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Leituras de Janeiro de 2018

O ano começa como o ano anterior havia terminado com um livro de Ana Cristina Rodrigues, e começo este com outro livro da mesma autora. A fantasia foi bem representada nas minhas leituras de janeiro, que também incluíram, porém, FC cyberpunk e feminista.

 

Arte de capa de Frede Tizzot.

Fábulas Ferais: Histórias dos Animais de Shangri-lá, Conforme Relatadas no Atlas Ageográfico dos Lugares Imaginários, de Ana Cristina Rodrigues. Curitiba: Arte & Letra Editora, 2017, 86 páginas. Capa de Frede Tizzot. Capa dura artesanal. O último livro que li em dezembro do ano passado foi Minicontos de Fadas (Aquário, 2017), de Ana Cristina Rodrigues, e o mês de dezembro foi substancialmente dedicado à leitura de livros da Arte & Letra Editora, de Curitiba. Então eu começo 2018 lendo outro livro de Ana Cristina, e um lançado pela Arte & Letra. Trata-se de um livro particularmente bem cuidado nos seus aspectos gráficos, com uma maravilhosa capa dura artesanal de Dani Shuster & Patricia Jaremtchuk.

O título já nos diz que se trata de uma montagem de fábulas de animais, mas o reino de Shangri-lá, por agrupar bichos de todos os cantos e de espécies de continentes diversos, tem  uma qualidade própria de Nárnia, a imortal criação de C. S. Lewis. Inclusive, apresenta animais fabulosos como quimeras e minotauros. O livro é o primeiro título de um universo maior, o do “Atlas Ageográfico de Lugares Imaginados”, que já tem página no Facebook. A estrutura de Fábulas Ferais é episódica (valendo aí um índice, algo que o livro deixou de fora) e envolve as encrencas políticas e guerreiras dos bichos na cidade fortificada, de como a quimera Gilgamesh chegou ao poder e como foram as primeiras lutas contra os seres humanos. Ao final de cada episódio tem-se excertos de verbetes do atlas em questão (existe uma disparidade, atribuída não sei ao que, no título do atlas, entre o que aparece no livro e o que vemos no Facebook). A sugestiva capa de Frede Tizzot, feita sobre a arte “The Haunt of the Troll” (1910), de Reginald L. Knowles (1879-1951), tem movimentos sutis e foge do óbvio. Tizzot também assina o elegante projeto gráfico, que valoriza muito o livro.

 

Arte de capa de Steve Gilberts.

The Long Look, de Richard Parks. Detroit: Five Stars, 1.ª edição, setembro de 2008, 298 páginas. Capa de Steve Gilberts. Hardcover. Há alguns anos, contei a Christopher Kastensmidt que gostava muito das histórias de fantasia do escritor americano Richard Parks, e encontramos nisso algo em comum. Eu até havia tentado, sem sucesso, selecionar uma história de Parks para aparecer na série Asas do Vento, a coleção de livros de bolso da Devir Brasil. Christopher me presenteou, então, com dois livros de Parks. Este romance de alta fantasia, The Long Look, e a coletânea de histórias The Ogre’s Wife (2002).

O romance é o primeiro de uma trilogia apresentando Tymon the Black, um mago adepto da ilusão, do uso de golens e de uma vidência precognitiva conhecida como “long look“. Conhecer o futuro faz com que ele se mexa para minimizar a dor e a miséria da guerra, e corrigir injustiças (quando possível). É acompanhado pelo anão e aspirante a cronista Seb — um tipo inteligente e que, pelas indicações respingadas no texto, é tão bom de briga quanto Bruce Lee. A eles se agrega, lá pelo meio do livro, um aprendiz de feiticeiro que a dupla salva de um matador de aluguel. Outros personagens secundários também aparecem e têm um bom tratamento — especialmente as mulheres: a Princesa Ashesa em particular. As mulheres são retratadas como firmes em suas posições e o feminismo que projetam não soa estridente, parecendo pessoal e natural a elas. Ao contrário de muita fantasia por aí, os personagens de Parks, heróis ou vilões, têm motivações compreensíveis e ancoradas nas circunstâncias sociais e políticas que, embora apenas esboçadas, parecem bastante concretas ao leitor. A ficção de Parks se caracteriza pela inteligência, sutileza, simpatia pelos personagens e eficiência enganadora em todos os fundamentos da composição literária. De fato, o romance tem uma aura tanto de alta fantasia tolkieniana quanto de contos de fadas, o que em si já uma realização. Mas há traços subversivos costurados em cada elemento — a começar pelo herói, Tymon, que, para ser efetivo dentro da política palaciana do seu mundo, precisa se apresentar como vilão.

 

Arte de capa de John Everett Millais.

Pré-Rafaelismo (Pre-Raphaelites), de Robert de la Sizeranne. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Folha O Mundo da Arte volume 27, 68 páginas. Capa de John Everett Millais. Tradução de Gil Reyes. Capa dura. Existiu uma arte de fantasia, antes da fantasia como gênero literário existir — ou enquanto os elementos que viriam a dar forma à fantasia ainda eram peneirados nos agitos do século 19. Essa arte, especialmente na Inglaterra, foi a pintura Pré-Rafaelita, surgida a partir de 1846 e galvanizada em torno da Irmandade Pré-Rafaelita, um grupo de jovens artistas descontentes com o academicismo e o Neo-Classismo da época. Pregavam a atenção ao detalhe e à natureza, a recuperação de temas da Idade Média e do Renascimento (anteriores a Rafael), da cultura clássica e do folclore, e a pintura in loco — uma prática que chegou a render imagens de precisão fotográfica. É fácil reconhecer sua influência na ilustração realista de fantasia feita por Kinuko Y. Craft, Janny Wurts, Stephen Youll, Donato Giancolla e dúzias de outros artistas.

