões mal-formados emerge dos casulos. Eles não se viram sozinhos, e o Conselho de Comerciantes da cidade de Trehaug não quer pagar pelo seu sustento. Para se livrar dos dragões, montam uma expedição à cidade perdida de Kelsingra, em algum lugar subindo o rio. Jovens indesejados de Trehaug são convertidos em tratadores de dragões, e enviados com os bichos. A garota Thymara é um deles, e a expedição conta ainda com a aristocrata de Bingtown (a cidade da Trilogia Liveship Traders) Alise Kincarron, uma erudita no estudo dos dragões, que vai acompanhada de seu amigo de infância Sedric Meldar — o amante secreto do marido de Alise, Hest Finbok. Dragon Haven discute o quanto o secretismo em torno da homossexualidade leva a comportamentos esquivos: Sedric deseja comercializar partes de dragão, de alto valor de junto aos salcedeanos, uma das nações mais canalhas do mundo secundário criado por Hobb. Seu objetivo é enriquecer o bastante para viver com Hest sem precisar esconder o relacionamento. O livro também enfoca o sexo e os custos da gravidez adolescente, considerando que, por viverem no Rio Rain Wilds, os tratadores sofrem de deformidades que limitam sua chances de reprodução. Nem sempre eles entendem isso, e Thymara, em particular, é pressionada a escolher um parceiro para evitar atritos entre os rapazes. De personalidade forte, ela resiste. Os percalços do enredo incluem uma cabeça d’água que causa baixas na expedição; as ideias utópicas do tratador Greft, de criar sua própria sociedade livre em Kelsingra, fazendo uma guinada na direção de O Senhor das Moscas, de William Golding; o conflito entre os expedicionários, fomentado por traficantes de partes de dragões, infiltrados entre eles; e a maturação violenta dos próprios dragões, que começam a transformar fisicamente seus tratadores, como fizeram no passado na civilização desaparecida dos elderlings. Hobb é mestre em encontrar o timing preciso entre os diversos pontos do enredo, e quando o seu discurso sobre sexo e gravidez adolescente parece estar enchendo a paciência, ela põe em cena os mais terríveis argumentos. Sua sensibilidade a faz também relativizar o papel desagregador de Greft, e o retrato da homossexualidade que vinha construindo — achando um namorado honesto e dedicado para Sedric. Os elementos do gênero romance, combinados com a fantasia, estão mais claros no relacionamento apimentado de Alise com Leftrin, capitão da barcaça que acompanha a expedição. Um homem rude, mas que a aprecia mais do que o arrogante Hest jamais o faria.

Os dragões são um interesse à parte, na sua arrogância e pomposidade, e na interação com os jovens tratadores. Ao contrário daqueles de Game of Thrones, eles falam e também se comunicam telepaticamente. A ilustração de capa de Steve Stone tem uma bonita tonalidade, mas qualquer fã de fantasia vai dizer que seus dragões são um completo engano.

 

Arte de capa de Carlos Chagas.

Céu Vermelho, de Júlio Emílio Braz. Rio de Janeiro: Editora Ao Livro Técnico, 1995, 56 páginas. Capa e ilustrações internas de Carlos Chagas. O ano de 1995 foi aquele em que as coleções Novos Mundos da Ficção Científica (Francisco Alves) e Ficção Científica GRD (Edições GRD) deixaram de circular. A publicação de FC no Brasil, que já era esporádica, minguou ainda mais — situação que só se reverteu oito ou dez anos depois. A área juvenil sempre foi mais rica, mas nela também a FC tinha uma presença incerta. O colega Júlio Emílio Braz, um dos poucos afro-brasileiros trabalhando no campo da FC, foi roteirista de quadrinhos e escritor de livros de western para a Editora Escala, sob pseudônimo e vendidos em banca de jornal. Quando se instalou no campo infantojuvenil, ganhou fama e foi publicado no exterior. Imagino o quanto este Céu Vermelho — que encontrei outro dia numa arrumação — não representa um momento de transição do Júlio Emílio. Tem muito de faroeste, com perseguição a ladrões de cavalos, circo de horrores, duelo em saloom e confronto final entre herói e vilão. A palavra “xerife” conseguiu se enfiar no texto, inclusive…

