Roberto Causo

Leituras de Maio de 2017

A ficção científica em prosa e em quadrinhos dominou as minhas leituras de maio, mas com espaço também para a não ficção e mais arte de FC.

 

Arte de capa de Stephan Martiniere.

The New Space Opera, de Gardner Dozois & Jonathan Strahan, eds. Nova York: Eos, 1.ª edição, 2007, 518 páginas. Capa de Stephan Martiniere. Trade paperback. A new space opera foi uma variação da “velha space opera” que andou se agitando desde a década de 1980 mas se tornou uma das forças na ficção científica anglo-americana na década seguinte e no começo desde século 21. É pós-cyberpunk na textura, nos protagonistas jovens, no apelo às inteligências artificiais e à “singularidade tecnológica”, é menos exótica e mais científica. Além disso, assumiu alguma discussão política de esquerda, e não apenas libertariana (como de hábito na space opera militar em voga nos EUA). Os editores desta antologia afirmam, porém: “não estávamos especialmente preocupados em obter histórias que confirmassem esta ou aquela definição.” Estão lá, porém, vários autores identificados com a modalidade “new“: Peter F. Hamilton, Ken Macleod, Alastair Reynolds, Stephen Baxter e Dan Simmons. Também vale notar a ausência de autores que há décadas ganhavam a vida com space opera militar ou do tipo mais exótico…

A capa do artista digital francês Stephan Martiniere, um dos principais “intérpretes” visuais da new space opera, plasma o subgênero mais do que muitas das histórias da antologia. E quanto às histórias… Fiquei anos empacado na noveleta de Kage Baker, ambientada em Marte e tratando da montagem de uma peça de teatro. Uma comédia arrastada e sem graça. Outras histórias se focam demais em contar e não mostrar — como as de Tony Daniel, Stephen Baxter e Paul J. McAuley. A noveleta de Robert Silverberg é muito charmosa e exótica mas torna o contar o seu elemento central, já que apresenta uma espécie de Xerazade visitando a corte do imperador da galáxia. Outras histórias carecem do tipo de mobilidade que caracteriza a space opera, focando-se em episódios de xenoarqueologia — como as de Greg Egan e Nancy Kress. Além disso, há histórias que se focam mais na dicção pós-cyberpunk da new space opera, como a de Ian McDonald; ou que buscam subverter as expectativas do que é a aventura na space opera, como a de Walter Jon Williams, que substitui a aventura em que se corre perigo de vida e se visita lugares exóticos, pela aventura de casos sexuais e maridos traídos, naquilo que é basicamente uma história de beatniks no espaço… Minhas histórias favoritas da antologia são as de Gwyneth Jones, Alastair Reynolds e, principalmente, Dan Simmons. A emocionante história da inglesa Jones apresenta uma heroína inglesa e um sidekick equatoriano chamado Pelé, e nos lembra da persistência da exploração e do abuso do outro. A de Reynolds fala de um super-operativo que interrompe sua missão para, junto com a sua nave-faz tudo, auxiliar uma civilização low-tech a sobreviver a uma explosão solar. Para isso ele fornece tecnologia e observa, ao longo de algumas gerações (despertado de períodos de hibernação), a formação de uma sociedade arregimentada que vence inimigos locais e movimenta a força de trabalho necessária à construção das naves de evacuação. Quando a coisa descamba para um regime totalitário interessado só na própria perpetuação, ele intervém uma última vez. Uma história que lembra que a luta contra a tirania também é eterna. Finalmente, a novela de Simmons leva o leitor a uma montanha russa de imagens cada vez mais épica, enquanto uma trupe shakespeareana é convocada para se apresentar diante da hierarquia de alienígenas que escraviza a humanidade. É um teste, que tem a extinção da humanidade como resultado possível. Apenas Shakespeare poderá nos salvar. A premissa é absurda e eurocêntrica, nunca realmente fundamentada, e a história explicita mais uma vez a incapacidade da maioria dos autores selecionados, de celebrar a space opera sem recorrer a algum truque ou perspectiva que os coloque a salvo das características mais aventurescas do subgênero. A diferença está em que Simmons não se desobriga de maravilhar o leitor, enquanto a maioria dos outros abre mão disso.

 

Arte de capa de Stephan Martiniere.

Hunter’s Run, de George R. R. Martin, Gardner Dozois & Daniel Abraham. Nova York: Eos, 2009 [2008], 288 páginas. Capa de Stephan Martiniere. PaperbackLançado no Brasil pela LeYa em 2017 como Caçador em Fuga — com a mesma arte do extraordinário artista digital francês Stephan Martiniere —, este é um romance com três autores que demorou três décadas para ser completado. Um ponto de interesse para o leitor brasileiro está no fato de ele ser ambientado no planeta São Paulo, colonizado por brasileiros e mexicanos.

É ambientado num futuro em que os humanos são clientes de uma espécie alienígena que lhes franqueou o acesso a outros mundos. E em uma colônia planetária chamada São Paulo, povoada por mexicanos e brasileiros — que são chamados pelos mexicanos de “portugas”. É a mesma coisa de uma colônia (chamada, digamos, San Francisco) fundada por canadenses do Quebec e por americanos — que são chamados pelos canadenses de “britânicos”. Dãã… Começa dando a impressão de que vai ser uma aventura meio pedestre e comum. O personagem é um mexicano arruaceiro, pinguço e entregue aos seus impulsos. Essa caracterização deve algo aos chicanos de John Steinbeck em Tortilla Flat (1935). Ele mata um homem e foge para as montanhas, onde já havia trabalhado como garimpeiro. Mas aí tropeça em uma colônia de alienígenas, parte de uma segunda espécie perseguida pela primeira, e é forçado a trabalhar para eles. Um alien passa a companhá-lo, e o livro vira um tipo de buddy movie, tipo Inimigo Meu (1985). Se a colônia for descoberta, a outra raça alienígena vai exterminá-la até o último E.T. Com isso, o herói assume um dilema moral, ganha profundidade e interesse, e o romance agora tempera muito bem a aventura com análise psicológica. Em mais uma guinada, a aventura passa a acompanhar uma balsa que desce um rio — num eco quase explícito a Huckeberry Finn (1884), de Mark Twain. O terço final assume as feições de ficção de crime, também eficiente. Uma dica do seu sentido está no sobre nome do protagonista Ramón Espejo. Mas há exotismo suficiente na paisagem e no ecossistema do planeta para definir Hunter’s Run como um planetary romance. Fecha o livro um posfácio e uma entrevista com os três autores, contando a história deste livro que levou trinta anos para ser escrito, a partir de um rascunho escrito por Dozois em 1977. Um romance que surpreende e que oferece metáforas interessantes para a condição humana. Recomendo a leitura desse livro que inverte expectativas.

 

Arte de capa de Tim White.

The Science Fiction and Fantasy World of Tim White, de Tim White. Londres: Paper Tiger, 2000 [1981], 144 páginas. Capa de Tim White. Trade paperback. Esta é mais uma preciosidade da Paper Tiger encontrada nas prateleiras da loja Terramédia, em São Paulo. É reedição de um livro original de 1981, reunindo material da primeira década da carreira do prolífico artista britânico Tim White. Hiperdetalhista, extraindo efeitos fotográficos do guache no aerógrafo, ele tem um lugar especial na “Revolução Britânica” na arte de FC, capitaneada por Chris Foss, e faturou o prêmio da British Science Fiction Organization de Melhor Artista em 1983. Começou em 1971 com capa para um livro de Arthur C. Clarke, mas acabou fazendo muita coisa para livros de Robert A. Heinlein, Robert Silverberg, Brian W. Aldiss e Alan Dean Foster. “Revolt in 2100” é minha favorita dentre os capas de Heinlein, apresentando uma gigantesca nave de desembarque de tropas. Suas ilustrações dominadas por espaçonaves — como “Jewel of Jarhen”, “Expedition to Earth”,  “The Tar-Aiym Krang” e “The Past Through Tomorrow” — lembram Foss e Peter Elson, mas com um caráter próprio. Outras, mais sólidas e com mais rendering, lembram o também britânico Chris Moore. Nessa tendência, a ufológica “Those Who Watch” é uma favorita, assim como “Through a Glass, Clearly”, que apareceu na revista OMNI e na edição brasileira de O Cair da Noite, de Isaac Asimov, pela Hemus. A qualidade cristalina e atmosférica da sua arte aparece com mais força quando ele aborda a fantasia científica, em artes mais demoradas e detalhadas: “Lord of the Spiders”, “Alien City” e “City of the Beast” (principalmente) são joias de exotismo. Seus ecossistemas às vezes parecem dominados por uma vegetação composta de plantas suculentas, como nas maravilhosas árvores da luminosa “Critical Threshold”, que tem algo de FC hard e pode ter influenciado a arte posterior do americano Michael Whelan. Poemas de Kenneth V. Bailey acompanham algumas das ilustrações, reforçando a sua qualidade poética e atmosférica. A ousada imagem que aparece na capa do livro, também está na capa da única edição da Perry Rhodan-Magazin que eu tenho aqui.