Uma disposição interessante dos pré-rafaelitas — especialmente no seu agitador, Ford Madox Brown (1821-1893) — estava no interesse de popularizar a arte, em um país eminentemente elitista. É adequado, portanto, que tenham tido impacto na ilustração de um gênero popular como a fantasia. O movimento Arts & Crafts, do qual alguns pré-rafaelitas foram fundadores (como William Morris) ou membros, também deve se conectar com essa postura. (O Arts & Crafts também tem suas digitais na arte de fantasia, como no trabalho muito romântico de Thomas Canty.) O autor, de la Sizeranne, lista outros três nomes além de Brown, como importantes para a primeira hora do movimento: Dante Gabriel Rossetti, William Holman Hunt e John Everett Milais. Mas ele também aponta o trabalho do crítico John Ruskin, como essencial para o estabelecimento da nova escola. Os livros dessa série tem uma seção que discorre sobre os principais artistas de cada escola ou movimento, e aqui os selecionados são Hunt, Millais, Rossetti, Brown, Edward Burne-Jones, e William Morris. Certos nomes da segunda hora do movimento acabaram ficando de fora, embora tenham pintado algumas das obras mais conhecidas e influentes do pré-rafaelismo: John William Waterhouse e Edmund Blair Leighton (que aparecem em outras partes do volume). De qualquer modo, este é um livro acessível e bem interessante para o fã de fantasia e de sua ilustração editorial. Para sublinhar ainda mais a conexão do seu assunto com a arte de fantasia, veja este ótimo artigo no blog de Terri Windling (em inglês), que enfatiza a vinculação da escola com o Romantismo.

Lady of Shallot, baseado no poema arturiano de Alfred, Lord Tennyson, é uma adorável pintura de John William Waterhouse, ausente do livro.

 

The Peripheral, de William Gibson. Nova York: Putnam’s, 1.ª edição, 2014, 486 páginas. Hardcover. Aqui no Brasil, a Editora Aleph, de São Paulo, retomou a sua publicação de ficção científica no século 21 com a obra de William Gibson, que se tornou um dos seus carros-chefes. Mas este romance de FC de futuro próximo e viagem no tempo (tema novo para Gibson) ainda não apareceu por aqui. Estava comigo há algum tempo e o que me fez tirá-lo da estante foi uma entrevista feita com Gibson, publicada por Elizabeth Hand na edição de ressurgimento da revista OMNI. O que me chamou a atenção foi a hipótese de se tratar da primeira narrativa de viagem no tempo, escrita por Gibson. Não é bem, mas chega perto.

Apenas dois personagens detêm o ponto de vista narrativo, cada um se ocupando de um linha do livro: Flynne Fisher, uma jovem americana do futuro próximo; e Wilf Netherton, um inglês do futuro não tão próximo. Os dois começam a se aproximar depois que Flynne é recrutada por seu irmão, Burton, um veterano de guerra, para substituí-la naquilo que ela acredita ser o beta-teste de um game de realidade virtual. Isso enquanto Burton vai dar um pau num grupo fundamentalista cristão numa cidade vizinha. Ele é preso e demora para voltar. No ínterim, a garota testemunha uma espécie de assassinato usando agentes nanitas, numa Londres estilizada do futuro. Acaba sendo que não era um game, mas o modo que os aristocratas das cleptocracias europeias frequentadas por Wilf encontraram para se divertirem “viajando no tempo”. O rationale científico é de que se a viagem no tempo é impossível, o fluxo de dados do passado para o futuro não o é (uma noção que Gibson tirou do colega cyberpunk Rudy Rucker, um matemático). A consciência de Flynne é levada ao futuro para atuar lá tripulando uma espécie de robô ou androide chamado de periférico (daí o título). Esse futuro é descrito como o resultado das agressões ambientais e sociais que estamos armando agora, após um evento conhecido ironicamente como “Jackpot” (o grande prêmio do caça-niqueis). É mais ou menos o que Bruce Sterling chamou de “heavy weather” no romance Tempo Fechado: condição de vida global, marcada pelas consequências da crise climática. Pode ser que o objetivo dos aristocratas com o truque temporal fosse inicialmente só a recreação exclusivista, mas ao longo do romance vai surgindo a hipótese de intervenções seletivas no passado (o nosso futuro próximo) que tornem o Jackpot menos grave. Para isso, manipulações financeiras e de compra e venda de empresas coloca Flynne e seus associados sentados na grana, mas tendo que se defender do crime organizado e de policiais e federais (chamados lá de “Homers”: de Homeland Security) corruptos. Obedecendo a um certo padrão estabelecido desde Neuromancer, em 1984, The Peripheral firma logo cedo algumas encrencas para os protagonistas e alguns mistérios, colocando-os em movimento lento até revelações que assustam pelo seu retrato tanto de uma aristocracia que parece monstruosa, quanto de desenvolvimentos tecnológicos que nos fazem encolher em nossa condição humana. No caminho, toma-se contato com uma plêiade de personagens estranhos, excêntricos, bizarros mas quase sempre camaradas. A construção do futuro (ou futu-ros, aqui) é, como de hábito, um ponto forte de Gibson. Tanto o degradado futuro próximo de Flynne, que vive em uma América rural meio desértica e sem perspectiva, quanto o futuro pós-humano de Wilf. Mas as descrições muitas vezes brilhantes são alternadas com uma exposição por meio de diálogos rápidos que acabam recorrendo ao cacoete de um personagem sempre dizendo algo do tipo, “Hã, o quê?”, para se tornarem mais claros. A prosa de Gibson está mais minimalista neste romance, e algo da densidade e das suas marcas de estilo foi perdido com isso. Existe um papo de que The Peripheral vai virar uma série de TV, com o envolvimento do diretor Christopher Nolan.

 

Arte de capa de Qiu Ying.

Arte Chinesa (Chinese Art), de Stephen W. Bushell & Pierre Emmanuel Klingbeil. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção O Mundo da Arte vol. 30, 2017, 68 páginas. Arte de capa de Qiu Ying. Tradução de Gil Reyes. Capa dura. O primeiro romance de Shiroma, Matadora Ciborgue tem como título provisório “Cerco em Ulaambaatar”, e nele a heroína se envolve com uma organização criminosa interestelar semelhante às tríades chinesas: a T’ien-Ti-Hwey da Era Galáctica. Para explorar alguma coisa da cultura chinesa no romance, comecei a minha pesquisa com este livro. A primeira coisa que se pode dizer sobre ele é que não se fixa em um movimento, estilo ou escola, como a maioria dos títulos da coleção. Isso provavelmente é inevitável, e o aspecto panorâmico se destaca.

A introdução abre com a interessante afirmativa de que a China não é um país tão fechado quanto se imagina. Não obstante, o livro parece ser composto tanto do material selecionado para o passeio panorâmico, quanto de ausências, já que é uma adaptação, por Klingbeil, do trabalho de Bushell — que morreu em 1908. Mesmo assim, o livro, belamente ilustrado com fotografias de primeira categoria, fornece uma visão geral das direções que a arte chinesa tomou desde a antiguidade, com seções sobre arquitetura, entalhes e artes de lapidação, materiais manufaturados e arte pictórica. A característica da “geomancia” (ou feng-shui) na arquitetura é das mais interessantes. Por outro lado, o único artista chinês nomeado contando com reprodução de obra de sua autoria na seção de arte pictórica é Qiu Ying, que aparece na capa. A atualização mais óbvia é a inclusão dos Guerreiros de Xian, do Exército de Terracota descoberto em 1974, bem depois da morte de Bushell.

