Tag Arquivo para Robin Hobb

Leituras de Fevereiro de 2020

Em fevereiro, muita arte de Star Wars nos quadrinhos, muita ficção científica brasileira, um romance de Robin Hobb e histórias de Robert Sheckley.

 

Arte de capa de Dave Dorman.

Star Wars Art: Comics, de anônimo, ed. Nova York: Abrams, 2011, 180 páginas. Foreword de Dennis O’Neil, prefácio de Douglas Wolk, introdução de Virginia Mecklenburg. Arte de capa de Dave Dorman. Hardcover. O exemplar que adquiri deste livro é testemunha e sobrevivente dos maus tratos recebidos por livros de arte com sobrecapa, em muitas livrarias brasileiras. Foi comprado com desconto substancial na loja Geek.etc.br, em São Paulo, com rasgo na lombada e a sobrecapa ausente. A que aparece ao lado foi apanhada na www, e traz uma linda e impactante ilustração de Dave Dorman com ecos de Frank Frazetta, feita originalmente para a minissérie Star Wars: Crimson Empire. É claro, se o livro estivesse inteiro e impecável, eu dificilmente teria como adquiri-lo.

Há algo de catálogo de galeria na sua organização, com reproduções que buscam o original com seus defeitos, e itens majoritariamente com ausência de letreramento e outros toques gráficos finais. Num sentido semelhante, o livro dá atenção não só às artes “oficiais”, que resultaram em produtos de venda massificada, mas também às requests — artes encomendadas (“private commissions“, como o livro adota). Muitas vezes, são grandes nomes produzindo essas encomendas, como Joe Kubert, Mike Mignola, Bill Sienkiewicz, John Cassaday, Michael Kaluta, John Romita, Arthur Adams, P. Craig Russell, George Pérez, Paul Gulacy e Carlos Sarzon. Os editores até reservaram a uma request um dos spreads de quatro páginas do livro: uma arte de J. H. Williams III.

Em termos de artes de capa, existe um look de Star Wars consagrado nas revistas em quadrinhos. Os responsáveis são, principalmente, Dave Dorman, Ken Kelly e Hugh Fleming — com a arte do cartazista de cinema Drew Struzan como influência nos bastidores (ele não está no livro). No que diz respeito à arte de miolo, temos itens desenhados por Howard Chaykin, Dave Cockrum, Al Williamson, Carmine Infantino, Terry Dodson, Tony Dezuniga, Drew Johnson, o canadense Michel Lacombe e o japonês Hiromoto-Sin-Ichi. Alguns painéis de Killian Plunkett são especialmente impactantes, mas gostei mesmo foi de ver as páginas a lápis de Doug Wheatley, cujo trabalho com o ciclo Dark Times eu achei fabuloso. Senti falta de páginas desenhadas por Walt Simonson, que trabalhou com Star Wars na primeira fase da franquia com a Marvel, e de Cam Kennedy. A única arte que expressa o que temos visto mais recentemente, com o domínio da cor digital, é um request de Ryan Sook. O requisitado Adam Hughes também está presente, assim como o destacado capistas de FC Jon Foster, e me agradaram as páginas em preto e branco de David Michael Beck, muito utilizadas ao longo de todo o livro. Fiquei agradavelmente surpreso com o registro de brasileiros que trabalharam com Star Wars nos quadrinhos: Rodolfo Damaggio e Rod Pereira. Star Wars Art: Comics é um livro precioso, que expressa a produtividade do universo de Star Wars no campo da arte de ficção científica, e um registro do seu impacto na FC em quadrinhos. As requests também nos falam da força afetiva desse universo sobre o público, e o interesse de colecionadores sobre ele. Fecha com a transcrição de uma reunião de trabalho entre George Lucas e Howard Chaykin, quando da adaptação do filme Guerra nas Estrelas (Star Wars, 1977), com o então editor da Marvel, Roy Thomas, intermediando a conversa que resultaria no pontapé inicial da presença de Star Wars no universo dos quadrinhos.

 

Arte de capa de Jackie Morris.

Blood of Dragons: Volume Four of the Rain Wilds Chronicles, de Robin Hobb. Nova York: Harper Voyager, 1.ª edição, 2014 [2013], 482 páginas. Arte de capa de Jackie Morris. Paperback. Robin Hobb, conhecida no Brasil pela série Crônicas do Assassino (The Farseer Trilogy), fecha com este volume a sua tetralogia The Rain Wilds Chronicles, parte do mesmo universo da Farseer Trilogy e da trilogia Mercadores de Navios-Vivos (Liveship Traders). Ele se conecta mais com essa última. Às vezes, o volume final de uma série fica sobrecarregado com linhas narrativas a entrelaçar, pontas a amarrar, e os último traços de drama a raspar do tacho. Blood of Dragons sofre um pouco com isso. Os cuidadores de dragões e seus associados estão em Kelsingra, a antiga cidade dos elderlings que serviam aos dragões e recebiam longevidade e magia em troca. Os tratadores seguem se transformando fisicamente em elderlings, agora com uma atenção maior dos “seus” dragões guiando o processo. Enquanto isso, em outra região do mundo secundário, Tintaglia, a primeira dragão a retornar ao mundo em gerações, é emboscada e ferida pelos soldados do vilânico Duque de Chalced. Subindo o rio, o casal Malta e Reyn Khuprus seguem para Kelsingra, na esperança de reverterem as deformidades do seu filho recém-nascido. Hest, o marido gay de Alise Kincarron, também está a caminho por outras vias, posto em movimento pela ameaça dos agentes de Chalced. Obviamente, chegando à cidade mágica ele tem o potencial de causar muitas complicações para ela e o seu novo homem, o capitão Leftrin, e também para o ex-amante de Hest, Sedric.

Uma das linhas narrativas que mais cresce em peripécias e em força dramática a de Selden, irmão de Malta e um prisioneiro do Duque de Chalced, vendido a ele como um homem-dragão que pode curar o tirano, se este consumir a sua carne. Enquanto se recupera dos maus tratos sofridos em cativeiro, Selden é cuidado pela filha do duque, Chassim, ela mesma vítima da crueldade do pai. Os dois formam uma desesperada aliança. A linha que perde mais é a de Thymara, protagonista em vários momentos dos livros anteriores, e que conserva importância neste último volume. Ela se empenha em descobrir o segredo da regeneração de dragões e elderlings. Mas essa importância acaba empalidecida. Me parece que, na tetralogia, Hobb buscou se aproximar de várias características da fantasia jovem adulta. A heroína dividida em seu amor por dois rapazes se tornou um dos estilemas dessa literatura, que Hobb adota aqui e que meio que abafou as possibilidades de crescimento da personagem, que em Blood of Dragon se caracteriza pela apatia causada pela dúvida cruel. Ao tratar da questão da homossexualidade, Hobb incorpora Kelsingra como um espaço utópico potencial de liberdade e diversidade. Divide, porém, os gays entre os honestos e abertos como Sedric e seu namorado, o caçador Carson; e os que mantêm sua opção secreta e são dissimulados, manipuladores e oportunistas, como Hest. É uma problematização interessante e significativa. Mas a necessidade de fazer Hest ter todas as chances de aprender pela dor e pelo medo, porém recusando-se, coloca-o como a figura a ser punida pelos episódios catárticos ao final do romance. Até mesmo o francamente vilânico Duque de Chalced sai de cena sem tanta fanfarra e ironia sobre ele. Não discordo do destino que Hobb reserva a Hest, apenas me incomoda que tanto foco sobre ele tenha roubado o desenvolvimento de personagens talvez mais interessantes, como Thymara e Alise.

De qualquer modo, Blood of Dragon é uma conclusão satisfatória e, em vários momentos, empolgante da tetralogia. Em especial, a batalha final na capital de Chalced é realmente eletrizante. Um novo status quo é estabelecido para essa região do mundo secundário de Robin Hobb. Os dragões — e os elderlings — estão definitivamente de volta, e o leitor aprende muito sobre o passado desse mundo.

 

Arte de capa de Túlio Cerquize.

Vislumbres de um Futuro Amargo, de Gabriela Colicigno & Damaris Barradas, eds. São Paulo: Magh Agência Literária, fevereiro de 2020, 200 páginas. Prefácio de Roberto Causo. Ilustrações de Renata Aguiar, Deoxy Diamond, Estevão Ribeiro, Roberta Nunes, Stephanie Marino e Roberto de Sousa Causo. Arte de capa de Túlio Cerquize. Brochura. A Agência Literária Magh de Gabriela Colicigno montou um showcase dos seus autores mais novos, em torno do tema de um futuro pessimista e a partir de um projeto de financiamento coletivo via Catarse. Esta antologia original de ficção científica traz, portanto, histórias de Anna Martino, Lady Sybylla, Waldson Souza, Lu Ain-Zaila, Cláudia Fusco e Roberto Fideli. Além disso, as histórias foram ilustradas por Renata Aguiar, Deoxy Diamond, Estevão Ribeiro, Roberta Nunes, Stephanie Marino e R. S. Causo (com colorização de Marino). A arte de capa é de Túlio Cerquize e a diagramação cheia de colorido é de Paula Cruz. Eu tive a honra de escrever o prefácio, que você encontra nesta postagem aqui.

O prefácio comenta o sentido geral da antologia e trata de cada história individualmente, de modo que estas anotações podem ser mais curtas. Mas eu gostaria de mencionar que as histórias que mais me chamaram a atenção foram, na ordem em que aparecem no livro, “Antônio do Outro Continente”, de Anna Martino; “O Pingente”, de Cláudia Fusco; e “SIA Está Esperando”, de Roberto Fideli. Quanto às ilustrações, têm estilos bem diferentes, mas a delicadeza e competência técnica de Deoxy Diamond se destacam. Também gostei de ver Estevão Ribeiro no livro.

 

Pilgrimage to Earth, de Robert Sheckley. Nova York: Bantam Books, 3.ª edição, 1964 [1957], 168 páginas. Paperback. Quando entrei no Clube de Leitores de Ficção Científica em 1986, o escritor americano Robert Sheckley era um favorito dos leitores mais velhos, sendo uma influência sobre o escritor Ivan Carlos Regina. Em 1987, cheguei a fazer a ilustração de capa do seu Ômega, o Planeta dos Condenados, publicado pelas Edições GRD. Como o meu contato com a ficção curta dele havia sido esporádico, resolvi ler esta coletânea da sua primeira fase, reunindo histórias publicadas entre 1952 e 1956. A maioria delas foi publicada na Galaxy, a revista com a qual ele mais se identificou. Este exemplar pertenceu ao escritor Clóvis Garcia, da Primeira Onda da FC Brasileira.

A história que dá título ao livro apareceu na Playboy em 1956: um interiorano dos confins da galáxia chega à Terra, cuja derivação para o futuro a transformou em um planeta de hábitos esquisitos, tema recorrente na FC. O rapaz vem em busca de algo ausente na sociedade de sexo livre do seu planeta: o amor. Mas sem saber que o sentimento se tornou só mais uma commodity… assim como a fidelidade feminina. Algo que me surpreendeu foi como algumas histórias soam repetitivas em estilo e estrutura. Em geral, um protagonista ingênuo ou arrogante se depara com situações de FC que expõem a insensatez humana, muitas vezes com um fundo de crítica à adesão do gênero aos parâmetros da literatura colonial do passado — em uma época, a década de 1950, em que o mundo sofria um movimento de descolonização. “Human Man’s Burden” é a história em que isso está mais explícito. Apresenta, em tom farsesco, um colono proprietário de um planeta. Ele é muito solitário, vivendo só com seus auxiliares robôs que falam com o dialeto dos escravos americanos. Ele encomenda uma esposa de uma empresa especializada, mas ao invés do modelo de mulher simples e trabalhadora escolhido, vem, por engano, uma elegante beldade. Os dois, é claro, aprendem a se amar apesar das diferenças, a superar seus vícios de origem, e a cuidar dos seus escravos com afeição.

“All the Things You Are”, “Early Model” e “Milk Run” têm os protagonistas envolvidos com erros crassos ao tratar com culturas alienígenas/estrangeiras. A última história é seguida de “The Lifeboat Mutiny”, que apresenta a mesma dupla de heróis, dois amigos que operam uma empresa de transporte espacial driblando diferentes momentos de esperteza capitalista e de teimosia robótica. Inventos, máquinas e serviços robotizados que enfiam os heróis em situações difíceis formam uma outra constante. Mas “Fear in the Night” é um conto de horror psicológico, a única história protagonizada por uma mulher. “Disposable Service” provavelmente também se insere no horror, lembrando inclusive alguns contos de Stephen King, a partir da premissa de um homem que descobre um serviço de eliminação de pessoas e o contrata para sumir com sua mulher, com quem está estranhado, mas é surpreendido por ela ter se antecipado a ele na contratação da mesma empresa. O desencanto bastante cáustico de Sheckley com a condição humana e sua preocupação com o futuro da sociedade moderna é resumido no conto distópico “The Academy”, no qual um diagnosticador automático de sanidade empurra o herói desajustado a uma terrível conclusão:

“O Status Quo não poderia durar para sempre. E o que a humanidade faria, com toda a dureza, a inventividade, a individualidade extirpada da raça?” —Robert Sheckley.