Outro dia, endoidei quando vi na net a arte de Dan Goozee para o pôster “Battle of the Galaxies”, de um conjunto produzida pela Paper Tiger e comercializada pela Captain Company de Nova York e que apareciam em anúncios na revista Famous Monsters of Filmland. Um sonho de consumo da minha adolescência. Encontrei neste site um saudosista tão grande quanto eu, desse material: Going Faster. Vários desses posters foram feitos por White e também estão no livro: “Stopwatch”, “Brainwave” e o deslumbrante “Earth Enslaved”.

 

A Última Árvore, de Luiz Bras (Nelson de Oliveira). São Paulo: Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo, 2017, 110 páginas. Livro de bolso. Mês passado, falei aqui da novela tupinipunk Não Chore, de Luiz Bras. Eu disse então que, como contista, Bras tem no seu Paraíso Líquido (2010) uma das mais coletâneas mais experimentais e ousadas, desde fins da década de 1980. A Última Árvore, com oito contos de ficção científica e fabulation absurdista, é uma boa introdução à ficção curta do autor. Seis histórias vieram de Paraíso Líquido, lançado originalmente pela pequena Terracota Editorial e já difícil de adquirir. As outras duas vieram do Projeto Portal de revistas editadas de pequena tiragem por Nelson de Oliveira, e da revista eletrônica Trasgo, de Rodrigo van Kampen.

Os oitos contos oferecem especulações pós-cyberpunk em que a loucura, a paranoia, a violência, a qualidade frágil do real e o relacionamento autor-personagem-leitor se alternam e se reforçam. Esse aspecto metaficcional está presente em quase todos os textos. Se eu tivesse que escolher um destaque — subordinado ao meu gosto pessoal, é claro —, seria “Aço Contra Osso”, narrativa movimentada que realiza muito a partir da lógica do videogame e sua estrutura em estágios. Mas “Nuvem de Cães-Cavalos” tem o melhor equilíbrio entre uma prosa elegante e lírica, e o assunto estranho e perturbador. A coletânea tem o apoio do ProAC e faz parte de uma fornada de 24 livros de proporções semelhantes. Todos — inclusive A Última Árvore — livres para download gratuito em PDF, no site Livros Fantasma. O catálogo inclui não apenas ficção, mas poesia, ensaio, arte e fotografia, e o site tem a seguinte carta de intenções: “Nestes tempos de informação digitalizada e desmaterializada, o objeto livro faz mais sentido do que nunca. Imprimir livros é perpetuar este movimento de transformar a intuição em ação, o traço em desenho, a ideia em objeto. O livro é, como o fantasma, esta coisa que se recusa a abandonar o nosso mundo.”


American Fascists: The Christian Right and the War on America
, de Chris Hedges. New York: Free Press, 1st edition, January 2008 [2007], 274 páginas.
 Trade paperback. Meu amigo e colega de orientação de pós, Khalid Tailche, há alguns anos me apresentou ao trabalho do jornalista e ativista político americano Chris Hedges, a quem passei a acompanhar no site Truthdig e em várias palestras no YouTube e aparições em canais noticiosos e alternativos na internet, como Democracy Now!, RT e The Real News Network — além dos vários livros que Khalid usou na pesquisa para a sua tese, Contrapontos no Pensamento Fundamentalista: Para uma Análise Crítica (FFLCH/USP, 2012). Li American Fascists ainda em busca de nuances e verossimilhança no trato do tema do culto religioso fechado, para o meu romance Anjos do Abismo, parte das Lições do Matador. Mas o fato é que essa reportagem de Hedges tem algo a dizer sobre as mudanças no Partido Republicado dos EUA do governo de Bill Clinton até agora — e sobre a eleição de Donald Trump, e antes dele, de George W. Bush. Suas reflexões ajudam a contextualizar produtos culturais tão diversos quanto as séries de TV Newsroom e The Leftovers; a série de livros Deixados para Trás; o romance de Stephen King Revival; do clássico da FC Revolt in 2100 (1955), de Robert A. Heinlein; a FC distópica jovem adulta Skinned (2008), de Robin Wasseman; e, principalmente, a trilogia A Song Called Youth (1985, 1988, 1990) do cyberpunk John Shirley.

Hedges é filho de um padre presbiteriano, frequentou seminário e fez faculdade e pós-graduação em Teologia. Também é jornalista ganhador do Prêmio Pulitzer, e foi correspondente de guerra em vários países e regiões em conflito. Antes desta reportagem, eu já tinha lido dele I Don’t Believe in Atheists (2008) e War Is a Force that Gives Us Meaning (2002). Aqui, o assunto é a aliança perigosa entre a direita cristã evangélica e a política conservadora — e por isso, o livro também ajuda a explicar a nossa “Bancada Evangélica” e vários políticos brasileiros que se inserem nessa linha. A verdadeira preocupação de Hedges, porém, é identificar e alertar quanto a tendências fascistas desse movimento, especialmente do que ele chama de “dominionismo”. Nessa tendência, o mandato de Deus (segundo a Bíblia) para que o homem estabeleça seu domínio sobre a criação é tomado literalmente e extrapolado como o domínio dos evangélicos sobre a política americana, o meio ambiente, os infiéis e a política mundial. Seu discurso se apoia em uma “cultura do desespero”, dentro da alienação americana da classe média e das classes trabalhadoras. Ele cria um culto à masculinidade e uma retórica guerreira, estabelece uma guerra contra a verdade científica (especialmente o evolucionismo), ao mesmo tempo em que aceita e promove sua versão de darwinismo social, persegue minorias sexuais e clama por uma cruzada contra a política liberal e as religiões rivais. Para Hedges, a tolerância à liberdade religiosa não deve proteger pessoas que se pautam pela intolerância religiosa e moral. Além disso, quem acha democracia uma coisa importante, deve buscar proteger a sociedade de quem quer usar a democracia contra ela. Essa lição também vale para nós, deste lado da linha do equador. Às vezes, Hedges é modernista demais pro meu gosto — reclamando da cultura popular e assumindo posturas elitistas —, mas neste livro, é difícil dizer que ele está errado na denúncia vigorosa que faz.

 

A Origem do Japão: Mitologia da Era dos Deuses, de Nana Yoshida & Lica Hashimoto. São Paulo: Cosac Naify, Coleção Mitos do Mundo N.º 9, 2015, 96 páginas. Capa e ilustrações internas de Carlo Giovani. Capa semirrígida. Pedro Santos, um dos editores e redatores do Desire® Universe, me passou este livro como subsídio para o romance “Archin”, no qual estou trabalhando com ele e com o editor-chefe, Daniel Abrahão. Faz parte uma coleção da Cosac Naify, coordenada por Betty Mindlin, voltada para os mitos do mundo. As duas autoras nipo-brasileiras fizeram um bom trabalho ordenando e narrando os mitos fundadores do Japão. Como costuma ser, os mitos criadores expressam coisas muito caras ao povo, como as questões de limpeza e dejetos corporais. Já o deus dos mares é visto como turbulento, mal-educado e inconstante — adequado a um povo tantas vezes atingido por tormentas e tsunamis. Os mitos se centram no surgimento dos deuses criadores de deuses, da hierarquia e dos conflitos entre eles, chegando ao momento em que é criado o arquipélago japonês e o povo de origem divina instalado nele. Tais mitos de origem se associam fortemente à casa imperial japonesa, e Yoshida & Hashimoto mencionam as relíquia da Era dos Deuses que ainda são guardadas pela família imperial, que tem caráter divino junto aos seus súditos. Interessante que o povo japonês perdeu a chance de ser super-humano de fato, porque o deus criador do arquipélago perdeu a chance de aceitar uma deusa feia junto com a deusa bela, a Deusa-das-Flores, que desposou — a deusa feia era justamente a Deusa-das-Rochas, mais duradouras e resistentes do que flores… Por isso, o povo do arquipélago têm vidas efêmeras como as de todos nós.