 

A Destruição do Mundo, de Vero de Lima. São Paulo: Editora Cacique, s.d. [1955?], 182 páginas. Brochura. Mais uma leitura de ficção científica brasileira do Período Pioneiro (1857-1957), visando a versão “revista e ampliada” de Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil. Trata-se de um romance curto ambientado nos Estados Unidos em futuro próximo, escrito originalmente em 1936. Na nota inicial, Vero de Lima conta que o apresentou inicialmente a Monteiro Lobato. (O próprio Lobato havia ambientado um romance nos EUA, o infame O Presidente Negro ou O Choque das Raças, de 1925.) A primeira parte do romance apareceu como uma novela, no jornal A Época, sob o pseudônimo de “J. Allan Patrick”.

O protagonista é o jovem herdeiro milionário Richard Write, que, depois de voltar da guerra, abandona a vida loca e resolve empregar seu capital e interesse científico para o avanço da humanidade. O arrazoado científico é confuso: a princípio, fala-se de que o segredo da “desintegração nuclear” trará uma revolução à humanidade. Mais tarde, fala-se de um “raio condutor” e de uma placa com propriedades energéticas capaz de ser usada tanto como arma quanto como promotora da fertilidade do solo e das plantas. Depois que suas intenções vazam para a imprensa, ele é convidado para falar em um evento da elite novaiorquina, na sede da Liga Anti-Guerreira, organização que remete aos movimentos pacifistas do entre-guerras), mas seus discurso evita o comentário científico, para assumir uma retórica pacifista e moralizante, e se dedicar à defesa do direito natural, uma escola jurídica que, no Brasil, alimentou o pensamento do Movimento Integralista. Ao final do discurso, White diz:

“Esperavam ouvir de minha boca alvíssaras novas, anunciando-lhes maravilhosas descobertas científicas para salvar o mundo. Mas a salvação do mundo não será obra da ciência. A ciência, quando muito, descobre e utiliza o conteúdo da natureza, mas a salvação da humanidade pertence ao domínio do espírito. Convençamo-nos do seguinte: As elites são como as plantas pujantes e úteis; se porém o solo em que medrarem fôr inculto e sáfaro, seus frutos serão, por isso mesmo, raquíticos e até nulos. Cultivemos, portanto, o solo, se desejamos que as elites produzam bons frutos. E, na vida social de uma nação, o povo é o solo. Humanizemos o mundo, dando-lhe o direito humano e mínimo natural, e que garanta uma existência decente a todos […]” —Vero de Lima, A Destruição do Mundo.

É um artifício do herói para sair da mira de Mr. Ember, “a maior força político-industrial da América”, que pretende fazer dinheiro com qualquer inovação high-tech que possa usar na próxima guerra. Mas também expressa a desconfiança da FC brasileira quanto à ciência e a tecnologia, e adesão a um humanismo moralizante e católico. Essa desconfiança foi uma das marcas locais dominantes no gênero até a eclosão da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira (1982 a 2015), e continua vigente. O discurso e o anúncio do novo conflito encerram a primeira parte do livro, que também expressa outra tensão característica da FC brasileira do Período Pioneiro (1857 a 1957), aquela entre a narrativa de aventura e a de observação social ou de costumes, presente desde, por exemplo, A Rainha do Ignoto (1899), de Emília Freitas. Assim, a intriga alterna traições de funcionários, assassinatos, ações de gangsters à mando do industrial vilão, e militares invasores asiáticos (perigo amarelo!), com observações sobre o amigo poeta do herói, sobre seus empregados, namorada e familiares. Obviamente, Vero de Lima tem familiaridade com as convenções da ficção pulp da década de 1930, e com algo da realidade americana de então. Mas não em profundidade, e os desvios e subterfúgios que adota para se esquivar do detalhe específico são evidentes. A certa altura, e de modo interessante, o texto denso do autor parece adotar essa sinuosidade como marca de estilo, aproximando-o do understatement sofisticado característico da ficção americana da época. Mas o fato é que a qualidade da sua imaginação tropeça seguidamente, e em especial no denouemant, no qual White é capturado pelos invasores asiáticos e obrigado a construir seu raio da morte e visor remoto (recurso visto tanto em Monteiro Lobato quanto nos contos de Berilo Neves, nas décadas de 1920 e ’30). O pacifista White, assim como o pacifista Campos, no romance de Jeronymo Monteiro 3 Meses no Século 81 (1947), resolve que o único meio de dar fim à guerra é o extermínio dos povos conflitantes ou da humanidade como um todo. Aí a narrativa se encontra com o título do livro, e o romance com o seu conteúdo católico, com missionários sobreviventes vindo redimir White na ilha solitária, depois que ele realizou o Armagedom.

Vero de Lima — eu me toquei depois de ler o livro — tornou-se em 1956 o editor (ou “redator-chefe”) da versão brasileira da lembrada revista americana de FC Fantastic. Publicou nela, inclusive, pelo menos um conto. No Brasil, a revista durou de 1955 a 1960, sendo a revista nacional de FC que circulou por mais tempo. O autor foi, portanto, um daqueles raros nomes brasileiros que teve uma atuação relativamente dedicada ao campo da FC, antes da inserção da Geração GRD a partir de 1960.

 

The James Tiptree Award Anthology 3, de Karen Joy Fowler, Pat Murphy, Debbie Notkin & Jeffrey D. Smith, eds. San Francisco, CA: Tachyon Publications, 2007, 274 páginas. Trade paperback. O Prêmio James Tiptree é  voltado para o reconhecimento de obras que desafiam os papeis sexuais. E já há um tempinho. Um dos lados mais divertidos da iniciativa é a venda de bolos pelas moças do comitê em convenções de ficção científica, para levantar fundos para o prêmio. Esta antologia dedicada a ele e aos seus vencedores e destaques me foi presenteada pelo Prof. Alfredo Suppia, autor de Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro (Devir Brasil), que a trouxe de um dos congressos de que participou, nos EUA.