Mas é ficção científica. Do tipo ufológica com direito a OVNIs e “ufonautas tipo 1”: um alienígena sinistrado na Terra acaba se integrando à família do militar que o abriga. Isso, num canto do Sul do Brasil chamado Cerros Bravos, na segunda metade do século 19. Lembra aí “Um Moço Muito Branco” (1962), de Guimarães Rosa, passado em Minas Gerais em 1872, com um alien abandonado acidentalmente nos rincões do lugarejo Serro Frio… O E.T. de Céu Vermelho conquista as crianças do lugar, manipulando a matéria e curando um guri com poliomielite, mesmo enquanto o padre local (que tem um não explicado neto) quer organizar um grupo de linchamento contra ele. Mas é um bando de bandoleiros que o ameaça de fato, capturando-o para a dona de um mafuá de passagem pela região. Li outros livros juvenis de Júlio Emílio (que li quando meu filho estudava no Colégio Notre Dame aqui perto de casa, onde conhecemos o escritor numa feira de livros dentro da escola). Neles, nota-se que o autor não é fã de finais felizes. Este não é exceção. O conto de Rosa tem no “estilo roseano” a marca maior, a novela de Júlio Emílio, também ela com um léxico rico, talvez devedor de Erico Verissimo, é marcada pelos elementos de aventura que ele combinou.

A Editora Ao Livro Técnico é responsável pela publicação do primeiro livro de arte de FC lançado no Brasil, Naves Espaciais: 2000 a 2100. Sua edição de Céu Vermelho deixou a desejar na revisão, mas a capa e as cinco ilustrações internas (em preto e branco) de Carlos Chagas são um plus. Chagas está lá com Manuel Victor como um dos grandes da ilustração de livros para crianças no Brasil, e embora aqui ele não explore muito os elementos de FC, suas artes remetem à pintura brasileira dos tipos regionais (tipo José de Ferraz Almeida Junior), reforçando a mistura sugestiva que o escritor criou. Há pelo menos mais um livro de FC juvenil pela editora, Os Semeadores da Via Láctea, de Paulo Rangel. Também com arte de Chagas.

 

Romance com Pessoas: A Imaginação em Machado de Assis, de José Luiz Passos. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014 [2007], 400 páginas. Brochura. Ainda envolvido com Machado de Assis, desta vez peguei um estudo a respeito dele, pelo professor universitário e romancista José Luiz Passos. Seu O Sonâmbulo Amador ganhou o Grande Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2013. O foco deste estudo está em como Machado busca na psicologia dos seus protagonistas a exploração da moralidade e das máscaras que usamos para transitar dentro da sociedade. Passos afirma que o nível de penetração psicológica que Machado alcançou seria uma contribuição dele para o romance latino-americano (embora não forneça contra-exemplos).

Um dado interessante é o quanto Machado teria bebido de William Shakespeare. Isso parece óbvio para quem conhece seus contos e romances, mas Passos foi além e fez um levantamento das ocorrências de Shakespeare, menções e citações, na obra toda de Machado. Há uma listagem no final do livro, com ocorrências majoritárias de peças como Otelo e Hamlet. Muito menos das que tratam da história da Inglaterra, e menos ainda, não pude deixar de notar, daquelas com elementos fantásticos como A Tempestade e Sonho de uma Noite de Verão. A tradução de um romance de Vitor Hugo também pode ter influenciado Machado na adoção das suas estratégias literárias mais características, assim como a obra do russo Ivan Turgueniev. Passos revela que o interesse de Machado pelo realismo teria surgido da sua apreciação do teatro da época, já que foi crítico de teatro e já que o realismo chegou antes às artes brasileiras via teatro, e não pela prosa literária. Aí também tem-se uma pista do privilégio do adultério como tema na sua obra, já que foi um assunto muito visitado por esse teatro pioneiro. O livro tem um estilo acessível e apresenta capítulos relativamente curtos, escritos com leveza e uma certa autonomia. Assim, os argumentos de um reforçam os de outros, mas sem que haja uma lógica de tese universitária amarrando-os — o que é muito positivo. O foco está nos romances de Machado, embora o autor também mencione alguns contos e novelas. Cita muito Antonio Candido e Roberto Schwarz, como seria de se esperar, mas também alguns estrangeiros, e trata ainda da polêmica entre Machado e um dos seus primeiros críticos, Sílvio Romero. Em tudo, expressa a admiração pelo modo como Machado de Assis deu a seus personagens o caráter de pessoas.