As ilustrações de Carlo Giovani são muito criativas — feitas com madeira, papel e bonecos de pano, lembrando a prática japonesa do origami e de outras artes manuais. Mas as fotos feitas das cenas montadas com esses recursos trazem uma certa monotonia ao livro. E o lúdico dessas soluções de artes manuais, substituindo a possibilidade de ilustrações detalhadas e sugestivas, acaba minando aquele componente tão importante dos mitos: a sugestão de uma verdade sólida, por trás do racionalismo.

 

Arte de capa de Maria Eugenia.

Sarah Vaughn, de Carlos Calado. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Folha Lendas do Jazz #1, 2017, 44 páginas. Capa de Maria Eugenia. Capa dura. Eu sei que ninguém perguntou, mas meu gosto musical dá preferência ao heavy metal e ao hard-rock. Não quer dizer que eu não me interesse por outros gêneros e estilos musicais (de vez em quando). Depois de ver um documentário sobre Sarah Vaughn na TV, resolvi dar mais atenção ao jazz — que é certamente o gênero musical mais citado na “literatura séria”. E esta coleção rediviva ou relançada pela Folha estava com um bom preço de lançamento.

O livrinho é pouco mais do que uma embalagem para o CD de canções de Vaughn, com um apanhado de sua carreira. Mas o texto do especialista Carlos Calado não deixa de ser informativo, incluindo esboço biográfico e avaliação crítica dessa que foi, pra muita gente, uma das três grandes, junto com Billie Holiday e Ella Fitzgerald. Vaughn foi a única das três, é claro, que vi cantar pela TV enquanto ela ainda estava viva (morreu em 1990). Ao contrário do documentário, o livro cita a aproximação da cantora com a música brasileira, presente nos seus últimos lançamentos. O CD inclui bebop, pelo qual ela foi mais conhecida, mas também bons exemplos da canção americana (conhecida como “standard“).

 

Quadrinhos

Arte de capa de Richard Corben.

Jeremy Brood, de Richard Corben & Jan Strnad. Kansas City, MO: Fantagor Press, 1989 [1982], 64 páginas. Capa de Richard Corben. Álbum. Corben é um grande nome do quadrinho underground americano. Curiosamente, a sua primeira aparição no Brasil deve ter sido como artista de capa do Magazine de Ficção Científica N.º 20 (de 1971, a última edição da revista). Eu o conheço pela saudosa Kripta e pela Heavy Metal da década de 1980. Este Jeremy Blood eu encontrei na Terramédia. A edição não diz quem fez o quê, considerando-se que se trata de uma colaboração. A editora Fantagor pertenceu ao próprio Corben, até 1994. O nível de arte-final não parece ser o melhor de Corben, mas a arte colorida tem todas as suas marcas: homens cabeçudos e musculosos, mulheres extremamente peitudas, homúnculos, lutas dinâmicas e confusas, e efeitos 3D feitos na raça. Pode-se dizer que Corben atualiza com toques mais explícitos uma sexualidade presente de modo abafado na FC, horror e fantasia.

Jeremy Brood é o herói desta ficção científica de aventura, em que ele e sua companheira afro-americana Char fazem uma pausa na transa que têm em uma nave espacial para atender a um chamado urgente. Precisam ir a um planeta com uma civilização de cores medievais, mas como viajam próximos à velocidade da luz, para eles são poucas semanas enquanto lá se passam duzentos anos. Isso dá tempo para que uma sociedade secreta mantida por agentes da organização galáctica à qual Brood e Char pertencem preparem a chegada dele. A estratégia é torná-lo centro de um culto religioso. Quando o rapaz chega ao planeta, cai no meio de um ritual de sexo (outra marca de Corben?), que ele realiza na ponta da faca. A HQ é sintética e dinâmica e uma aventura movimentada — com turbas ensandecidas, salteadores do deserto e ataques de monstros alados — que caminha para a frente com segurança e energia. O destaque deve ser o inesperado e incomum destino final do herói.

 

Arte de capa de Terry & Rachel Dodson.

Coleção Definitiva do Homem-Aranha 1: Caído entre os Mortos, de Mike Millar (roteiro), Terry Dodson e Frank Cho (desenhos), Rachel Dodson e Frank Cho (arte-final). São Paulo: Panini Comics/Salvat, 2017, . Capa de Terry & Rachel Dodson. Capa dura. O preço de lançamento desta coleção estava atraente o bastante para que eu me aventurasse a ler mais um roteiro de Mike Millar. Também gosto bastante  de Terry Dodson e de Frank Cho (apesar de todas as suas mulheres terem a cara e o corpo de Olivia Dudley, só muda a cor do cabelo). São artistas que costumam dar um ar moderno e relaxado às suas HQs de super-heróis. O Homem-Aranha sempre foi um dos meus heróis favoritos, desde a infância. Deixei de acompanhar quando o alien Venom entrou em cena. Modernamente, dei uma olhada numa coisa e outra, e gostei mais da sequência escrita por J. Michael Straczynski (criador da série Babylon 5).

O escocês Millar parece onipresente hoje em dia. Suas características de iconoclastia, ironia e violência costumam agradar a audiência moderna dos quadrinhos. Mas no meu caso, tendem a cansar muito rápido. Caído entre os Mortos parece pegar onde Straczynski largou — os números 30-35 e 37-45 da revista The Amazing Spider-Man. Que eu li nos volumes O Espetacular Homem-Aranha: De Volta ao Lar e O Espetacular Homem-Aranha: Revelações & Até que as Estrelas Esfriem, da Coleção Oficial de Graphic Novels Marvel. Neles, Peter Parker é um professor de ensino médio numa escola pública em Nova York, mas passa a ser caçado por um vampiro especializado em super-heróis e, moído de pancada, tem sua identidade de herói descoberta pela Tia May. Mais tarde, vai a Hollywood atrás de Mary Jane e volta a enfrentar o Dr. Octopus. Eu gostei, apesar de não ter muito afeto pelo traço de John Romita, Jr. Em Caído entre os Mortos, a Tia May é sequestrada e o Aranha parece uma barata tonta tentando encontrá-la. Millar talvez tenha tentado superar as situações de Straczynski, e Parker passa tanto tempo deformado pelas surras, que não só as pessoas próximas dele não o reconhecem, como o leitor também não. Os conflitos não têm um arco narrativo muito interessante — mostra o herói encontrando seus superinimigos um atrás do outro, repete recursos (um monte de gente morrendo de câncer justificando a maldade dos supervilões) e, pior, faz o Aranha bater ponto em um clube de super-herói atrás do outro, pedindo ajuda: os Vingadores e a escola de mutantes do Prof. Xavier… Com tanta correria, aquele calor humano esperado da arte de Dodson e Cho (que cuida apenas de um trechinho da história) e o envolvimento do herói com seus entes queridos e com a cidade fica meio perdido — assim como Tia May.

 

Arte de capa de Danilo Beyruth.

Astronauta: Magnetar, de Danilo Beyruth. São Paulo: Panini Brasil/Mauricio de Sousa Editora, 2012, 82 páginas. Capa de Danilo Beyruth. Álbum. M. Elizabeth “Libby” Ginway, a maior especialista em ficção científica brasileira que temos hoje, resolveu voltar a estudar os quadrinhos brasileiros. Comprei este álbum para ela, mas Libby vai me desculpar e à Finisia Fideli, se nós o lermos antes. Libby é autora de Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro, e de Visão Alienígena: Ensaios sobre Ficção Científica Brasileira.