O livro combina histórias de ficção científica e fantasia, textos de não-ficção e listas com os resultados do prêmio, ao longo dos anos (ele foi fundado em 1991). As histórias são ganhadoras ou finalistas do prêmio. Mas um dos textos que mais me tocou foi justamente um ensaio: “Shame”, de Pam Noles, sobre a questão da representação na FC e fantasia, escrito antes da questão se tornar determinante, nos últimos anos. Noles, uma afro-americana, recorda com muita graça, como foi finalmente encontrar personagens de cor na série de fantasia Terramar, de Ursula K. Le Guin. A própria Le Guin, falecida agora em 2018, está no livro com a bela novela “Mountain Ways”, sobre uma idílica comunidade poli-amorosa que tem os seus próprios desajustados. “Have not Have”, de Geoff Ryman, é excerto do seu elogiado romance Air (2006), e trata de uma mulher que vive em uma vila no “Karzistão” e que tem como negócio guiar visitas a centros comerciais com outras mulheres, para organizar casamentos. No processo, ela funciona como um pilar da comunidade, cuidando do povo da vila de diversas maneiras. Mas tudo está ameaçado por uma inovação tecnológica que fará com as pessoas possam receber a internet diretamente em suas cabeças. Ryman é o líder do movimento Mundane-SF, e o texto dele aqui é um bom exemplo dessa corrente. Uma das narrativas mais longas da antologia é “Little Faces”, de Vonda N. McIntyre: uma utopia feminina do futuro distante e composta por mulheres aristocráticas e fashionistas vivendo solitárias em naves vivas e se reproduzindo com o concurso de pequenos alienígenas que vivem como parasitas em seus corpos — uma ideia que emana quase que diretamente da noveleta “Bloodchild” (1984), de Octavia E. Butler. A história de McIntyre, que vai na direção oposta à Mundane-SF de Ryman, me alienou na sua maior parte, soando artificial e sem enredo. Butler mereceu um ensaio muito interessante sobre a sua obra, “The Future of Female: Octavia Butler’s Mother Lode”, de Dorothy Allison.

Outras histórias no livro são “The Glass Bottle Trick”, da afro-canadense Nalo Hopkinson; “Wooden Bridge”, da australiana Margo Lanagan; “Dearth”, da americana Aimee Bender; e “Liking What You See: A Documentary”, de Ted Chiang — história que já discuti aqui ao resenhar o livro de Chiang, Story of your Life and Others. Como o prêmio homenageia o pseudônimo de Alice B. Sheldon, “James Tiptree, Jr.”, a antologia traz “Dear Alice Sheldon”, de L. Timmel Duchamp, um texto de não-ficção que explora, numa estrutura epistolar, as características da ficção da autora. E também a pioneira e premiada noveleta pré-cyberpunk “The Girl Who Was Plugged In” (1973), intrigante e violenta narrativa meio beatnik sobre uma jovem fisicamente deformada mas de coração romântico que recebe um extreme makeover pela ciência de uma empresa de publicidade, que a fabrica como figura do jet-set internacional que promova os seus produtos e tendências. A narrativa, muito irônica e às vezes nonsense, ao mesmo tempo que denuncia a fabricação de imagens femininas, descreve a heroína como sem noção e entregue aos seus devaneios, telecomandada por computadores. Cabe assim numa postura feminista que se firma pela crítica do estereótipo e do comportamento feminino frívolo e não-esclarecido, muito presente, inclusive, na ficção pós-modernista americana. Eu me pergunto se essa perspectiva teria algum futuro no Brasil em tempos de demanda por retratos positivos da mulher, e com um público leitor com grandes dificuldades para entender ironia.

—Roberto Causo

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Leituras de Novembro de 2017

Em antecipação ao lançamento de Star Wars Episódio VIII: Os Últimos Jedi no fim do ano, em novembro resolvi atacar alguns livros de quadrinhos dentro da franquia. Mas o mês não deixou de trazer a leitura de algumas obras significativas de ficção científica nacional e estrangeira.

 

O Homem que Caiu na Terra (The Man Who Fell To Earth), de Walter Tevis. São Paulo: DarkSide Books, 2016 [1963], 220 páginas. Capa dura. Tradução de Taissa Reis. Falecido este ano aos 92 anos, o escritor e crítico inglês Brian W. Aldiss afirmou em 1984 que a década de 1950 foi “um ápice” da ficção científica. A afirmativa fazia contraponto à ideia da Era de Ouro como sendo o período entre 1938 e 1948. A FC que Aldiss saudava era madura, capaz de explorar a psicologia dos personagens e discutir problemas contemporâneos com seriedade e controle de narrativa e estilo. Este romance de Walter Tevis, adaptado para o cinema por Nicolas Roeg em 1976, é de 1963 e portanto posterior, mas está dentro da prática da década anterior e lembra obras significativas como Flowers for Algernon (1959), de Daniel Keyes e que também virou filme, e Eu Sou a Lenda (1954) e O Incrível Homem que Encolheu (1956), de Richard Matheson — todos eles sobre a solidão do sujeito em um mundo de circunstâncias sociais em rápida transformação.

O Homem que Caiu na Terra é um substancial romance de ficção científica sobre um alienígena oriundo de um planeta moribundo situado no Sistema Solar. Ele vem à Terra com um plano de influir positivamente na política humana durante a guerra fria. O objetivo é salvar nosso planeta da guerra nuclear e preparar o terreno para a vinda do restante da população do seu mundo para cá. Para isso, começa oferecendo a um capitalista uma série de desenvolvimentos tecnológicos da área do entretenimento. Enriquece rapidamente, a ponto de reunir os recursos para a construção de uma nave espacial privada, em uma propriedade do Kentucky. No meio do caminho, porém, ele conhece uma mulher que se torna sua enfermeira e companheira platônica, e um engenheiro químico tão curioso sobre suas invenções, que dá um jeito de ir trabalhar para ele e de se aproximar o suficiente para descobrir seu segredo. No caminho dos planos do alienígena, está menos a atenção do FBI e da CIA — que certamente lhe trazem graves problemas —, e mais o envolvimento de mesmo com a trivialidade da vida humana. Existencialista. Assim como no romance O Novo Adão (1939), de Stanley G. Weinbaum (1902-1935), o ET de Walter Tevis é um super-homem intelectual forçado a viver num drástico isolamento moral entre criaturas inferiores que ele de algum modo ama, mas com as quais não consegue se relacionar. Assim como em Eu Sou a Lenda, a solidão e o alcoolismo marcam os passos do protagonista. A novidade está na ambientação que é ou rural ou entre as altas rodas de cidades como Nova York e Chicago, mas de uma maneira pouco caracterizada. Bastante diferente do cenário desértico que o filme de Roeg, com David Bowie como o alienígena, escolheu explorar. A maior realização da prosa de Tevis está no tom melancólico e interiorizado, que sublinha esse aspecto existencial. Isso faz deste livro um romance sofisticado, mas que de certo modo fica na superfície das suas indagações.