 

Fazenda Modelo: Novela Pecuária, de Chico Buarque. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 3.ª edição, 1975, 140 páginas. Brochura. Esta é uma novela distópica brasileira, estudada por M. Elizabeth Ginway no capítulo sobre o Ciclo de Utopias e Distopias do seu importante Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (2004). O livro segue a deixa de A Revolução dos Bichos (Animal Farm, 1945), de George Orwell, mas incorpora muitas técnicas daquilo que foi chamado no Brasil de literatura pop, uma das tônicas da década de 1970. O autor, claro, é o cantor, compositor e romancista premiado. Adquiri o livro, usado, na banca Combo Café & Cultura, aqui em São Paulo, em 15 de fevereiro, quando essa banca recebia o lançamento de Vislumbres de um Futuro Amargo.

Uma fazenda modelo — como aquela que eu visitava com meus pais nas vizinhanças de Campinas, para ver uma das minhas tias do lado paterno, que morava e trabalhava lá com o marido e os filhos — é alegoria do Brasil sob o planejamento e a direção tecnocrática e autoritária da ditadura. A densidade absurdista da novela a afasta da obra orwelliana, e deve ter ajudado o livro a escapar da atenção pouco instruída da censura. Abre com um pseudo-prefácio de tom sério, afiançando a importância histórica da experiência da Fazenda Modelo, relatada no que vem a seguir. Mas o componente absurdista logo se afirma: o narrador memorialista se inclui entre os animais da fazenda, ao reportar como as coisas eram antes, a vida boa, o sossego e o amor livre — o “sonho brasileiro”, como tenho chamado. Insatisfeitos com a balbúrdia e com a baixa lucratividade, a direção internacional da fazenda, composta só de gente com nome gringo iniciado com K, promulga Juvenal como o “Bom Boi, conselheiro-mór da Fazenda Modelo”, virtual ditador do lugar, que escolhe como fetiche virilizante e reprodutor número 1 o touro Abá. (Reprodução e controle da sexualidade é um tema constante do nosso Ciclo de Utopias e Distopias, inclusive no cinema.)

Com recursos de montagem e diferentes registros, os recursos pop incluem mapa, poemas, formas concretistas, anotações em diário, listagens, pseudo-escrituras, pseudo-matérias jornalísticas e onomatopeias. Tudo para expressar o ufanismo fora de lugar e a tragédia cotidiana na ascensão e a queda de Abá e da Fazenda Modelo, país imaginário, alegórico, em que a humanidade e a vida pacata, mesmo que fundada em ignorância, que é o traço do sonho brasileiro na novela, foram arregimentados e reprimidos em favor de um projeto fracassado de saída. As linhas finais parecem valer tanto para aquela época quanto para o nosso agora:

“[E]ntão Juvenal mandou liquidar o gado restante, ele compreendido, decretando o fim da experiência pecuária, da Fazenda Modelo, e destinando seus pastos, a partir deste momento histórico, à plantação de soja tão-somente, porque resulta mais barato, mais tratável e contém mais proteína.” —Chico Buarque, Fazenda Modelo.

 

Outras Obras do Ciclo de Utopias e Distopias

Adaptação do Funcionário Ruam , de Mauro Chaves. 1975.

Um Dia Vamos Rir disso Tudo, de Maria Alice Barroso. 1976.

O Fruto do Vosso Ventre, de Herberto Sales. 1976.

Umbra, de Plínio Cabral. 1977.

Asilo nas Torres, de Ruth Bueno. 1979.

Piscina Livre, de André Carneiro. 1980.

Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão. 1981.

Depois do Juízo Final, de Silveira Júnior. 1982.

 

Vapt-Vupt, de Álvaro de Moya. São Paulo: Clemente & Editora, 2003, 180 páginas. Introdução de Maurice Horn. Brochura. Shazam! (1970), o estudo da história, estrutura e linguagem dos quadrinhos escrito por Álvaro de Moya (1930-2017), foi um dos primeiros livros sobre o assunto — e sobre o mundo nerd/geek — que eu li na vida. Naquela época eu costumava ver de Moya na TV falando sobre a arte das histórias em quadrinhos. Ele se manteve ativo, e  estive com ele em um par de ocasiões, inclusive em 2013, poucos anos antes da sua morte. Uma figura admirável da cultura nerd nacional. Esta reunião de artigos publicados originalmente na Revista Abrigraf (a Associação Brasileira da Indústria Gráfica), eu adquiri no Sebo Riachuelo, no centro de São Paulo. Uma publicação adorável, que, como livro de arte e apesar de um problema gráfico ou editorial aqui e ali, é motivo de admiração. Ganhou o Troféu HQ Mix 2003 de “Melhor Livro Teórico” (aspas porque há pouco de teórico aqui; o termo “não ficção” bastaria).

Uma entrevista com o americano Will Eisner funciona como prólogo e um artigo sobre a imprensa brasileira e as HQs como preâmbulo, antes das diversas seções do livro: “Autores”, “Personagens”, “Miscelânea” e uma seção sobre a Comic Con organizada pela Escola Panamericana de Arte em 1994, com várias listas de super-heróis nacionais e estrangeiros, além dos principais convidados do evento funcionando como anexos. A primeira traça o perfil de nomes como J. Carlos, Alex Raymond, Milton Caniff, Burne Hogarth, Jules Feiffer, Moebius, Hugo Pratt, Jerry Robinson. Muitos suspeitos usuais, que dão espaço para a erudição que de Moya construiu a respeito do campo. Mas eu me perguntou se ele não teria sido um dos primeiros, no Brasil, a reconhecer o talento extraordinário de Neil Gaiman. Dentre os grandes personagens das HQs, ele prestigia o Gato Felix, o Pato Donald, o Fantasma, Tintin, o Príncipe Valente, Mandrake, Recruta Zero, Tex, Mafalda, Asterix e os principais personagens cômicos, em três artigos seriados. Um ensaio sobre o romance gráfico Maus, de Art Spiegelman, está deslocado nessa seção. A lista deixa claro que os sindicalizados americanos têm um grande relevo na memória e no apreço do autor, compreensivelmente, e é importante que o livro garanta que o leitor mais jovem conheça mais sobre eles. Na verdade, a visão do autor é bastante internacional: ele fala dos quadrinhos italianos da Bonelli tanto quanto de mangás e de eventos na Itália e no Brasil. O formato de compilação de artigos inevitavelmente inclui recapitulações e repetição de informações, que não incomodam. Por outro lado, os artigos sobre os quadrinhos brasileiros são minoritários e carentes de informações mais palpáveis, como datas esboços biográficos dos artistas. Em especial no artigo “Quadrinistas Brasileiros Desenham para os Estados Unidos” (1993), raro registro de um momento especial na história dos artistas nacionais, que ainda se desenrola. Menciona o escritor Júlio Emílio Braz e vários artistas da “minha época”: Mozart Couto, Deodato Filho (“Mike Deodato”), Watson Portela, Vilela e Hector Gomes Alísio. Menciona a aventura do estúdio agenciador Art&Comics — da qual o nosso Vagner Vargas participou fazendo a arte de On a Pale Horse, de Piers Anthony —, mas não dá nomes nem datas ou detalhes específicos. Difícil discordar, porém, do seu veredito sobre as HQs nacionais:

“[O] calcanhar de Aquiles dos quadrinhos brasileiros se revela. Seus roteiros são pueris. Previsíveis, derramados. Sem desenvolvimento, sem idéias boas em princípio. O mesmo problema do cinema nacional, do teatro, da televisão. A escrita, a narrativa, a história, enfim, deixam a desejar.” —Álvaro de Moya. “Quadrinistas Brasileiros Desenham para os Estados Unidos”. In Vapt-Vupt.

Com certeza, as coisas mudaram da década de 1990 para cá, mas os sinais de uma sociedade grandemente iletrada persistem nesses meios. Interessante que algumas das tiras que ele destaca nos seus levantamentos centrados nas publicações brasileiras Tico-Tico, O Globo Juvenil e Gibi, tinham elementos de aventura, mistério e FC: A Garra Cinzenta (1937), de Francisco Armand; O Audaz (1938), de Messias de Melo; e Roberto Sorocaba (1934), de Monteiro Filho (que mereceu um obituário incluído no livro), artista que também fez as capas da edição da EBAL de Flash Gordon no Planeta Mongo. Por tudo isso e pelas ricas reproduções de páginas, painéis e capas, Vapt-Vupt me fez viajar na nostalgia e na sua fortuna de informações, dispostas de modo fluido na voz de um homem que claramente conhecia muito e amava ainda mais o mundo das histórias em quadrinhos.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Rafael Albuquerque.

Eight: Forasteiro (Eight), de Rafael Albuquerque [arte] & Mike Johnson [texto]. Barueri-SP: Panini Comics, 1.ª edição, 2015, 130 páginas. Apresentação de Sean Murphy. Tradução de Rafael Scavone. Brochura. Projeto muito interessante, esta HQ de ficção científica foi concebida pelo artista brasileiro Rafael Albuquerque e publicada originalmente pela americana Dark Horse Comics, com texto escrito por Mike Johnson. Eu o comprei na Geek.etc.br, juntamente com o livro de arte Star Wars: Comics. Trata-se de uma FC de viagem no tempo, com direito a dinossauros e com um clima de história de ação — mais uma HQ que parece buscar um lugar ao sol como adaptação para o campo superaquecido do audiovisual.

A arte de Albuquerque tem uma intensidade descabelada, semelhante à de Lorenzo de Felici, mesmo com um traço solto e econômico. A história tem o crononauta Joshua alcançando o ponto de chegada sem lembranças da sua missão. Tem apenas algumas pistas, mas ele é logo abduzido por um grupo de patrulheiros que o tomam por inimigo, levando-o a apanhar de uma garota especialmente caxias. Ele é levado a um aldeamento meio tribal e de gambiarra com sucata futurista, onde é adotado pela caçula dessa garota. Com toques hábeis, aprende-se algo sobre essa comunidade que luta contra tigres-dentes-de-sabre e dinossauros, e voa nas costas de répteis voadores pré-históricos… Aos poucos, o herói vai montando a lembrança dos objetivos da sua missão, com a ajuda eventual dos locais. Ao mesmo tempo, ele se envolve no  conflito deles com um império com pinta de fantasia científica — e a presença de um outro crononauta.

A história é elevada pelo intrincado enredo de Johnson, e o desenho de Albuquerque pelo seu uso de espaço negativo e de um esquema de duas cores por página, variando engenhosamente o jogo tonal contra o verde-acinzentado de base, que dá sombra e volume às formas. Os personagens não possuem a mesma criatividade: o herói atarantado, o mentor cientista, as garotas duronas e a menininha gentil e esperta, o vilão arrogante e imperial. As reviravoltas e revelações perto do final dão esperança, porém, de que o próximo volume trará um desenvolvimento ainda mais instigante.

—Roberto Causo

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Game of Thrones: Xeque-Mate

Roberto Causo analisa a criação literária de George R. R. Martin que inspirou a série de TV Game of Thrones como uma “alta fantasia pós-modernista” que assinala as dificuldades do escritor atual em reproduzir as características clássicas da tragédia.

Game of Thrones: Xeque-Mate

 

 

 

A Game of Thrones na edição inglesa em paperback de 1998, pela HarperCollins. De execução soberba, a arte de capa de Jim Burns tem uma composição desajeitada.

Conheci os livros de George Martin quando do lançamento das suas primeiras edições. Mas parei em A Game of Thrones (1996) por me parecer uma criação de fantasia rica e arrojada, mas com um elemento muito forte de “idiot plot” — situação em que, para o enredo avançar, os personagens precisam se comportar como idiotas. Especificamente, Ned Stark e boa parte de sua família, que mergulham na arapuca das intrigas palacianas aparentando não enxergar o óbvio perigo que correm. Até cheguei a escrever uma pequena resenha para o fanzine americano FOSFAX, de Timothy Lane, apontando essa característica decepcionante.

Assistindo as oito temporadas da versão televisiva da obra de Martin, foi ficando cada vez mais evidente que o centro da sua criação está na constante subversão das expectativas do leitor/espectador quanto ao caráter de heróis e vilões, e a punições e recompensas. Da sua narrativa emerge um forte senso de arbitrariedade dos fatos, e de violenta eventualidade da vida. Isso é estendido para além da sina dos personagens, para alcançar a dimensão dos deuses e cultos que existem em Westeros e nos continentes vizinhos do mundo secundário criado por Martin. O tempo todo, nossa interpretação de quem um personagem é e nossa análise do seu caráter são solapadas pela narrativa. Levamos uma “rasteira” atrás da outra.