“Será que ganhamos algo de fundamental quando consideramos os protagonistas de um romance pessoas, e não meras instanciações simbólicas de qualidades mais abstratas?” —José Luiz Passos. Romance com Pessoas: A Imaginação em Machado de Assis.

 

Dicionário de Pequenas Solidões, de Ronaldo Cagiano. Rio de Janeiro: Língua Geral, Coleção Ponta-de-Lança, 2006, 136 páginas. Texto de orelha de Ignácio de Loyola Brandão. Brochura.  Conheci Ronaldo Cagiano por intermédio do escritor mineiro João Batista Melo, que, como contista, às vezes explora a ficção científica e a fantasia. Quando João Batista vem a São Paulo, costumamos nos reunir os três (às vezes quatro, quando a esposa de Cagiano, a escritora Eltania André, o acompanha) para um papo. Cagiano e eu temos algumas coisas em comum: somos fãs de João Batista; costumamos reclamar muito da situação do mercado editorial; somos os dois oriundos de cidades pequenas, ele de Cataguases-MG, e eu de Sumaré-SP — duas cidades que contribuíram incidentalmente para a ficção científica. Mas ele escreve ficção literária e eu, ficção de gênero.

Alguns dos 14 contos do livro se passam em Cataguases, outros em Brasília, por onde Cagiano também passou. Um deles, “Encontros”, narra a passagem de Franz Kafka (1883-1924) por Cataguases nos idos de 1910, instigado pelo cineasta pioneiro Humberto Mauro (1897-1983) e acompanhado de Max Brod. Por isso talvez possamos classificar o conto como história alternativa… Outros contos falam das angústias da vida brasileira, focados em personalidades constrangidas por experiências de infância ou juventude, como a menina violentada em “O Abuso”, a prostituta assassinada em “Solidão”, o jovem frívolo que herda responsabilidades inesperadas com a morte do irmão em “Juízo Final”, a solidão de uma imigrante georgiana entre seus cachorros em “Pavlov”… Uma coisa que me agrada em Cagiano é o fato de ele se esquivar da prosa minimalista que veio a dominar a literatura brasileira com a Geração 90. Seu estilo é mais rico e remissivo dos momentos da literatura e da cultura brasileira que compõem sua formação como escritor, imagino que aqueles estabelecidos especialmente na década de 1970, bastante críticos da urbanização e desumanização da sociedade brasileira. Esse tipo de enfoque e a prosa literária que advém dele tendem ao mergulho psicológico e a um tom introspectivo, reflexivo, que para ser bem marcado costuma limitar a voz dos personagens ou embuti-la num discurso indireto livre. Dos 14 contos, nenhum deles apresenta situações de diálogos — o que não deixa de ser um tipo de redução… A edição da Língua Geral é muito bonita, com uma capa mais rígida do que o costumeiro, uma cinta emborrachada que a abraça (não aparece no scan acima) e apenas uma orelha, assinada por ninguém menos que Ignácio de Loyola Brandão.