 

Animais Fantásticos e Onde Habitam: Os Animais: Guia Cinematográfico (Fantastic Beasts and Where to Find Them Cinematic Guide: The Beasts), de Felicity Baker. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2017, 64 páginas. Tradução de Regiani Winarski. Capa dura. O filme de se tornou o favorito de 2016 entre minha mulher, Finisia Fideli, e eu. Parte do universo iniciado com a série Harry Potter, de J. K. Rowling, parece se dirigir a um público mais adulto. Ambientado na Nova York de 1926, tem um ótimo elenco e situações divertidas, um herói incomum e personagens secundários valorizados. Quem curtia os velhos filmes de Frank Capra, como eu, tem nele uma viagem de lembranças e referências. Mais importante, é um filme que celebra a imaginação e a atitude liberal, solidária e agregadora.

O desenho de produção de Animais Fantásticos é excepcional e resultou em uma profusão de elementos de design gráfico que expandem o conteúdo do filme e estão no centro dos dois outros livros do filme que temos aqui: Mergulhe na Magia, o Bastidores de Animais Fantásticos e Onde Habitam, de Ian Nathan; e o maravilhoso A Maleta de Criaturas: Explore a Magia do Filme Animais Fantásticos e Onde Habitam, de Mark Salisbury, que imita a mala de Newt Scamander (com direito a fecho magnético e imitação de costura nas bordas) e tem dentro uma infinidade de coisas como folhetos, mapas e panfletos que você pode desdobrar ou puxar de um envelope. Este guia também tem fotos muito bonitas dos ambientes e objetos, conta resumidamente a história, mas se concentra nos bichos fantásticos um esquema de fotos e fichas. Comete um engano, porém — a autora Felicity Baker confunde o gira-gira com a fada mordente! E só por aí já dá pra sentir com virei um nerd de Animais Fantásticos…

 

Stories of Your Life and Others, de Ted Chiang. Nova York: Vintage Books, s.d. [2016? 2002], 284 páginas. Trade paperback. Este é um livro que comecei a ler na edição de 2016 pela Intrínseca, com tradução de Edmundo Barreiros, mas terminei com esta edição da Vintage. É que em 6 de novembro estive na Universidade Federal de São Paulo, campus de Guarulhos, para uma atividade com alunos e colegas da Prof.ª Suzanna Mizan — com quem partilhei há alguns anos a orientação do Prof. Lynn Mário Trindade Menezes de Souza — para discutir justamente o filme A Chegada (Arrival, 2016), de Denis Villeneuve, e a história de Ted Chiang em que ele se baseou, “História da sua Vida” (“Story of your Life”). Suzanna me presenteou com esta edição em inglês. Chiang tem sido um grande nome da ficção científica americana desde sua estreia em 1991, e a feliz adaptação da sua história deu a chance que os leitores brasileiros esperavam para conhecer o seu trabalho.

“História da sua Vida” (1999) é uma narrativa madura e sofisticada, que incorpora muitos procedimentos da ficção pós-modernista americana, com uma forte qualidade emocional. Essa premiada noveleta é a melhor do livro, mas ele traz outros textos importantes, como a premiadíssima história de 2002, “O Inferno É a Ausência de Deus” (“Hell Is the Absence of God”). Outro seria “Torre da Babilônia” (“Tower of Babel”, 1991), seu texto de estreia, ganhador do Prêmio Nebula de Melhor Noveleta. Estes dois, juntamente com o divertido e engenhoso “Setenta e duas Letras” (“Seventy-two Letters”), que eu já conhecia da antologia Steampunk (2008), de Ann & Jeff VanderMeer, são fabulations — narrativas que questionam o realismo ou a mímese na literatura, mas com a lógica sólida e a caracterização minuciosa que são as marcas de Chiang. Outra marca, presente na coletânea, é o ethos universitário expresso, por exemplo, nas histórias “Divisão por Zero” (“Division by Zero”), “A Evolução da Ciência Humana” (“The Evolution of Human Science”) e “Gostando do que Vê: Um Documentário” (“Liking What you See: A Documentary”). Neste último, há uma sátira aos movimentos de justiça social, aqui num ataque às vantagens que a beleza física traz — uma história que entrou na The James Tiptree Award Anthology 3 (2007). O melhor texto desta bem-vinda coletânea de um dos nomes fundamentais da FC contemporânea, continua sendo “História da sua Vida”.

 

Expulsão do Paraíso, de Nilza Amaral. São Paulo: Arte Paubrasil, 2012, 94 páginas. Brochura. A escritora Nilza Amaral é conhecida do fandom de FC por sua premiada novela distópica de 1984, O Dia das Lobas. Aqui temos outra novela, publicada com a ajuda e a chancela Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo. A narrativa acompanha dois personagens, o retirante descrente Severo Justo, e a crédula ribeirinha Joana Sabina. Os dois vivem em pontos diferentes daquilo que é obviamente o Brasil, mas que é chamado pelos dois de “lugar nenhum” — um espaço de fábula que evoca o Nordeste místico e a Amazônia folclórica. Ambos são personagens confusos que se deparam com eventos maravilhosos. Vagando na tentativa de aplacar a fome, Severo retalha a carcaça de um jegue morto há pouco. Um cão vadio (talvez referência à cadela de Vidas Secas, de Graciliano Ramos) e um trio de velhas chamadas por eles de “bruxas” o acompanham. O ato se transforma imediatamente em um tableau mágico, como num inesperado ritual de invocação. Mais tarde, surge no caminho do ainda faminto Severo, uma vaca vermelha que cava um imenso açude…

Joana, por sua vez, é uma adolescente fascinada por seu despertar sexual, que cede à sedução de um boto, antes de ser perseguida pela Boiúna, serpente gigante descrita aqui como tendo um gosto por jovens que deixaram de ser virgens… No meio das águas do grande rio, ela acompanha em uma ilha fluvial a luta de seu pai, um pescador, para deter a fera. O estilo de Amaral, neste livro, busca sentenças longas e complexas, evocativas e rítmicas, com a interiorização do discurso indireto livre, em tudo sublinhando o clima onírico da sua novela. É tentador afirmar que um personagem flerta com a vida em face da morte, e uma outra que flerta com a morte enquanto persegue a vida. Mais para o fim do livro, aparece Mara Lúcia, moradora de São Paulo que de algum modo indefinido — imaginação ou informação? — toma conhecimento dos outros personagens. Num toque metaficcional, sua reação mundana trivializa o mágico e o fabuloso das experiências dos outros. Como se afirmando a distância entre o nosso cotidiano e esse mundo de mito, sonho e desejo. O assunto muitas vezes me fez pensar no realismo mágico, mas falta realismo na mistura, e por isso a impressão maior de se estar diante de uma fábula.