A aventura narrada por Danilo Beyruth faz parte do projeto de graphic novels de Mauricio de Sousa, de releituras dos seus personagens. Durante anos Mauricio foi cobrado pela comunidade de quadrinistas para que fizesse mais pelos quadrinhos nacionais. Nesse projeto, ele encontra um caminho do meio, dando trabalho a artistas talentosos que não se subordinam à aparência tradicional dos seus personagens, mas que ainda reforçam as properties do império da Mauricio de Sousa Produções. É interessante que o talentoso Beyruth leve a sério a proposta do astronauta tupiniquim, solitário e com saudade da cidade do interior em que cresceu. Mais que um brasuca no espaço, é um caipira com cara de caipira investigando uma estrela de nêutrons e o campo de asteroides que a circunda. Também sou caipira e adorei. A história, surpreendentemente, é uma ficção científica hard (com consultoria de um astrônomo da Universidade de São Paulo) e uma problem story na qual o herói tem que se conectar com suas raízes e com o seu íntimo afetivo, para encontrar uma saída para a encrenca potencialmente fatal em que se meteu. Tanto a aparência quanto o espírito dessa realização de Beyruth remete ao quadrinho artístico europeu. A historia é simples mas a narrativa é sólida, variada, criativa e inspirada em alguns pontos, e o traço do artista é solto e eficaz. É a segunda aventura de uma série de quatro álbuns já lançados. A série tem recebido prêmios e elogios merecidos.

 

Arte de capa de Alex Shibao.

Laser Gun, de Alex Shibao. São Paulo: SESI-SP Editora, 2016, 64 páginas. Capa de Alex Shibao. Álbum. Esta é outra ficção científica brasileira em quadrinhos, que comprei para Libby Ginway numa promoção da Livraria Saraiva do Shopping Eldorado, em São Paulo. Provavelmente não vai ser muito útil para ela, porque em nada trata do Brasil. Mas tem um projeto interessante, que recupera muito da FC de ação (tendência firmada pelo filme O Exterminador do Futuro, em 1982) no cinema americano da década de 1980.

O artista Alex Shibao propõe neste álbum escritor e ilustrado por ele, que um terremoto de repercussões global em 1970 altera a ordem mundial e isola a cidade (californiana?) murada de San Camino (terrível trocadilho), assolada pelo crime. Ambientada em 1987, é portanto uma espécie de história alternativa. Mas pouco sabemos do que se passa fora dos muros de San Camino, metrópole tão assolada pelo crime, que o prefeito resolveu substituir sua força policial por robôs de aparência humana. Nesse contexto, um grupo de criminosos está atrás da arma laser que distingue o herói, o piloto de corridas ilegais Sands Roadtansky (qualquer semelhança com o Max Rockatansky de Mad Max é…). Se você viu minha postagem de março de 2017, sabe que meu romance Mistério de Deus mistura horror, ficção de crime e muscle cars. Então eu curto a presença de carrões americanos em contextos de ficção especulativa. Shibao também, eu imagino, pois Sands dirige um Pontiac Firebird 1980, e outras máquinas possantes das décadas de 1970 e 80 aparecem na HQ. Assim como mais toques de filmes da época, especialmente RobocopO Exterminador do Futuro. Efeitos de aerógrafo na capa e contracapa também remetem à época. O roteiro não é especialmente criativo ou interessante, mas como desenhista Shibao é habilidoso. Ele já trabalhou para empresas estrangeiras da área (IDW e Titan Books), e foi indicado duas vezes ao Troféu HQMix. Seu traço fino e sua habilidade com o design de roupas, carros, e construções realiza aquilo que deve ser o principal objetivo de Laser Gun — transportar o leitor para a estética da década de 1980, que, dizem, está voltando ao campo do design, da produção de televisão e cinema. A série de horror Stranger Things vem logo à mente, e acho que eu também sigo a tendência com Mistério de Deus (ambientado em 1991).

—Roberto Causo

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“Glória Sombria” traduzido para o espanhol

Em 24 de abril, a Professora Marissel Maruca Hernández, da Universidad de Puerto Rico em Río Piedras, Puerto Rico, anunciou que está revisando o primeiro rascunho da tradução de Glória Sombria: A Primeira Missão do Matador, de Roberto Causo, para o espanhol. O processo entra na reta final.

 

Glória Sombria

Arte de capa de Vagner Vargas.

A tradução foi solicitada pelo editor cubano Raúl Aguiar a Hernández, que formou uma equipe de estudantes da UPR-RP para realizar a tradução do primeiro romance da série As Lições do Matador. Esta página mostra como foi a organização da equipe dentro de um seminário de tradução, e revela que o livro sairá pela editora Gente Nueva, de Havana, em 2018. Aguiar editou a antologia Qubit: Antología de la nueva ciencia ficción latinoamericana (Fondo Editorial Casa de Las Americas, 2011), na qual Causo comparece com o conto “Brasa 2000”. A postagem de Hernández no Facebook:

“Corrigiendo la traducción de Gloria Sombria, novela de ciencia ficción brasileña de Roberto de Sousa Causo y traducida por estudiantes de la UPR-RP. Y tengo que decir que las estudiantes están haciendo un trabajo excelente, Muy orgullosa de mis estudiantes. Le agradezco a Raúl Aguiar y a Roberto la confianza. Ya mismo les envío un primer borrador. Ojalá sea el primero de muchos proyecto de colaboración entre la UPR-RP, Brasil y Cuba.”

“Revisando a tradução de Glória Sombria, romance de ficção científica brasileira de Roberto de Sousa Causo, traduzido por estudantes da UPR-RP. E tenho a dizer que as estudantes estão fazendo um trabalho excelente. Estou muito orgulhosa dos meus alunos. Agradeço a Raúl Aguiar e a Roberto pela confiança. Agora mesmo lhes envio um primeiro rascunho. Tomara que seja o primeiro de muitos projetos de colaboração entre a UPR-RP, Brasil e Cuba.”

Há algumas semanas, Hernández havia postado fotos da equipe em ação. Note o exemplar de Glória Sombria na ponta da mesa.

 

Foto: Marissel Maruca Hernández

 

Foto: Marissel Maruca Hernández

 

 

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Pronta a arte de frontispício de “Mestre das Marés”

“Mestre das Marés”, o segundo romance da série As Lições do Matador, terá nova arte de frontispício. A imagem mostra uma espaçonave da classe “Jaguar”, a paisagem de um planeta devastado, e a insígnia do 28.º Grupo Armado de Reconhecimento Profundo, os “Jaguares”.

Firedrake Gamma-M é um planeta joviano atingido pelo jato relativístico de um buraco negro de 500 massas solares.

Para os cientistas humanos, essa estrela desmoronada sobre si mesma e com altíssima densidade era chamada informalmente de Firedrake, o dragão que respira fogo. Os alienígenas conhecidos como o Povo de Riv têm outro nome para ele: Agu-Du’svarah, “O Mestre das Marés”.

Quando uma estação internacional de pesquisa é atacada pelas naves-robôs dos misteriosos alienígenas chamados tadais, o Capitão Jonas Peregrino e os seus Jaguares são enviados para resgatar os sobreviventes. Mas os cientistas encontraram uma impossível máquina tadai instalada nos subterrâneos do planeta em que se refugiaram, um mundo devastado pela maior força energética conhecida no universo: o jato relativístico de partículas aceleradas pela dinâmica do buraco negro.

A arte digital em tons de cinza é de R. S. Causo, e a insígnia dos jaguares é criação do designer Daniel Abrahão. A nave obedece às soluções de design do pincel digital de Vagner Vargas.

 

Arte de R. S. Causo

 

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Leituras de abril de 2017

A fantasia ganhou da ficção científica neste mês, mas minhas leituras continuam variadas, incluindo ficção de crime e não ficção. Pela primeira vez, trago anotação de uma leitura de história em quadrinhos.

 

Arte de capa de Christian McGrath.