“Quando você abre o livro e começa pelos contos da mulher violentada e a visita de Kafka percebe que está diante de um escritor que sabe o que fazer, sabe para onde vai, como se vai, as conduções que deve tomar … Cagiano é um autor que te prende na primeira página.” —Ignácio de Loyola Brandão.

 

Half Life, de Hal Clement. Nova York: Tor Books, 2000 [1999]. Paperback. Hal Clement (Harry Clement Stubs; 1922-2003) escreveu o clássico da ficção científica Mission of Gravity (1953), importante para a retomada da FC hard americana na década de 1970, com Larry Niven et alii. Ainda na primeira metade da década de 1990, a Editora Aleph contratou esse romance, produziu uma tradução e encomendou uma linda capa feita por Vagner Vargas. Mas o livro acabou não saindo. Assim como Mission of Gravity, este Half Life foi primeiro publicado em partes em uma revista, a Absolute Magnitude, mas como histórias interligadas — um fix-up, portanto.

A aventura se passa em um futuro em que a humanidade e a vida na Terra parecem ter seus dias contados. Uma profusão de doenças degenerativas jogou a expectativa de vida para metade da atual. As ciências exatas foram arregimentadas e militarizadas para concentrar o esforço de salvação da humanidade. Uma nave com uma tripulação de doentes terminais é enviada a Titã, a lua de Saturno. Vai em busca de traços de substâncias ou compostos pré-bióticos (constituintes químicos da vida biológica) que possam lançar luz sobre a formação da vida e, indiretamente, sobre a atual ameaça à vida na Terra. Uma FC hard baseada em microbiologia ou bioquímica, portanto (Clement foi professor da área). Há muita ironia tanto na premissa quanto no modo como o romance é narrado. O narrador onisciente salta de personagem em personagem e levantando os pontos científicos, mesmo que muito se desenvolva por meio de diálogos entre os tripulantes que, de tão doentes, não se comunicam fisicamente. Mais ainda em como as mortes dos homens e mulheres bombardeados da tripulação pontuam os passos e as descobertas da expedição, envolvendo uma substância de aparência betuminosa que corrói superfícies metálicas e trajes espaciais. Daí surge, aliás, um estranho senso de estoicismo que é uma das marcas da narrativa. As mortes e a investigação científica mantêm o suspense até o finzinho. O desfecho, ironicamente nada retumbante, sugere a descoberta de uma pista promissora em torno de enzimas perturbadas pelos metais pesados acumulados na biologia humana e animal. A verve de Clement torna Titã um mundo fascinante, e o destino que ele dá aos adoentados tripulantes é uma saudação à persistência da vontade humana. A arte de capa anônima tem Titã, os anéis de Saturno e um “código de barras genético” (atrás do título), mas não comunica muita coisa e parece indistinta e improvisada.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Chris Bachalos & Tim Towsend.

Star Wars Infinitos: O Império Contra-Ataca (Star Wars Infinities: The Empire Strikes Back), de Dave Land (texto) e Davidé Fabbri (desenho). Barueri-SP: Panini Comics, 2017, 108 páginas. Capa de Chris Bachalos & Tim Towsend. Brochura. Em abril, li o primeiro desta série Infinitos, de narrativas alternativas de Star Wars. O Império Contra-Ataca é o meu favorito dentro da franquia no cinema, e fiquei curioso com este livro de quadrinhos. Infelizmente, tanto o roteiro de Dave Land quanto a arte de Davidé Fabbri são inferiores àquelas de Star Wars Infinitos: Uma Nova Esperança, embora com uns pontos interessantes. Começa que a arte de Fabbri e a colorização de Dan Jackson puxam muito para o infantil.