Sempre que penso nessa questão, me lembro de uma declaração de Raymond Chandler que respeito muito. Ele fala de estilo e de intelectualismo autoconsciente atrapalhando o resultado final de um livro. Mas acredito que também trata do fato de que o autor necessita do entendimento do leitor para alcançar os seus efeitos. Nisso, o escritor deseja ter o leitor como parceiro na construção dos sentidos da narrativa:

“Os escritores sortudos são aqueles que conseguem superar seus leitores em escrita, sem os superar em pensamento.” —Raymond Chandler.

Em Martin, a repetição das “rasteiras” no leitor é constante. Às vezes, ressaltada pela sugestão de que a sobrevivência e a ressurreição de certos personagens igualmente obedecem a um sentido de arbitrariedade e possível falta de sentido. A minha intuição é de que parte das rasteiras se baseia na subversão de alguns aspectos da tragédia como forma narrativa clássica: a “falha trágica” (hamartia, em grego) e o “castigo catártico do vilão” (katharsis).

No primeiro caso, o herói apresenta uma falha de atitude ou um erro de decisão que, ao final da narrativa, o leitor ou espectador identifica como atrelado à sua derrocada, que a tragédia reserva. Assim, Ned Stark, amparado por um sentimento de dever e honra estrito demais, é burocrático ao cortar a cabeça de um homem que vem de além da Muralha do Norte com notícias do surgimento dos white walkers, sem se dar ao trabalho de interrogá-lo e se inteirar do que se passa. E no final do livro, tem a própria cabeça cortada, tendo falhado em enxergar corretamente a proporção do seu isolamento na estrutura de poder na corte. Mais adiante na narrativa, Robb Stark, em sua campanha contra o reizinho Joffrey Baratheon, escolhe o amor verdadeiro acima de um casamento de aliança, e tem a totalidade dos seus esforços destruída no “Casamento de Sangue”. E ainda, Brienne of Tarth é traída por seus nobres valores de chivalry, ao jurar lealdade a Lady Catelyn Stark, que ordena (nos livros) a sua execução depois de ela defender Jaime Lannister. A falha trágica, mesmo que sinal de caráter e integridade, marca o ponto fraco na armadura do herói que permite que a ironia dos deuses se faça sentir sobre ele.

No segundo, vilões como Joffrey e Tywin Lannister sofrem mortes grotescas e humilhantes, caindo do pedestal de uma maneira que oferece catarse ao leitor/espectador. Ele ou ela sente que o castigo foi merecido ou que, de algum modo, parte do mal realizado pelo vilão é atenuado pela sua “punição” — ou ainda, que as pessoas sobrevivem aos malfeitos. Em certa medida, com a catarse é como se o universo moral da tragédia fosse reequilibrado e renovado. Obviamente, o extremo disso é o excesso hollywoodiano dos filmes de ação, em que os vários sub-antagonistas do herói sofrem mortes cada vez mais grotescas, culminando com o vilão-mór sofrendo o máximo do grotesco que os roteiristas conseguiram imaginar.

O que Martin faz é exagerar tais recursos da tragédia pela repetição e pela arbitrariedade que parece saltar da sua construção narrativa. Isso é consoante com algumas instâncias de atitude modernista e pós-modernista de contornar certos efeitos literários para afirmar outros ou para declarar a ineficácia dos processos antigos, perante um estado de coisas atual, diverso do espírito do tempo que deu origem, neste caso, à tragédia grega ou às tragédias shakespeareanas.

Nesse sentido, um outro exemplo bastante claro da denúncia da catarse pela repetição grotesca está nos filmes de Quentin Tarantino, em que a punição de vários vilões e subvilões é superestendida em demoradas sequências de hiperviolência — como a do final de Django Livre (2012). No seu Bastardos Inglórios (2009), a ironia feroz está na plateia nazista que celebra um franco-atirador alemão em um documentário, e que acaba metralhada pelos anti-heróis dessa história alternativa (que logra matar Hitler antes do fim da guerra). Simbolicamente, a audiência metralhada explicita o desprezo do realizador/roteirista pelo desejo dos espectadores pela punição catártica. Em Game of Thrones, no último episódio da última temporada Tyrion Lannister nos lembra do engano que foi torcer (os personagens e os espectadores, certamente) por Daenerys Targaryen.

A certa altura destas minhas reflexões, me recordei da leitura do romance A Mulher do Tenente Francês (The French Lieutenent’s Woman; 1969), do inglês John Fowles, um clássico da metaficção pós-modernista, e da minha reação a ela ainda enquanto cursava a Faculdade de Letras. Nesse livro, situações sociais e amorosas da Era Vitoriana são expostas e discutidas pelo narrador, de maneira explícita e ensaística. O objetivo é deixar claro a impossibilidade do romancista contemporâneo recriar o passado literário e histórico de uma outra época. Para isso, ele aponta as insuficiências daquelas convenções literárias perante o espírito do tempo do século 20. Nos primeiros capítulos, o narrador onisciente dá dicas de que escreve a partir de meados do século 20. Mas no capítulo 13 ele escancara:

“Não sei. Esta história que eu conto é tudo imaginação. Estes personagens que criei nunca existiram fora da minha mente. Se eu fingi até aqui conhecer a mente e os pensamentos mais íntimos dos meus personagens, é porque (assim como algo de seu vocabulário e ‘voz’) escrevo dentro de uma convenção universalmente aceita na época da minha história: a de que o romancista está perto de Deus. Ele pode não saber tudo, todavia finge saber. Mas eu vivo na era de Alain Robbe-Grillet e Roland Barthes; se isto é um romance, não pode ser um romance no sentido moderno da palavra.” —John Fowles.

O problema — pelo menos na minha leitura, e admito que muito provavelmente estou sozinho nela — é que as situações vitorianas do livro, mesmo mantidas em um estado de fragmento ou “rascunho” pelos comentários do narrador, são tão mais interessantes e engajantes em termos humanos, que a sua combinação com os comentários firmam uma qualidade esquizofrênica. Essa qualidade enfraquece as pretensões de ruptura e distanciamento intelectual necessárias para a metaficção que Fowles busca. Compromete o objetivo de declarar a insuficiência das convenções literárias do romance de meados do século 19, porque elas operam com um certo fulgor na mente de quem lê, exatamente por força de aspectos como identificação e afeto pelos personagens.

A solução possível para esse descompasso é extra-textual e deve partir de uma formulação de competência de leitura, na qual a leitura vicária (em que o leitor se aproxima do que os personagens sentem e vive suas experiências e sentimentos) é apontada como ingênua, e a leitura distanciada, intelectualizada e crítica, é elevada como sofisticada e superior. Mais que isso, ela passa a definir a leitura possível e desejável de acordo com o zeitgeist contemporâneo, pelas cartilhas pós-modernistas: “hypocrite lecteur” é como o narrador de Fowles chama o leitor que insiste que personagens são ou reais ou imaginários. É preciso lembrar que é o primeiro tipo de leitura que mantém viva a literatura imaginativa da fantasia, do horror e da ficção científica — sem falar do romance histórico romântico?

A comparação que eu faço é, portanto, entre a postura que declara a impossibilidade de um romance histórico vitoriano sem a explicitação metaficcional da sua própria insuficiência, e a hipótese de que Martin declare uma impossibilidade semelhante para a alta fantasia. Ele afirmaria, pela repetição dos recursos da tragédia, a insuficiência desses mesmos recursos perante o espírito do tempo de fins do século 20 e início do 21. Mais do que isso, a insuficiência da alta fantasia moral de J. R. R. Tolkien, para o leitor de alta fantasia deste nosso período.

É evidente o incômodo de muitos escritores de fantasia (seja ela alta fantasia, fantasia heroica ou fantasia científica) com a religiosidade, a moralidade e o suposto conservadorismo de Tolkien em O Hobbit e em O Senhor dos Anéis, obras que definiram o formato da alta fantasia. Um dos primeiros a condená-lo, Michael Moorcock foi definido como um “anti-Tolkien” por Peter Bebergal para revista The New Yorker. Sem dúvida, as aventuras amorais de Elric de Melniboné, o protagonista albino de Moorcock, formam um contraste gritante com o universo literário de Tolkien.

Moorcock escreveu contra Tolkien, C. S. Lewis e Richard Adams (autor de Shardik) no ensaio “Epic Pooh (1978), que basicamente enxerga as suas obras como textos reconfortantes para crianças, e não explorações sérias das questões do mundo real. Antes dele nesse ensaio, outro escritor da New Wave Britânica, M. John Harrison, já havia dito o mesmo em um ensaio de 1971 na revista New Worlds. Autores mais modernos como China Miéville engrossaram (ao menos inicialmente) o coro contra Tolkien, proclamando os mundos secundários do New Weird como contrários a um alegado espírito condescendente e reconfortante do autor de O Senhor dos Anéis. Tanto um como o outro, condenam a catarse em Tolkien, com Harrison enxergando na sua obra um traço consumado de conformismo:

“Estabilidade, conforto e a segura catarse” —M. John Harrison.

Por sua vez, Miéville condenou Tolkien no seguintes termos:

“[…] Sua crença em moralidade absoluta que borra a complexidade moral e política. […] Ele escreveu que a função da fantasia era ‘consolar’, portanto transformando em norma de procedimento que um escritor de fantasia deva mimar o leitor.” —China Miéville.

Basta, aqui, deixar claro a existência de uma atitude anti-Tolkien bem antiga em vários setores da fantasia, sem entrar no mérito da questão (se é que ele existe). Na década de 1980, imitadores de Tolkien fizeram muito sucesso, e as estruturas da narrativa do pioneiro inglês foram parar no cinema e nos role playing games (com Dungeons & Dragons). Em paralelo, a demanda por uma fantasia não-“tolkienesca” ganhou nova força. Na década seguinte, já existia uma fantasia escrita por gente como Guy Gavriel Kay, Robin Hobb, Barbara Hambly, Harry Harrison, R. A. MacAvoy, Orson Scott Card e o próprio George R. R. Martin que desromantizavam a Idade Média e eram muito duros em termos morais e humanos. Eles também tornaram a fantasia mais mundana, com magia menos ostensiva ou mesmo ausente. É claro, outros matizes sempre existiram, ao longo da evolução do gênero. Retornamos a Martin citando Peter Bebergal, que aponta uma influência de Moorcock sobre o autor das Crônicas de Gelo e Fogo:

“Com maior frequência sua presença [de Moorcock] é vista na forma de saudações amorosas como, na série de televisão Game of Thrones, alguém grita ‘Stormbringer’ [a espada de Elric] quando o Rei Joffrey pede nomes possíveis para a sua espada.” —Peter Bebergal.

Para muitos leitores, as “rasteiras” dadas por George R. R. Martin no leitor desavisado são “um retrato da vida”. “A vida é assim“, dizem. Ao mesmo tempo, imagina-se, a vida não é como na alta fantasia de Tolkien ou de outros escritores com uma posição moral clara ou com um apreço pela estrutura da tragédia clássica. A vida é caótica, como diria M. John Harrison. Mas o argumento é problemático porque há algum tempo (desde a década de 1960) a literatura mainstream se debate com a chamada “crise da representação“, em que as cabeças pensantes deixam de admitir a possibilidade de uma representação de algum modo fiel à realidade ou à vida. Toda construção ficcional passa a ser vista como exatamente isso: uma construção, um artefato, e não uma representação fiel.

O interessante sobre essa perspectiva é que ela não trouxe uma isonomia entre artefatos literários que se pautam por contar uma história dentro de estratégias realistas, e aqueles que explicitam a sua qualidade de construção, de artificialidade. Se assim fosse, nem a fantasia de Tolkien nem a de Martin ou de Miéville ou de Kafka jamais seriam tratadas em termos de “a vida é assim” ou como celebradoras do “caos da vida” — todas seriam apenas artefatos ficcionais. Mas aqui também se acena com as bandeirolas que separam o leitor supostamente sofisticado do hypocrite lecteur de Fowler: o leitor que conta é aquele interessado em obras metaficcionais que explicitam essa condição.

Onde estão esses leitores ou espectadores sofisticados, quando tratamos das Crônicas de Gelo e Fogo e da série de Game of Thrones? Eu não vou levantar bandeirolas, mas as reações à conclusão da série criada por David Benioff & D. B. Weiss para a HBO raramente tocaram na sua qualidade subversiva de expectativas, e muita gente exigiu justamente o oposto: não houve a antecipada “batalha das rainhas”, os espectadores reclamaram; Cersei Lannister não sofreu uma vingança dura e exemplar; Arya Stark é que deveria ter matado Cersei; os arcos de desenvolvimento dos personagens Jamie Lannister e Daenerys Targaryen foram jogados fora…

Aqui é bom lembrar que Martin foi deixado para trás pelo avanço das temporadas de Game of Thrones. Quer dizer, ele ainda não finalizou a sua planejada série de sete romances, ficando no quinto volume. Ao mesmo tempo, não ficou parado. Escreveu novelas e outras histórias no universo ficcional de Westeros, mas ambientadas muito antes das Crônicas de Gelo e Fogo. E tornou a investir no mundo partilhado das Cartas Selvagens, que já rolava quando eu era garoto. De qualquer modo, na temporada anterior, firmou-se este dilema: Martin é um dos produtores executivos da série, cargo que pode ser apenas simbólico, mas que sugere que ele acompanhava as inovações dos roteiristas sobre a obra baseada em sua criação. Talvez até os orientasse. Se ele retomar os dois romances faltantes, vai seguir o que eles elaboraram? Caso o fizer, cria-se um imbróglio de transcodificação — uma produção de audiovisual que adapta livros e livros que adaptam a mesma produção audiovisual.

