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Leituras de Junho de 2020

Neste mês, mais um mergulho na space opera, na literatura de ficção científica e nos quadrinhos, mas com espaço para uma FC ufológica brasileira muito especial.

 

Arte de capa de Teo Adorno.

Brasa 2000 e Mais Ficção Científica, de Roberto de Sousa Causo. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, junho de 2020, 204 páginas. Texto de orelha de Marcello Simão Branco. Arte de capa de Teo Adorno. Brochura. Graças ao empenho de Luiz Bras, coordenador da Coleção Futuro Infinito, e de Eduardo Lacerda, editor da Editora Patuá de São Paulo, foram distribuídos os primeiros exemplares daquilo que é estritamente o meu segundo livro de contos, àqueles que fizeram a compra antecipada na loja da editora. Faço esse agradecimento porque a publicação do livro acabou acontecendo em meio à pandemia da covid-19, que trouxe os problemas e distrações que todos podemos imaginar. Digo que é meu segundo livro de contos porque o primeiro foi A Dança das Sombras (1999), publicado em Portugal na saudosa coleção Caminho Ficção Científica, apresentando onze histórias e prefácio do escritor português de FC e fantástico António de Macedo. Meus outros livros de contos — A Sombra dos Homens (2004) e Shiroma, Matadora Ciborgue (2015) — reúnem histórias interligadas e podem ser lidos como romances fix-up, embora eu não faça questão.

O novo livro traz onze histórias e é dividido em quatro seções: “Aqui, Agora e Futuro Próximo”, “Tupinipunk”, “Steampunk” e “Space Opera”. A primeira tem 5 histórias, a segunda 3, a terceira 2 e a última, apenas uma — a noveleta das Lições do Matador, “Tengu e os Assassinos”. A seção de tupinipunk contém toda a minha produção de “cyberpunk tupiniquim”: “Vale-Tudo”, “Para Viver na Barriga do Monstro” e “O Cangaceiro Jedi”. Na primeira seção estão algumas histórias bastante republicadas: “A Mulher Mais Bela do Mundo” e “Brasa 2000”, este segundo uma história de guerra futura às vezes também associada ao cyberpunk, que já apareceu em duas antologias internacionais representativas da ficção científica latino-americana — daí também estar no título da minha coletânea.

 

Dune, de Frank Herbert. Norwalk, Connecticut: The Easton Press, The Masterpieces of Science Fiction, 1987 [1964], 520 páginas. Ilustrações internas de John Schoenherr. Encadernação especial. Existem duas edições recentes deste livro pela Editora Aleph, a segunda em capa dura com arte de Marc Simonetti e ambas com elogiada tradução de Maria do Carmo Zanini. Reli o romance porque desejava ter contato com esta obra-prima da ficção científica no original em inglês. A edição da Easton também traz parte das fabulosas ilustrações, coloridas e em preto e branco, feitas por John Schoenherr (1935-2010) para a The Illustrated Dune (1978), com um caráter ao mesmo tempo monumental, exótico e sombrio. Schoenherr ainda deve ser o artista mais associado a esse romance de Herbert.

Primeiro serializado nas páginas da revista Analog em 1964, Duna é uma mistura singular de space opera e planetary romance. É ambientado em um futuro distante em que a humanidade se espalhou pela galáxia, e, depois de uma revolta das máquinas, adquiriu cores medievais. A estrutura de poder imperial é dividida entre o imperador e os seus duques, que controlam planetas e suas populações e economias. O elemento de coesão entre essas forças é o voo mais rápido que a luz controlado por uma liga de pilotos, que se apoia no consumo da “especiaria”. Esta é uma droga que também possui o poder de atrasar o envelhecimento, minerada diretamente das areias do planeta desértico Arrakis. Quem controlar o fluxo da especiaria, controla efetivamente a base de poder do império galáctico. Uma manobra arquitetada pelo Imperador e pelo Barão Harkonnen tenta enredar o Duque Leto Atreides, famoso por ser um homem justo e popular entre as outras Casas. A aventura da Casa Atreides em Arrakis é marcada pelo choque cultural e pela descrição do exótico ambiente do planeta desértico. O herói de fato é o filho bastardo do duque, Paul Atreides, que, após uma série de peripécias de capa e espada, traições e fugas, se vê sozinho com a mãe Jessica, fundo nos sertões desse mundo. Ali, travam contato com os fremen, os duros e independentes nativos do lugar.

Paul é o ápice de um processo de seleção artificial secreto, procedente de uma ordem místico-científico-religiosa aderida à aristocracia imperial: a ordem das Bene Gesserit. O objetivo é produzir um ser capaz de conter em sua mente uma consciência racial de passado, presente e futuro — ou seja, alguém capaz de prever o futuro e conter um largo conhecimento e experiência acumulados. Por uma espécie de acidente sentimental de Jessica, Paul se torna essa criatura, o Kwisatz Haderach. Está fora das manipulações das Bene Gesserit, embora se apoie em uma mitologia semeada entre os fremen gerações antes. Ele mesmo é, portanto, um grande manipulador, conduzindo as coisas de modo a triunfar sobre forças que não possuem todas as informações e perspectivas que ele controla. Em tudo, há a grande sombra de um determinismo racial. Ao reler o romance, também me pareceu sentir nele a sombra da série Fundação (1942-1950), já que o banimento de computadores e robôs, instaurado depois da Guerra das Máquinas, funciona como uma autolimitação estruturante, como o esquecimento da energia atômica na série de Isaac Asimov.

Para desenvolver a narrativa, Herbert apoiou-se brilhantemente em análise (um personagem imaginando o que outros, aliados e antagonistas, farão ou pensarão) e cálculo (o personagem imaginando o que ele mesmo deve ou precisa fazer), o seu narrador onisciente saltando de personagem e personagem em um efeito que amplia a sensação de complexidade e profundidade do romance. Epígrafes ficcionais de textos de história do império galáctico ajudam a passar a impressão de “universo expandido”, vasto entroncamento de fatores sincréticos arraigados — algo que o glossário no final do volume também faz. Em tudo, a textura e a fluência, o suspense e a caracterização dos personagens são conduzido com enorme desenvoltura e habilidade, produzindo uma textura marcante para a space opera. Ao invés de uma introdução por um especialista, como costumam ser as edições da série The Masterpieces of Science Fiction, esta traz uma série de depoimentos de grandes nomes da FC, por ocasião da morte de Herbert em 1986. São eles: Poul Anderson, Isaac Asimov, Ben Bova, Ray Bradbury, Charles N. Brown (o fundador da revista Locus), F. M. Busby, Harlan Ellison, Philip José Farmer, James Gunn, Joe Haldeman, David G. Hartwell (editor e pesquisador), Peter Israel, Willis E. McNelly, Frederik Pohl e Jack Vance.

 

Arte de capa de Chris McGrath.

The Battle for Commitment Planet: Helfort’s War: Book IV, de Graham Sharp Paul. Nova York: Del Rey, 2010, 374 páginas. Arte de capa de Chris McGrath. Paperback. Admito sem qualquer problema ter comprado este romance de space opera militar pela capa, com arte do ilustrador hiper-realista Chris McGrath. Começando a leitura, achei o texto meio travado e enrijecido, e o pus de lado. É curioso que, retomando agora, a impressão negativa inicial não foi tão forte. Talvez ela tenha surgido mais do fato de este ser o quarto livro de uma série, sem muita informação sobre o que veio antes.

O herói é o Tenente Michael Helfort, protagonista da série Helfort’s War. O livro o encontra em uma tremenda sinuca: sua namorada, a também militar Anna Cheung, foi capturada pela tirânica ditadura teocrática (muito em voga na space opera militar depois dos ataques de 11 de Setembro de 2001) dos Mundos Hammer. Se Helfort não se entregar, ela será estuprada por um bando de soldados e assassinada. Daí se vê que, nos volumes anteriores, o herói deve ter incomodado muito o inimigo. A sua solução é incomum: ele convence seus companheiros a se amotinarem e a levar um par de veículos de assalto de tecnologia superior ao planeta Commitment, sede dos Mundos Hammer. O plano é entregar os veículos aos guerrilheiros que tentam derrubar o governo, e alistar as suas tropas na mesma luta. O autor é convincente na descrição do planejamento e execução do plano. É claro, as verdadeiras complicações estão nas ações em Commitment, e quando o livro as aborda, ele passa a apresentar pouco além de ação tática contínua, dentro de uma guerrilha high tech — o que não deixa de cativar e estimular, certamente.

Graham Sharp Paul nasceu no Sri Lanka e serviu na Marinha Real Britânica como oficial e mergulhador de combate, chegando a tenente comandante (o equivalente a capitão de fragata ou tenente coronel), transferindo-se depois para a marinha da Austrália. Estudou em Cambridge. Certamente, sabe do que fala, em termos militares e tecnológicos, e sua escolha de personagens expressa algo do ambiente multicultural em que cresceu.

 

Arte de capa de Marc Simonetti.

Messias de Duna (Dune Messiah), de Frank Herbert. São Paulo: Editora Aleph, 2017 [1969], 270 páginas. Tradução de Maria do Carmo Zanini. Arte de capa de Marc Simonetti. Capa dura. A primeira sequência de Duna se afasta mais da ficção científica da Golden Age e mergulha na New Wave com uma narrativa de maior imersão psicológica e análise e reflexão sobre os processos formadores de mitologias — característica central para a New Wave americana —, já que o protagonista Paul Atreides é agora uma figura de poder tanto político quanto religioso. Este é o outro livro da série Duna que eu havia lido antes, em tradução de Jorge Luiz Calife (edição da Nova Fronteira).

No romance, Paul é o imperador da galáxia, posição conquistada no desfecho dramático de Duna. Doze anos se passaram entre um livro e o outro, e uma jihad espacial se deu, com Paul assumindo o papel de um tirano absoluto, que se compara favoravelmente a Adolf Hitler. Tudo é válido, diante da sua visão profética, darwinista social, de que suas atrocidades combatem a estagnação da humanidade. Essa visão do destino da humanidade, o “Caminho Dourado”, é a versão que Herbert dá do determinismo histórico embutido no conceito da psico-história (ainda buscando a semelhança com Fundação, de Asimov), mas expresso como determinismo biológico ou racial. Paul, o imperador, admite o esmagamento da oposição e a destruição de vários planetas — um exagero típico de space opera que meio que desfaz o discurso ecológico tão presente no primeiro romance —, embora com um traço de amargura e auto-ironia:

“— Muito bem, Stil. — Paul olhou para os rolos nas mãos de Korba, que os segurava como se quisesse deixá-los cair e sair correndo. — Números: fazendo uma estimativa conservadora, matei sessenta e um bilhões, esterilizei noventa planetas, desmoralizei completamente outros quinhentos. Eliminei os seguidores de quarenta religiões que existiam havia…” —Frank Herbert. Messias de Duna.

Muito do romance diz respeito a um presente recebido por ele da casta de engenharia genética tleilaxu: uma espécie de clone (um ghola, na lingo da série Duna) do seu amigo, Duncan Idaho, um dos homens mais leais ao seu pai, o Duque Leto Atreides, e um dos seus maiores guerreiros. Agora, retorna como um sofista zen, e as reflexões desse personagem são um dos pontos altos do romance.

O Duncan Idaho que é um ghola é um sujeito que sofre um grave isolamento moral e que passeia por uma estranha paisagem, uma interzona entre o que existia antes e que era sólido e conhecido (o planeta desértico Arrakis e a estoica sociedade fremen) e o que poderá existir no futuro (um Arrakis transformado em jardim e os fremen transformados em corte imperial). Essa interzona talvez funcione como expressão física de uma paisagem mental estranha, como na New Wave britânica. Mas é a premissa de que uma versão atualizada do tarô estaria criando um ruído que interfere com a capacidade do imperador de prever o futuro que é a ideia mais New Wave do livro.

O novo Idaho pode ou não ser um assassino colocado ao lado de Paul pelos seus criadores. Mas o que não faltam são opositores velados ao imperador, entre eles os membros da Guilda dos Pilotos e as Bene Gesserit, talvez até mesmo sua irmã, a moralmente lesada Alia. Um assassino certamente implantado em Arrakis é Scytale, um dançarino facial capaz de alterar a própria fisionomia — outra criação dos tleilaxu. As ameaças são muitas, mas o que parece mais ominoso é a degradação do herói como messias transformado em tirano. O terror é a norma, após qualquer revolução. Uma com bases religiosas parece ser a mais cruel, na concepção de Herbert. No contexto do império interestelar, o poder galáctico leva a uma corrupção de proporções galácticas. A edição da Aleph tem deslumbrante ilustração de capa de Marc Simonetti e tradução fluida e segura de Maria do Carmo Zanini.

 

Arte de capa de Fernando Pacheco.

A Luz Paralela, de Branca Maria de Paula. Belo Horizonte: Caravana Grupo Editorial, 2020 [2017], 146 páginas. Introdução de João Batista Melo. Texto de orelha de Cristina Agostinho. Arte de capa de Fernando Pacheco. Brochura. A ficção científica de tema ufológico atesta o quanto a cultura brasileira é distante da ciência formal. Nem por isso deve ser encarada como algo menor ou de possibilidades diminuídas. Ela representa bem essa realidade, o que por si só um papel válido da literatura — e com um corpus de alto nível que inclui o “Eles Herdarão a Terra” (1960), conto de Dinah Silveira de Queiroz; “O Começo do Fim” (1960), conto de André Carneiro; o inquietante “Um Moço Muito Branco” (1962), conto de João Guimarães Rosa; e “Dea Mayor Sperientiae” (1965), de Nilson D. Martello, conto curto sobre alienígenas no passado da Terra. Todos estes só na Primeira Onda da FC Brasileira (1957 a 1972). Em especial, lembramos do romance de estreia de Rubens Teixeira Scavone, O Homem que Viu o Disco Voador (1958), e várias narrativas desse autor tão literário, como “Número Transcendental” (1965), e a sua obra-prima, a noveleta O 31.º Peregrino (1993). Há ainda o delicado “O Visitante” (1977), de Marien Calixte, com sua ousadia de tratar com ternura de um tema tabu; o áspero e claustrofóbico “Engaiolado” (1998), de Cid Fernandez; e uma série de contos e noveletas de Renato A. Azevedo, iniciada em 2008 com De Roswell a Varginha.