A história abre com Luke Skywalker sendo morto por dois monstros da neve (e não apenas um, como no filme) no planeta Hoth. Mesmo com o pupilo mortalmente ferido, Ben Kenobi aparece e faz um apelo idiota para que ele vá ao planeta Dagobah instruir-se com Yoda. Depois da escaramuça abreviada com destroiers do Império, Han Solo vai parar em Bespin, onde, na cidade das nuvens e já reunido ao amigo Lando Calrissian, troca sopapos com o caça-prêmio Boba Fett. Quando Han finalmente chega a Dagobah, acompanhado da Princesa Leia, descobre que ela é o Skywalker que pode recolocar a força em equilíbrio. É bom ver Leia valorizada e Yoda outra vez no centro das ações (em O Retorno do Jedi ele morre de velho!), mas faltou desenvolvimento. Esta versão tem como ápice uma longa sequência em Dagobah, muito interessante por ter Yoda usando um recurso da força que eu nunca tinha visto antes: uma memory trip que faz Darth Vader rever seus crimes, desde os tempos de padawan. Tendo acesso aos seis filmes canônicos, Land também convoca para essa sequência Kenobi, Mace Windu e Qui-Gon Jinn, que esfregam sal nas feridas morais de Anakin Skywalker. Ao contrário de Star Wars Infinitos: Uma Nova Esperança, esta versão alternativa de O Império Contra-Ataca deixa o imperador fora da ação — e derradeiramente não faz jus ao ótimo filme de Irvin Kershner. (Que, aliás, não precisa de versões alternativas.) Estranhamente, a Panini deixou de dar crédito aos artistas das outras três capas da edição em partes, que aparecem no miolo do livro.

 

Star Wars: Império Despedaçado (Star Wars: Shattered Empire), de Greg Rucka (texto) e Marco Checchetto, Angel Unzueta e Emilio Laiso (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2016, 108 páginas. Capa de Phil Noto. Capa dura. Este livro surgiu ano passado com o selo Jornada para Star Wars: O Despertar da Força; ou seja, vem pavimentar o terreno entre o episódio VI, O Retorno de Jedi, e o VII. Devo dizer antes de mais nada que a arte do italiano Marco Checchetto chama muito a atenção. Ele também está na revista Star Wars nas bancas, edições 016, 017, 018 e 019, com uma aventura de Obi-Wan Kenobi & Anakin Skywalker num mundo meio steampunk. Pena que Checchetto não pôde desenhar o livro inteiro, mesmo porque a oscilação da arte incomoda.

A história começa na Batalha de Endor, quando Luke Skywalker foge da Estrela da Morte II com o seu moribundo pai. Um caça asa-A dos rebeldes intercepta o shuttle Tyridium que Luke pilota, e o poupa quando ele se identifica, passando a escoltá-lo até a lua de Endor. Quem pilota o caça é uma jovem morena chamada Shara Bey. O leitor passa a segui-la numa sucessão de episódios em que ela acompanha Han Solo, Leia Organa e Luke Skywalker em missões do tipo limpeza ou mop-up, enquanto o Império balança com a notícia do fim de Palpatine. A sequência inicial é bem feita, e não apenas as naves são perfeitamente reproduzidas, como traz as marcas da estrutura narrativa vista os filmes, com muitas comunicações em off e naves se cruzando no espaço. Checchetto também é um bom fisionomista, captando bem as caras dos heróis principais, mesmo enquanto mantém seu estilo. Shara, em especial, é encantadora por ter um rosto jovem de expressão ao mesmo tempo alerta e melancólica. Durante a comemoração triunfal em Endor, ela dá uma escapada com o marido, parte de uma tropa de operações especiais de infantaria. Quando Han chama essa grupo de combate, ela vai junto como piloto. Ao saber que o nome do marido é Kes Dameron, fica evidente que ela é mãe de Poe Dameron. A principal linha trata de como Shara, Leia e uma terceira garota salvam um mundo importante para o passado tanto de Leia quanto de Anakin Skywalker, de uma nova arma destruidora de planetas — via manipulação meteorológica. Esse segmento é ilustrado por outro artista, o espanhol Ángel Unzueta, que carece do charme de Checchetto. Numa espécie de epílogo, Shara reencontra Luke, pilotando para ele numa missão para recuperar duas mudas de uma árvore que antes existira dentro do templo jedi em Corusant (deve constar de algum romance ou HQ do universo expandido, imagino). Muitas aventuras, para uma moça que queria mais que tudo liquidar sua fatura com a Aliança Rebelde e se recolher em um planeta pacífico, com o marido e o filho.