Mistborn: The Final Empire, de Brandon Sanderson. Nova York: Tor Books, 2008 [2006], 648 páginas. Capa de Christian McGrath. Paperback. Li Elantris, o livro de estreia de Sanderson, antes de ele chegar ao Brasil. Comprei Mistborn em seguida, mas admito que só terminei a leitura por insistência do meu filho Roberto Fideli, do Who’s Geek, que gostou muito do romance. Leu o livro na edição brasileira (LeYa, 2014) com tradução de Marcia Blasques. Minha edição tem essa bonita arte de Chris McGrath — não é o melhor dele, mas ainda assim superior à brasileira, pelo francês Marc Simonetti. O tratamento esmaecido da arte fotográfica de McGrath disfarça até o desgaste nos cantos do meu paperback.

Assim como em Elantris, o forte de Mistborn está na ambientação (urbana e sombria) e no sistema de magia (baseado no uso de metais que dão poderes a uma classe especial de humanos, os “mistborn“). A concepção do romance deve muito aos RPGs; e seu andamento, ao cinema de espetáculo de Hollywood. A menina da capa é uma Oliver Twist adolescente, recrutada pelo outro protagonista do livro, um príncipe dos ladrões (também presente em Throne of the Crescent Moon, de Saladin Ahmed, que li mês passado), para uma revolução armando contra o supervilão, um tirano imortal. É que Vin, a garota, é descoberta por ele como sendo uma mistborn. Muito do livro narra seu treinamento e como ela é infiltrada na aristocracia escravagista local, onde conhece um incomum pretendente. Nem tudo faz muito sentido no mundo secundário criado por Sanderson, especialmente a vida num ecossistema degradado por condições atmosféricas possivelmente de origem mágica. Talvez venham explicações melhores, nos volumes posteriores, dois deles já lançados no Brasil. O mesmo para o sistema de magia, com suas situações constantes de kung-fu aéreo — improváveis mas divertidas. Com Elantris, gostei de chegar até o final, que achei hiperbólico e hollywoodiano demais. Com Mistborn, gostei do final apesar de faltas semelhantes (mas atenuadas). Mas foi difícil chegar a ele, por causa da monotonia da ambientação, da repetição de situações e da pequena alternância de personagens ponto de vista. O mais importante está, porém, na dramatização do desejo de resistência à opressão e à tirania, com um bem-vindo subtexto religioso emergindo no final.

 

Arte de capa de Alan Gutierrez.

Steel Brother, de Gordon R. Dickson. Nova York: Tor Books, dezembro de 1985, 236 páginas. Capa de Alan Gutierrez. Introdução de Poul Anderson. Paperback.  Pouco publicado em português, Gordon Dickson (1923-2001) foi um autor prolífico e popular no campo da ficção científica americana. Os dorsai, seus superguerreiros mercenários do futuro do Ciclo Childe, inspiraram os meus minutemen, casta de ciborgues guerreiros que aparecem nas séries As Lições do Matador e Shiroma, Matadora Ciborgue. Até como crítica ao libertarianismo (ou libertarismo) que identifiquei nos dorsai — e muito da FC militar da atualidade. Ideologia muito americana, o libertarianismo acaba sendo uma das marcas da FC hard e militar em língua inglesa. O trabalho de Dickson, junto com o de Poul Anderson, Robert A. Heinlein e Ann Rand, certamente tem um papel nisso. Tal casamento entre literatura e ideologia política resultou até num prêmio literário, o Prometheus. Dickson também se propunha a escrever uma literatura filosófica no formato de aventura de FC, e eu ainda estou explorando tal conceito e os limites da versatilidade desse autor.

Steel Brother é uma coletânea de histórias de Dickson. A introdução de Anderson revela que ela foi montada para homenagear o autor por ocasião da sua escolha como Convidado de Honra da Convenção Mundial de FC de 1984. Curiosamente, a primeira história, “Out of the Darkness” (1961), é ficção de crime primeiro publicada na Ellery Queen Mystery Magazine. A novela “Perfectly Adjusted” (1955) é o texto mais longo do livro: um aventureiro vai parar num mundo dividido entre duas utopias: uma libertariana rural e outra autoritária coletivista. Para não se sentirem ameaçados pelo comportamento dos outros, as duas comunidades se auto-hipnotizam para não enxergarem a outra. É parte da premissa do muito posterior e festejado A Cidade e a Cidade (2009), de China Miéville. Num tom mais farsesco, Dickson satiriza a cegueira ideológica (e não poupa um libertarianismo de cara hippie). “The Hard Way” (1963) é outra história longa, pelo ponto de vista de um ambicioso e implacável alienígena que lidera uma expedição batedora à Terra. Ela explora o darwinismo social cósmico, com uma solução engenhosa para a ideia do ataque preventivo comum à FC hard. “Steel Brother” (representado na capa) é FC militar de tom mais próximo ao que Dickson fez em romances do Ciclo Childe, como Tactics of Mistake (1970). Meu favorito do livro é a noveleta “The Man in the Mailbag”, publicada originalmente na revista Galaxy em 1959. É ambientada no planeta de alienígenas peludos de 2,50 m de altura. Um jovem humano é chamado para trazer uma garota fujona, Boy Is She Built (Cara Como Ela É Carnuda), de volta ao seu clã. Ele vai com o carteiro local, e passa a ser chamado de Half Pint Posted (Meia Dose Remetida). Hilariante. Fazia tempo que não lia uma história de aventura cômica tão engraçada. Fecha o livro um ensaio de Dickson sobre o Ciclo Childe, e uma entrevista dada a Sandra Miesel, pesquisadora que acompanhou a obra do autor.

 

Cronista de um Tempo Ruim, de Ferréz. São Paulo: Selo Povo, 2009, 126 páginas. Livro de bolso. Ferréz é um dos meus heróis. Ele transformou uma origem e contexto desfavoráveis em uma militância literária das mais interessantes vistas recentemente no Brasil. Vi surgir seu movimento Literatura Marginal na revista Caros Amigos, e mais tarde o conheci pessoalmente em eventos do SESC em Curitiba e Salvador. Também é especialmente inteligente o modo como ele busca transformar pelas palavras e pelas ações a geografia cultural da periferia: com uma grife (a loja conceito 1DaSul) que explicita, ao agir corretamente, a exploração do trabalho dos moradores por grandes marcas de confecções; e com livros traficados, como esta coletânea de 23 crônicas antes publicadas em jornais e revistas. Meu exemplar eu recebi de Ferréz em 2010, quando Bruce Sterling, Jasmina Tesanovic e eu o visitamos em Capão Redondo.

O apelo ao cotidiano e à subjetividade do cronista me desagradam na crônica como literatura. Afinal, escrevo ficção científica, fantasia e outras formas de ficção de gênero que buscam o extraordinário no contemporâneo. Além disso, tais características da crônica contaminam o conto e o romance brasileiros. Muitas vezes, o resultado é uma voz narrativa dominante, monótona, que entra no caminho da variedade e da diversidade. Mas Ferréz tem uma voz fora da curva, na denúncia das hipocrisias costumeiras da sociedade brasileira quanto aos pobres e os moradores da favela e da periferia. Sua denúncia chega às autoridades, que não enfrentam a violência policial e mantêm, pela corrupção, a situação violenta que ceifa as vidas dos jovens e limita suas possibilidades de avanço. Alguns dos textos do livro repercutem os ataques do PCC em 2006, e a reação violenta da polícia e de esquadrões da morte. Outros, condenam o consumismo ou apontam o preconceito com que o morador da periferia é apresentado pela imprensa. Muitos têm a cadência e a dicção do hip hop brasuca. O retrato que Ferréz faz do estrago social produzido pela corrupção e descaso das autoridades é visceral. Põe Cronista de um Tempo Ruim na prateleira daquilo que venho chamando de “Literatura do Brasil pós-Mensalão”, ao lado do premiado O Rei do Cheiro (2009), de João Silvério Trevisan; e de Distrito Federal (2014) e Não Chore (2016), de Luiz Bras.