Publicada primeiro como e-book em 2017, a novela A Luz Paralela, da escritora e fotógrafa mineira Branca Maria de Paula, vem se juntar a essa ilustre companhia. Acompanha a também fotógrafa Clarice de Assis Magon, personagem que vive em Belo Horizonte mas que vai com o companheiro Matheus, um engenheiro, passar as férias na reserva ecológica da Serra do Cipó. Esse é o locus de aparições, avistamentos, mutilação de animais e abduções que vão se infiltrando na vida de Clarice. A autora, porém, foge de um trilho único e rijo, ao longo da narrativa em tempo presente e desenvolvida em capítulos curtos. Nos capítulos iniciais, por exemplo, empresta recursos da crônica, com um narrador onisciente mencionando fatos fantásticos, distantes do nosso conhecimento e ocorridos universo afora (como as “gigantescas tempestades de água e gelo que assolaram Marte no último mês de maio”), apontando-os para o caminho da sua protagonista. Logo adiante, os capítulos regulares são pontuados por outros, em primeira pessoa e em itálico, narrando episódios do passado, do presente e do futuro, possivelmente de versões alternativas ou paralelas (hipótese reforçada pelo título)…

Ao mesmo tempo, a ufologia se infiltra na vida de Clarice também pelo rádio, pela TV, pelas conversas dos locais da Serra do Cipó (especialmente o veterinário Thiago, por quem ela sente uma estranha atração). Em BH, ela chega a frequentar a sessão pública de um místico “contatado”, possível charlatão. São os nuances da cultura ufológica, que expressa a tendência de muitos autores que buscaram a FC ufológica (Scavone, Azevedo, e mesmo o americano Martin Caidin, no seu romance Encounter Three, de1969). Mesmo aí, porém, Branca Maria de Paula evita soar didática ou indutiva — as situações e imagens da sua admirável novela são embaçadas, desfocadas, distorcidas e recompostas na sua composição, de modo a subordinar tudo à subjetividade de Clarice, personagem de rara vivacidade e encanto. O efeito derradeiro é o de um turbilhão psicológico de uma condição feminina encurralada, sitiada pela hipótese da abdução e da inseminação artificial pelos ufonautas, e pelo distanciamento do companheiro, medo da gravidez, temor do próprio desejo. Com a influência de Ray Bradbury registrada por Cristina Agostinho na orelha e por João Batista Melo na introdução, Branca Maria de Paula vai além dessa importante influência para a FC brasileira desde a década de 1960. Ela posiciona A Luz Paralela no ponto focal da FC ufológica nacional. Nela estão a feminilidade aterrorizada de O 31.° Peregrino, de Scavone; a angústia claustrofóbica de “Encurralado”, de Cid Fernandez; a ambientação de colônia de férias rural de Brasil: Aventura Interior (2016), de Eliana Machado — e em tudo, especialmente na força da sua protagonista, foi além. Uma das melhores novelas do período atual (as Terceira Onda da FC Brasileira), a par com a premiada A Telepatia São os Outros (2019), de Ana Rüsche.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Terry & Rachel Dodson.

Star Wars: Princesa Leia (Star Wars: Princess Leia), de Frank Waid (texto) e Terry & Rachel Dodson (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2017, 112 páginas. Arte de capa de Terry & Rachel Dodson. Brochura. Em mais esta investida nas lacunas existentes entre os filmes Uma Nova Esperança e O Império Contra-Ataca, recriando o universo expandido da franquia, Leia Organa é a principal personagem. A história começa com o fim da cerimônia da vitória no final do primeiro filme, com Leia tendo de lidar com sentimentos contraditórios que incluem o luto pela perda de sua família e do seu planeta, Alderaan. Ao invés de ficar em segurança com os rebeldes e curtir o luto, como recomendam os seus superiores, ela se evade para reunir seus compatriotas sobreviventes e encontrar um lar para eles. Vai acompanhada de RD-D2 e Evaan, uma piloto rebelde, alderaaniana loura e alta como uma top model.

Depois de escaparem de caças asa-X enviados para interceptá-las (com Luke Skywalker e Wedge Antilles entre os pilotos), elas conseguem uma nave maior com um contrabandista, e rumam para Sullust, onde os alderaanianos tiveram um povoamento. Leia tem a cabeça colocada a prêmio pelo império, mas algumas das dificuldades maiores da heroína são lidar com uma aristocrática líder local e com a traição inadvertida de uma jovem cuja irmã mais velha está nas fileiras imperiais. Nos episódios finais (o livro reúne o conteúdo da série Princesa Leia, números 1 ao 5), a tentativa de engrossar as fileiras dos refugiados com os colonos do planeta Espirion esbarra em preconceito racial, já que eles haviam se misturado com os locais.

Há muita ação em que Leia e Evaan têm de resolver as coisas na porrada, mas Leia ainda é uma diplomata habilidosa que fornece um contraponto moral e ético ao naturalismo que fundamenta a franquia, e que muitas vezes fica só no plano do cinismo e da violência naturalizadas — como nas aventuras de Boba Fett, por exemplo. O roteiro de Waid, sem contar com os coprotagonistas Luke, Han, C3P0 e Chewie, é habilidoso ao empregar bem os vários personagens secundários que nos são apresentados, dando a impressão de que ninguém está ali apenas como engrenagem fria para o funcionamento do enredo. Já a arte do casal Dodson tem personalidade própria, charme, graça e elegância, mas às vezes parece juvenil e cômica, e o hardware divergente do look de Star Wars. Isso não acontece nas ilustrações de capa, por isso vale um olhar mais demorado sobre elas, reproduzidas antes de cada episódio ou capítulo.

 

Arte de capa de Terry & Rachel Dodson.

Star Wars: Prisão Rebelde, de Jason Aaron & Kieron Gillen (texto) e Leinil Francis Yu (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2018, 144 páginas. Arte de capa de Terry & Rachel Dodson. Brochura. Esta aventura começa com um de prólogo protagonizado por Eneb Rey, um espião rebelde metido no planeta Coruscant, a metrópole do império já regido por Palpatine. É desenhada por Angel Unzueta, artista hábil tanto com figura humana quanto com o hardware. Pena que, como costuma acontecer com frequência, a cor digital (de Paul Mounts) meio que matou a expressividade da arte.

A sequência principal tem Leia Organa se aliando à Dra. Aphra, uma das personagens mais destacadas desse re-take do universo expandido. Aphra é uma agente do império, forçada a colaborar, relutantemente, com os rebeldes. Usando a nave de Sana, outra mulher forte, contrabandista velha conhecida de Han Solo, elas vão até Mancha Solar, uma prisão espacial em que os rebeldes encerram criminosos de guerra. Lá, elas se deparam com um ressentido e meio insano Eneb Rey, em missão de extermínio. Enquanto as garotas enfrentam situações realmente cabeludas, Luke e Han vivem situações cômicas: Han perdeu uma grana da Aliança no jogo, e precisa aceitar uma carga de nerfs (daí a fala de Leia em O Império Contra-Ataca, chamando Han de “arrebanhador de nerfs”) para recuperar uma parte e salvar colonos da fome.

A estrela aqui é o artista filipino Leinil Francis Yu, desenhista de estilo próprio, traço fino e realista e que se dá muito bem com o hardware. Assim como outro mestre hábil no design, o também filipino Jerome Opeña, ele abafa algo daquela expressividade explosiva tão própria do passado da Marvel, em favor de uma estaticidade mais característica da ilustração. O livro fecha com uma história em que, em Tatooine, um ainda jovem Obi-Wan acompanha e protege um Luke ainda garotinho e sorridente, com arte hiper-realista de Mike Mayhew.

Roberto Causo

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Leituras de Maio de 2020

Maio foi um mês de menos leituras do que eu gostaria, mas com ficção científica de boa qualidade.

 

The Counselor, de Cormac McCarthy. Londres: Picador, 2013, 184 páginas. Hardcover. Descobri Cormac McCarthy nas páginas da revista Esquire na década de 1990 (um excerto do romance A Travessia) e desde então adquiri quase todos os seus livros, faltando ler, da sua primeira fase, o romance Sutree (1979), e da última, o romance Onde os Velhos Não Têm Vez (No Country for Old Man; 2005). Este The Counselor é um script para cinema, filmado por Ridley Scott e exibido em 2013. Certamente não o primeiro roteiro de audiovisual escrito por McCarthy. Antes dele eu li The Gardener Son (1996), que foi um telefilme exibido em 1977.

O roteiro acompanha um advogado (counselor) que, para bancar um alto estilo de vida com a mulher por quem parece nutrir um amor genuíno, se envolve com o tráfico internacional de drogas. A história começa com o idílio amoroso/erótico do sujeito com sua amada, momento bem pouco característico de McCarthy. Depois disso, porém, o enredo retoma o seu normal violento e degradante. Parte da ação é tomada por uma mulher, a vilã argentina Malkina, filha da geração que viveu a violenta ditadura militar, amante do traficante Reiner. É uma femme fatale hiper-sexualizada de um jeito bizarro e que anda por aí acompanhada de dois guepardos como pets — algo que eu veria logo mais em The Peripheral (2014), de William Gibson.

Aos poucos, monta-se a intriga em que Malkina prepara um grande golpe contra o cartel das drogas, jogando a culpa nas costas do advogado. Os passos do golpe são narrados com a secura característica do autor, nos momentos de notação teatral, já que, como script, os diálogos dominam o formato. A crueldade moral aplicada ao advogado que vendeu a alma ao dinheiro das drogas parece desproporcional, também algo característico de McCarthy. Crueldade que é ancorada na realidade possível do nosso mundo que não parece ter limites para a violência e o terror que infligimos uns aos outros. Mas com a aura metafísica de uma moralidade cristã punitiva que costuma elevar os escritos de McCarthy ao terreno do quase metafísico. A linha acrescentada na capa expressa a “moral” e a tônica do projeto, ao afirmar que “a ganância é muito valorizada… mas o medo não”. O terror e a culpa, então, é o que se abate sobre o personagem. Ao mesmo tempo, é o darwinismo social brutal e amoral — igualmente, marca da postura crítica o autor — que move Malkina contra os desavisados e contra as hipocrisias do mundo civilizado, neste texto que parece estar na mesma chave temática e genérica (o formato do thriller) de Onde os Velhos Não Têm Vez:

“MALKINA      […] O caçador tem uma pureza de coração que não existe em nenhum outro lugar. Acho que ele não é definido tanto pelo que ele veio a ser quanto por tudo o que escapou de ser. Você não faz distinção do entre o que ele é e o que ele faz. E o que ele faz é matar. Nós é claro somos outra questão. Eu suspeito que somos mal ajustados ao caminho que escolhemos. Mal ajustados e mal preparados. Gostaríamos de estender um véu sobre todo esse sangue e terror. É isso o que nos trouxe a este lugar. É a nossa fraqueza de coração que fecharia os nossos olhos a tudo, mas fazendo isso o transformamos no nosso destino. Talvez você não concorde. Não sei. Mas nada é mais cruel do que um covarde, e a matança que está para vir provavelmente será além da nossa imaginação. […]” —Cormac McCarthy. The Counselor.

 

Arte de capa de Eddie Jones.

Nova, de Samuel R. Delany. Nova York: Bantam Books, 7.ª edição, junho de 1975 [agosto de 1968], 216 páginas. Arte de capa de Eddie Jones. Paperback. O afro-americano Samuel R. Delany foi um dos nomes mais vinculados ao movimento New Wave, iniciado na Inglaterra com a revista New Worlds, sob a editoria de Michael Moorcock. Recentemente foi publicado no Brasil pela Morro Branco: o seu clássico Babel 17 (1966). A space opera foi praticada por ele de modo destacado, mas numa época em que certo exotismo brincalhão e eivado de misticismo era indicado como parte do subgênero — e que vemos, com outra tônica, em Duna (1965), de Frank Herbert.

A premissa é a formação de uma tripulação de aventureiros que deve partir para um local secreto no universo, onde a explosão de uma nova teve lugar. Lá, Lorq Von Ray, o capitão da nave, aspira encontrar um material raro e de importância singular para a viagem espacial: o metal superpesado “illirion”. É um McGuffin pouco aprofundado, mas com um toque de FC hard, já que elementos superpesados fora da tabela periódica podem existir em condições especiais (a revista Scientific American Brasil publicou um artigo a respeito, na edição de maio de 2018). No caso do romance, essas condições são as de temperatura e pressão de uma estrela que explode. Todos os candidatos a tripulantes são estranhos: o músico cigano Pontichos “Camundongo” Provechi; o aspirante a romancista (uma arte extinta no do ano 3172) Katin Crawford, que funciona como uma versão do Ishmael de Moby Dick; um casal que inclui uma leitora de tarô; e os gêmeos africanos Lynceos & Idas, um deles albino — o que aponta, simbolicamente, para um futuro com um outro quadro de política racial. O motivo do tarô também aparece com relevo em outras space operas, como o romance de Herbert Messias de Duna (1969), e a série de quadrinhos de Alexandro Jodorowsky, O Incal (1980-2014). A leitura do tarô antes da grande missão de Von Ray tem tons ominosos, e reforça a aura mitológica de vários momentos. Isso é algo muito próprio da New Wave americana, à qual Delany se vincula (ele também é uns dos inspiradores do cyberpunk).