O documentário sobre a última temporada, Game of Thrones: The Last Watch (2019), exibido na HBO, plantou atrás da minha orelha uma pulga em particular: Martin teria sido pago para não terminar a sua heptalogia. O objetivo seria evidenciado pela imagem no documentário, dos scripts sendo destruídos numa shredding machine, logo depois da primeira sessão de leitura com os atores principais: era preciso guardar segredo absoluto quanto às várias situações climáticas explorados na temporada. Extras e figurantes chegavam às filmagens sem saber o que deveriam fazer, sendo instruídos na hora e no local. De modo tão semelhante que devia estar integrado às preocupações de Benioff & Weiss, também seria preciso eliminar qualquer descontentamento que os espectadores pudessem nutrir, se confrontados com desenvolvimentos e finais diferentes, que existissem na página literária.

No artigo “Why Spoilers Are Ruining Storytelling”, seu autor, identificado apenas como J.B., deixa claro que é a obsessão de evitar spoilers que está arruinando a narrativa no cinema e na televisão. No artigo para a revista The Economist, ele lembra que nos primeiros anos do cinema, o frequentador podia entrar numa sala em qualquer ponto da exibição — até do meio para a frente — e ficar na sessão seguinte para ver as partes que havia perdido. Isso começa a mudar com Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, e ganha ênfase especial com o advento dos filmes de M. Night Shyamalan e produções como Seven: Os Sete Pecados Capitais (1995) e Clube da Luta (1999), com suas viradas no final. A importância dos coelhos saltando da cartola tornou-se ainda maior com o advento da Internet, das redes sociais e das viralizações. A comunicação instantânea pode criar tanto uma forte predisposição para se ver um filme, quanto uma grande predisposição para não vê-lo. O singelo boca a boca de outros tempos se torna o objetivo máximo do marketing em torno do segredo e da garantia do choque e da surpresa.

Eu mesmo já disse em outros lugares que “não acredito em spoilers“, especialmente quando se trata de uma discussão crítica. Como se pode ter correção e profundidade ao se examinar uma obra de arte, mantendo segredos e se desviando de pontos centrais do enredo ou das ações dos personagens? Postagens com aviso de “contém” ou “não contém spoilers” só me fazem torcer o nariz e hesitar em ler. No mesmo sentido, o artigo em questão aponta:

“Essa atitude sufoca a discussão apropriada de histórias pelos críticos tanto quanto pelos espectadores, e inflige danos à narrativa como ofício. Ao promoverem uma técnica, a virada, e um efeito, a surpresa, as histórias são distorcidas. Elas tentam demais ir contra a expectativa e resistir à predizibilidade. O Senhor dos Anéis é totalmente previsível do começo ao fim, mas a série não sofre com isso. William Shakespeare antecipava o final das suas tragédias ao anunciá-las como tal, e ninguém parecia se importar (Romeu e Julieta até contava a história para a audiência, num prólogo). Columbo, uma série clássica de crime, revelava quem cometeu o assassinato no começo de cada episódio, e conseguia tornar a investigação interessante de assistir.” —The Economist.

O artigo termina citando um estudo científico da área de psicologia, feito por Jonathan Leavitt e Nicholas Christenfeld, que conclui que conhecer o final da história não diminui a sua apreciação. Ao contrário, aumenta — o que me faz lembrar o seguinte comentário de Orson Scott Card:

“A maioria dos escritores novatos imagina que é assim que o suspense é criado — retendo informação-chave do leitor. Mas não é assim. O suspense vem de se possuir quase toda a informação — informação suficiente para que o público esteja emocionalmente envolvido e se importe muito com cada bocadinho de informação que permaneça não-revelada.” —Orson Scott Card.

O fato é que muitos fãs decepcionados com a última temporada de Game of Thrones parecem exigir menos rasteiras e mais realização do que a série vinha construindo. Na temporada anterior, os roteiristas já pareciam aliviados com a ausência dos trilhos fixados por George Martin. De repente, um certo núcleo de personagens começa a durar mais, e até formam uma irmandade como as de Tolkien — para conquistar, além da Muralha do Norte, a prova da existência do Exército dos Mortos. Personagens começam a acenar com uma redenção verdadeira, das suas canalhices anteriores, como Sandor Clegane, Jorah Mormont e Theon Greyjoy.

Não obstante, a última temporada, mesmo com um decréscimo às vezes embaraçoso na qualidade da escrita e arcos narrativos reduzidos, parece ter feito um esforço genuíno de retomar o uso do tipo de rasteiras que Martin firmou. Expectativas são violadas, situações imprevisíveis são firmadas, personagens são vitimados pelo arbítrio dos deuses roteiristas, e surpresas retumbantes surgem para tirar o fôlego do espectador. E mesmo assim, uma parcela significativa dos fãs rejeitou os elementos de arbitrariedade e retrocesso no desenvolvimento dos personagens. O que isso significa?

Não vou negar que o leitor/espectador ingênuo existe. E também aquele que enxerga livros e filmes de ficção popular como nada além de divertimento. Existe um leitor/espectador que só quer clichês e recursos repetitivos. Mas ao mesmo tempo, me pergunto se o que está por trás da rejeição aos elementos de arbitrariedade e retrocesso no desenvolvimento dos personagens seria uma adesão perfeitamente legítima à efetividade dos elementos clássicos da tragédia.

A arte de capa de Marc Simonetti exibe os dois protagonistas da série de três novelas ambientadas no universo de Westeros.

Afinal, por quanto tempo um escritor pode manter um esquema narrativo fundamentado em rasteiras e surpresas e negação de expectativas? Que tipo de encerramento satisfatório ou enriquecedor pode surgir desse esquema? Nas três novelas de universo de Westeros — que não são tragédias — do livro O Cavaleiro dos Sete Reinos (2015), o próprio Martin não se apóia tanto nas rasteiras, e se dá ao luxo de ser leve e natural na sua narrativa.

Imagino que exista aí uma tensão semelhante à do romance pós-modernista de John Fowles, entre o projeto do autor (o ponto em que ele deve desejar que penduremos a medalha de realização literária) e o componente de identificação e afeto que seus personagens despertam no leitor, mesmo que inadvertidamente.

Não sei se George R. R. Martin irá em algum momento retomar as Crônicas de Gelo e Fogo e tentar levá-las ao final. Agora, como está, a sua criação já é uma property valiosa — especialmente quando se fala da produção de uma prequência de Game of Thrones pela mesma HBO. Mas se ele o fizer, seria quase obrigatório desviar-se da conclusão da série de TV. Mas a sua fantasia pós-modernista vai conseguir desviar-se também da catarse e das outras características da tragédia? E valerá a pena?

—Roberto Causo

 

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Leituras de Setembro de 2018

A space opera de Star Wars e a fantasia marcaram as leituras em um mês em que a preparação para uma conferência no IV Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

 

Arte de capa de Ralph McQuarrie.

Splinter of the Mind’s Eye, de Alan Dean Foster. Nova York: Del Rey Books, 2015 [1978], 296 páginas. Arte de capa de Ralph McQuarrie. Prefácio de George Lucas. Paperback. Quando eu era garoto, morando em Sumaré, no interior de São Paulo, meu catálogo de sonhos de consumo eram as páginas de anúncios nos fundos da revista Famous Monters of Filmland, criada e editada pelo “Mr. Science Fiction” Forrest J. Ackerman. Eu achava a revista na Livraria Papirus, na vizinha Campinas. É claro, não tinha a menor chance de adquirir os livros, action-figures, posters e quadrinhos anunciados naquelas páginas. Mas nos anos e décadas seguintes, aqui e ali, na própria Papirus e em outras livrarias, inclusive sebos daqui de São Paulo, fui encontrando e adquirindo muitos daqueles itens. Este Splinter of the Mind’s Eye era um deles, que adquiri só agora numa edição de 2015, na Livraria da Vila do Shopping Pátio Higienópolis. Escrito pelo “Rei das Novelizações” Alan Dean Foster, foi o primeiro romance original de Star Wars, primeiro passo na expansão do universo da space opera criada por George Lucas — que assina o prefácio. Foster também havia escrito, como ghost writer, a novelização creditada a Lucas, do primeiro Guerra nas Estrelas (1977; hoje, Episódio IV) ainda em 1976. Dei sorte de conseguir uma edição capa dura da Del Rey na Papirus. No ano 2000, em passagem rápida pelo Rio de Janeiro, Foster o autografou para mim. Lembro ainda que Han Solo e Chewbacca mereceram uma trilogia escrita por Brian Daley na mesma época de Splinter of the Mind’s Eye, contando aventuras da dupla antes deles conhecerem Luke Skywalker, Ben Kenobi e Leia Organa. Essa trilogia eu também consegui, numa edição omnibus em paperback. A vida é feita de pequenos troféus.

Como dá para ver pela ilustração de Ralph McQuarrie — uma das poucas artes de capa do artista que definiu a estética do universo de Star Wars —, a história confronta Luke e Leia com Darth Vader. A dupla de heróis vai a um planeta cuja direção está pensando em integrar a Aliança Rebelde. Eles sofrem um acidente e acabam caindo em um pântano. Isso acontece depois da destruição da Estrela da Morte, e nessa coisa do pântano tem-se algo do que veríamos de outro modo em O Império Contra-Ataca (1980). Depois de escaparem das feras do lugar e de chegarem a uma base de mineiros, eles acabam fazendo contato com uma mulher que lhes conta da existência de uma pedra preciosa capaz de ampliar os poderes de quem usa a força. A ação é intensa, com uma encrenca emendada na outra, culminando em um encontro com Vader nos salões de uma civilização subterrânea local. Esse é um dos pontos mais curiosos do romance: que ele seja em parte uma história de mundo perdido, e com todos aqueles pontos típicos desde H. Rider Haggard e Edgar Rice Burroughs. Falo do encontro com um povo tribal e violento que ataca os aventureiros em massa, mas que reconhece sua coragem como meio de acolhida e formação de aliança, com direito até a um duelo ritual vencido por Luke. É uma mistura estranha e surpreendente, e destoa da tendência peripatética dos heróis nos filmes. A ação, por sua vez, é sem parar — embora Foster atente para a necessidade dos protagonistas de se alimentarem e até repousarem, algo que raramente se vê nos filmes ou animações de Star Wars. A aventura é intensa, com lutas e encontros com feras monstruosas. Mas Foster nos lembra o quão jovens Luke e Leia eram nessa fase da saga. Eles brincam entre si, trocam olhares tímidos e partilham seus traumas. Leia ainda está abalada pela perda de Alderan e pelo interrogatório químico sofrido na Estrela da Morte. Fisicamente, ela sofre substancialmente durante o romance. Luke está em luto pela morte de Ben Kenobi, e também apanha bastante durante o combate ritual (outro detalhe sobrevivente da velha FC pulp de aventuras). Tendo em vista pelo quanto os dois passaram desse ponto em diante, a caracterização dos heróis atinge o leitor com grande singeleza e senso de vulnerabilidade.

 

The Druids, de Peter Berresford Ellis. Grand Rapids, Michigan: William B. Eerdsman Publishing Company, 1995 [1994], 304 páginas. Hardcover. Na escrita do romance “Archin” para o Desire Universe, cheguei em um trecho ambientado na Irlanda do século XIII. Daí a leitura deste livro de não ficção que aborda uma figura central da cultura celta: os druidas. Na visão de Berresford Ellis, eles compuseram a classe intelectual desses povos do ocidente europeu. Os filósofos naturais, médicos, juristas, historiadores e místicos. A perspectiva parece original, assim como o esforço em dissipar preconceitos e desinformação sobre os druidas que existiriam desde os tempos dos gregos e romanos clássicos, com seu mau hábito de chamar outros povos de bárbaros. Entre os primeiros capítulos, por exemplo, estão “Druids through Foreing Eyes” e “Druids through Celtic Eyes” — “os druidas por um olhar estrangeiro” e “por um olhar celta”. Ele também trata das mulheres druidas, repetindo o entendimento de que a mulher celta possuía maior participação na sociedade do que em outras partes da Europa, onde elas, segundo ele, seriam pouco mais do que moeda de troca.