 

Mulher no Escuro: Um Romance Perigoso (Woman in the Dark), de Dashiell Hammett. Porto Alegre: L&PM Pocket Plus, 2008 [1933], 100 páginas. Tradução de Marcelo Kahns. Introdução de Robert B. Parker. Livro de Bolso. Esta novela de Dashiell Hammett, mestre da ficção de crime americana e criador da narrativa hard boiled, foi “redescoberta” (i.e., ausente das coletâneas do autor e nas antologias do gênero) depois de décadas da sua publicação na revista Liberty em 1933. É pena que a tradução seja uma bagunça — a opção por marcar os diálogos com aspas e não com travessões cria todo tipo de problema. Aspas aparecem onde não deviam estar e desaparecem de onde deviam estar, e dois personagens falam num mesmo parágrafo. Além disso, o uso confuso de pronomes também dificulta saber quem faz ou diz o quê.

Uma jovem suíça chamada Fischer foge das garras do ricaço americano que a trouxe da Europa. Na fuga, ela leva um tombo e se refugia na casa de um cara durão, recém-saído da cadeia, chamado Brazil [sic]. Quando o ricaço e seu capanga chegam, há tiros, socos, e Brazil e a garota fogem para a casa do ex-colega de cela de Brazil, noutra localidade. A polícia vai na cola, dizendo-o suspeito de lesão corporal grave do capanga, e chega ao seu novo endereço. Brazil é baleado, a garota é detida e entregue à polícia da cidade do ricaço. Lá, o advogado de Brazil a espera para pagar a fiança. Mas também é lá que vai acontecer o desenlace violento e a verdadeira natureza do casal de heróis e do vilão será apresentada. A introdução de Robert Parker — um dos herdeiros da tradição criada por Hammett, e de quem tratei aqui — registra que este seria um dos textos mais emocionais e românticos do autor. O próprio subtítulo se refere a relacionamento romântico, e não ao formato literário do romance. Mas não existe uma única colher de açúcar nesta história. Brazil e Fischer obviamente desenvolvem interesse e preocupação um pelo outro. Mas permanecem no nível do hard boiled, em que podem tanto ser baixos nas suas emoções, quanto apenas vestir uma máscara que oculta seus sentimentos verdadeiros. O gênio de Hammett está em manter a tensão constante entre essas possibilidades, até a linha final.

 

Arte de capa de Christopher Stengel.

Os Garotos Corvos (The Raven Boys), de Maggie Stiefvater. Campinas-SP: Verus Editora, 2.ª edição, 2015 [2012], 376 páginas. Capa de Christopher Hengel. Tradução de Jorge Ritter. Minha mulher, Finisia Fideli, lê duas vezes mais rápido do que eu. Provavelmente porque tem o QI duas vezes maior que o meu. É natural, portanto, que ela faça uma certa triagem aqui em casa. Também é boa para descobrir livros valiosos nas livrarias, antes de eles caírem na boca do povo. É o caso de Flora Segunda, de Isabeau S. Wilse; de O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares, de Ransom Riggs — e deste Os Garotos Corvos, de Maggie Stiefvater. Todos fantasia para crianças e jovens, a propósito. Stiefvater é uma favorita de Finisia, que, aliás, terminou há pouco de reler a série de quatro livros.

Não leio muito esse tipo de literatura, mas nunca é tarde para explorá-la. Stiefvater deve estar na elite desse campo tão importante atualmente, para o mercado editorial. O romance acompanha uma garota no centro de um grupo de mulheres médiuns, que se aproxima de um grupo de garotos de uma escola de elite na Virgínia. Blue, a protagonista, é bocuda, inquieta, sensata e desajeitada ao mesmo tempo. Os meninos têm o objetivo secreto de encontrar uma linha de energia mística que cruza o estado. E de fazer contato com um monarca galês de tempos pré-colombianos, enterrado nela. Há um vilão, muitos obstáculos e muito drama, mas o que distingue a autora é a espirituosidade e a habilidade de manter os vários personagens em cena numa dinâmica vigorosa e encantadora. As cenas, construídas com inteligência e solidez, parecem maiores do que são realmente, por causa da rica dinâmica entre os personagens. Há uma série de truques de virtuosismo literário nisso — diálogos inteligentes, vozes claras para cada personagem, descrições que sublinham o caráter de cada um, e exposição precisa do assunto. Mas como esse é o forte da autora, algo acaba sendo sacrificado no plano da ambientação — a cidade e a escola, em particular, não ganham vida própria. O que acontece no terreno da magia tem interesse e lógica interna. Mesmo que marcadas por essa magia, a “cultura de mulheres” e a “cultura de homens” são manuseadas com a mesma verve. Stiefvater tem um talento para metáforas e figuras de linguagem, e a fluidez da sua prosa sobrevive aos pequenos azares da tradução. Este é um romance para se saborear o estilo no plano da prosa, e aquele estilo maior que está na qualidade das imagens e situações. Certamente, um livro para jovens que é original sem ser paternalista, e povoado com gente que parece de verdade justamente por incorporar excentricidades que podem ir até um pouco além do real. Realiza justamente o que se espera da fantasia contemporânea — pôr magia na vida como a conhecemos.

 

A Doutrina Zen da Não-Mente: O Significado do Sutra de Hui-Neng (Wei-Lang) (The Zen Doctrine of No Mind: The Significance of the Sutra of Hui-Neng (Wei-Lang)), de Daisetz Teitaro Suzuki. São Paulo: Editora Pensamento, s.d. [1969], 140 páginas. Tradução de Elza Bebianno. Editado por Christmas Humphreys.  Agora seguindo indicação da Finisia, continuo minhas leituras no budismo com esse livro do especialista D. T. Suzuki, que foi Professor de Filosofia Budista na Universidade de Otani, em Kioto. O assunto é a “não-mente” ou o cancelamento do ego dentro do budismo zen. É algo que entrou na cultura popular há um bom tempo, e foi importante na composição de heróis pulp como o Sombra e o Questão — que no Brasil chegaram a aparecer num mesmo gibi da DC. Essa apropriação surge da sugestão de que o estado mental do sujeito seria capaz de atuar sobre outros seres. Uma citação do livro de Suzuki: “Se você encontrasse um tigre ou um logo nas montanhas, como usaria sua mente […]?” “Quando se avista, é como se não se tivesse avistado; quando se aproxima, é como se nunca se tivesse aproximado; e o animal [reflete] o estado da não-mente. Mesmo um animal selvagem não lhe fará mal.”

Outro clichê popular relativo ao budismo ou ao zen está na ideia de que o seu praticante ou a pessoa iluminada ou em estado de buda estaria não só livre das demandas sociais, como estaria livre de considerações sobre o bem e o mal. Cheguei a pensar que fosse uma intrusão do pensamento calvinista sobre a visão popular do budismo, mas Suzuki é categórico:  “o Dharma [ensinamentos de Buda ou lei cósmica] tem o poder de perdoar todos os pecados, de modo a perdoar todos os pecadores dos castigos.” A discussão filosófica/teológica de Suzuki parte do mestre chinês Hui-neng (638-713 d.C.) e cita muitos diálogos do tipo mestre-aprendiz, para desenvolver seu argumento. O livro é complexo e os exemplos que Suzuki escolhe não ajudam, pois os mestres posteriores a Hui-neng adoravam apelar para o nonsense para transcender o intelectualismo. Muitas vezes, o budismo zen acaba soando platonista (algo que a síntese espírita de Kardec sublinhou). Em outras, a prática do nonsense lembra a irreverência modernista nas artes como meio de ferir as percepções burguesas. No pós-modernismo se fala do fim das grandes narrativas em razão da multiplicidade discursiva moderna levando a uma equivalência entre discursos. A escrita pós-modernista muitas vezes mergulha nesse entendimento pela hipertrofia textual e narrativa (William S. Burroughs, Thomas Pynchon) ou apontando a linguagem como construtora da percepção do real (fabulation e metaficção). Na minha própria ficção, busco investigar situações em que essa multiplicidade discursiva é calada por situações de violência, qualidade mítica e o esgotamento das teleologias. Parece que aí também o budismo tem algo a contribuir.