O centro do livro é um grande flashback que retorna à infância de Von Ray, também ele afro-descendente e mestiço, membro de uma aristocracia comercial importante em determinado setor da galáxia humana. Quando era garoto, um incidente determinou que ele seria alvo do ódio mortal e meio insano do cruel e mimado Prince Red, herdeiro de uma outra família de aristocratas e detentor de um braço biônico que não pode ser impunemente mencionado. O ódio se transforma em implacável rivalidade comercial quando ambos se tornam adultos. O terceiro ato reserva o confronto entre eles, perante a nova e o terrível preço que a obtenção pode cobrar: uma luz que cega e enlouquece. A crítica às obsessões mercantilistas do capitalismo é difusa, e o desfecho é genuinamente impactante. Aquele flashback e outros, envolvendo o Camundongo e outros personagens, são um esforço não apenas de caracterização, mas de evitar um arco narrativo convencional. O estilo de Delany, que escreveu o livro quando tinha 25 anos, adota muitas interrupções de falas e reticências, porém possui certa cintilância que fica na memória como efeito estético vívido e adequado ao romance. A arte do inglês Eddie Jones na capa não tem nada a ver com o romance, mas as suas evocações surrealistas combinam bem o bastante.

 

Arte de capa de Bruce Jensen.

Maré de Verão (Summertide), de Charles Sheffield. Rio de Janeiro: Editora Record, 1993 [1990], 270 páginas. Tradução de Ronaldo Sérgio de Biasi. Arte de capa de Bruce Jensen. Brochura. O escritor inglês Charles Sheffield foi um dos autores favoritos do tradutor e editor Ronaldo Sérgio de Biasi, que, no início da década de 1990, editou a Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Científica (1990-1993). Além de publicar histórias de Sheffield na saudosa revista, de Biasi deve ter participado da seleção deste romance da série Heritage (“Universo dos Construtores”, no Brasil) e sua sequência imediata, Convergência.

Nesse universo ficcional, a Via Láctea do século 31 é marcada pela presença de artefatos hipertecnológicos de uma civilização desaparecida. A heroína Lang é uma especialista nesses artefatos, autora de um catálogo que integra o texto do romance sob a forma de excertos. Suas medições a levaram a concluir que um ponto específico da galáxia, envolvendo um desses artefatos, será palco de um evento extraordinário envolvendo a tecnologia dos tais Construtores. O artefato é considerado de pequena monta, e não atraiu a atenção das autoridades graúdas. Mas Lang não é a única a compreender isso, e para lá convergem um aventureiro humano e uma cientista alienígena, ambos assassinos em massa, e uma dupla de garotas suspeitas de genocídio — além de dois burocratas locais, e de dois alienígenas que funcionam como alívio cômico. O romance tem alguns elementos singulares, como a esqualidez da colônia local, em contraste com a hipertecnologia dos Construtores. O principal, porém, é a coleção de personagens caracterizados principalmente pela excentricidade de cada um, algo que me soou bem britânico.

O enredo envolve o grupo indo a um mundo vizinho à colônia, conectado a ele por um cabo gigantesco, acompanhado de um veículo que vai de um mundo a outro por esse cabo — obra dos Construtores. Lá, os heróis enfrentam uma grande catástrofe natural, traições e descobertas, até o ponto em que o evento antecipado de fato acontece. Sheffield é um escritor de estilo meio áspero; apesar disso manipula tudo isso com habilidade, gerando suspense e sense of wonder. A bonita aerografia de Bruce Jensen coroa a capa deste romance de FC hard, representado bem o ápice do romance, e num tipo de composição um pouco diferente daquele que é sua marca registrada, sempre com algo de trompe-l’oeil, e que o tornou um artista bastante vinculado à FC cyberpunk.

 

Arte de capa de Stephanie Marino.

A Bicicleta, de Roberto Fideli. São Paulo: Agência Magh, abril de 2020, 964 KB. Arte de capa de Stephanie Marino. EBook Kindle. Este e-book é o primeiro livro de ficção científica do meu filho Roberto Fideli, que este ano também apareceu nas antologias Histórias (Mais ou Menos) Assustadoras (2019), Vislumbres de um Futuro Amargo (2020) e Multiverso Pulp Volume 1: Espada & Feitiçaria (2020).

A história acompanha Daniel, um piloto de caça estelar. Abatido no espaço durante uma batalha, é ejetado para fora e sobrevive ao combate contra forças alienígenas. Nesse ponto, a narrativa migra para outro personagem, Bruno, um menino que ganha uma bicicleta no seu aniversário de 12 anos. Ele sofre um acidente grave com a tal bicicleta, e depois de um desmaio, desperta no corpo de Daniel, o guerreiro das estrelas. Numa transição sutil, a narrativa adota o ponto de vista de Daniel, e em seguida, mistura as lembranças dos dois personagens. Aurora, uma terceira personagem, é apresentada. Também é uma criança, e sofre um acidente quando tentava recuperar uma pipa presa no telhado de casa. Neste ponto, a história introduz uma nova situação básica: Daniel é prisioneiro dos alienígenas Allakianos. Ele acredita que uma máquina dos seus captores o induz a sonhar que é Bruno e Aurora, mas o inimigo afirma, telepaticamente, que a máquina na verdade desperta memórias. Lembranças de ter sido ainda outras pessoas se sucedem, até que vem a maior surpresa de todas.

Há algo de Star Trek e de Babylon 5 (que Roberto reconhece no posfácio e assume homenagear no conto) em A Bicicleta, mas vale também lembrar de histórias nacionais recentes, de humanos vivendo e revivendo experiências estranhas, após serem capturados por inimigos alienígenas. Há duas delas na antologia Fractais Tropicais (2018), editada por Nelson de Oliveira: “Da Astúcia dos Amigos Improváveis”, de Santiago Santos; e “O Molusco e o Transatlântico”, do veterano Braulio Tavares (em Fanfic). O abordagem de A Bicicleta é formalmente engenhosa, desenvolvida com segurança (certamente superior à minha, quando comecei) até a conclusão comovente e com uma surpresa real e orgânica. Na sua exploração das eventualidades trágicas da vida, traduz o desejo de abraçar plenamente a experiência humana de morte, vida e superação.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Phil Noto.

Star Wars: Chewbacca, de Gerry Duggan (texto) & Phil Noto (arte). Barueri-SP: Panini Brasil, 2019, 112 páginas. Arte de capa de Phil Noto. Brochura. Muitas vezes, parece que Star Wars precisa espremer ao máximo a criação de George Lucas. Aquela situação doméstica da família de Chewbacca no às vezes infame Star Wars Holiday Special (1978) parece fornecer um irônico ponto de partida para esta HQ de Duggan & Noto.

Chewie é náufrago em um planeta dominado pelo Império, logo após a Batalha de Yavin (em Uma Nova Esperança). Uma garota sapeca, humana, de uns 10 ou 11 anos com cara de latina, o ajuda a evitar as tropas imperiais e encontrar transporte para fora do planeta. A garota se chama Zarro e tem Arrax, seu pai, endividado com agiotas locais. Para protegê-la, ele a manda embora. As autoridades não lhe dão bola e tudo parece que vai de mal a pior, até que ela encontra Chewie em um bar jogando sabbac. Zarro o convence a ajudá-la, falando muito enquanto ele grunhe de vez em quando. A ideia é invadir as instalações subterrâneas em que o pai dela trabalha como prisioneiro, coletando substâncias químicas de valor comercial, excretadas por larvas luminescentes. Para libertá-lo, Chewie enfrenta bandidos, droids militares e stormtroopers. A narrativa divertida e cheia de ação busca nos lembrar que o alienígena peludo é um herói por direito próprio, e não apenas por acompanhar Han Solo, Leia Organa e Luke Skywalker. Um toque especial da parte de Duggan está em também nos lembrar do que o cachorrão perde, ao ser o sidekick dessa gente toda. Heróis não descansam… A arte de Noto tem uma cor digital quente mas de manchas suaves, combinada com linhas de contorno bem delineadas e às vezes de valor elevado (são grossas), e que nem sempre me agrada. Mas ele é versátil e expressivo, e a sua interpretação de Zarro a torna uma pentelha cativante.

 

Arte de capa de Juan Giménez.

The Fourth Power (Le Quatrième Pouvoir), de Juan Giménez. Nova York/Hollywood: Humanoids/DC Comics, 2005, 136 páginas. Tradução de Justin Kelly & Jonathan Tanner. Arte de capa de Juan Giménez. Trade paperbackMês passado eu li The True Tales of Leo Roa, space opera autoral do admirável artista argentino Juan Giménez (1943-2020). Este The Fourth Power está na mesma categoria, embora com uma narrativa de menor teor cômico. Na verdade, são duas histórias interligadas — e de conexão faltosa, tanto em termos de estilo, quanto de lógica narrativa.

Na primeira, várias garotas em um distante futuro high-tech são sequestradas. Uma delas é uma piloto de caça em um conflito bélico futuro, e logo fica-se sabendo que os militares e políticos de uma das partes em conflito buscam criar uma super-arma humana, dotada de poderes quase divinos, que permita a eles alcançar o poder absoluto. Esse segmento é dos mais dinâmicos e estimulantes. É onde a garota conhece alguém que pode ser um interesse amoroso no futuro. Na segunda, ela ressurge em um habitat gigantesco como uma performer que realiza grandes feitos de “prestidigitação”. Na verdade, são atos paranormais de fato. A paranormalidade ou o sobrenatural são parte da space opera exótica, e Giménez investe nesse elemento. Ao invés da guerra, tem-se uma situação criminal de thriller de FC, com um terrorista realizando atentados contra o império de uma cafetina do lugar. Se a primeira história apresentava diversos ambientes, culminando em uma ação submarina, a segunda explora o mesmo espaço, com uma perseguição mais concentrada, e muita surpresas quanto à identidade verdadeira do terrorista. Nessa narrativa, a mais característica da revista Heavy Metal, no álbum, a arte de Giménez fica mais grosseira e as implicações da história descem um tom. Ainda assim, sempre uma arte e uma criação de mundo deslumbrantes.

Roberto Causo

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Leituras de Janeiro de 2020

Em janeiro, eu me dediquei a terminar alguns livros que havia iniciado e que estavam meios soltos pelo apartamento. Entre eles, antologias de histórias de ficção científica, um romance de FC hard e um ensaio em forma de livro, que repercutiu sobre o mundo da FC.

 

Narrativas Fantásticas do Malleus Maleficarum ou O Martelo das Feiticeiras: Manual Inquisitorial de Caça às Bruxas, Paulo Soriano, ed. Itabuna-BA: Mondrongo, 2019, 76 páginas. Tradução de Paulo Soriano. Brochura. Paulo Soriano é um dínamo baiano voltado para o conto fantástico clássico e o horror, também embaixador cultural não oficial do Brasil junto à Galiza. No finzinho de 2019, ele lançou este livro muito bonito na apresentação gráfica, e surpreendente como proposta e no conteúdo. Nele, Soriano reúne trechos do infame Manual Inquisitorial de Caça às Bruxas em que o fantástico estão presentes de forma narrativa, com traduções dele próprio. O “manual” é de fins do século 15…

A primeira coisa que salta aos olhos é como se verifica, por comparação, o quanto a narrativa de horror e do conto fantástico bebe dessa fonte. Entre os feitos das feiticeiras estão transformar um marinheiro em asno, bruxas que colecionam pênis dos desavisados, impotência masculina induzida por feitiço (há uma constante aí?), um padre enfeitiçado que se recupera pelo exorcismo de um bispo cego, um lenhador aloprado que escapa da punição por ter atacado uma mulher, colocando a culpa em bruxas que teriam assumido a forma de gatos. A atribuição de infertilidade ou problemas gestacionais às bruxas parece ter sido comum, com várias narrativas a respeito. A ideia da cópula do diabo e da sedução de outras seguidores do demônio também. Em uma narrativa, as bruxas causam lepra. “O Bispo Enfeitiçado” é uma das narrativas mais reveladoras dos dois pesos e duas medidas da mentalidade da época: um bispo assume uma amante (contra a norma do celibato), ficando doente pouco depois. Desencantado, procura uma “anciã” (outra bruxa?) que faz um contrafeitiço, afirmando que quem o enfeitiçara primeiro iria morrer. Quem morre é a amante dele, que retorna feliz para as suas obrigações clericais, sem que ninguém questionasse os seus pecadilhos. Clérigos são muitas vezes tanto vítimas quanto salvadores, atestando a importância que se davam na época. Soriano coligiu ele mesmo as histórias e as traduziu muito bem do inglês e do espanhol. O livro que ele produziu pela Mondrongo é bonito, com um design sugestivo. O livro de onde elas surgiram é uma obra terrível. Um grande exercício de fake news que, assim como as dos nossos dias, mobilizou as populações a atos violentos ancorados na ignorância, e à suspeita contra os vizinhos. Um muito obrigado a Paulo Soriano pelo seu trabalho de nos trazer essas narrativas, assustadoras até pela realidade da “caça às bruxas” que inspiraram. O horror e a vida real nunca estão muito longe, no século 15 ou no 21.

 

Arte de capa de Gregory Bridges.

Year’s Best SF 9, de David G. Hartwell & Kathryn Cramer, eds. Nova York: EOS, 1.ª edição, 2004, 500 páginas. Arte de capa de Gregory Bridges. PaperbackNo mercado de língua inglesa, são comuns antologias dos melhores do ano, recolhendo histórias de todas as fontes: revistas, antologias originais e sites, fornecendo ao leitor um apanhado do que se passa no campo e fornecendo aos autores uma oportunidade de distinção. Esse segmento vem lá da década de 1970, já foi mais forte mas ainda está valendo. David Hartwell foi um editor e antologista muito importante, desencarnado em 2016 em um acidente doméstico. Sua série Year’s Best SF, editada com Kathryn Cramer, sua esposa, foi longeva (de 1996 a 2013). No período em que saiu este livro, o mercado para narrativas curtas passava pela transição para as revistas digitais.