“O amor entre os dois foi divinal na extensão genérica da palavra, preparado pelos deuses e pelos mitos da região, disposto para o prazer do encontro do desejo, da sedução e da fantasia, pronto para a continuação da prole do boto-homem, para que não morrendo a lenda, não se findasse a encantaria da terra, mesmo que depois do coito, o usurpador do corpo da donzela fosse morte, como sói acontecer aos rapineiros de corpos femininos quer sejam lendários ou não, querendo parecer que tal ação, mesmo sendo em nome do amor, merece o castigo da terra como dos céus.” —Nilza Amaral, Expulsão do Paraíso.

 

O Esplendor, de Alexey Dodsworth. São Paulo: Editora Draco, 2016, 402 páginas. Brochura. Este é o segundo romance do brasileiro Dodsworth, um ganhador do Prêmio Argos do Clube de Leitores de Ficção Científica com seu livro de estreia, Dezoito de Escorpião. Certamente, O Esplendor não existiria se Isaac Asimov não tivesse escrito a sua célebre noveleta “O Cair da Noite” (“Nightfall”, 1944), já que as duas obras imaginam um planeta que tem meia dúzia de sóis na sua abóbada celeste — tantos que a noite é um fenômeno desconhecido, lendário. Dodsworth também se aproxima da FC da Golden Age praticada por Asimov em outros sentidos. A sociedade alienígena que ele imagina para o seu planeta é composta de telepatas que enfrentam disputas ferozes entre religião e ciência, conservadorismo intelectual e a necessidade íntima do se buscar o conhecimento. Assim como na história de Asimov, eles apresentam números associados aos seus nomes próprios.

Ao mesmo tempo, O Esplendor tempera essa tendência com outras bem atuais: diversidade sexual (completa com uma designação de não gênero, com o uso do símbolo “@”) e racial (os alienígenas têm pele negra e sua cultura se inspira na cultura afro, como o próprio nome do planeta indica: Aphriké), prosa jovem, informal, e a aproximação da FC e a fantasia. A trama envolve o surgimento de uma espécie de prometido, mutante cujo corpo parece mais com o nosso, e que mais tarde ganha o nome de Itzak (Isaac?). Ele é o sujeito que, acercado de um pequeno grupo de simpatizantes, enxerga a realidade dos fatos e a catástrofe iminente. Assim como no primeiro livro do autor, há uma conexão entre um mundo alienígena e a Terra, representado por uma outra personagem especial, a albina Lah-Ura. As semelhanças com “O Cair da Noite” são tão presentes, que às vezes o livro vai além de uma homenagem, parecendo mais uma releitura da história de Asimov. Além disso, como a narrativa é em primeira pessoa pela voz de uma historiadora (com acesso à mente dos protagonistas), boa parte da primeira metade do romance se lê mais como dissertação do que narração, com muito de uma abordagem de ficção científica antropológica tipo A Mão Esquerda da Escuridão (1969), de Ursula K. Le Guin. É especialmente interessante que a historiadora Tulla descreva uma civilização livre de muitos dos nossos preconceitos — enquanto mantém os seus próprios, dentro de uma rigidez de penamento conservador muito característica. O final tem muito dinamismo e confrontos em sequência, como os de Brandon Sanderson na alta fantasia. De qualquer modo, este foi um dos romances brasileiros de FC mais conceitualmente ambiciosos de 2016, e dos últimos anos. Certifica Alexey Dodsworth como um autor a se acompanhar. A Draco também republicou Dezoito de Escorpião.

 

A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil, de Kátia Regina Souza. Porto Alegre: Editora Metamorfose, 2017, 174 páginas. Capa e ilustrações internas de Jacira Fagundes. Introdução de Jana Bianchi. Brochura. Há alguns meses, a jornalista Kátia Regina Souza me procurou como um de uma longa lista de escritores e editores brasileiros de ficção científica, fantasia e horror, para uma entrevista sobre a situação desse literatura no Brasil. Em novembro, agora, recebi um exemplar autografado. O livro acaba sendo o primeiro centrado na situação atual da ficção especulativa brasileira — vale dizer, do contexto da “Terceira Onda”, como tenho insistido aqui e em outros lugares. Um pioneirismo extraordinário, que emana do próprio interesse da autora, ela mesma escritora da área.

A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil é pautado pelas entrevistas, é claro, e tenta definir a vocação do escritor no quadro muito ativo mas frequentemente frustrante da escrita de ficção especulativa, com as opções de meio indo do livro tradicional ao e-book e a plataformas como Wattpad. E de ferramentas que vão da autopublicação paga, autônoma (na Amazon, por exemplo) ou coletiva, leitores betas, editores profissionais ou semiprofissionais, e agentes literários. O primeiro nome procurado por Kátia Souza foi Christopher Kastensmidt, autor da fantasia heroica A Bandeira do Elefante e da Arara (Devir Brasil, 2016). Estão lá, além de Christopher, muitos outros autores e editores conhecidos: Ana Cristina Rodrigues, Ana Lúcia Merege, André Vianco, Artur Vecchi, Camila Fernandez, Carlos Orsi, Cesar Silva, Cirilo S. Lemos, Claudia Dugim, Clinton Davisson, Cristina Lasaitis, Duda Falcão, Eduardo Kasse, Eduardo Spohr, Eric Novello, Erick Sama, Felipe Castilho, Gianpaolo Celli, Giulia Moon, Helena Gomes, Jana P. Bianchi, Jim Anotsu, Karen Alvares, Marcelo Amado, Martha Argel,  Nikelen Witter, R. F. Lucchetti, Richard Diegues, Rodrigo van Kampen, Rosana Rios e Simone Saueressig — citando aqueles com quem já tive algum contato. É certamente uma amostragem de peso, trazendo muitos detalhes significativos sobre as carreiras e os dilemas da maioria desses nomes. O texto é leve e se dirige, muitas vezes, ao escritor iniciante que tentar entrar no mercado, talvez alertado pelas ponderações equilibradas que o livro coleciona. Em sua resenha muito positiva do livro, Cesar Silva viu nele, que apesar

“da proposta da autora de produzir um manual para novos autores — confissão expressa na primeira orelha —, o resultado é um valioso instantâneo do estado atual da ficção fantástica brasileira, que pode servir como farol para autores e editores em atividade, sejam eles novos ou veteranos.” —Cesar Silva, no blog Mensagens do Hiperespaço.