A narrativa de Greg Rucka me pareceu mais complexa do que costumamos ver nessas HQs de Star Wars, mais episódica também. Mas a alternância de artistas acaba prejudicando o fluir do roteiro. A galeria de capas alternativas das revistas que forneceram o material para o livro inclui uma arte do brasileiro Mike Deodato. Essa que aparece na capa da versão em livro, tipo foto de família e  sem muito brilho, é de Phil Noto e não casa bem com o título.

 

Outras Leituras

O ícone do tumbler Brude’s World

Brude’s World, um tumblr de ilustrações. Eu visito muitos tumblrs de ilustração e imagem, em geral meio que sem sistema e normalmente abrindo direto o arquivo e escolhendo de lá as imagens que quero baixar. Mas recentemente encontrei este Brude’s World que me impressionou com uma curadoria sólida que bate bem com o meu gosto: lida com ficção científica, fantasia e horror na literatura, cinema e quadrinhos e a presenta uma boa continuidade entre esse gêneros e campos. Também entre o ontem e o hoje, recuando até imagens da antiguidade clássica e da ilustração e pintura do século 19 (incluindo os pintores pré-rafaelitas), com alguma coisa de erótico aqui e ali. Acho que tem uma das melhores curadorias dos tumblrs que estão por aí. Quem quer que seja o dono ou donos do tumblr, ele(s) conhece(m) a história desses gêneros e sabe(m) quem são os grandes nomes e o que é um desenho e uma arte-final de qualidade. Tem material lá de Frank Frazetta, Virgil Finlay, Frank R. Paul, Ed Emshwiller, Chesley Bonestell, Jack Kirby, Edward Burne-Jones, J. Allen St. John, N. C. Wyeth, Gustave Doré, Barry Windsor-Smith, Bernie Wrightson, Boris Vallejo, Jeffrey Catherine Jones, Drew Struzan, Moebius e Arthur Rackham. De vez em quando aparece algum brasileiro como Henrique Alvim Corrêa, Benício ou Mike Deodato. As postagens são frequentes e incluem ocasionalmente gifs e vídeos, e muitos daqueles posters alternativos — um tipo de arte de fã ou cartão de visitas de artistas ou estúdios, que virou moda nos tumblrs. Seu slogan é: “Poder, paixão, pin-ups e posters. Quadrinhos, belezuras, criaturas e calafrios.”

 

O banner com o logotipo do site Pulp International

Pulp International. Este é um site baseado em San Jose City, nas Filipinas, e quando diz que é internacional, é internacional mesmo. Traz muito material americano, mas também inglês, alemão, francês, australiano, japonês, mexicano, espanhol, indiano e até brasileiro — como esta postagem sobre a série ZZ7 de ficção de espionagem protagonizada por Brigitte Montfort e ilustrada pelo rei das pin-ups brasileiras, Benício. A definição de pulp que o site adota também é muito ampla, compreendendo a literatura e a indústria editorial centrada nela, e revistas pulp de todo tipo, não apenas de ficção mas de crime da vida real, pornografia (soft, na maior parte), cobertura de Hollywood, e os filmes, séries de TV e quadrinhos derivados. As postagens se agrupam em dez por páginas, o motor de busca funciona bem e os comentários muitas vezes são extensos e interessantes. A maior parte do conteúdo é vintage, mas às vezes aparece alguma postagem sobre algo moderno ou contemporâneo. Em agosto, estive lá baixando uma quantidade de capas de paperbacks de ficção de crime hardboiled com ilustrações de automóveis (vá entender…). Fiquem avisados: nesse site às vezes a gente tropeça em alguma coisa realmente de mau gosto. Mas pulp também é isso, não é verdade?

Roberto Causo

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