Este volume que recupera textos de 2003 inclui, num fato raro, duas histórias traduzidas, uma argentina e outra espanhola. Foram extraídas da pioneira antologia Cosmos Latinos: An Anthology of Science Fiction from Latin America and Spain, editada por Andrea L. Bell & Yolanda Molina-Gavilán. Essa antologia incluiu histórias dos brasileiros Jeronymo Monteiro, André Carneiro e Braulio Tavares, mas Hartwell & Cramer preferiram selecionar histórias da argentina Angélica Gorodischer e dos espanhóis Ricard de la Casa & Pedro Jorge Romero. Outros nomes presentes em Year’s Best SF 9 incluem alguns gigantes como Octavia E. Butler, Gene Wolfe, Joe Haldeman, John Varley e Gregory Benford, além de autores que estavam se destacando naquele momento, como Charles Stross e Cory Doctorow — este, com dois romances publicados pela Editora Record no Brasil, e cuja história “Nimby and the Dimension Hoppers” espanta pelo estilo descolorido. Hartwell se vinculava muito à FC hard, e a sua série de antologias dos melhores era marcada por pouca coisa borderline e uma adesão mais estrita aos parâmetros da FC como gênero. Na introdução, ele declara:

“Este livro está cheio de ficção científica — cada história no livro é claramente isso e não algo diferente.” —David G. Hartwell & Kathryn Cramer. Year’s Best SF 9.

Os editores destacam a presença da novela “The Albertine Chronicles”, do escritor mainstream Rick Moody, que eu conhecia da edição da revista McSweeney’s editada por Michael Chabon focada em pulp fiction, e uma novela que falhou em me cativar. (Moody é autor de Ice Storm, romance de 1994 que virou filme de Ang Lee em 1997.) As histórias que mais apreciei na antologia foram algumas das mais simples em termos narrativos: “The Waters of Meribah”, do inglês Tony Ballantyne, acompanha um jovem desfavorecido em um habitat artificial, escolhido como cobaia para um experimento cósmico; e “Annuity Clinic”, de Nigel Brown, outro inglês, sátira com um fundo de “domínio dos robôs” sobre um futuro em que a direita conseguiu dar cabo do socializado sistema de saúde britânico, obrigando os idosos a venderem partes dos seus corpos para conseguirem manter alguma condição de vida. O assunto sombrio é desenvolvido em situações singelas que desembocam em um final gelante.

 

Arte de capa de David Mattingly.

Marooned on Eden, de Robert L. Forward & Martha Dodson Forward. Nova York: Baen Books, 1.ª edição, 1993, 372 páginas. Arte de capa de David Mattingly. Paperback. O escritor de FC Gerson Lodi-Ribeiro me presenteou com este romance de FC hard em algum momento da década de 1990. Faz parte da série Rocheworld, que apresenta um planeta binário de contato, e como eu propus algo semelhante no meu Glória Sombria: A Primeira Missão do Matador (2013), resolvi dar uma olhada agora para aprender mais a respeito. O romance, porém, se passa em outro planeta de um sistema complexo, que inclui aquele binário de contato (que figura tão proeminentemente na bela capa de David Mattingly). Apenas o substancial anexo técnico ao final do livro, disfarçado de relatórios de missão, traz informações sobre a estranha geometria planetária.

Uma equipe transnacional está no sistema investigando os seus diversos planetas. Uma delas desce até Zuni, lua de um gigante gasoso, sofrendo uma pane ao amerrissar e ficando náufraga por tanto tempo, que relacionamentos conjugais se estabelecem e o acontece primeiro contato com alienígenas locais — plantas inteligentes. A vida comunitária firmada no lugar leva, em conjunto com uma absurda suposição da inteligência artificial que os acompanha, a uma situação de reprodução coletiva que é a principal complicação do romance. Os humanos no local são acompanhados por um conjunto de alienígenas marítimos inteligentes, herdados do livro anterior da série, Ocean Under the Ice (1993), também escrito com a esposa de Robert Forward, Martha (note que na capa a editora enganou-se quanto ao nome dela, grafado como “Margaret”). Quem narra a maior parte das aventuras em Zuni é Reiki LeRoux, de origem japonesa e com uma dicção algo estereotipada, registrada em seu diário. O lugar em que se refugiam é um pequeno arquipélago, capaz de suprir a maior parte das suas necessidades de abrigo e alimentação, e indutor de uma vida simples de cooperação comunitária — daí a presença do conceito do Éden. No fundo, aquele pendor tão americano para o exílio e a colonização, ancorado na história do país, e que Stephen King satirizou em Dança Macabra (1981) como o “Espírito Pioneiro”. Trata-se, porém, de uma versão sem esse ranço, celebrando a vida simples e humana, em um romance modesto e descomplicado, mas agradável. Robert L. Forward (1932-2002) foi escritor e cientista (físico), e os livros 2, 3 e 4 da série Rocheworld foram escritos com a esposa Martha e a filha Julie.

 

Detalhe de outra arte de David Mattingly para Ocean under the Ice (1994), livro 4 da série Rocheworld.

 

 

Arte de capa de Bob Warner.

Far Frontiers, de Martin H. Greenberg & Larry Segriff, eds. Nova York: DAW Books, 1.ª edição, 2000, 310 páginas. Arte de capa de Bob Warner. Paperback. No começo do século, a tradicional DAW Books, fundada pelo editor de FC Donald A. Wollheim e especializada nesse gênero e na fantasia, publicou uma série de antologias originais editadas por Segriff & Greenberg e também por John Helfers & Greenberg. Eu consegui no Sebo do Farah, de São Paulo e que não existe mais, as seguintes: Star Colonies (2000), Guardsmen of Tomorrow (2000), Future Wars (2003) e esta Far Frontiers. Todas abrigam temas tradicionais da ficção científica, vinculados à aventura.

Estão no livro Robert J. Sawyer, Kristine Kathryn Rusch, Lawrence Watt-Evans, Julie E. Czerneda, Andre Norton e Jane Lindskold. Contudo, as histórias que mais gostei foram escritas por Kathleen M. Massie-Ferch, Alan Dean Foster e Robin Wayne Bailey. “Traces”, de Massie-Ferch, é uma noveleta sobre uma cientista dedicada que, em um contexto de exploração espacial mas dentro de um regime fundamentalista religioso, encontra uma rocha que não deveria estar naquele sistema estelar, importada ou exportada por uma civilização alienígena. Como isso ela incorre um dogma severo, e se vê na mira de um oficial político. A história é narrada com solidez, delicadeza e a perspectiva de uma mulher determinada que não alijou nem a maternidade nem o idealismo científico. A minha outra preferência pessoal é “Chauna”, de Foster, conto em um centenário ricaço persegue com fundos pessoais uma lenda que leva à descoberta de uma forma de vida estelar antes ignorada. Um tratamento de temas antigos dentro da FC, mas realizado com um genuíno sense of wonder. Finalmente, a terceira é “Angel on the Outward Side”, de Bailey, outra noveleta, mas uma movimentada space opera à lá Star Wars com elementos de mundo perdido saídos quase que diretamente de Ela (1887), de H. Rider Haggard, e que encanta pelo despego com que se atira à aventura e ao melodrama. A ilustração de Bob Warner na capa é uma arte digital de ficção científica militar, não necessariamente a expressão mais característica do tema.

 

Arte de capa de Richard Powers.

The Art of Richard Powers, de Jane Frank. Londres: Paper Tiger, 2001, 128 páginas. Prefácio de Vincent Di Fate. Esboço biográfico de Richard Gid Powers. Arte de capa de Richard Powers. HardcoverRichard Powers (1921-1996) foi um artista de galeria, surrealista e abstrato, que produziu muitas ilustrações editoriais, especialmente de ficção científica e horror. No campo da FC ele foi marcante, ganhando reconhecimento duradouro e criando tendência. No Brasil, foi muito apreciado pelos editores Gumercindo Rocha Dorea e Fausto Cunha, na Primeira Onda da FC Brasileira, e influenciou capas do artista Eddie Moyna publicadas na Coleção Ficção Científica GRD, de Dorea.

No prefácio, o também artista de FC e historiador do campo Vincent Di Fate, autor do monumental livro de arte Infinite Worlds (1997), aponta Powers com uma das três maiores influências sobre esse campo (as outras sendo Frank R. Paul e J. Allen St. John). O primeiro capítulo é um esboço biográfico, muito pessoal, escrito por Richard Gid Powers, filho do artista. Ele narra, por exemplo, pesquisas de texturas e atmosferas em uma ilha no Maine e nas florestas do Estado de Nova York, as agruras da vida do artista e as suas principais exposições, e seu ódio ao político Richard Nixon e aos radicais chics da década de 1970. Jane Frank, uma conhecida colecionadora de arte de FC (com o marido Howard Frank), entra com seu texto apenas no capítulo 2, discorrendo sobre o abstracionismo surrealista de Powers, sua presença na ilustração editorial do macabro ou do horror, e a diversidade de estilos dele, dentro do surrealismo, e as suas explorações técnicas dentro dessa escola. Para a arte de FC, ele trouxe formas orgânicas, oníricas em diálogo com os ícones do gênero, transformados por texturas inquietantes — máquinas com uma pátina orgânica e organismos com texturas minerais ou metálicas, figuras humanas despersonalizadas como manequins e estranhos efeitos etéreos diluindo formas reconhecíveis. Powers, como muitos artistas, encantou-se com a possibilidade de produzir um discurso visual coerente e narrativo, que ele chamou de “Mundo de fFlar”, com direito a um manifesto satírico. O livro encerra com trechos de entrevistas e um checklist de capas de livros — Powers realizou mais de 1400 em vida. Um livro fabuloso, que enriquece muito o entendimento de sua arte peculiar, e valoriza a posse dos livros com as suas ilustrações.

 

The Two Cultures, de C. P. Snow. Cambridge/Nova York: Cambridge University Press, Série Canto, 1996 [1959, 1964, 1993], 108 páginas. Prefácio de Stefan Collini. Trade paperbackLançado em 1956 pelo romancista e físico inglês C. P. Snow (1905-1980), o “Debate das Duas Culturas” ainda é lembrado como uma referência importante, dentro do campo da ficção científica. O fosso entre os intelectuais literários e a cultura científica foi apontado por Snow em um artigo e mais tarde na palestra “The Two Cultures and the Scientific Revolution”, depois publicada em livro. Esta edição inclui não apenas a palestra original, mas um texto de 1963, “The Two Cultures: A Second Look”, em que ele analisa o que teria mudado no interim. Nos meus estudos ao longo dos anos eu havia lido a introdução extensa de Stefan Collini (que por si só já vale a leitura) e a palestra de Snow, só agora lendo essa última parte. Interessa notar que, no Brasil e sem conhecimento das ideias de Snow, o nosso André Carneiro havia tratado, em termos semelhantes, das diferenças entre os intelectuais tradicionais e a cultura científica, no seu ensaio pioneiro Introdução ao Estudo da “Science Fiction” (1967).

Snow argumenta que há uma divisão entre as duas culturas, a partir de um diagnóstico da dominância modernista sobre o discurso intelectual no Ocidente. A divisão impediria que a revolução científica e seus benefícios fossem democratizados, em especial a industrialização. A maior parte do problema estaria nos intelectuais literários, chamados por Snow de “luditas naturais” e “esnobes”. F. R. Leavis, o árbitro do bom gosto literário e campeão da causa da alta cultura como refinadora da civilização escreveu respostas enfurecidas contra Snow, que escreveu:

“Eu acredito que toda a sociedade ocidental esteja sendo dividida, cada vez mais, em dois grupos polarizados. […] [E]m um polo temos os intelectuais literários, que, incidentalmente enquanto ninguém olhava, passaram a se referir a si mesmos como ‘intelectuais’, como se não existissem outros. […] [N]o outro [polo] os cientistas. Entre os dois um abismo de incompreensão mútua […].” —C. P. Snow, The Two Cultures.

Snow confronta o pessimismo do primeiro polo, com o otimismo do segundo. A saída para o dilema é repensar a educação. O livro dedica muito à comparação entre o sistema educacional britânico e o americano, o russo e o alemão. De fato, é estranho como as populações desconhecem que ciência e tecnologia constituem as bases da vida humana moderna, parecendo sublimá-las em objetos de consumo e extensões high-tech de uma comunicação mesquinha do nível das ruas. Agora, com a chegada ao poder de grupos anticiência e do retorno do país a um estado de fornecedor de matéria-prima e de produtos agropecuários, a advertência de Snow devia calar entre os brasileiros. Escrevendo há quase 60 anos, Snow acertou ao prever que a próxima revolução estaria no terreno da computação e da automação, mas seus receios quanto à China não se confirmaram mesmo no seu tempo de vida — e hoje nós vemos o país asiático na fronteira desses campos. Ao afirmar que não parecia haver lugar em que as duas culturas se encontrassem ele também pode ter errado, já que a ficção científica oferece um campo possível para esse encontro. Após o fenômeno dos tigres asiáticos e da China como a segunda economia do mundo, os conselhos de Snow quanto às necessidades de levar a revolução científica aos pobres parecem muito enfraquecidos. Hoje, talvez ele nos falasse sobre como o abismo entre as duas culturas e a ignorância científica enfraqueceria nossas chances de enfrentar os desafios da crise climática e da extinção em massa de flora e fauna. Ameaças tão grandes ao futuro da humanidade quanto a tensão nuclear entre Ocidente e Oriente, no seu tempo.