Mas uma certa falta de contextualização maior de quem é quem (autores e editores) e de qual é qual (gêneros e editoras) faz o livro parecer um pouco um trabalho de insider para insider. De qualquer modo, é um trabalho interessante, que forma um quadro coerente da problemática viva, atual, do escritor brasileiro desse campo.

“Desejo dar voz aos personagens que compõem a cena da literatura fantástica brasileira e oferecer um espaço seguro no qual escritores possam se ver representados, seja pelas inseguranças ou vitórias pessoais dos entrevistados.” —Kátia Regina Souza. A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil.

Quadrinhos

Arte de capa de Stuart Immonen, Wade von Grawbadger & Justin Ponsor.

Star Wars: Confronto na Lua dos Contrabandistas (Star Wars Volume 2: Showdown on the Smuggler’s Moon), de Jason Aaron, Simone Bianchi e Stuart Immonen. Barueri-SP: Panini Comics, 2017 [2016], 134 páginas. Capa de Stuart Immonen. Brochura. Este livro compilando vários números da revista Star Wars é continuação direta de Star Wars: Skywalker Ataca, que começa a contar as aventuras dos heróis da franquia inicial, depois da destruição da Estrela da Morte — e que eu examinei aqui em junho. A história trata do que os heróis fizeram depois do episódio IV, e pega onde o livro anterior parou: por um lado, Han Solo e Leia Organa estão cercados pelos caças imperiais na superfície de um improvável planeta tempestuoso, às voltas com a cínica “esposa” de Han, Sana; por outro, Luke Skywalker descobre que o diário de Obi-Wan Kenobi não tem muito a lhe trazer em termos de técnicas jedi, e resolve ir até o antigo templo da ordem em nada menos do que Coruscant, a antiga sede da República e atual coração do império. Antes, porém, ele precisa de transporte, que procura em Nar Shaddaa, a tal lua dos contrabandistas, onde, depois de um pega-pra-capar numa cantina de fazer inveja à de Mos Eisley, acaba prisioneiro de um hutt fisiculturista que coleciona justamente itens que pertenceram aos jedi.

De fato, a linha que acompanha Luke começa antes, com um prólogo escrito por Aaron e desenhado pelo talentoso Simone Biachi. Nesse prólogo, que lembra as situações do romance Kenobi (2012), de John Jackson Miller, o mentor de Luke conta como permaneceu incógnito em Tatooine zelando secretamente pelo menino. A ação é bem dividida, especialmente depois que Chewbacca e C3P0 partem para o resgate de Luke, e entra em cena Dengar, um dos caça-prêmios vistos em O Império Contra-Ataca. A essa altura ele já está uma arena como o fosso de Jaba, duelando contra um monstro aparentemente mais terrível do que o Rancor de O Retorno de Jedi. Jason Aaron sempre comparece com roteiros ágeis e enérgicos, de situações interessantes, um pouco mais duras do que nos filmes, e que reaproveitam cenas da trilogia original sem parecer subalterno. Às vezes, as soluções de transição são vagas ou pouco criativas, mas no todo oferece uma aventura vibrante e divertida. A arte de Stuart Immonen chamou minha atenção desde a FC Shockrockets (2000). Ele é um desses artistas extremamente versáteis que lida bem com a figura humana em ângulos incomuns, e com o design de roupas, arquitetura, paisagem, naves e interiores. Sua estilização é sutil, e embora ele não seja um grande fisionomista, dá conta do recado sem forçar a mão. Equilibra a estilização com a naturalidade das poses, parecendo sempre capturar, sem exagero, os personagens o início de um movimento. O livro é um prazer de se folhear.

 

Arte de capa de Mathieu Lauffray.

Star Wars: Herdeiro do Império: Trilogia Thrawn Livro Um (Star Wars: The Thrawn Trilogy Volume 1) , de Mike Baron (texto) e Olivier Vatine & Fred Blanchard (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2017, 162 páginas. Capa de Mathieu Lauffray. Tradução de Pedro Catarino & Paulo França. Capa dura. Há alguns anos, tive a chance de entrevistar o escritor americano de FC Timothy Zahn, e de pegar o autógrafo dele no primeiro dos seus romances da Trilogia Thrawn, republicados no Brasil pela Aleph. Como não sei se terei a oportunidade de ler a trilogia toda, esta versão em quadrinhos é a solução imediata para me familiarizar com uma obra que revitalizou o universo expandido de Star Wars (agora diferenciado das variantes atuais pelo selo “Legends”).

Depois que o Imperador Palpatine foi morto por Darth Vader no final de O Retorno de Jedi, e o taque rebelde destruiu a Estrela da Morte 2.0, Coruscant caiu nas mãos da Nova República. Mas o império, na pessoa do Grande-Almirante Thrawn, ainda tem esperança de reconquistar o poder. Ele é um comandante competente e um estrategista astuto, que parece estar sempre um passo adiante de Luke Skywalker, Han Solo e Leia Organa Solo (sim, Leia e Han estão casados, nessa fase do Legends), Chewbacca, Lando Carlrissian, R2D2 e C3P0. Assim como em The Crystal Star (1994), romance de Star Wars escrito por Vonda N. McIntyre que li na década de 1990, o casal Solo busca fortalecer a jovem república, enquanto Skywalker está focado em restabelecer a ordem jedi. Sabendo disso, Thrawn arma as suas armadilhas em busca de um trunfo especial — os gêmeos jedi que Leia gera em seu útero. Há mais intrigas, inclusive alguém dentro da Aliança Rebelde que passa dicas ao almirante, do paradeiro dos heróis; e o velho jedi Jorus ‘Baoth, espécie de anti-Obi Wan que se alia a Thrawn para ter acesso a Luke; e o acesso a um planeta que gerou um pequeno animal capaz de bloquear os poderes jedi. A galeria de novos personagens introduzidos por Zahn é bem interessante: o velho jedi o honrado contrabandista Kaarde; sua assistente Mara Jade — ex-associada de Palpatine, e que por isso odeia Luke com todas as suas forças; e o segundo de Thrawn, o Capitão Pellaeon. Há mais estratégia aqui, uma impressão de inteligência em funcionamento, e não apenas correrias e explosões. E menos ocorrências daquelas às vezes incômodas pedras de toque que nos remetem o tempo todo à primeira trilogia de Lucas. Um toque bem-vindo são ideias de FC hard (Zahn é um escritor de FC hard que se voltou para a space opera) como a visita a um planeta tão próximo do seu sol, que os visitantes contam com uma nave escudo solar, para ajudá-los a alcançar a superfície. Consta que Thrawn ressurgirá numa prequência em quadrinhos. Os artistas europeus que assumiram o roteiro também trazem uma variação interessante, menos técnica, mais romântica. Seu desenho é mais estilizado, menos detalhista, mas sem deixar de ser dinâmico e de compor bonitas imagens, especialmente de paisagens e ambientes. Entre um capítulo e outro, o livro traz bonitas composições de Mathieu Lauffray, usadas nas capas dos episódios da minissérie que deu origem ao volume.