Um detalhe muito interessante está na ideia de que personalidades importantes do mundo clássico seriam druidas tratados por ou que assumiram nomes romanizados. Entre eles, ninguém menos que o poeta Virgílio. Parte substancial do livro busca recuperar algo da cultura druida, que inclui não apenas a figura do sacerdote, mas também a do bardo e do médico e do brehon (o jurista celta). Essa reconstituição é erudita, quer dizer, a partir da comparação de escritos gregos, romanos e cristãos, com elementos de língua celta (gaélico, galês), pesquisas arqueológicas, folclore, costumes ritos e literatura sobreviventes. Um de seus argumentos centrais é o da continuidade parcial de crenças e costumes entre os celtas e os hindus, já que os celtas seriam parte do ramo indo-europeu. Na sua visão, muitos aspectos culturais comprovariam essa conexão, incluindo elementos musicais, artísticos e espirituais (como o princípio da reencarnação). Os druidas teriam uma filosofia muito próxima da natureza e da verdade nela encontrada. O autor duvida de que todos os relatos de sacrifícios humanos promovidos pelos druidas, presentes nas crônicas romanas, seriam fidedignos. Para ele, podem ter sido parte de uma narrativa de propaganda, caracterizando os celtas como bárbaros. Uma das suas especulações mais interessantes está na hipótese de que o conceito do Deus triúno (Pai, Filho e Espírito Santo) presente no catolicismo seria um sincretismo formado a partir de várias deidades triúnas dos celtas. Compreensivelmente, a Irlanda é o espaço preferencial para muitas das tentativas de recuperação do autor. É tudo muito especulativo, obviamente, mas não deixa de compor um quadro coerente (embora vago). Além disso, é instigante acompanhar o raciocínio de Berresford Ellis, que nos recorda ainda de que os anos de colonização agressiva dos ingleses, nos séculos 17 e 18, não foram apenas genocidas, mas também um crime contra a cultura e a história da Irlanda — e, por extensão, de toda a Europa ocidental. Ponha na conta do pensamento imperialista.

 

Arte de capa de Steven Lavis.

The Isles of the Blest, de Morgan Llywelyn. Nova York: Ace Books, June 1989, 170 páginas. Capa de Steven Lavis. Paperback. Embora Berresford Ellis mencione os druidas na literatura de fantasia em seu livro, Morgan Llywelyn é a única escritora que ele cita: em 1990, ela publicou um romance chamado justamente Druids. Este The Isles of the Blest é anterior, e se baseia em uma lenda celta que alguns creem ser o conto de fadas mais antigo da Europa ocidental. Na história e na lenda, Coonla é o herdeiro da chefia de um clã vitorioso na dinâmica tribal da Irlanda, o clã de Conn das Cem Batalhas. Mas ele deplora a guerra e a violência, e quando é procurado por uma espécie de fada, decide abandonar tudo para partir com ela para a Terra das Fadas na versão celta: as Ilhas de Blest, habitadas pelos Sythe. Lá, depois de conversar com golfinhos e de lutar contra um gigante, ele descobre um lugar sem tribulações ou suplícios. Todos os excessos são permitidos porque não há consequências. Luta-se por esporte sem trauma, vive-se praticamente ao ar livre porque as intempéries não têm efeito, e o amor é livre. Coonla, apesar de sua ingenuidade, alcança a admiração de figuras de peso nesse mundo das fadas. Mas ele só faz amizade de fato com uma espécie de leprechaum que ainda se lembra de como era a sua vida, no mundo dos mortais. Hipongas cuca-frescas, os Sythe não nutrem sentimentos verdadeiros de amor ou amizade por ninguém.

O que prende o herói a seu passado é o amor de sua mãe, sacrificada pelo druida do clã justamente para estar espiritualmente com o filho. Como o tempo se passa mais rápido aqui do que na Terra das Fadas, Conn acaba muito desanimado, envelhecido e com o seu clã enfraquecido, e o druida é exilado na floresta. Mas ele tem um poderoso insight e retorna para junto de Conn com uma solução para trazer Coonla de volta: ordenar aos membros do clã que passem a realizar uma espécie de ritual permanente de amorosa adoração ao herói. O episódio central é um combate em que Coonla é decapitado. Isso é uma condição especial mesmo na Terra das Fadas, e o espírito de sua mãe age nesse momento. Para voltar ao mundo mortal, ele deve enfrentar uma demanda (quest) em que precisa realizar uma proeza, impossível até para os Sythe, no fundo do mar. A sequência não ficaria estranha no filme do Aquaman. O retorno de Coonla ao seu mundo é melancólico, porém. Muito tempo se passou e há uma nova ordem no clã, além do fato de que poucos se lembram dele. O herói deixou nosso mundo em busca do mundo das fadas para se livrar da violência constante. Retornou por amor, mas, de volta, assim que se apresenta é desafiado para um duelo pelo novo líder, Cormac. Menos macambúzio, seu companheiro leprechaum parece se integrar mais facilmente, arrumando um “galho” com uma viúva calorosa. O estilo de Llywelyn neste romance é ligeiro e não tem muito em termos de ambientação, reconstituição histórica ou caracterização dos personagens, mas essa terrível ironia, tão humana, faz valer a leitura. Meu exemplar veio da Biblioteca do Condado de Clackomas, no Oregon (EUA), e conserva até o cartão de retirada. Mas está moído, depois de oito retiradas. O curioso da edição em paperback é o endosso, na contracapa, de ninguém menos que Ronald Reagan: “Eu me tornei um fã devoto.”

 

Arte de capa de Jackie Morris.

City of Dragons: Volume Three of the The Rain Wilds Chronicles, de Robin Hobb. Nova York: HarperVoyager, 2012, 334 páginas. Arte de capa de Jackie Morris. Hardcover. Ler a fantasia celta de Morgan Llywelyn me fez querer ler a alta fantasia de Robin Hobb, acelerando para terminar a série The Rain Wilds Chronicle. Este que é o terceiro volume da tetralogia eu consegui com o escritor Henrique Flory, que viajou aos States e me trouxe o livro. Hobb, cujo verdadeiro nome é Megan Lindholm, é um dos autores top da alta fantasia, provavelmente a melhor praticante do subgênero fomentado por Tolkien, no mundo atualmente. No Brasil, sua segunda trilogia, Os Mercadores de Navios-Vivos (Liveship Traders), está sendo publicada aqui pela LeYa. As duas séries se passam em um mesmo mundo secundário, apresentado aos leitores na Trilogia Farseer (Trilogia do Assassino, no Brasil), protagonizada por Fitz Farseer. Esta aqui se comunica com a dos Navios-Vivos, mas com pelo menos uma conexão com a segunda trilogia de Fitz, The Tawny Man. Essa conexão é a fêmea de dragão Tintaglia, uma das melhores coisas da trilogia dos Navios-Vivos, e que, em The Tawny Man, conseguiu um companheiro, um dragão gigante descongelado e trazido de volta à vida. Tintaglia e o garotão ainda estão se conhecendo, quando são emboscados por uma companhia de guerreiros armados, a serviço do monarca de Chauced. O episódio nos lembra que o mote principal da série é a intriga que ele põe em movimento, para conseguir partes de dragão que lhe permitam vencer a doença que o aflige. Apesar do tirano fazer sua aparição, uma novidade dentro da série, o grosso da narrativa continua seguindo os jovens da expedição que conduz os dragões mal-formados até a mítica cidade de Kelsingra, o país dos extintos elderlings e sua estreita associação com os dragões do passado. Fica claro, nesta aventura, que vários dos jovens tratadores estão se transformando em elderlings. No livro três, Kelsingra também vai se constituindo como uma personagem: a cidade que guarda memórias em suas paredes e artefatos. Em particular, Thymara e Rapscal, que, por insistência dele, estão se tornando um casal, passam a se nutrir dessas memórias. O processo não é livre de risco: muitas pessoas se perderam pelo contato com artefatos mágicos semelhantes. É o tema do vício e da dependência psicológica, muito frequente na obra de Hobb. O sexo entre os dois também não é algo simples, considerando que o contato com as águas do Rio Rain Wilds traz modificações corporais que tornam a gravidez algo potencialmente terrível. Robb continua tratando discretamente das encrencas do sexo adolescente, mas em uma cidade distante do território Rain Wilds, outra situação reforça a problemática da gravidez nesse contexto. Essa linha narrativa envolve a determinada e impetuosa Malta e seu marido Reyn Khuprus (que se tornarão muito conhecidos de quem acompanhar a trilogia dos Navios Vivos), e fica terrivelmente assustadora quando ela e seu bebê recém-nascido entram na mira dos contrabandistas de partes de dragões. Essa linha inclui um excruciante cena em que Malta se defende dos assassinos. Outra linha envolve o marido gay de Alise Kincarron, a jovem estudiosa de dragões que está em Kelsingra com os tratadores. Hest, o marido dandi, está em Bingtown, a capital dos clãs de mercadores. Ele entra na mira de um assassino enviado por Chalced pra forçá-lo a se mexer na direção desejada pelo monarca adoentado. Se Hest representa o lado dissimulado e malicioso do homossexual masculino, seu ex-amante Sedric Meldar expressa o oposto. Ele abandona o plano de enriquecer vendendo ele mesmo partes de dragão ao duque de Chalced, e encontra um amante mais honesto e franco no caçador Carson Lupskip, parte da expedição. Quem sabe, na Kelsingra do futuro os dois encontrarão uma sociedade mais tolerante. A divisão da narrativa em várias linhas diferentes faz de City of Dragons um romance mais capaz de expressar os talentos de Hobb. Aqui, vemos não apenas a intriga se adensar e ganhar o seu inevitável suspense, como testemunhamos os personagens amadurecendo e encontrando a si mesmo. Um processo tão ameaçado pelos antagonistas que se precipitam na direção de Kelsingra movidos pela ganância, quanto o destino dos dragões. Desde Tolkien, muito da alta fantasia trata de um momento pivotal em que o mundo mágico vai perder a magia em tal proporção que ele passa a se parecer mais com o nosso mundo. Na série Rain Wilds Chronicles, até aqui, Robin Hobb flerta com a noção inversa: o mundo secundário começa a testemunhar o ressurgimento de uma magia perdida e do mundo mágico existente antes do grande cataclisma. Você pode conferir minhas observações sobre o segundo livro aqui.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Bob Cooper.

Star Wars Trilogia Thrawn 2: Ascensão da Força Sombria (Star Wars Thrawn Trilogy 2: Dark Force Rising), de Mike Baron (texto) e Terry Dodson & Kevin Nowlan (arte). Barueri-SP: Panini Books, 2018, páginas. Arte de capa de Bob Cooper. Tradução de Pedro Catarino & Mateus Ornellas. Capa dura. Em relação ao primeiro livro desta série que adapta a Trilogia Thrawn de romances de Star Wars escritos por Timothy Zahn, a dupla de artistas europeus Olivier Vatine & Fred Blanchard cedeu lugar aos americanos Terry Dodson & Kevin Nowlan. É pena, pois a mudança minou tanto a qualidade artística dos quadrinhos, quanto a própria narrativa. E olhe que sou fã do desenho de Dodson, aqui um pouco descaracterizada pela arte-final de Nowlan.

Assim como no primeiro livro, seguimos o Grande-Almirante Thrawn, um raro comandante imperial não-humano (embora humanoide), em seu esforço em reerguer o império galáctico. Com a Estrela da Morte 2.0 destruída e o Imperador Palpatine e Darth Vader mortos, o astuto almirante é a melhor aposta para virar o jogo contra a Aliança Rebelde. Seu objetivo imediato é se assenhorar de uma esquadra de belonaves perdidas. Mas tem consigo um aliado que pode se tornar um traidor: o velho jedi aloprado Joruus C’baoth, que mira capturar uma Princes Leia grávida de gêmeos, treiná-los como jedis e preencher ele mesmo o vácuo de poder surgido com a morte de Palpatine. Quanto aos heróis, eles não apenas buscam se antecipar a Thrawn encontrando a esquadra perdida, como ainda têm de lidar com o informante dentro da Aliança Rebelde. No livro anterior, todos os seus passos eram antecipados pelo grande-almirante, graças a esse informante. Luke e Lando Calrissian se envolvem com um ladrão de naves espaciais, enquanto Han e Leia têm de confrontar diretamente o conselho da Aliança. Mais tarde, Luke e a pirata espacial Mara Jade (que o universo expandido Legends nos informa que se tornou a mulher dele) confrontam C’baoth. Enquanto isso, Leia e Chewbacca estão presos em um planeta de escravos do império, que a respeitam por terem sido auxiliados no passado por ninguém menos que o pai dela, Darth Vader. Esse é um detalhe curioso e inquietante, que talvez traga algo de diferente à estranha aristocracia familiar criada por George Lucas. Mas o que se destaca mesmo nesse volume é a quantidade de mulheres de personalidade entre os coadjuvantes — coisa que nós não vimos nas duas trilogias lançadas por Lucas nos cinemas. A arte deste livro acaba sendo apenas competente, ficando no meio do caminho quando se trata tanto do hardware de Star Wars, quanto fisionomia dos personagens e paisagens exóticas. O destaque acaba sendo as ilustrações de Mathieu Lauffray, feitas para as capas da minissérie que é compilada no livro. Lauffray segue o padrão determinado pelo incrível cartazista de cinema Drew Struzan, embora com uma fração do seu brilho e vigor artístico. Ele compensa impondo o seu próprio estilo em composições de atmosfera e força dramática próprias. Superiores à capa de Bob Cooper.