 

Arte de capa de Ron Lesser.

The Quick Red Fox, de John D. MacDonald. Greenwich, Connecticut: Fawcett Gold Medal, 1964, 160 páginas. Arte de capa de Ron Lesser. Paperback. Assim como muitos escritores de ficção de crime, MacDonald tem o seu detetive titular de uma série, Travis McGee. Este é o meu primeiro contato com o detetive peripatético, já que não atua em uma única área, viajando bastante. A história começa em Miami, onde McGee vive em um barco. Ele é contratado pela estrela de Hollywood Lysa Dean para recuperar umas fotos comprometedoras de uma orgia da qual ela teria participado. Para isso, o relutante McGee tem que fazer par com a assistente pessoal da estrela, a competente Dana Holtzer. Eles passam a viajar juntos na trilha dos chantageadores, e desenvolvem um interesse amoroso um pelo outro — como em On the Run, que já comentei aqui. Dana trabalha duro para manter um marido comatoso que requer cuidados médicos constantes, um toque melodramático mas interessante, definidor da personagem. Também é interessante e divertido que, fingindo serem um casal, os dois desenvolvam uma dinâmica bem humorada de marido e mulher — violando a noção de que esse tipo de coisa diminuiria o herói másculo.

A investigação leva o casal, de uma jovem institucionalizada por excesso de drogas, até as altas rodas. No percurso, descobrem que a maior parte dos participantes da orgia foram mortos. No final da linha, McGee encurrala uma beldade assassina, mas comete o erro de dar-lhe as costas e paga um preço — assim como Dana. Hospitalizada com uma concussão, ao recobrar os sentidos ela não tem mais os mesmos sentimentos pelo detetive particular. Em grande parte, o trajeto do herói é pontuado pelo encontro com o que poderia ser chamado, usando a terminologia de hoje, de uma “feminilidade tóxica”. O autor oferece a masculinidade centrada do herói e a feminilidade responsável de Dana como contrapontos. Focada no fecho do romance, onde Lysa tenta se oferecer a McGee para economizar o pagamento pelos seus serviços, a ilustração de capa do prolífico Ron Lesser diz tudo: a “disponibilidade” dela, o seu desarranjo e  surpresa com a reação dele.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Jae Lee & June Chang.

A Casa dos Sussurros Volume Um: Poder Apartado (House of Whispers Vol. 1), de Nalo Hopkinson (texto) e Dominique “DOMO” Santon (arte). Barueri-SP: Panini Brasil 2019, 194 páginas. Tradução de Érico Assis. Arte de capa de Jae Lee & June Chang. Esta HQ de uma série patrocinada por Neil Gaiman, “O Universo de Sandman”, é, até onde eu saiba, a estreia no Brasil da escritora afro-canadense de origem caribenha Nalo Hopkinson, de boa reputação no mundo da FC e fantasia e língua inglesa. Algo a celebrar.

O álbum abre com ocorrências sangrentas no plano dos sonhos, mas logo salta para a cidade de New Orleans, onde uma família afro-americana incomum é apresentada (o pai é um homem gay com casamento homo-afetivo e a filha mais velha namora uma garota). Ali também vemos entidades do sincretismo afro local se relacionando — incluindo uma figura de Iemanjá que, na última página do livro, aparece, salvo engano, desenhada por ninguém menos que Bill Sienkiewicz, com a fisionomia de Hopkinson.

O ponto focal da história, que dá direito a cenas de mediunidade afro, trata de como o sobrinho dessa figura foi soltar no mundo o flagelo pandêmico de uma praga de zumbis. Inicialmente, me soou como uma concessão aos modismos do cinema, até que me lembrei de que o zumbi como monstro moderno da ficção de horror surge justamente da cultura afro-caribenha. A autora mantém a tensão entre o que ocorre no nosso mundo e o que tem lugar nos diversos mundos sobrenaturais invocados pelo Universo de Sandman e pela cultura afro. Achei apenas que a parte ambientada no mundo “real” saiu perdendo. Embora a arte seja um pouco incerta, há muito o que elogiar nesta história rica e original, cuja solução aguarda um segundo volume.

—Roberto Causo

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Leituras de Agosto de 2019

O pânico do leitor compulsivo é terminar uma leitura em situação que não permite engatar a seguinte. Uma vez, terminei um livro enquanto aguardava uma reunião que sofreu atraso, e corri até um sebo próximo, para garantir uma nova leitura no metrô de volta. A outra agrura do leitor compulsivo é começar muitos livros quase ao mesmo tempo, perdendo o foco e deixando de completar nenhum deles. Em agosto, comecei meia dúzia de livros. Um deles foi um título de não ficção para complementar uma pesquisa, sendo que li cerca de 100 páginas até entender que ele não me seria útil. Noutro caso, comecei um romance de ficção científica ambientado no futuro próximo e tendo um velho genioso como protagonista. Ele era tão chato que peguei outra FC, esta ambientada no futuro distante — mas também com um velho genioso como protagonista. Como acho que estou a caminho de me tornar eu mesmo um velho ranzinza, abandonei os dois. Então as minhas anotações deste mês correspondem aos poucos títulos que consegui terminar.

 

As Águas-Vivas Não Sabem de si, de Aline Valek. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2019 [2016], 294 páginas. Brochura. Este é um elogiado romance brasileiro de ficção científica, todo ambientado nas profundezas do mar — uma absoluta raridade no contexto da nossa FC, embora, se a memória não falha, Jorge Luiz Calife tenha explorado esse ambiente em suas histórias do Universo da Tríade. Eu estava de olho no livro de Aline Valek há algum tempo, e durante a Flipop 2019 meu filho Roberto Fideli me conseguiu um exemplar autografado.

As Águas-Vivas Não Sabem de si é um dos romances de melhor reputação, dentro da atual produção da Terceira Onda da FC Brasileira. Como acontece com vários outros exemplos da escrita desse período, me espanta a naturalidade com que a autora estabelece um tom agradável e introspectivo. Os diálogos marcados por aspas certamente contribuem para essa introspecção — que culmina com um segmento final em primeira pessoa.

A narrativa acompanha a mergulhadora Corina, seu colega Arraia, o cientista Martin e outros tripulantes de um submersível em missão de teste de um traje de mergulho profundo. Esse é o objetivo declarado, porque o interesse secreto de Martin é encontrar formas de vida inteligentes, lá embaixo. Isso é segredo não por questões científicas ou comerciais, mas porque o assunto pareceria excêntrico demais para a “ciência séria”. Mas, de fato, Corina e os outros se aproximam de um contato real com uma civilização submarina. Ao contrário daquela do filme de James Cameron, O Segredo do Abismo (The Abyss, 1989), a imaginada por Valek evoluiu incógnita aqui mesmo na Terra. O leitor fica sabendo detalhes muito sugestivos da evolução e da cultura desses seres. Como não há um esforço de estranhamento que distancie a experiência deles da nossa, os trechos que os acompanham — e a vários animais marinhos — têm às vezes um quê de fábula. Sem muito enredo, as complicações surgem em torno de uma doença que pode impedir Corina de mergulhar. Enfim, eu teria apreciado mais o romance se a sua técnica de personagem-ponto de vista fosse mais estrita, e com transições mais marcadas. Parece, porém, que sou o único que reclama desse tipo de coisa, considerando que essa é uma técnica amplamente desprezada pelos autores brasileiros.

 

Arte de capa de Jussara Gruber.

O Livro dos Seres Imaginários (El libro de los seres imaginários), de Jorge Luis Borges & Margarida Guerrero. Porto Alegre: Editora Globo, 1981 [1979], 214 páginas. Arte de capa de Jussara Gruber. Brochura. Parte da coleção da minha esposa Finisia Fideli, este é um livro de não-ficção do mitógrafo Jorge Luis Borges (1899-1986), um dos ficcionistas mais cultuados da América Latina e influentes do mundo, escrito com Margarita Guerrero.

Consta que a sua primeira versão chamou-se Manual de zoología fantástica e foi publicado originalmente em 1957. A versão comentada aqui foi expandida na Espanha e publicada primeiro em 1979. O título original sublinha a fusão frequente em Borges, da ficção e da não ficção, ou da ficção e do ensaio. O livro descreve seres imaginários dos mundos da religião, do mito, do folclore, e da literatura. Os verbetes ou entrada aparecem fora de uma ordem alfabética ou qualquer outra discriminação evidente, como a clássica, nórdica ou oriental. O primeiro ser é o dragão e o último. a “lebre lunar”. Entre um e outro, existem 114 seres, entidades ou monstros. Extraídas da literatura de fantasia e ficção científica há criações de C. S. Lewis, Edgar Allan Poe, Franz Kafka (o “odradek” e outros), H. G. Wells e Lewis Carroll. Há seres africanos, americanos, europeus e orientais. Os textos são críticos e levemente irônicos, descrevendo mas também dedicando algum comentário sobre o sentido de cada ser. Criaturas vistas comumente na literatura de fantasia, como trolls, gnomos, elfos e dragões, bem como golens, sereias, unicórnios, harpias e djins, merecem a atenção do leitor e do autor do gênero, para um entendimento mais aprofundado de cada uma, para além — ou sugestivamente distante — das suas explorações ficcionais costumeiras. As esparsas xilogravuras de Jussara Gruber (que mereciam reprodução mais caprichada) coroam esta edição que foi para a minha prateleira de livros de referência e de estudos.

 

Arte de capa de Anne Sudworth.

Enchanted World: The Art of Anne Sudworth, de Anne Sudworth & John Grant. Paper Tiger, 2000, 112 páginas. Capa dura. Minha esposa Finisia Fideli adquiriu este livro da Paper Tiger há alguns anos, em uma Virada Nerd na loja Terramédia — hoje Omniverse. A artista inglesa Anne Sudworth é uma pintora de galeria que ocasionalmente produz ou produziu capas de livros de fantasia. É um caso raro de coincidência temática de arte de fantasia (geralmente concentrada na ilustração editorial) e belas artes, lembrando a gente do conceito de arte mítica que o ramo da fantasia mítica de Charles de Lint e Terri Windling explora desde a década de 1980. É exatamente essa coincidência o que o escritor John Grant discute no texto que acompanha as reproduções. A primeira coisa que impressiona é que Sudworth realiza os efeitos de clareza e luminosidade próprios da tinta acrílica com o uso, muito incomum na pintura de quadros, de tintas pastéis. 

O capítulo 1, “Of Fantasy and Reality” apresenta Sudworth e traz paisagens, com os efeitos peculiares de luz que caracterizam a artista, e alguma pintura equestre (inclusive natureza morta) feita por ela. Mas ele começa apontando o conteúdo fantástico das obras de nomes de peso como Salvador Dalí e René Magritte, e a qualidade artística de ilustradores de FC com Ron Walotsky, Bob Eggleton, John Harris e Richard Powers que dobram ou dobraram como pintores de galeria ou que poderiam fazê-lo. O trabalho de Sudworth tende para o hiper-realismo e a fantasia está, muitas vezes, presente na atmosfera. Suas paisagens, frequentemente tomadas de lugares reais, formam uma defesa muito forte da conexão entre geografia física e histórica, folclore e fantasia. Trata-se, é claro, das ilhas britânicas. O capítulo “Of Leaf and Tree” explora árvores à noite, marcadas por luzes irreais que, para qualquer um que tenha dirigido ou caminhado, como eu, à noite em estradas de terra batida, capturam uma frutífera tensão entre a verdade do olhar e a da imaginação. Uma qualidade etérea tão discreta, que é como o seu hálito mal percebido em uma noite mal iluminada. Não tenho problemas em admitir que as imagens desse capítulo inspiraram o meu conto “Escultura Negra em Noite Escura”, na antologia Histórias (Mais ou Menos) Assustadoras (2019), da Agência Magh, editada por Grabriela Colicigno & Roberto Fideli.

“Of Dragon and Dreams” agrupa pinturas que se aproximam mais da pintura narrativa da fantasia como campo editorial, às vezes com alguma deficiência fisionômica de heróis e magos, ou simplificação na figura de quimeras e dragões. Mas sempre com muita atmosfera, como na pintura do lindo unicórnio que também vemos na capa. De fato, mesmo com a iconografia do gênero, a proposição subjacente, na sua arte, de que magia ou sobrenatural estão mais na atmosfera é sempre sublinhada. A força das suas paisagens retorna em “Of Spirit and Stone”, com duas pinturas estasiantes de Stonehenge e outros outros monumentos paleolíticos, além de castelos e ruínas. Nessa modalidade, a alternância das superfícies suaves e homogêneas dos pastéis, e os efeitos mais granulados, imbuem as pinturas da aura fantástica. A iconografia do gênero retorna com mais eficácia no último capítulo, “Of Visions and Views”, mas misturada com paisagens e naturezas mortas. É interessante que a qualidade épica das artes de capa de uma trilogia da escritora Storm Constantine é atenuada pela atmosfera noturna, que ampara a composição estática, evocativas da pintura de capa de livros de horror, mas sem nunca penetrar de fato nesse gênero. Torno a destacar a qualidade das análises de John Grant em cada um dos capítulos, mas os comentários da artista, dispostos como legendas das reproduções, não fica atrás na sua capacidade de iluminar os sentidos e os processos por trás de cada uma das pinturas.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Chris Scalf.