 

Arte de capa de Alex Ross.

Star Wars Legends: À Sombra de Yavin (Star Was: In the Shadow of Yavin), de Brian Wood (texto) e Carlos D’Anda, Ryan Kelly, Facundo Percio, Stéphane Créty e Ryan Odagawa (arte). Barueri-SP: Panini Books, 2017, 480 páginas. Capa de Alex Ross. Tradução de Levi Trindade, Paulo França e Júlio Monteiro. Capa dura. O Herdeiro do Império e Confronto na Lua dos Contrabandistas são livros relativamente pequenos, cuja leitura se compara à da novela ou do romance curto. Perto deles, com suas 480 páginas, À Sombra de Yavin é o que mais perto se pode chegar da leitura de um romance de Star Wars com o tamanho médio dos livros da franquia. Mas assim como os livros anteriores, ele tem a sua própria versão do que acontece entre um filme e outro da primeira trilogia, ou a partir do fim da trilogia. Neste caso, a Estrela da Morte foi destruída, a base rebelde na lua de Yavin foi exposta, e a esquadra rebelde está em movimento constante, enquanto um grupo de caças asa-X comandado por Leia Organa cumpre missões de reconhecimento em várias partes da galáxia, em busca de um planeta que possa abrigá-los. Luke Skywalker e Wedge Antilles estão com ela, enquanto Han Solo e Chewbacca vão até Coruscant em busca de armas e suprimentos para a Aliança Rebelde. Essa divisão de ações é típica de Star Wars, mas mais interessantes aqui é a situação existencial dos personagens. Passando por cima da triunfal cerimônia que encerra o Episódio IV, Wood lembra que Leia, Luke e Wedge perderam muitos amigos na batalha, e no caso dela, seu planeta natal. Sua perspicácia também se dirige ao Império, sugerindo inclusive que Vader teria sido colocado  de escanteio pelo imperador, chegando a sofrer tentativas de assassinato (no N.º 0 da revista Star Wars Legends). Wood também reposiciona a saga mais para perto de uma space opera militar, lidando bem com elementos de equipamento, hierarquia e exigências militares — especialmente na primeira parte. Assim como em O Herdeiro do Império, a cada missão de reconhecimento o esquadrão de Leia é emboscado e perseguido. Obviamente, há um informante dentro da Aliança, mas de quem se trata resulta em uma reviravolta realmente engenhosa e em meio a um clímax mais do que satisfatório. Leia é retratada como uma líder firme e inteligente, boa piloto e combatente capaz. O subenredo em torno do esquadrão acaba fornecendo uma história de origem do Rogue Squadron, que já teve sua própria série de romances e de HQs. A história fica menos militar e mais exótica quando Leia, cansada, decide por um casamento real (ela é uma princesa, lembra?) com o príncipe de um planeta periférico, mas que pode oferecer refúgio à esquadra. Mais traições os aguardam, porém, e a ameaça de que Vader, numa cruel ofensiva para retornar às graças de Palpatine, venha a se aproximar novamente dos heróis. Essa bem trabalhada tensão é temperada pela angústias de Luke e Han quanto ao casamento de Leia. O lado pessoal do trio imortal da space opera de Lucas retorna nessa situação, mas também no capítulo de encerramento, que tem os heróis tentando resgatar uma amiga de infância de Leia, perseguida por um caça-prêmios. Nem tudo são perdas, e em alguns momentos há reencontros e reforço do amor fraterno entre os três, que costura boa parte da intriga da primeira trilogia. Agradeçamos à força pelas pequenas graças. Os artistas mudam muito ao longo da narrativa, mas Carlos D’Anda é o principal artista aqui. Ele não é um bom fisionomista e suas naves e maquinário são duros e indistintos, mas ele é expressivo na figura humana, apesar de algo de estranho com os pescoços que desenha… De qualquer modo, é a narrativa que importa mais, em À Sombra de Yavin, cuja história completa apareceu recentemente por aqui na revista Star Wars Legends. A edição em livro traz muitas artes de capa impressionantes de Alex Ross, Hugh Fleming, Sean Cooke (excelentes, lembrando John Berkey) e outros, entre os capítulos.

 

Arte de capa de Juan Giménez.

Um dos meus artistas de ficção científica favoritos, o quadrinista argentino Juan Giménez, apareceu nas bancas brasileiras em novembro, na capa da revista Star Wars Darth Vader 022 (Panini Comics, Barueri-SP). Justamente o número final da revista, que fecha o ciclo de aventuras do vilão criado por George Lucas em 1977 para a space opera Guerra nas Estrelas. Traz dois episódios, de roteiro assinado por Kieron Gillen e arte de Salvador Larroca, e uma coda assinada também por Gillen — esta última, uma história sem letreramento, ambientada em Tatooine e envolvendo o povo da areia, desenhada por Max Fiumara. Juan Giménez, que nasceu em 1943, é conhecido por “Harry Canyon”, um dos melhores segmentos do filme Heavy Metal: Universo em Fantasia (Heavy Metal; 1981), e pelos desenhos da HQ Saga dos Metabarões, com roteiro de Alejandro Jodorowsky e disponível em vários álbuns de luxo publicados aqui pela Devir Brasil. Recomendo muito, a propósito, essa space opera exótica e violenta, reminiscente do clássico Duna, de Frank Herbert, e que marca a parceria entre Giménez e Jodorowsky. George Lucas, é claro, também bebeu da mesma fonte.

—Roberto Causo

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