 

O Que É Design Gráfico: Conceitos Básicos, de Nobu Chinen. Rio de Janeiro: Duetto Editorial, 2014, 48 páginas. Quem me conhece apenas como escritor não sabe que também já atuei como ilustrador editorial (mesmo como fã de FC, comecei com desenhos). Ano passado, decidi voltar a desenhar e agora adquiri uma mesa digitalizadora para desenvolver arte digital. Mas acho importante ter noções de design gráfico — inclusive para poder lidar melhor com a produção dos meus livros e até deste site. Antigamente, o design parecia apenas subsidiário das indústrias do livro e da publicidade, mas hoje está em toda parte, até em movimentos sociais e artísticos. Este livrinho do especialista nipo-brasileiro Nobu Chinen, professor da Escola de Comunicação e Arte da USP, é uma introdução leve a esse campo muito em voga atualmente. Comprei-o por menos de cinco paus, numa promoção das Lojas Americanas.

Com capítulos curtos (2-3 páginas) e com muita cor e imagens, o livro busca não apenas apresentar as questões em torno do assunto (comunicação, arte, comércio), mas também ilustrar as suas possibilidades. Em grande parte, a leitura foi como recordar os cursos de ilustração publicitária que fiz em Campinas, no século passado. Do mesmo autor, ainda tenho aqui para enfrentar Design Gráfico: Curso Básico (Escala, 2011), bem maior e mais chique.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Tony Harris & Chris Blythe.

Star Wars Infinitos: Uma Nova Esperança (Star Wars Infinities: A New Hope), de Chris Warden (roteiro), Drew Johnson (desenho) e Ray Snyder, Al Rio e Neil Nelson (arte-final). São Paulo: Panini Comics, 2017, 98 páginas. Capa de Tony Harris & Chris Blythe. Brochura. Confesso que já me peguei várias vezes imaginando uma versão alternativa do filme O Retorno de Jedi (1983), na qual tentava resolver as muitas contradições e pontas soltas do enredo da primeira trilogia de Star Wars. Em O Império Contra-Ataca (1980), Luke Skywalker chega a Bespin num Asa-X e sai de lá no Millennium Falcon, deixando para trás o caça que, supõe-se, teria o registro de todo canto em que ele esteve. Enquanto o Império tenta quebrar o código de acesso aos dados, Luke corre de volta a Dagobah para terminar o treinamento com Yoda. Ao mesmo tempo, Leia, Lando e Chewie organizam o resgate de Han. Yoda se sacrifica, ficando em Dagobah para atrair Vader. Luke obtém, por meio de uma visão, o paradeiro de Palpatine num ponto obscuro (uma nebulosa, talvez?) da “galáxia muito distante”. Antes que o Império se organize para destruir a esquadra rebelde, uma ação final é organizada contra Palpatine…

Este gibi curioso parte de uma premissa semelhante — produzir uma visão mais coerente e alternativa da trilogia, mas partindo do primeiro filme (o Episódio IV). Luke atinge as entranhas da Estrela da Morte, mas o torpedo de prótons falha. A base rebelde é destruída, Luke é recolhido por Han e Chewie. Leia é capturada por Vader e levada a Coruscant, onde vira marionete de Palpatine. Obi-Wan se manifesta e Han leva Luke até Dagobah, conhecendo Yoda. O escritor Chris Warden integra elementos da prequência iniciada com A Ameaça Fantasma (1999), criando inversões interessantes: Yoda ainda tem saúde e é Palpatine que tem os dias contados. Leia deveria se tornar a sua herdeira. Com uma ação mais compacta, os heróis convergem para Coruscant, onde ocorre o confronto final — com uma participação maior de Yoda. Pena que essa experiência alternativa de Warden não teve um número maior de fascículos na publicação original, pois ganharia mais diversidade de situações e força narrativa, se ela se espalhasse um pouco mais. Além disso, a quadrinização ficaria menos coalhada. Também é de lamentar o desenho de Johnson — meio rombudo e duro, embora lide bem com fisionomias e estruturas. Aqui estamos livres dos ewoks e da repetição do recurso da construção da nova Estrela da Morte, o relacionamento de Luke e Han tem mais arestas, e Leia ganha ambiguidades. Perde-se, porém, o centro emocional dos dois primeiros filmes — o sentimento de amizade confrontado à indiferença de forças de escala cósmica.

—Roberto Causo

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Leituras de março de 2017

Nas leituras de março, Dante Alighieri, Saladin Ahmed, Luiz Bras e Andrew Vachss compõem um conjunto variado: o clássico e o novo, livro de arte e livro ilustrado, ficção e não ficção. E muita ilustração de qualidade.

 

Arte de capa de Bob Eggleton.

Alien Horizons: The Fantastic Art of Bob Eggleton, de Bob Eggleton & Nigel Suckling. Londres: Paper Tiger, 2.ª edição, 1995 [1994], 128 páginas. Capa de Bob Eggleton. Introdução de Gregory Benford. Brochura. O último livro que li mês passado foi um título da Paper Tiger. Começo as leituras de março com outro livro da mesma editora. Este é um título mais próximo do costumeiro para a Paper Tiger — portfolios de grandes ilustradores de arte de ficção científica. Bob Eggleton esteve muito ativo a partir da década de 1980, deixando sua marca  na capa de livros e revistas de FC, e também em revistas de astronomia e divulgação científica. Ter um livro publicado pela Paper Tiger é uma honraria em si, mas Eggleton já ganhou oito vezes o Prêmio Hugo de melhor artista!

Tenho muitas revistas e livros com capas feitas por ele, mas apesar de tudo, mantinha reservas quanto ao seu trabalho. Às vezes, um excesso de pinceladas finas dá um contorno esgarçado às suas figuras — e a publicação de várias ilustrações claramente em estágios intermediários, longe da finalização esperada, com certeza não ajudou. E Eggleton nem sempre acerta com a figura humana. Mas a impressão caprichada das suas artes neste livro fornece a oportunidade ideal para se reavaliar seu trabalho. Algumas das suas imagens de arte espacial são absolutamente deslumbrantes, e as pinceladas finas trazem a algumas um acabamento texturado que encanta. O texto é quase num formato de entrevista, integrando o leitor a uma conversa que expressa a personalidade de um artista que gosta de variar (há um trajeto quase que antipodal, entre arte de FC hard e arte de horror sangrento). Mantendo a mesma lógica, as legendas das imagens também são partilhadas pelos dois, com Suckling comentando algumas, e Eggleton outras. Um livro que mudou minha opinião sobre um artista prolífico e versátil.

 

Arte de capa de Vagner Vargas.

Mistério de Deus, de Roberto de Sousa Causo. São Paulo: Devir Livraria, março de 2017, 600 páginas. Capa de Vagner Vargas. Brochura. OK, incluir o seu próprio livro em uma lista de leituras completadas em março é trapaça. Afinal, ao revisá-lo como rascunho, eu já o li várias vezes. Mas rascunho é rascunho e livro é livro, só existindo como tal depois de publicado.

Mistério de Deus é uma dark fantasy (narrativa em que o horror se insere sobre uma base realista) ambientada no interior de São Paulo em 1991. Há muito de ficção de crime no romance, e um pouco de ficção científica. Um jovem recém-saído da prisão escapa de uma tentativa de assassinato, ao retornar à sua cidade natal. Em torno de ele, aos poucos se forma um grupo de quatro jovens — entre eles um segurança e corredor ilegal, um policial militar e uma médium relutante — dispostos a enfrentar uma quadrilha de assassinos que matam sem motivo, carregando as vítimas em um carro envenenado. Aos poucos, vão entendendo que existe uma ameaça sobrenatural por trás dos crimes. Para chegar a essa força sobrenatural, porém, os heróis precisam passar por traficantes de drogas e policiais e políticos corruptos, sobreviver a perseguições automobilísticas a quase 260 quilômetros horários, e transitar na linha incerta entre vivos e mortos. Mistério de Deus se conecta com o meu segundo romance, Anjo de Dor (Devir; 2009), finalista do Projeto Nascente da USP, mas não é uma sequência. Comecei a escrevê-lo em setembro de 1998, e o terminei em setembro de 2003, quando Anjo de Dor nem havia encontrado uma editora. Naquela época, não havia chances de um romance de horror desse tamanho ser publicado — situação que veio a mudar com o sucesso dos livros de André Vianco. Meu desejo, com o romance, era dominar a “narrativa entrançada”, na qual vários personagens, cada um na sua linha narrativa, avançam em paralelo até que elas se enlacem perto do final. Douglas Quinta Reis, meu editor na Devir Brasil, elogia a estrutura do romance e acha que fui bem-sucedido. A arte de capa de Vagner Vargas captura com brilhantismo o clima de velocidade e solidão. Além disso, constrói uma iluminação engenhosa em torno dos faróis dos carros, e deixa claro, com o semblante demoníaco no alto, a qual gênero o livro pertence.