Star Wars Legends: Boba Fett Está Morto (Star Wars: Blood Ties: Boba Feet Is Dead), de Tom Taylor (texto) e Chris Scalf (arte). São Paulo: Panini Comics, 2014, 170 páginas. Arte de capa de Chris Scalf. Brochura. Mês passado eu li Boba Fett: Inimigo do Império, e neste mês decidi ficar com o mermo personagem de Star Wars. Desta vez, um sujeitinho chamado Connor Freeman, que tem uma cantina em Coruscant, partindo do planeta para investigar a morte de Fett, que o teria ajudado no passado. Pontuando a chegada dele ao planeta Sathiemon, há uma série de situações que mostram pessoas que testemunharam o suposto assassinato de Fett sendo mortas. Freeman entra na mira do Império, acaba ferido e resgatado por um cara que se revela como sendo o próprio. Fett conta o que aconteceu com ele, e os dois se juntam para visitar uma caçadora de recompensas chamada Sintas Vel, que Fett deseja proteger. Por trás da intriga em torno do grupo que deseja ver Fett morto e de como eles tentam caçá-lo, há a revelação de que o famoso caça-prêmio de armadura mandaloriana tem uma família. É um toque interessante por ser, justamente, humanizador do personagem. A arte digital de Chris Scalf tem pontos fortes, mas eu a achei de “pinceladas” meio frouxas e uma certa rigidez dos personagens, talvez por conta de algum apoio fotográfico na criação dos desenhos. Freeman retorna em outras histórias de Fett da sequência Blood Ties.

Em “Sacrifício”, Cam Kennedy, novamente ilustrando roteiro de John Wagner, por outro lado é preciso, solto, dinâmico e vigoroso em uma narrativa de quadrinhos que funciona bem mesmo sem balões. Além disso, o trabalho de colorização de Chris Blythe é bonito e inspirado, com um contraste entre tons quentes e frios que traz muita personalidade aos ambientes noturnos. Junto com o estilo de Kennedy, que diverge bastante do hardware e da visualidade de Star Wars, tem-se nesta HQ uma experiência estética mais européia. É claro, não há nada que humanize Boba Fett no roteiro cínico de Wagner, na história de como o caça-prêmio acaba auxiliando, por força das circunstâncias, um grupo de revoltosos. O filosófico líder dos rebeldes, por outro lado, é um personagem sólido e humano, que nos diz:

“Ele [Fett] não é maligno… É pouco mais que uma máquina, uma ferramenta para realizar um trabalho. Ele é um homem sem coração, sem sentimentos, sem nenhum interesse além do preço sobre a cabeça de outro homem. Nós, pelo menos temos alguém por quem vale a pena viver e morrer. Eu tenho pena de Boba Fett.” —John Wagner, “Boba Fett: Sacrifício”

Fecham o livro uma história de Ron Marz com desenhos da brasileira Adriana Melo; e uma quarta, bem estilizada, com roteiro de Thomas Andrews e arte de Francisco Ruiz Velasco.

 

Arte de capa de Moebius.

Graphic Novel 11: Surfista Prateado, de Stan Lee (texto) & Moebius (arte). São Paulo: Editora Abril, maio de 1989, 64 páginas. Revista. Há pouco tempo, a Panini reeditou esta colaboração entre dois monstros sagrados dos quadrinhos internacionais em formato gigante e em capa dura. Eu encontrei esta primeira edição no Brasil em uma caixa de papelão e resolvi reler. A introdução de Stan Lee trata de como ele e Moebius (Jean Giraud) almoçaram juntos durante a Comic Con de San Diego em , quando surgiu a ideia de uma colaboração entre os dois. Moebius (1938-2012), então famoso por desenhar o Incal de Alejandro Jodorowski, se mostrou interessado no heróis Surfista Prateado, criação de Lee e Jack Kirby. Segundo os textos de apoio da publicação, o roteiro de Lee (1922-2018) tinha apenas seis páginas e era totalmente dissertativo, sem aquelas divisões de praxe entre texto dos balões e descrição da cena. O resultado é um comentário bem década de 1980 sobre tele-evangelismo, democracia de “massa”, distúrbios civis generalizados e, o mais importante, o fetiche do poder que está por trás de muito das organizações religiosas e políticas dos nossos tempos. Especialmente agora que a política, em várias partes do mundo, regrediu para a extrema direita.

Na história, o Surfista Prateado vive incógnito nas ruas de Nova York quando o seu antigo mestre, o superser Galactus retorna à Terra. Tendo prometido ao seu ex-batedor nunca mais usar o seu poder de destruição em nosso planeta, Galactus recorre a um estratagema: tudo o que ele lança sobre a humanidade é a sua presença e um discurso de anarquismo hedonista radical. O mundo moderno é o mundo do oportunismo, com os espertos sempre subindo no “bonde” do momento, não importando os estragos lá embaixo no nível da sarjeta. O super-herói filósofo se lança à defesa da humanidade disposto a um martírio quase crístico, conquistando o coração bem intencionado da jovem irmã de um tele-evangelista especialmente canalha. A narrativa é muito eficiente e põe um dedo necessário em certas feridas, mesmo enquanto mantém as estruturas narrativas pulps que fundamentam tanto das HQs de super-heróis, e a mitologia do Universo Marvel. O desenho de Moebius varia um pouco ao longo da história, que é relativamente curta. Ele racionaliza essa irregularidade, num dos textos que acompanham a publicação.

 

Príncipe Valente 1942, de Hal Foster. Editora Planeta deAgostini, 2019, 62 páginas. Tradução de Carlos Henrique Rutz. Introdução de Pablo Kurt Rettschalg Guerrero. Capa dura. Na introdução deste volume, o prefaciador Pablo Guerrero faz uma interessante defesa da arte e da cultura da Idade Média, declarando:

“A Idade Média, diferentemente do que se pode pensar, não foi um período estéril ou obscuro no desenvolvimento da intelectualidade.” —Pablo Kurt Retschalg Guerrero.

Na história em quadrinhos propriamente, o Príncipe Valente vai à Africa, depois de se associar ao pirata viking Boltar, que chegou a aparecer na adaptação dessa história em quadrinhos para o cinema, em 1954. No volume anterior, ele enfrentou uma tripulação de aloprados para evitar que eles se dedicassem à pirataria, e aqui ele segue com os piratas vikings. Esse é um dos pontos de contradição da saga criada por Hal Foster — seu herói é um herói cristão, quer dizer, ele promove civilização, lei e ordem sempre que pode, mas é ao mesmo tempo um aventureiro que topa o que aparece. O que importa é manter a aventura girando. Desse modo, o que era para ser um ataque dos vikings a uma aldeia dos nativos da África equatorial se transforma providencialmente no resgate dos nativos, quando Valente e os outros afastam de lá um grupo de gorilas que assustava os moradores. Improvável, já que os gorilas dificilmente se meteriam com humanos e suas lanças, zarabatanas e flechas. Mas o que importa é que o possível massacre dos nativos se transformou em um acerto em que eles foram livrados de um incômodo e recompensados com ouro.

Quando partem da África e chegam ao primeiro porto europeu, por uma dessas coincidências espetaculares que povoam a aventura como modo ficcional, Valente fica sabendo que seu amigo Sir Gawain foi feito prisioneiro por um lorde local, que quer cobrar o resgate por Gawain, da corte do Rei Artur. Ele paga o resgate, mas Boltar tem os seus próprios planos para reaver o ouro entregue ao vilão. É claro, a primeira coisa que o recém-libertado Gawain faz é flertar com uma senhora casada, o que leva a situações cômicas envolvendo o marido. O próximo encontro fortuito leva a dupla a se pôr a serviço de um nobre sitiado por um barão rival — e a uma situação do tipo Romeu & Julieta envolvendo a filha de um e o filho do outro, além de uns truques defensivos que Valente puxou da manga. A situação dramático-romântica sai de cena e entra uma outra, cômica, envolvendo dois cavaleiros idosos em uma ridícula justa, e as suas esposas. A dupla mal sai dessa situação, e se deparam com uma dama em apuros, que os leva a uma trama sobrenatural. A transição aqui é muito sutil, com as sombras do desenho e as árvores desgalhadas sugerindo o novo “clima”, em nova sugestão da versatilidade de Foster como artista. Virando a página, painéis sombrios, intrincados, fabulosos, e mais tarde um jogo de luz e sombra digno do cinema expressionista da época. A trama é trágica, genuinamente, e termina apropriadamente com o incêndio das ruínas. Tudo se clareia em antecipação ao reencontro com Boltar e Lancelot, precedendo, enfim, o retorno a Camelot — onde encrencas na fronteira norte, no que seria futuramente a Escócia, aguardam o herói. As peripécias são mais sérias, e incluem Val sendo feito prisioneiro pelos pictos, que o entregam a invasores vikings. Antes de ser resgatado por Gawain, para variar, ele sofre tortura e passa por longa convalescença. De volta a Camelot mais uma vez, ele expõe suas cicatrizes à corte em um dramático painel, motivando os bretões para uma incursão contra os vikings. Desse modo, o volume termina com uma das sequências de ação mais impactantes e cruéis desse período das aventuras do herói, o duelo de Val contra o guerreiro viking Thundaar e o seu machado de batalha.

Têm-se neste volume em particular um exemplo consumado das dinâmicas de leitura da página dominical, com curtos arcos desenvolvidos com rapidez, alternados com outros mais curtos e episódicos, e um mais longo de abertura mais lenta e intensidade superior. Desse modo, o leitor da época era apresentado a situações diversas, amparadas pelo lapso de atenção entre uma semana e outra, mas com o herói sempre conservando o foco e o interesse.

—Roberto Causo

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Leituras de Junho de 2019

O mês de junho concentrou a leitura de ficção científica brasileira e japonesa recentes, além de fantasia celta e história em quadrinhos do Batman e de fantasia heroica.

 

Arte de capa de Patricia Highsmith.

Os Gatos, de Patricia Highsmith. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2011, 120 páginas. Arte de capa de Patricia Highsmith. Tradução de Petrucia Finkler. Livro de bolso. Mês passado, terminei estas anotações com a leitura de uma história de bichos, a fábula O Lobo, de Joseph Smith, e neste mês começo com este livro centrado na figura do gato. O livrinho da famosa escritora de ficção de crime Patricia Highsmith (autora dos romances de Ripley), com três contos, três poemas e vários desenhos, tem todo o jeito de ter sido montado no Brasil, de material retirado de outra obra da autora. (Não tem nota de copyright de um título reunindo todos os textos, por exemplo.)

“Presentinho de Gato” é a primeira história, uma noveleta, em que, durante uma reunião social, um gato traz para casa um dedo humano, com uma aliança ainda presa nele. Isso leva o casal dono do gato a investigar o caso, chegando até o perpetrador — e a uma decisão surpreendente, sobre o que fazer com ele. A segunda história, “A Maior Presa de Ming”, é um conto de suspense que pode ser lido como horror e não ficaria mal em uma série de antologia como Galeria do Terror (1969-1973) ou em um filme do tipo antologia, como Creepshow: Arrepio de Medo (1982). Nessa noveleta, o gato do título, odiado pelo namorado fisicamente abusivo da sua dona, dá um jeito de “acidentalmente” (vai saber…) tirar o sujeito da vida dele e da moça. Finalmente, “A Casa de Passarinhos Vazia” mostra uma mulher que vislumbra um bichinho na propriedade rural em que vive, e cuja presença furtiva passa a incomodá-la acentuadamente. Ela passa a chamar o animal de “filhote de yuma”, e faz o marido emprestam uma gata da vizinha, para caçar o bicho, mas o conto revela que a criatura é símbolo de uma inquietação íntima, referente ao filho que ela abortou intencionalmente. Uma inquietação que pode ter se transferido ao marido, mesmo depois do “yuma” ter sido morto pela gata. É um suspense psicológico, portanto. Seguem-se então três poemas sobre a vida do gato: gatinho, gatão e velhão. O livro fecha com o ensaio “Sobre Gatos e Estilos de Vida”, observando como a beleza e a tranquilidade do gato combinam com a vida do escritor. O ensaio e os poemas, bem mais do que as histórias, que podem ser lidas pelo seu fator suspense ou crime, é que tornam este um livro para amantes de gatos, assim como, por exemplo, O Gato por Dentro (1986), de William Burroughs.

 

Arte de capa de George Amaral.

A Telepatia São os Outros, de Ana Rüsche. São Paulo: Monomito Editorial, Coleção Universo Insólito, 2019, 118 páginas. Apresentação de Enéias Tavares. Texto de Orelha de Jana Bianchi. Arte de capa e ilustrações internas de George Amaral. Livro de Bolso. Esta novela de Ana Rüsche abre a Coleção Universo Insólito da Editora Monomito, voltada para FC, fantasia e o fantástico. É uma excelente obra de abertura para uma coleção, considerando as suas qualidades literárias e representacionais. (Um embrião, sob a forma de conto, apareceu antes na revista eletrônica Mafagafo, de Jana Bianchi.) A narrativa acompanha a aventura de Irene, uma mulher brasileira, afro-descendente e de meia-idade que acaba no Chile, fazendo uma oficina de práticas de meditação. Lá, toma contato com uma beberragem capaz de induzir a comunicação telepática, e se une a uma comunidade que explora essa fabulosa habilidade.

A bebida já está na mira de um empresário americano que se infiltrou no grupo antes da brasileira chegar, e que pretende turbinar a internet com uma tecnologia bioquímica de transmissão do pensamento. A premissa lembra a intriga de fundo do romance Interferências (2018), de Connie Willis, no qual a telepatia poderia fundamentar uma revolucionária expansão da tecnologia de comunicação móvel. Ao mesmo tempo, o cenário translatino-americano coloca o livro junto com Na Eternidade Sempre é Domingo (2016), de Santiago Santos, e Escalpo (2017), de Ronaldo Bressane. É uma tendência bem-vinda, e eu mesmo expresso minhas ansiedades de contato com a América Latina na série As Lições do Matador. Mas, assim como no livro de Bressane, a novela de Ana Rüsche lembra a violência da ditadura militar brasileira, ao evocar a ditadura chilena. Rüsche faz bom uso de um recurso incomum na composição literária — o portento (um terremoto andino, no caso). Ela também compôs uma prosa literária discreta, muito próxima do estilo dominante na literatura mainstream brasileira e latino-americana, o que aproxima ainda mais forma e conteúdo. É um estilo sensível aos estados mentais da protagonista e a como ela se relaciona com a galeria de personagens que desfilam em A Telepatia São os Outros, uma das melhores novelas surgidas neste momento tardio da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira.