—Roberto Causo

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Os Melhores de 2017

Veja aqui a lista dos melhores livros e melhores filmes lidos e vistos por Roberto Causo, em 2017.

 

Livros

1. Doomsday Book, de Connie Willis. Por boa margem, este foi o melhor romance de ficção científica que li este ano, uma história de viagem no tempo originalmente publicada em 1992, com edição brasileira pela Suma de Letras, em capa dura, lançada em 2017 — a tradução é de Braulio Tavares. Pouco publicada no Brasil, Willis é um dos grandes nomes da corrente humanista da FC pós-modernista americana.

Arte de capa de Kevin Murphy.

2. Adiamante, de L. E. Modesitt, Jr. Um romance compacto de ficção científica do futuro distante que, sozinho, oferece alternativa à enxurrada perpétua de ficção científica que propõe o genocídio preventivo como a estratégia básica das civilizações galácticas, no máximo imaginável de darwinismo social. A solidez do suspense está a par com a filosófica.

3. South of Broad, de Pat Conroy. O último romance do recentemente falecido Conroy, é um drama de várias décadas envolvendo um fiel e traumatizado grupo de amigos na charmosa capital sulista Charleston. Mistura ficção de crime, crônica social, reflexões sobre diversidade sexual, abuso e AIDS, da maneira ao mesmo tempo sentimental e incisiva que caracteriza a obras de Conroy.

4. The Divine Comedy, de Dante Alighieri. Edição em inglês da Divina Comédia, clássico poema épico de Dante, uma das maiores construções poéticas do Renascimento. A tradução do italiano é de outro poeta mestre, Henry Wadsworth Longfellow.

5. Teoria do Drone, de Grégoire Chamayou. O mais importante livro de não-ficção que li em 2017, amarra e explicita todas as relações insidiosas de poder, guerra e alienação da opinião pública, em torno de um dos temas mais candentes do século 21: o uso de drones de ataque em “guerras” por atacado, conduzidas “contra o terror” pelos Estados Unidos. Certamente, um assunto que também tem tudo a ver com a ficção científica.

6. The Underground Railroad, de Colson Whitehead. Premiadíssimo romance afro-americano que toca o realismo mágico e a ficção científica, enquanto acompanha uma jovem que fugiu da escravidão em uma fazenda no Sul dos Estados Unidos, para descobrir outras dimensões da opressão racista conforme ela passa por outros estados e encontra extremos de organização social voltada para o controle da população negra.

7. Dragon Haven: Volume Two of the Rain Wilds Trilogy, de Robin Hobb. Segundo volume de uma tetralogia de alta fantasia ambientada no mesmo universo da Trilogia do Assassino e da Trilogia dos Mercadores de Navios Vivos. Hobb lida como ninguém com textura, caracterização, enredo e passo narrativo. Este não é o seu melhor, mas ainda acima da maioria.

8. Os Garotos Corvos, de Maggie Stiefvater. Primeiro de uma tetralogia de fantasia contemporânea para jovens, ambientada na Virgina e envolvendo o resgate, por um grupo de garotos esoteristas, de um rei celta sepultado no lugar, e incógnito há séculos. A prosa de Stiefvater tem uma vivacidade única e uma complexidade enganadora.

9. Beowulf’s Children Larry Niven, Jerry Pournelle & Steven Barnes. Um bojudo romance de colonização planetária escrito a seis mãos, que fiz questão de ler no ano em que Pournelle faleceu. Elabora e problematiza de modo engenhoso uma série de questões sobre liberdade, comunidade, sexo e ecologia.

10. Hunter’s Run George R R Martin, Gardner Dozois & Daniel Abraham. Outro romance de FC de colonização planetária — e outro escrito a seis mãos! Mas Hunter’s Run, que saiu no Brasil pela LeYa este ano como Caçador em Fuga, concentra-se no retrato psicológico de um único personagem, com muita aventura das antigas costurada no meio.

11. O Esplendor, de Alexey Dodsworth. Um dos romances brasileiros de FC mais ambiciosos dos últimos anos, este que é o segundo livro de Dodsworth compõe um diálogo com uma das obras-primas de Isaac Asimov, a noveleta “O Cair da Noite”. Rendeu ao autor o seu segundo Prêmio Argos (do Clube de Leitores de Ficção Científica) de Melhor Romance.

12. American Fascists: The Christian Right and the War on America, de Chris Hedges. Um necessário livro reportagem que disseca a direita cristã americana, por tabela lançando luz sobre a atual situação política os EUA — e a potencial situação política brasileira, já que também aqui essa corrente reacionária tem crescido.

13. Não Chore, de Luiz Bras. Uma novela de ficção científica tupinipunk, certamente o destaque de Luiz Bras em um ano no qual ele publicou três livros. Faz par com o seu notável romance rapsódico Distrito Federal, de 2015, embora os dois livros possam ser lidos separadamente.

14. O Homem que Caiu na Terra, de Walter Tevis. Clássico da ficção científica americana da década de 1960, virou filme e foi lançado no Brasil apenas em 2017, pela DarkSide. Uma FC sobre alienígena infiltrado na Terra, com um expressivo conteúdo existencialista.

15. Stories of Your Life and Others, de Ted Chiang. A primeira coletânea do multipremiado contista americano, incluindo a história título que foi base do filme A Chegada. Narrativas complexas, fabulation pós-modernista e especulação científica de alta qualidade.

 

Cinema

1. Logan, dirigido por James Mangold. A Marvel entra no terreno de Cormac McCarthy, neste que é um sério candidato a melhor filme de super-heróis da história. Filme duro, tecnicamente impecável e surpreendentemente emocional, estrelado por Wolverine e o Prof. Xavier num diálogo com os westerns do passado.

2. Fragmentado (Split), dirigido por M. Night Shyamalan. Outro incomum filme de super-herói (de supervilão, na verdade) conduzido de modo diferenciado — como um admirável filme de suspense, com ótimas interpretações e uma reflexão importante sobre trauma psicológico. Só não digo que com ele Shyamalan recuperou a sua glória passada, por que de fato ele nunca a perdeu — as críticas constantes dirigidas a ele são só implicância dos críticos.

3. Blade Runner 2049, dirigido por Denis Villeneuve. A sequência do clássico de Ridley Scott é um banquete visual e uma introspectiva viagem a um plausível mundo futuro dominado por uma megacorporação obcecada em recriar e controlar a vida. Mais forte em enredo e mais fraco em sugestões de transformação social do que o proto-cyberpunk de 1982. Ainda sim, celebração de uma FC séria e cinematicamente hábil.

4. 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey), dirigido por Stanley Kubrick. Minha esposa Finisia Fideli e eu tivemos a chance de ver uma reprise deste clássico do cinema de ficção científica, com roteiro de Kubrick e Arthur C. Clarke, em uma sessão no Shopping Pátio Higienópolis, em maio de 2017. A tela grande faz toda a diferença para a linguagem visual desse filme ainda inquietante.

5. Star Wars: Os Últimos Jedi (Star Wars Episode VIII: The Last Jedi), dirigido por Rian Johnson. O diretor Johnson devolveu a esperança ao prato principal da franquia agora dominada pela Disney, com uma história que prende a atenção, inverte construtivamente algumas expectativas, e mostra uma atuação dos jedi que vai além do usual kung-fu aéreo. Algumas premissas não estão em sintonia com o universo de Star Wars, e o roteiro insiste que devemos deixar para trás o que já sabemos sobre ele e aceitar como boas ovelhas o que será apresentado dali em diante. Esperem sentados.

6. Assassinato no Expresso do Oriente (Murder at the Orient Express), dirigido por Kenneth Branagh. O clássico de mistério de Agatha Christie tem uma adaptação engenhosa e criativa por parte de Brannagh, que usou o tom exaltado do teatro, movimentos de câmera e enquadramentos incomuns para arejar um romance em que a mãe desse subgênero de ficção de crime reflete, subverte e dignifica as próprias artimanhas.

7. A Vigilante do Amanhã (Ghost in the Shell), dirigido por Rupert Sanders. A primeira adaptação live action do anime cyberpunk original de 1995, dirigido por Mamoru Oshi, é um imbróglio pós-modernista de fluxos de capitais transnacionais plasmados em franquias e percepções étnicas em fluxo — ah, teorias pós-modernistas à parte, o filme é um triunfo da pré-produção, grande expressão do que a arte digital e as IGCs consegue realizar hoje em dia, e pouco mais do que isso.

O cinema é um grande prazer. Mas por algumas dificuldades sofridas em 2017, que incluíram falta de tempo, não vi tantos filmes quanto gostaria. Acima estão todos os que vi durante o ano.

—Roberto Causo

 

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Leituras de Agosto de 2017

Este foi um mês de novas leituras de fantasia e de ficção científica, mas com espaço para não-ficção, quadrinhos e ficção literária.

 

Arte de capa de Kevin Murphy.

Adiamante, de L. E. Modesitt, Jr. Nova York: Tor Books,1998 [1996], 312 páginas. Capa de Kevin Murphy. Paperback. Assim como Jack McDevitt, comentado mês passado, Modesitt é um escritor que se repete muito mas sempre entrega um trabalho consistente, despretensioso e, muitas vezes, instigante. É o caso deste Adiamante, obra de impacto que se expressa como exercício de filosofia moral numa ficção científica de futuro distante. Nesse futuro, a humanidade se dividiu em três grupos: os demi[gods], os cyb[orgs] e os draffs. Num passado indeterminado, o cybs se insurgiram e foram expulsos da Terra. No tempo do romance, eles retornam com uma esquadra de naves superpoderosas feitas com a substância mais resistente que a tecnologia humana é capaz de produzir: o “adiamante” do título.

Uma das características do autor é narrar na primeira e na terceira pessoas. Aqui o livro acompanha, na maior parte, a narrativa do protagonista, Ecktor. Ele é o Coordenador planetário da Velha Terra, indicado quando os cybs ressurgem. A sociedade que representa e fundada no respeito ao indivíduo, no aproveitamento energético (até a classe dirigente tem que prestar serviços à comunidade, quando consome energia com caprichos) e na recuperação ambiental. Ecologia é um tema de Modesitt — o primeiro livro dele que li foi um ecothrillerThe Green Progression, escrito com Bruce Scott Levinson. Em Adiamante, a humanidade, escolada em guerras e poluição em escala planetária, aprendeu as lições da história. Os demis adotaram um código estrito de conduta ética e integraram a própria ideia da resistência pacífica aos seus genes — exatamente dentro da conclusão de Reinhold Niebuhr em Moral Man and Immoral Society (1930), que discuti aqui em julho. A maior parte do intenso suspense que surge do romance vem de sabermos o tempo todo que os demis têm poder para destruir os cybs (Ecktor tem um pedaço de adiamante como peso de papel), mas evitam fazê-lo até que as intenções dos invasores, por seus próprios atos, fiquem claras. A única coisa que eles jamais farão, é um ataque preventivo, coisa que virou doutrina oficial americana durante a administração George W. Bush.

“Poder sem moralidade é o desastre; moralidade sem poder é inútil.” —L. E. Modesitt, Jr. Adiamante.

Além disso, a impossibilidade de comunicação quando os sistemas de valores são opostos também é marcada ao longo da narrativa, com Ecktor padecendo de um isolamento moral em relação aos cybs, que é partilhado por toda a coletividade de demis. Esse grupo escolhe o sacrifício de grande dos seus quadros, para que não cometessem um ato que iria corromper e destruir as bases da sua sociedade — eles têm sua própria versão da “psico-história” de Asimov, com previsões de alta percentagem indicando isso. Uma escolha tão singular, que só encontrei exemplos semelhantes em duas outras ocasiões, nas minhas leituras: na novela “Zanzalá” (1938), do brasileiro Afonso Schmidt (mas em tom farsesco), e no romance Pastwatch: The Redemption of Cristopher Columbus (1996), de Orson Scott Card. A FC costumava ser assim… romances compactos que dramatizavam com engenhosidade conceitos éticos e sociais caros à civilização. Esta foi uma das minhas melhores leituras neste ano, até aqui. A capa de Kevin Murphy é simples mas busca o tipo de textura de materiais que o mestre inglês Jim Burns costuma realizar.

“Apesar de todas as nossas redes, de todas as nossas comunicações, os humanos — cybs ou demis — são alienígenas, alienígenas uns para os outros, e para o universo, e é por isso que devemos ter confiança.” —L. E. Modesitt, Jr. Adiamante.

 

Arte de capa de Paola Giometti.