 

Capa de Teo Adorno.

Back in the USSR, de Fábio Fernandes. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, 2019, 224 páginas. Brochura. Nunca fui um beatlemaníaco, embora amigos de infância como Devair Almeida e até a minha mulher sejam grandes fãs dos Beatles. Às vezes, só pra encher o saco da minha esposa, eu me refiro ao grupo como “Os Reis do Iê Iê Iê”, a ridícula alcunha dada pela imprensa brasileira a eles, quando do seu surgimento.

Começo assim o comentário deste que é o segundo romance de Fábio Fernandes porque John Lennon é o seu protagonista. O livro abre a Coleção Futuro Infinito, editada por Luiz Bras (Nelson de Oliveira) para a Editora Patuá, de São Paulo, e é uma história alternativa em que, em fins do século 18, um método de ressuscitação total, conhecido como “Método Frankenstein”, mudou a história do mundo. À revelia, Lennon sofre o procedimento depois de ser assassinado por Mark David Chapman em Nova York. Coagido pela empresa superpoderosa que controla o método, ele vai à Rússia para, a pretexto de fazer um show, contrabandear dados secretos para fora do país e sofrendo com várias reviravoltas, logo a seguir. A premissa relativamente simples é retrabalhada com uma infinidade de referências culturais, eruditas e pop, e especulações divertidas sobre um mundo que venceu (até certo ponto) a maior questão transcendental possível: a morte. O que chama mais a atenção é o quanto a questão da sobrevivência após a morte, transformada em ferramenta de controle e de diferenciação social e política, daria o tom do pensamento filosófico e ideológico ao longo dos séculos. De fato, a estratégia imprime ao livro todas as marcas da ficção pós-modernista, na estrutura fragmentada e com a sua aproximação do popular e da alta literatura. São citados, por exemplo, Mary Shelley, H. P. Lovecraft, Karl Marx, Yoko Ono, George Harrison, Michel Foucault e Erich Maria Remarque — com o trecho de um romance que apresenta Adolf Hitler reduzido a um personagem. Soma-se a ela a paródia de um gênero popular, o thriller internacional, para reforçar essa inserção. O romance surgiu do conto “Para Nunca Mais Ter Medo”, publicado na revista Dragão Brasil em 1995, e agrega como reaproveitamento outros textos em torno do Método Frankenstein. A Coleção Futuro Infinito vai trazer um mix de autores da Segunda e da Terceira Onda, como Braulio Tavares, Claudia Dugim e Marco Aqueiva.

 

Capa de Carol Russ.

The Book of Kells, de R. A. MacAvoy.  Nova York: Bantam Books, 1985, 340 páginas. Arte de capa de Carol Russ. Arte interna de Robert Hunt. Paperback. A escritora americana Roberta A. MacAvoy fez sucesso na década de 1980 e depois deu uma sumida. Uma pesquisa na internet revelou que ela desenvolveu uma doença crônica, controlada recentemente, quando ela voltou a escrever. Este é um romance solo (não fazer parte de uma série) ambientado na Irlanda. Foi por essa razão que eu o adquiri este ano em um sebo da região da Sé, em São Paulo. É que a escrita do romance “Archin” para o Desire entrou em uma fase ambientada na Irlanda do século 13. Dá para chamá-lo de “fantasia celta” e de “fantasia de portal”, já que ele começa na Irlanda contemporânea — para onde vai uma jovem adolescente do século 10, que tenta fugir do massacre da sua vila por um grupo de vikings. Ela surge na casa alugada de um artista canadense que foi levado à Irlanda por sua namorada, uma historiadora, feminista e mulher de ação. De algum modo, as filigranas celtas e uma certa canção que ele ouvia na vitrola criaram um portal que permite a viagem no tempo. A menina foi estuprada e está ferida. O casal contemporâneo cuida dela e, tendo matado a charada, resolve levá-la de volta ao século 10. Lá, descobrem um segundo sobrevivente, um poeta, e ficam sabendo que o portal de retorno foi fechado quando os vikings destruíram uma cruz ornamentada pelos mesmos padrões de filigrana. Os náufragos temporais se tornam os representantes do leitor numa jornada de descoberta da vida e da cultura celta de então — especialmente depois que o grupo determina que devem ir a Dublin exigir do rei uma compensação pelo massacre e pelo estupro da garota. Por todo o caminho eles são perseguidos pelos vikings, liderados por um sacerdote renegado do deus Odin, que escolheu aquela aldeia como sacrifício para o deus nórdico. O sincretismo tanto da cultura celta quanto da nórdica com o cristianismo é uma das marcas do romance, e daquela época. Não apenas o mecanismo de viagem temporal tem papel no enredo, mas também milagres que incluem um fabuloso encontro, ao mesmo tempo divertido e assustador, com a deusa Bridget. O clima é realista e noturno, com uma textura que sustenta a viagem temporal que o próprio leitor experimenta.

É especialmente interessante a caracterização dos personagens: o artista é atrapalhado, sexualmente inibido (o que irrita a sua liberada companheira o tempo todo) e estoico. A historiadora é altiva mas às vezes cede ao peso psicológico do estranhamento da situação, desmaiando ou explodindo com as pessoas. Seu relacionamento com o artista inclui momentos apaixonados, mas é de constante abuso verbal contra ele. Ela acaba se interessando mais pelo poeta local. Ailish, a garota resgatada, é vivaz e determinada — bastante encantadora, por essas e outras qualidades. MacAvoy lida com a caracterização de personagens e do ambiente com um senso quase teatral da dinâmica entre eles, com uma incisividade que admite momentos brutais ou detalhes pouco glamourosos, como pelos corporais nas mulheres, flatulência e uma sexualidade e nudez desinibidas que, o livro me revelou, era próprio da cultura irlandesa de então. Quando o grupo encontra a deusa Bridget, ela se revela como uma mulher idosa, nua e que, agressivamente, abre a vagina (é a figura folclórica de Sheila na Gig) para o incomodado artista — que desmaia! Outro aspecto interessante dele é que seus impulsos eróticos parecem atrelados a fatores estéticos (ele tem ereções persistentes quando desenha).

Um problema de MacAvoy é a adoção do narrador onisciente ilimitado, cujos saltos de um personagem para outro tornam difícil para o leitor saber quem pensa, sente ou mesmo fala o quê. O final do livro é meio que um deus ex-machina, mas funciona suficientemente bem para a conclusão de um romance rico, divertido e com muitos elementos subversivos da fantasia. The Book of Kells é o título de um folio do século 8, caracterizado por exuberantes iluminuras sincréticas. É considerado o maior tesouro medieval da Irlanda. O livro faz uma aparição no romance de MacAvoy, quando o grupo de amigos chega ao monastério onde ele está sendo restaurado por um grupo de monges escribas.

 

A sugestiva arte de Robert Hunt cobre a guarda da capa e a primeira página do livro. Estão nela os personagens e a mistura da cultura celta e a ameaça viking.

 

Arte de capa de Brigid Collins.

The Sleep of Stone, de Louise Cooper. Nova York: DAW Books, 1993 [1991], 174 páginas. Arte de capa de Brigid Collins. Paperback. Esta é uma novela ou romance curto com um ar de conto de fadas que disfarça bem a sua sensibilidade moderna voltada para apontar os desenganos do delírio amoroso. A incomum heroína é uma espécie de gremlin que se apaixona pelo príncipe de uma cidade pesqueira. Ela envolve o moço assumindo a forma de diversos animais (em especial uma foca ou leão-marinho) e oferecendo-lhe a sua amizade. Quando descobre que ele vai se casar com uma princesa de outra cidade, ela elabora o plano de tomar a forma da jovem e consumar o seu amor pelo rapaz. É bem provável que história se baseie em lendas das selkies, comum em ilhas do Mar do Norte, sobre um povo-foca que podia assumir a forma humana, ao trocar de pele. Uma estátua moderna, de Hans Pauli Olsen em Kalsoy, uma das Ilhas Faroe, marca a força dessas lendas.

Para a gremlin de Louise Cooper, as coisas acabam mal. No meio do caminho, Ghysla, a gremlin, acaba matando uma aia do castelo do príncipe, mas essa experiência traumática a leva a hesitar em matar a princesa que deseja substituir. Por isso, resolve apenas sequestrar a moça, levá-la a uma caverna e transformá-la em pedra com um encantamento. Bombasticamente, no final da cerimônia de casamento o noivo não confirma seus votos, dizendo que essa não era a sua noiva, o que é confirmado pela mãe da princesa. Aflita, Ghysla revela sua verdadeira forma, é caçada pelos homens, reage com sua força mágica e acaba encastelada em uma torre. O príncipe percebe que ela representa o único meio de resgatar sua amada, mas para desentocá-la, recorre ao último grande mago conhecido. Com grande relutância, o mago o acompanha de volta ao castelo, e, usando sua forma mágica, convoca Ghysla para uma conversa. Ele descobre que ela não apenas é a última da sua espécie no mundo, como que fez tudo por uma fantasia de amor, em que se convencera de que o príncipe também a amava. Enfim, o mago se revela como fazendo parte da espécie dela — ou uma parte dele, pois é filho do encontro entre uma mulher da raça mágica e um humano. Surpreendentemente, o príncipe ouve tudo e se compadece de Ghysla. Ele e o mago, porém, a convencem a colaborar. Mas existe um preço terrível a ser cobrado: o feitiço do sono da pedra pode apenas ser revertido se quem o lançou também se transformar em pedra. A autora lida muito bem com o mais neutro tom de fábula, e torna sua trágica heroína uma personagem atraente e cativante ao caracterizá-la como adolescente intensa, ingênua e atrapalhada. Cooper também antecipa a especulação mais ousada do leitor para um final diferente, escapando dela com a maior elegância. Há anos que me deparo com livros dessa autora inglesa nos sebos da vida, mas sempre pertencentes a alguma série multivolume, e nunca com o volume um. Livro solo, The Sleep of Stone foi uma ótima oportunidade de conhecer o seu trabalho. A arte de capa de Brigid Collins tem o ar e a composição dos quadros dos pintores pré-rafaelitas, mas parece ser aquarela e não pintura a óleo.

 

A escultura de Hans Pauli Olsen, na Ilha Kalsoy, retrata uma selkie se despindo da sua pele de leão-marinho. Com o dobro da altura de uma pessoa normal, ergue-se em uma extensão rochosa e é capaz de resistir a ondas de até treze metros de altura, interagindo com o mar. Nas lendas, a selkie é forçada a se tornar esposa do homem que tomou a pele de leão-marinho, a chave para a reversão da sua transformação em mulher. No romance de fantasia de Louise Cooper, a gremlin pode assumir muitas formas, e procura a todo custo ganhar o amor do humano que escolheu.

 

your name., de Makoto Shinkai. Rio de Janeiro/Campinas: Verus Editora, 2ª edição, 2019 [2016], 186 páginas. Tradução de Karen Kazumi Hayashida. Comentário de Genki Kawamura. Brochura. Há alguns anos eu me apaixonei pelo filme curto de Makoto Shinkai, O Jardim das Palavras (Kotonoha no Niwa; 2013). Outros filmes anteriores de Shinkai, como 5 Centimeters per Second (Byōsoku 5 Senchimētoru; 2007) e Viagem para Agartha (Hoshi o Ou Kodomo; 2011) não me impressionaram tanto. O comentário do produtor Genki Kawamura ao final da novelização your name., escrita pelo próprio Shinkai, dá a entender que um grupo de produtores se reuniu para dar a Shinkai as condições de produzir a obra-prima que se esperava dele. O anime longa-metragem Your Name foi o filme de animação mais visto na história do Japão, e ganhou prêmios em três continentes. É maravilhoso, já o vi várias vezes, e ele está passando direto na TV a cabo.

Narrado em primeira pessoa mas pelos dois personagens principais — dois colegiais, ele vivendo em Tóquio e ela em uma cidade interiorana ficcional —, o romance tem a ligeireza comum às “novelizações”, mas como é rico em situações e na subjetividade dos personagens, ele encanta e aproxima o leitor da dupla, ampliando a experiência do filme. Shinkai escreveu o livro enquanto dirigia o anime sobre os colegiais que trocam de corpo aleatoriamente, e, apaixonados um pelo outro, se procuram espiralando em torno do evento central, que é o choque do fragmento de um cometa que já havia atingido a mesma cidadezinha, séculos antes. Nessa coincidência e no impacto duplo há aquela sombra perpétua dos ataques atômicos americanos ao Japão na Segunda Guerra Mundial, presente em tanto da cultura popular japonesa. Em tudo isso (e também em uma engenhosa viagem no tempo), a história combina fantasia e ficção científica. O que impressiona é a costura intrincada, mas que parece despretensiosa ao mesmo tempo. No leitmotif da troca de corpos e de gênero sexual, têm-se um comentário sensível e bem-humorado de como o conhecimento do sexo oposto derrubaria barreiras e promoveria uma qualidade maior de relacionamento pessoal. Ao mesmo tempo, oferece a perspectiva de como o desconhecimento atrapalha. É difícil aparecer ficção científica japonesa por aqui, e este livro é uma oportunidade de se ter algum contato com dela. O que o filme e o livro realizam em grande parte é oferecer, com a inteligência e a sensibilidade de Makoto Shinkai, um testemunho da potência da cultura popular japonesa.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Andy Kubert.