O Chamado dos Bisões, de Paola Giometti. São Paulo: Andross Editora, 2017, 144 páginas. Capa e ilustrações internas de Paola Giometti. Brochura. Ramo talvez recursivo da fantasia — hipótese enfatizada pela série Redwall do escritor inglês Brian Jacques (1939-2011) —, a fábula de animais é um pouco rara no Brasil. Eu gosto de bichos, e desse tipo de fábula desde que li uma num livro da Disney, quando era menino. Por sorte, tenho feito a preparação de texto da série de fábulas sobre animais norte-americanos escrita por Paola Giometti, e que inclui O Destino do Lobo (2014) e O Código das Águias (2016). Todos têm a mesma moldura: um jovem que viaja da cidade para zonas mais ermas, florestas e montanhas, onde ouve fábulas de animais importantes para a cultura nativo-americana, pela boca do seu sábio bisavô. O bicho deste terceiro volume é o bisão americano, e o tema é a migração como rito de passagem na formação de uma pequena bisonte que se separou da mãe e do rebanho. Quem conhece os volumes anteriores é premiado com aparições de personagens que viveram as aventuras precedentes. Todos os livros da trilogia tratam dos atritos muito ambíguos entre os animais e os seres humanos. Há um leve toque místico, no culto aos antepassados, pelas várias espécies. Parte da diversão desse tipo de fábula é como os animais são humanizados — aqui, com a inclusão de atitudes e modos de falar dos jovens. A função moralizante da fábula é explicitada pelas reações do jovem que ouve a história contada pelo avô. Com este livro, lançado em 12 de agosto na Biblioteca Viriato Corrêa, a série Fábulas da Terra se completa como uma trilogia. O lançamento contou com convidados muito especiais, duas corujas e uma águia-chilena mantidas pelo grupo de criadores Turma do Gavião, sendo que a águia Ragnar e a coruja Sansão aparecem como personagens no livro. (Minha esposa Finisia Fideli adorou ver os bichos e conversar com os criadores.) Giometti, que escreve com graça e vivacidade, e ilustra os próprios livros, pretende escrever agora narrativas de realismo mágico.

 

Arte de capa de Steve Stone

Dragon Haven: Volume Two of the Rain Wilds Trilogy, de Robin Hobb. Nova York: EOS, 1.ª edição, 2010, 508 páginas. Capa de Steve Stone. HardcoverEste é o segundo livro da tetralogia Rain Wild Chronicles, de Robin Hobb. E parte de uma longa série muito maior, iniciada com a Trilogia Farseer, conhecida no Brasil como Trilogia do Assassino. Hobb é o pseudônimo de Megan Lindholm, que apareceu na Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Científica com esse nome. Hobb/Lindholm é uma das melhores autoras de fantasia que conheço. Seu vasto mundo secundário é complexo e humano. A Trilogia Liveship Traders termina com o retorno de um dragão aos céus desse mundo. Um número de serpentes marinhas consegue se instalar no Rio Rain Wilds, onde criam casulos que vão chocar os dragões. Na Trilogia Tawny Man, dois personagens marcantes da Trilogia Farseer, Fitz e o Bobo, integram expedição a terras distantes e geladas, em busca de um dragão congelado. O Bobo diz que o seu objetivo na vida é trazer os dragões de volta ao mundo — uma loucura, na visão de Fitz. Para quê trazer feras destruidoras, famintas e arrogantes de volta? Para equilibrar a arrogância humana. Um projeto que tem a minha simpatia, e é a razão não religiosa mais abstrata possível para o preservacionismo ambiental.

No primeiro livro das Rain Wilds Chronicles, Dragon Keeper (2010), um grupo de dragões mal-formados emerge dos casulos. Eles não se viram sozinhos, e o Conselho de Comerciantes da cidade de Trehaug não quer pagar pelo seu sustento. Para se livrar dos dragões, montam uma expedição à cidade perdida de Kelsingra, em algum lugar subindo o rio. Jovens indesejados de Trehaug são convertidos em tratadores de dragões, e enviados com os bichos. A garota Thymara é um deles, e a expedição conta ainda com a aristocrata de Bingtown (a cidade da Trilogia Liveship Traders) Alise Kincarron, uma erudita no estudo dos dragões, que vai acompanhada de seu amigo de infância Sedric Meldar — o amante secreto do marido de Alise, Hest Finbok. Dragon Haven discute o quanto o secretismo em torno da homossexualidade leva a comportamentos esquivos: Sedric deseja comercializar partes de dragão, de alto valor de junto aos salcedeanos, uma das nações mais canalhas do mundo secundário criado por Hobb. Seu objetivo é enriquecer o bastante para viver com Hest sem precisar esconder o relacionamento. O livro também enfoca o sexo e os custos da gravidez adolescente, considerando que, por viverem no Rio Rain Wilds, os tratadores sofrem de deformidades que limitam sua chances de reprodução. Nem sempre eles entendem isso, e Thymara, em particular, é pressionada a escolher um parceiro para evitar atritos entre os rapazes. De personalidade forte, ela resiste. Os percalços do enredo incluem uma cabeça d’água que causa baixas na expedição; as ideias utópicas do tratador Greft, de criar sua própria sociedade livre em Kelsingra, fazendo uma guinada na direção de O Senhor das Moscas, de William Golding; o conflito entre os expedicionários, fomentado por traficantes de partes de dragões, infiltrados entre eles; e a maturação violenta dos próprios dragões, que começam a transformar fisicamente seus tratadores, como fizeram no passado na civilização desaparecida dos elderlings. Hobb é mestre em encontrar o timing preciso entre os diversos pontos do enredo, e quando o seu discurso sobre sexo e gravidez adolescente parece estar enchendo a paciência, ela põe em cena os mais terríveis argumentos. Sua sensibilidade a faz também relativizar o papel desagregador de Greft, e o retrato da homossexualidade que vinha construindo — achando um namorado honesto e dedicado para Sedric. Os elementos do gênero romance, combinados com a fantasia, estão mais claros no relacionamento apimentado de Alise com Leftrin, capitão da barcaça que acompanha a expedição. Um homem rude, mas que a aprecia mais do que o arrogante Hest jamais o faria.

Os dragões são um interesse à parte, na sua arrogância e pomposidade, e na interação com os jovens tratadores. Ao contrário daqueles de Game of Thrones, eles falam e também se comunicam telepaticamente. A ilustração de capa de Steve Stone tem uma bonita tonalidade, mas qualquer fã de fantasia vai dizer que seus dragões são um completo engano.

 

Arte de capa de Carlos Chagas.

Céu Vermelho, de Júlio Emílio Braz. Rio de Janeiro: Editora Ao Livro Técnico, 1995, 56 páginas. Capa e ilustrações internas de Carlos Chagas. O ano de 1995 foi aquele em que as coleções Novos Mundos da Ficção Científica (Francisco Alves) e Ficção Científica GRD (Edições GRD) deixaram de circular. A publicação de FC no Brasil, que já era esporádica, minguou ainda mais — situação que só se reverteu oito ou dez anos depois. A área juvenil sempre foi mais rica, mas nela também a FC tinha uma presença incerta. O colega Júlio Emílio Braz, um dos poucos afro-brasileiros trabalhando no campo da FC, foi roteirista de quadrinhos e escritor de livros de western para a Editora Escala, sob pseudônimo e vendidos em banca de jornal. Quando se instalou no campo infantojuvenil, ganhou fama e foi publicado no exterior. Imagino o quanto este Céu Vermelho — que encontrei outro dia numa arrumação — não representa um momento de transição do Júlio Emílio. Tem muito de faroeste, com perseguição a ladrões de cavalos, circo de horrores, duelo em saloom e confronto final entre herói e vilão. A palavra “xerife” conseguiu se enfiar no texto, inclusive…

Mas é ficção científica. Do tipo ufológica com direito a OVNIs e “ufonautas tipo 1”: um alienígena sinistrado na Terra acaba se integrando à família do militar que o abriga. Isso, num canto do Sul do Brasil chamado Cerros Bravos, na segunda metade do século 19. Lembra aí “Um Moço Muito Branco” (1962), de Guimarães Rosa, passado em Minas Gerais em 1872, com um alien abandonado acidentalmente nos rincões do lugarejo Serro Frio… O E.T. de Céu Vermelho conquista as crianças do lugar, manipulando a matéria e curando um guri com poliomielite, mesmo enquanto o padre local (que tem um não explicado neto) quer organizar um grupo de linchamento contra ele. Mas é um bando de bandoleiros que o ameaça de fato, capturando-o para a dona de um mafuá de passagem pela região. Li outros livros juvenis de Júlio Emílio (que li quando meu filho estudava no Colégio Notre Dame aqui perto de casa, onde conhecemos o escritor numa feira de livros dentro da escola). Neles, nota-se que o autor não é fã de finais felizes. Este não é exceção. O conto de Rosa tem no “estilo roseano” a marca maior, a novela de Júlio Emílio, também ela com um léxico rico, talvez devedor de Erico Verissimo, é marcada pelos elementos de aventura que ele combinou.

A Editora Ao Livro Técnico é responsável pela publicação do primeiro livro de arte de FC lançado no Brasil, Naves Espaciais: 2000 a 2100. Sua edição de Céu Vermelho deixou a desejar na revisão, mas a capa e as cinco ilustrações internas (em preto e branco) de Carlos Chagas são um plus. Chagas está lá com Manuel Victor como um dos grandes da ilustração de livros para crianças no Brasil, e embora aqui ele não explore muito os elementos de FC, suas artes remetem à pintura brasileira dos tipos regionais (tipo José de Ferraz Almeida Junior), reforçando a mistura sugestiva que o escritor criou. Há pelo menos mais um livro de FC juvenil pela editora, Os Semeadores da Via Láctea, de Paulo Rangel. Também com arte de Chagas.

 

Romance com Pessoas: A Imaginação em Machado de Assis, de José Luiz Passos. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014 [2007], 400 páginas. Brochura. Ainda envolvido com Machado de Assis, desta vez peguei um estudo a respeito dele, pelo professor universitário e romancista José Luiz Passos. Seu O Sonâmbulo Amador ganhou o Grande Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2013. O foco deste estudo está em como Machado busca na psicologia dos seus protagonistas a exploração da moralidade e das máscaras que usamos para transitar dentro da sociedade. Passos afirma que o nível de penetração psicológica que Machado alcançou seria uma contribuição dele para o romance latino-americano (embora não forneça contra-exemplos).

Um dado interessante é o quanto Machado teria bebido de William Shakespeare. Isso parece óbvio para quem conhece seus contos e romances, mas Passos foi além e fez um levantamento das ocorrências de Shakespeare, menções e citações, na obra toda de Machado. Há uma listagem no final do livro, com ocorrências majoritárias de peças como Otelo e Hamlet. Muito menos das que tratam da história da Inglaterra, e menos ainda, não pude deixar de notar, daquelas com elementos fantásticos como A Tempestade e Sonho de uma Noite de Verão. A tradução de um romance de Vitor Hugo também pode ter influenciado Machado na adoção das suas estratégias literárias mais características, assim como a obra do russo Ivan Turgueniev. Passos revela que o interesse de Machado pelo realismo teria surgido da sua apreciação do teatro da época, já que foi crítico de teatro e já que o realismo chegou antes às artes brasileiras via teatro, e não pela prosa literária. Aí também tem-se uma pista do privilégio do adultério como tema na sua obra, já que foi um assunto muito visitado por esse teatro pioneiro. O livro tem um estilo acessível e apresenta capítulos relativamente curtos, escritos com leveza e uma certa autonomia. Assim, os argumentos de um reforçam os de outros, mas sem que haja uma lógica de tese universitária amarrando-os — o que é muito positivo. O foco está nos romances de Machado, embora o autor também mencione alguns contos e novelas. Cita muito Antonio Candido e Roberto Schwarz, como seria de se esperar, mas também alguns estrangeiros, e trata ainda da polêmica entre Machado e um dos seus primeiros críticos, Sílvio Romero. Em tudo, expressa a admiração pelo modo como Machado de Assis deu a seus personagens o caráter de pessoas.

“Será que ganhamos algo de fundamental quando consideramos os protagonistas de um romance pessoas, e não meras instanciações simbólicas de qualidades mais abstratas?” —José Luiz Passos. Romance com Pessoas: A Imaginação em Machado de Assis.

 

Dicionário de Pequenas Solidões, de Ronaldo Cagiano. Rio de Janeiro: Língua Geral, Coleção Ponta-de-Lança, 2006, 136 páginas. Texto de orelha de Ignácio de Loyola Brandão. Brochura.  Conheci Ronaldo Cagiano por intermédio do escritor mineiro João Batista Melo, que, como contista, às vezes explora a ficção científica e a fantasia. Quando João Batista vem a São Paulo, costumamos nos reunir os três (às vezes quatro, quando a esposa de Cagiano, a escritora Eltania André, o acompanha) para um papo. Cagiano e eu temos algumas coisas em comum: somos fãs de João Batista; costumamos reclamar muito da situação do mercado editorial; somos os dois oriundos de cidades pequenas, ele de Cataguases-MG, e eu de Sumaré-SP — duas cidades que contribuíram incidentalmente para a ficção científica. Mas ele escreve ficção literária e eu, ficção de gênero.

Alguns dos 14 contos do livro se passam em Cataguases, outros em Brasília, por onde Cagiano também passou. Um deles, “Encontros”, narra a passagem de Franz Kafka (1883-1924) por Cataguases nos idos de 1910, instigado pelo cineasta pioneiro Humberto Mauro (1897-1983) e acompanhado de Max Brod. Por isso talvez possamos classificar o conto como história alternativa… Outros contos falam das angústias da vida brasileira, focados em personalidades constrangidas por experiências de infância ou juventude, como a menina violentada em “O Abuso”, a prostituta assassinada em “Solidão”, o jovem frívolo que herda responsabilidades inesperadas com a morte do irmão em “Juízo Final”, a solidão de uma imigrante georgiana entre seus cachorros em “Pavlov”… Uma coisa que me agrada em Cagiano é o fato de ele se esquivar da prosa minimalista que veio a dominar a literatura brasileira com a Geração 90. Seu estilo é mais rico e remissivo dos momentos da literatura e da cultura brasileira que compõem sua formação como escritor, imagino que aqueles estabelecidos especialmente na década de 1970, bastante críticos da urbanização e desumanização da sociedade brasileira. Esse tipo de enfoque e a prosa literária que advém dele tendem ao mergulho psicológico e a um tom introspectivo, reflexivo, que para ser bem marcado costuma limitar a voz dos personagens ou embuti-la num discurso indireto livre. Dos 14 contos, nenhum deles apresenta situações de diálogos — o que não deixa de ser um tipo de redução… A edição da Língua Geral é muito bonita, com uma capa mais rígida do que o costumeiro, uma cinta emborrachada que a abraça (não aparece no scan acima) e apenas uma orelha, assinada por ninguém menos que Ignácio de Loyola Brandão.

“Quando você abre o livro e começa pelos contos da mulher violentada e a visita de Kafka percebe que está diante de um escritor que sabe o que fazer, sabe para onde vai, como se vai, as conduções que deve tomar … Cagiano é um autor que te prende na primeira página.” —Ignácio de Loyola Brandão.

 

Half Life, de Hal Clement. Nova York: Tor Books, 2000 [1999]. Paperback. Hal Clement (Harry Clement Stubs; 1922-2003) escreveu o clássico da ficção científica Mission of Gravity (1953), importante para a retomada da FC hard americana na década de 1970, com Larry Niven et alii. Ainda na primeira metade da década de 1990, a Editora Aleph contratou esse romance, produziu uma tradução e encomendou uma linda capa feita por Vagner Vargas. Mas o livro acabou não saindo. Assim como Mission of Gravity, este Half Life foi primeiro publicado em partes em uma revista, a Absolute Magnitude, mas como histórias interligadas — um fix-up, portanto.

A aventura se passa em um futuro em que a humanidade e a vida na Terra parecem ter seus dias contados. Uma profusão de doenças degenerativas jogou a expectativa de vida para metade da atual. As ciências exatas foram arregimentadas e militarizadas para concentrar o esforço de salvação da humanidade. Uma nave com uma tripulação de doentes terminais é enviada a Titã, a lua de Saturno. Vai em busca de traços de substâncias ou compostos pré-bióticos (constituintes químicos da vida biológica) que possam lançar luz sobre a formação da vida e, indiretamente, sobre a atual ameaça à vida na Terra. Uma FC hard baseada em microbiologia ou bioquímica, portanto (Clement foi professor da área). Há muita ironia tanto na premissa quanto no modo como o romance é narrado. O narrador onisciente salta de personagem em personagem e levantando os pontos científicos, mesmo que muito se desenvolva por meio de diálogos entre os tripulantes que, de tão doentes, não se comunicam fisicamente. Mais ainda em como as mortes dos homens e mulheres bombardeados da tripulação pontuam os passos e as descobertas da expedição, envolvendo uma substância de aparência betuminosa que corrói superfícies metálicas e trajes espaciais. Daí surge, aliás, um estranho senso de estoicismo que é uma das marcas da narrativa. As mortes e a investigação científica mantêm o suspense até o finzinho. O desfecho, ironicamente nada retumbante, sugere a descoberta de uma pista promissora em torno de enzimas perturbadas pelos metais pesados acumulados na biologia humana e animal. A verve de Clement torna Titã um mundo fascinante, e o destino que ele dá aos adoentados tripulantes é uma saudação à persistência da vontade humana. A arte de capa anônima tem Titã, os anéis de Saturno e um “código de barras genético” (atrás do título), mas não comunica muita coisa e parece indistinta e improvisada.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Chris Bachalos & Tim Towsend.

Star Wars Infinitos: O Império Contra-Ataca (Star Wars Infinities: The Empire Strikes Back), de Dave Land (texto) e Davidé Fabbri (desenho). Barueri-SP: Panini Comics, 2017, 108 páginas. Capa de Chris Bachalos & Tim Towsend. Brochura. Em abril, li o primeiro desta série Infinitos, de narrativas alternativas de Star Wars. O Império Contra-Ataca é o meu favorito dentro da franquia no cinema, e fiquei curioso com este livro de quadrinhos. Infelizmente, tanto o roteiro de Dave Land quanto a arte de Davidé Fabbri são inferiores àquelas de Star Wars Infinitos: Uma Nova Esperança, embora com uns pontos interessantes. Começa que a arte de Fabbri e a colorização de Dan Jackson puxam muito para o infantil.

A história abre com Luke Skywalker sendo morto por dois monstros da neve (e não apenas um, como no filme) no planeta Hoth. Mesmo com o pupilo mortalmente ferido, Ben Kenobi aparece e faz um apelo idiota para que ele vá ao planeta Dagobah instruir-se com Yoda. Depois da escaramuça abreviada com destroiers do Império, Han Solo vai parar em Bespin, onde, na cidade das nuvens e já reunido ao amigo Lando Calrissian, troca sopapos com o caça-prêmio Boba Fett. Quando Han finalmente chega a Dagobah, acompanhado da Princesa Leia, descobre que ela é o Skywalker que pode recolocar a força em equilíbrio. É bom ver Leia valorizada e Yoda outra vez no centro das ações (em O Retorno do Jedi ele morre de velho!), mas faltou desenvolvimento. Esta versão tem como ápice uma longa sequência em Dagobah, muito interessante por ter Yoda usando um recurso da força que eu nunca tinha visto antes: uma memory trip que faz Darth Vader rever seus crimes, desde os tempos de padawan. Tendo acesso aos seis filmes canônicos, Land também convoca para essa sequência Kenobi, Mace Windu e Qui-Gon Jinn, que esfregam sal nas feridas morais de Anakin Skywalker. Ao contrário de Star Wars Infinitos: Uma Nova Esperança, esta versão alternativa de O Império Contra-Ataca deixa o imperador fora da ação — e derradeiramente não faz jus ao ótimo filme de Irvin Kershner. (Que, aliás, não precisa de versões alternativas.) Estranhamente, a Panini deixou de dar crédito aos artistas das outras três capas da edição em partes, que aparecem no miolo do livro.

 

Star Wars: Império Despedaçado (Star Wars: Shattered Empire), de Greg Rucka (texto) e Marco Checchetto, Angel Unzueta e Emilio Laiso (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2016, 108 páginas. Capa de Phil Noto. Capa dura. Este livro surgiu ano passado com o selo Jornada para Star Wars: O Despertar da Força; ou seja, vem pavimentar o terreno entre o episódio VI, O Retorno de Jedi, e o VII. Devo dizer antes de mais nada que a arte do italiano Marco Checchetto chama muito a atenção. Ele também está na revista Star Wars nas bancas, edições 016, 017, 018 e 019, com uma aventura de Obi-Wan Kenobi & Anakin Skywalker num mundo meio steampunk. Pena que Checchetto não pôde desenhar o livro inteiro, mesmo porque a oscilação da arte incomoda.

A história começa na Batalha de Endor, quando Luke Skywalker foge da Estrela da Morte II com o seu moribundo pai. Um caça asa-A dos rebeldes intercepta o shuttle Tyridium que Luke pilota, e o poupa quando ele se identifica, passando a escoltá-lo até a lua de Endor. Quem pilota o caça é uma jovem morena chamada Shara Bey. O leitor passa a segui-la numa sucessão de episódios em que ela acompanha Han Solo, Leia Organa e Luke Skywalker em missões do tipo limpeza ou mop-up, enquanto o Império balança com a notícia do fim de Palpatine. A sequência inicial é bem feita, e não apenas as naves são perfeitamente reproduzidas, como traz as marcas da estrutura narrativa vista os filmes, com muitas comunicações em off e naves se cruzando no espaço. Checchetto também é um bom fisionomista, captando bem as caras dos heróis principais, mesmo enquanto mantém seu estilo. Shara, em especial, é encantadora por ter um rosto jovem de expressão ao mesmo tempo alerta e melancólica. Durante a comemoração triunfal em Endor, ela dá uma escapada com o marido, parte de uma tropa de operações especiais de infantaria. Quando Han chama essa grupo de combate, ela vai junto como piloto. Ao saber que o nome do marido é Kes Dameron, fica evidente que ela é mãe de Poe Dameron. A principal linha trata de como Shara, Leia e uma terceira garota salvam um mundo importante para o passado tanto de Leia quanto de Anakin Skywalker, de uma nova arma destruidora de planetas — via manipulação meteorológica. Esse segmento é ilustrado por outro artista, o espanhol Ángel Unzueta, que carece do charme de Checchetto. Numa espécie de epílogo, Shara reencontra Luke, pilotando para ele numa missão para recuperar duas mudas de uma árvore que antes existira dentro do templo jedi em Corusant (deve constar de algum romance ou HQ do universo expandido, imagino). Muitas aventuras, para uma moça que queria mais que tudo liquidar sua fatura com a Aliança Rebelde e se recolher em um planeta pacífico, com o marido e o filho.

A narrativa de Greg Rucka me pareceu mais complexa do que costumamos ver nessas HQs de Star Wars, mais episódica também. Mas a alternância de artistas acaba prejudicando o fluir do roteiro. A galeria de capas alternativas das revistas que forneceram o material para o livro inclui uma arte do brasileiro Mike Deodato. Essa que aparece na capa da versão em livro, tipo foto de família e  sem muito brilho, é de Phil Noto e não casa bem com o título.

 

Outras Leituras

O ícone do tumbler Brude’s World

Brude’s World, um tumblr de ilustrações. Eu visito muitos tumblrs de ilustração e imagem, em geral meio que sem sistema e normalmente abrindo direto o arquivo e escolhendo de lá as imagens que quero baixar. Mas recentemente encontrei este Brude’s World que me impressionou com uma curadoria sólida que bate bem com o meu gosto: lida com ficção científica, fantasia e horror na literatura, cinema e quadrinhos e a presenta uma boa continuidade entre esse gêneros e campos. Também entre o ontem e o hoje, recuando até imagens da antiguidade clássica e da ilustração e pintura do século 19 (incluindo os pintores pré-rafaelitas), com alguma coisa de erótico aqui e ali. Acho que tem uma das melhores curadorias dos tumblrs que estão por aí. Quem quer que seja o dono ou donos do tumblr, ele(s) conhece(m) a história desses gêneros e sabe(m) quem são os grandes nomes e o que é um desenho e uma arte-final de qualidade. Tem material lá de Frank Frazetta, Virgil Finlay, Frank R. Paul, Ed Emshwiller, Chesley Bonestell, Jack Kirby, Edward Burne-Jones, J. Allen St. John, N. C. Wyeth, Gustave Doré, Barry Windsor-Smith, Bernie Wrightson, Boris Vallejo, Jeffrey Catherine Jones, Drew Struzan, Moebius e Arthur Rackham. De vez em quando aparece algum brasileiro como Henrique Alvim Corrêa, Benício ou Mike Deodato. As postagens são frequentes e incluem ocasionalmente gifs e vídeos, e muitos daqueles posters alternativos — um tipo de arte de fã ou cartão de visitas de artistas ou estúdios, que virou moda nos tumblrs. Seu slogan é: “Poder, paixão, pin-ups e posters. Quadrinhos, belezuras, criaturas e calafrios.”

 

O banner com o logotipo do site Pulp International

Pulp International. Este é um site baseado em San Jose City, nas Filipinas, e quando diz que é internacional, é internacional mesmo. Traz muito material americano, mas também inglês, alemão, francês, australiano, japonês, mexicano, espanhol, indiano e até brasileiro — como esta postagem sobre a série ZZ7 de ficção de espionagem protagonizada por Brigitte Montfort e ilustrada pelo rei das pin-ups brasileiras, Benício. A definição de pulp que o site adota também é muito ampla, compreendendo a literatura e a indústria editorial centrada nela, e revistas pulp de todo tipo, não apenas de ficção mas de crime da vida real, pornografia (soft, na maior parte), cobertura de Hollywood, e os filmes, séries de TV e quadrinhos derivados. As postagens se agrupam em dez por páginas, o motor de busca funciona bem e os comentários muitas vezes são extensos e interessantes. A maior parte do conteúdo é vintage, mas às vezes aparece alguma postagem sobre algo moderno ou contemporâneo. Em agosto, estive lá baixando uma quantidade de capas de paperbacks de ficção de crime hardboiled com ilustrações de automóveis (vá entender…). Fiquem avisados: nesse site às vezes a gente tropeça em alguma coisa realmente de mau gosto. Mas pulp também é isso, não é verdade?

Roberto Causo

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