Batman e Filho, de Grant Morrison (texto) & Andy Kubert (arte). Cajamar-SP: Planeta DeAgostini Brasil, 2019 [2006, 2007], páginas. Arte de capa de Andy Kubert. Capa dura. Este é o primeiro volume de uma coleção da Planeta DeAgostini dedicada exclusivamente ao Batman. Conta a história de como Bruce Wayne soube que teve um filho com a filha de Ra’s Al Ghul, Talia. Existe, inclusive, uma animação bastante divertida e interessante, com roteiro do escritor de FC e fantasia Joe R. Lansdale, baseada ou inspirada nesta HQ: O Filho do Batman, de 2014.

O Batfilhote é um pequeno assassino com problemas de autoridade, ciúmes do Robin (com quem trava uma luta épica), e a ideia fixa de que matar é a resposta para todo e qualquer problema. Além dos membros da Liga dos Assassinos, Batman e eventualmente também o seu filho, combatem homens-morcegos mutantes criados artificialmente pelo Dr. Kirk Langstrom. A intriga envolve o resgate da esposa do primeiro ministro britânico, raptada quando os homens morcegos entram em cena pela primeira vez — em uma exposição de arte em Londres, para arrecadar fundos para a África. Grant Morrison, um das estrelas dos quadrinhos do século 21, traz um toque metalinguístico interessante com o tema da exposição: a arte pop tipo Roy Lichtenstein, que deve muito à linguagem dos quadrinhos e que por sua vez deve ter influenciado o ângulo camp da série Batman e Robin (Batman), de 1966.

A tentativa de resgate da mulher do primeiro ministro também implica no reencontro da Batman com Talia — e o uso de um batfoguete suborbital. O volume se estende um pouco mais com o cruzado embuçado perseguindo um assassino em série que ataca prostitutas, revelando-se como um gigante mascarado que cobra um duro preço do herói, numa pancadaria em um beco. A arte de Andy Kubert, filho do lendário Joe Kubert, é competente em todos os aspectos da narrativa dos quadrinhos, com alguns momentos muito expressivos.

 

Arte de capa de Andy Kubert.

Batman: O que Aconteceu ao Cavaleiro das Trevas? (Batman: Whatever Happened to the Cape Crusader), de Neil Gaiman (texto) & Andy Kubert (arte). Barueri-SP: Panini Books, 2013, 130 páginas. Arte de capa de Andy Kubert. Capa dura. O celebrado Neil Gaiman e o mesmo Andy Kubert criaram uma narrativa metaficcional em que Batman parece acompanhar em espírito vários testemunhos de amigos e inimigos, durante o seu velório. Como Batman morreu é a pergunta que paira, logo dividida com outra pergunta: Batman morreu mesmo? O velório acontece no Beco do Crime, onde a morte do casal Wayne dá início à formação do herói encapuçado que se tornaria o Batman.

Como sempre, o texto de Gaiman é falsamente simples, na verdade rico em situações e em movimentos. Há um componente crucial de dúvida sobre o que se passa na situação-base do velório e seus testemunhos. A Mulher-Gato é a primeira a falar, e conta um história estranha em que teria deixado de socorrer Batman de um ferimento eventual, depois que ele rejeitara construir uma vida com ela. Segue-se uma outra, em que o mordomo Alfred se apresenta como um ator farsante que assumia a identidade de vários supervilões da franquia, para motivar o patrão no seu suposto delírio heroico. A segunda parte da história abre mão do formato inicial de narrativas mais alongadas e contrastantes, para recorrer a uma rápida sucessão de testemunhos da Batgirl, do Coringa, de Robin, e até mesmo do Super-Homem. Num terceiro momento, toda essa pantomima de testemunhos funerários cede a um mergulho na subjetividade do próprio Batman. Memória e subjetividade estão no centro da abordagem literária de Neil Gaiman, e neste tratamento original e instigante da trajetória do herói a sua obsessão com a infância não deixaria de igualmente se manifestar — com direito a uma aparição de Martha Wayne, a mãe de Bruce, a identidade “civil” do Batman. A arte de Kubert dá conta e homenageia discretamente as várias fases do personagem, emprestando elementos de estilo do criador Bob Kane e de desenhistas do passado como Jack Burnley e Jerry Robinson, reforçando o caráter metaficcional da HQ. A história de Gaiman é uma linda homenagem ao imortal cruzado embuçado, tratando-o com admirável verve e sensibilidade. O volume é completado por cinco histórias mais curtas, também de épocas diferentes, incluindo uma em preto e branco por Simon Bisley, esta totalmente metaficção.

 

Arte de capa de Giuseppe Matteoni.

Dragonero: O Caçador de Dragões Nº 1, de Luca Enoch & Stefano Vietti (texto) e Giuseppe Matteoni (arte). São Paulo: Mythos Editora, fevereiro de 2019, 292 páginas. Tradução de Júlio Schneider. Arte de capa de Giuseppe Matteoni. Brochura. Dragonero é uma série mensal de quadrinhos de alta fantasia, publicada originalmente pela Sergio Bonelli Editore em preto e branco, criada na Itália em 2009, pela dupla Enoch & Vietti. Chegou aqui num livrão distribuído em bancas. Traz todos os elementos tradicionais da alta fantasia pós-Tolkien: mapas e glossário de línguas ficcionais; uma cuidadosa e rica construção de mundo bem amparada pelo traço preciso de Giuseppe Matteoni; ameaças que atingem o mundo secundário globalmente, e a formação de uma irmandade que, depois de identificar a natureza completa da ameaça, parte para obter os itens mágicos necessários. O enredo prevê a separação eventual da irmandade em pontos-chave da narrativa, e o sacrifício de algum dos seus membros. O centro da dinâmica entre os personagens é o relacionamento do herói de queixo quadrado Ian Aranill com seu amigo orc, Gmor (que contribui com o alívio cômico), e de Ian com a irmã, Myrva. Há uma ênfase especial nas guildas de magos, aviadores e técnicos, já que a série tem um lado steampunk. Inclusive, Myrva faz parte da ordem dos tecnocratas e integra a irmandade. O desenho claro, de traço robusto e de claro-escuro discreto de Matteoni dá conta de tudo.

O enredo leva o leitor a conhecer paulatinamente os membros da irmandade, o seu mundo secundário e a problemática que eles precisam resolver: um poderoso mago-vilão libera hordas de demônios antes confinados na zona proibida da “Antiga Interdição”. Para reerguer a interdição, é preciso plantar no coração do seu território uma planta mágica que viaja sob a custódia de uma pequena elfa reclamona e relutante, que é o último membro da irmandade a ser recrutado. Na premissa, há algo de J. R. R. Tolkien e de Terry Goodkind. No caminho dos heróis, viagens a terras distantes pela terra e pelo ar, duelos contra velhos desafetos e reencontros com velhos amigos, luta contra demônios cada vez mais numerosos, sacrifícios pessoais, um duelo de magos e, finalmente, um dragão redivivo. O ritmo é excelente, no desdobramento do enredo que pontua o maravilhamento da descoberta desse mundo mágico pelo leitor, e o conteúdo épico da narrativa, com momentos sombrios crescentes. Peter Jackson transformaria isso tudo em um blockbuster definitivo.

 

Príncipe Valente 1940, de Hal Foster. Planeta DeAgostini, 2019, 64 páginas. Introdução de Beatriz C. Montes. Tradução de Carlos Henrique Rutz/Estação Q. Capa dura. Após escapar da tentativa de assassinato do usurpador Piscaro, e de libertar o nobre Cesario, o Príncipe Valente parte, acompanhado de Sir Gawain e de Sir Tristão e com recursos renovados, na missão de deter quatro mil hunos que se aproximam. Logo no início, tem-se uma página com um violento choque de cavalaria. Com a ajuda do seu novo escudeiro, o malandro Slith, Valente bola um plano para derrotar o chefe dos hunos, Karnak, com mais ação clássica de cavalaria pouco adiante na narrativa. No aftermath, Valete socorre um mensageiro ferido, e descobre se tratar de uma garota disfarçada de rapaz. Ela tem origem nobre e, com o disfarce, busca continuar a liderança paterna na resistência aos invasores. Enquanto rola esse pequeno arco romântico, que recupera o leitmotif da moça que assume papel masculino em homenagem à autoridade paterna (que vemos desde Grande Sertão: Veredas, a Mulan), Valente vai pescar sozinho e retorna para se defrontar com uma delegação de nobres de várias regiões demandando que ele os lidere, como um Alexandre, para a vitória sobre um “mar de sangue huno”. Já apontei aqui como o volume anterior apresentou o início do ciclo sobre as guerras dos hunos, marcado pela uma crueldade. Aqui, quando Valente recebe os nobre e generais, ele se nega a liderá-los, indicando um livro com a “história do mundo” (de Plutarco?):

“Aqui, sob a minha mão, está a história do mundo. Jamais encontrarei uma conquista à força que seja duradoura. Alexandre e César, cada um a seu tempo, dominaram o mundo. Mas onde estão suas conquistas agora? O que aconteceu com a Babilônia, a Pérsia e Cartago? Os frutos da conquista são apenas inimizadas amargas. Não, meus nobres senhores, eu empenhei minha espada apenas às causas da justiça e da liberdade!” —Hal Foster. Príncipe Valente.

O trecho não apenas reafirma a mística arturiana de ideais civilizadores, como tempera as aventuras do herói com uma reflexão pacifista a partir da leitura e da ponderação. Assinalando os novos ares da saga, Valente e seus amigos Gawain e Tristão partem para Roma, com o primeiro cavaleiro se metendo em uma série de situações cômicas e desastradas, e com Valente partindo, mais adiante, para livrar uma região do arbítrio de um gigante. Começa um dos arcos que conheci na infância e que é dos mais nostálgicos para mim, pela sua mensagem contra o preconceito. Aí também temos um retorno ao espaço menos histórico e mais mítico da fantasia, embora a figura do gigante seja racionalizada, como outros ícones da fantasia, na crianção de Foster. Quanto ao ciclo dos hunos, ele só termina algumas páginas adiante, quando Valente e seus companheiros conseguem levar a ação até o acampamento principal dos invasores. Mais adiante ainda, Valente resgata um mercador árabe que lhe dá, em reconhecimento, um colar especial que vai tirar o herói de alguns apuros, no futuro. Uma vez, em Roma, mais encrencas aguardam os companheiros, com Valente sendo apanhado no meio de uma intriga do imperador contra o popular General Aécio. Os três são aprisionados, e escapam quando o imperador é alvo de uma revolta. Perseguido pelas montanhas, Valente margeia uma erupção do Vesúvio, e fecha o volume tomando um barco do seu capitão pirata.

 

Príncipe Valente 1941, de Hal Foster. Planeta DeAgostini, 2019, 64 páginas. Introdução de Beatriz C. Montes. Tradução de Carlos Henrique Rutz/Estação Q. Capa dura. Neste ano da publicação da página dominical de Príncipe Valente, importantes personagens secundários aparecem pela primeira vez: o pirata Angor Wrack e o mercador viking Boltar (que chegou a aparecer no filme de 1954). Principalmente, Aleta, a rainha das Ilhas da Bruma e futura esposa de Valente e mãe dos seus filhos. Eu me lembro de ter lido esta sequência há muito tempo, quando era menino, nas edições de capa amarela da Editora Paladino e em formato de livro (N.º 11, 1972).

Resistindo à tentação dos seus tripulantes de se aplicarem à pirataria, Valente termina ironicamente prisioneiro do escravagista Angor Wrack. Ao escapar, ele acaba em um bote à deriva durante dias, até ir parar em uma praia deserta, onde é socorrido momentaneamente por um anjo louro, que se torna sua obsessão. Esse anjo é Aleta, que deixa com o moço um bilhete que afirma que ninguém pode viver, depois de aportar na suas ilhas no Mar Egeu, mas que ele é jovem demais para morrer. Após curtas peripécias, ele vai parar na cidade litorânea de um velho rei que o toma como refém para pedir resgate. Valente encanta as duas filhas do rei, enquanto reúne recursos para a fuga, mas os cede a uma das filhas, para que ela possa fugir com um marinheiro que conquistara o seu coração. É um episódio bonito, e um refresco necessário a todo o sangue e cinismo do ciclo dos hunos. Mas quando Angor Wrack surge no palácio do rei para uma visita, o irritável herói puxa a espada. Nesse ponto, Foster produziu o fabuloso painel com o polvo gigante no fosso em que Valente é atirado, por ter agredido o convidado do rei. Após nova fuga, Wrack, que havia se apoderado da Espada Cantante de Valente, se torna a sua nova obsessão. Mas é no deserto e não no Mediterrâneo, que os dois se reencontram, aprisionados por ladrões enquanto duelam. Valente acaba escravizado na propriedade de um mercador árabe, ganhando parte das suas graças quando sua cultura o torna valioso como escriba. O plano de fuga de Valente envolve seduzir a morena filha do mercador, um padrão que se repete ao longo da saga, e que o herói deve ter emprestado do seu companheiro Gawain, o galanteador. Livre, ele vai parar em outra situação fantástica, desta vez não racionalizada, envolvendo um mago e a sua firme e bocuda esposa — outro momento divertido de observação psicológica, lastreado pela fantasia, do qual eu me recordava com muita afeição. O volume acelera com novo reencontro com Wrack. Agora, a cooperação anterior entre os dois teria funcionado como prova mútua de valor, e eles se tornam amigos — quando a narrativa é forçada a abafar o passado escravista de Wrack, algo pouco harmonizado com os valores da cavalaria e da Távola Redonda do Rei Artur. De novo de posse da Espada Cantante, Valente combate piratas, mas em nova circunstância moralmente ambígua, termina se associando ao pirata viking Boltar, para seguir com novas aventuras.

—Roberto Causo

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