 

Throne of the Crescent Moon, de Saladin Ahmed. Nova York: DAW Books, 2013 [2012], 368 páginas. Paperback. Criador do Prêmio Hydra, o escritor Christopher Kastensmidt tem feito há mais de dez anos a ponte entre a comunidade brasileira de fantasia e ficção científica, e a sua contraparte americana. Depois de umas de suas passagens pela convenção mundial de FC, ele me trouxe livros autografados por seus colegas da geração mais jovem da fantasia em língua inglesa. Saladin Ahmed é um expoente, e só lamento estar lendo este romance agora — o livro sumiu da minha estante de autografados, só reaparecendo recentemente.

Throne of the Crescent Moon é, assim com o romance A Bandeira do Elefante e da Arara (2016), de Kastensmidt, uma fantasia heroica de cenário incomum. Um mundo secundário modelado no Oriente Médio, no primeiro; o Brasil Colônia, no segundo. O livro de Ahmed ganhou o Prêmio Locus de Melhor Romance de Estreia em 2013, e é o primeiro de uma série. Nele, o erudito Adoulla Makhslood é um “caçador de goul” (espécie de zumbi do folclore árabe) que tem como assistente o jovem dervixe e espadachim magistral Raseed. Em suas aventuras, eles agregam outros heróis, num grupo dos mais originais e divertidos da fantasia heroica — uma garota que se transforma em leoa, e um casal de alquimistas. Vivem na cidade de Dahmasawaat, capital do Reino da Lua Crescente, que está às voltas com um príncipes dos ladrões, espécie de Robin Hood das Arábias. Mas o que a equipe de heróis descobre é uma força sobrenatural que ameaça instaurar um reinado do terror, na cidade e no reino. O tempo todo nesse mundo secundário calcado na experiência histórica e cultural árabe, fala-se em Deus e no trabalho de Deus, realizado por Adoulla e seus amigos. Na cidade, agentes das normas religiosas patrulham as ruas como o talibã. Uma das grandes sacadas de Ahmed é entender que numa sociedade em que ser pio faz parte das estruturas de poder, uma resposta possível está na ênfase cotidiana no mundano. Por isso, os heróis são pessoas despachadas e endurecidas, repletas — especialmente os velhos — de um humor ácido. A interação entre os velhos e o jovem casal é deliciosa. O final é satisfatório, mas o romance tem uma “barriga” enorme do meio para o fim, apoiando-se demais nessa interação. De qualquer modo, a acolhida desse livro pela comunidade de FC e fantasia americana atesta o quanto ela é aberta e, neste momento, interessada na diversidade cultural.

 

Arte de capa de Cathie Bleck.

The Divine Comedy (La Divina Commedia), de Dante Alighieri. Nova York: Barnes & Noble, 2008, 694 páginas. Capa de Cathie Bleck. Tradução de Henry Wadsworth Longfellow. Ilustrações de Gustave Doré. Introdução de Melinda Corey. Capadura. Eu conhecia A Divina Comédia da juventude, quando comprei a edição da saudosa coleção de clássicos da Abril Cultural (que usou uma tradução de Hernani Donato, em prosa e não em verso). Mais tarde, na pós-graduação, estudei o livro de Dante Alighieri. Meu Mestre das Marés, o segundo romance da série As Lições do Matador, empresta dele imagens e versos para sublinhar o estado mental do herói Jonas Peregrino, quando ele desce à paisagem torturada de um planeta destruído por um buraco negro. Para tanto, recorri a esta edição da tradução para o inglês de Longfellow, lendo o “Inferno” e o “Purgatório”. Mas neste mês achei que valia terminar a leitura de “Paradiso”, fechando o livro. Além disso, Dante e sua obra terão um papel no romance Archin, que Taira Yuji do Desire®  Universe me contratou para escrever.

A edição da Barnes & Noble, a rede de livrarias americana, é do tipo “bargain edition” — quer dizer, imita o acabamento de um livro de couro com douramento, mas numa faixa de preço bem abaixo. É gostoso de manusear, de qualquer modo, e a tradução versificada de Longfellow faz toda a diferença, mesmo não sendo rimada e usando um inglês do século 19. A estrutura em tercetos de Dante é preservada, e a habilidade de Longfellow (que levou uns três anos para terminar a tradução do italiano) no uso de rimas internas e de sequências aliterativas dá uma cadência profunda e magnética à sua tradução desse poema narrativo e filosófico. As ilustrações de Gustave Doré (também na edição da Abril) são obrigatórias. Hoje, estão em toda parte, como a interpretação última da imagética dantesca, influentes até no cinema. O cuidado de Doré com atmosfera, aliado à sua imaginação grotesca, certamente romântica, fazem um interessante contraponto à erudição clássica de Dante, e transformam o mergulho do turista do além túmulo na cultura clássica e dos dilemas sociais e religiosos do século 13 europeu, em um mergulho no inconsciente.

 

Dante, anônimo, ed. São Paulo: Colégio Dante Alighieri, 2008 [1965], 100 páginas. Ilustrações. Brochura. Na sequência da Divina Comédia, decidi ler este opúsculo sobre vida e obra de Dante, produzido e publicado pelo Colégio Dante Alighieri, de São Paulo. Quando Taira Yuji decidiu que Dante seria um personagem no romance Archin, ele, o redator Pedro Santos e eu fizemos uma visita ao colégio em 28 de junho de 2016, para uma conversa com dois especialistas no poeta italiano, o artista Canato e a bibliotecária Marilda Mitsui. Além de informações preciosas e um tour guiado pelos murais primorosos de Canato interpretando a Divina Comédia, cada um de nós recebeu esta edição fac-similar de um livreto de 1965, quando se comemorou 700 anos do nascimento do poeta.

A nota da primeira edição informa que os textos foram escritos por professores “que vivem e ensinam no nosso meio”. Não há mais informações editoriais ou de autoria — talvez perdidas quando se produziu o fac-símile. Comparado a outro livro sobre Dante que li, Dante Alighieri: O Poeta Filósofo, de Carlos E. Zampognaro, a linguagem mais rica (“antiquada”) deste atrai mais do que o livro de Zampognaro, mais burocrático na sua intenção de amparar estudos universitários. Um insight que importa aos estudos da “proto ficção científica” aparece na página 61: “poder-se-ia qualificá-lo como romance de aventura: da mais extraordinária e inverossímil aventura que possa ocorrer a um homem.” E na página 72: “um invulgar clima de aventura e de imprevisto, dando à própria ficção extraordinária ambientação, ao mesmo tempo realística e fantástica”. Nessa aventura pelos reinos do além, não estão apenas os conhecimentos teológicos reelaborados pela imaginação e pela verve do poeta, mas também algo dos conhecimentos científicos da época.

 

Arte de capa de Teo Adorno.

Não Chore, de Luiz Bras. São Paulo: Editora Patuá, 2016, 152 páginas. Capa e Ilustrações de Teo Adorno. Brochura. A ficção científica e fantasia brasileira estão em grande efervescência desde 2004 ou por aí. Isso nos obriga a uma leitura prospectiva constante. Mas aos poucos, certos autores vão surgindo como nomes obrigatórios. Luiz Bras é um deles. Um dos heteronômios do consagrado escritor mainstream Nelson de Oliveira, foi criado para explorar a FC e o infanto-juvenil. Sua coletânea de histórias Paraíso Líquido (2010) é uma das mais experimentais e ousadas, desde A Espinha Dorsal da Memória (1989) e Mundo Fantasmo (1994), de Braulio Tavares; O Fruto Maduro da Civilização (1993), de Ivan Carlos Regina; e Confissões do Inexplicável (2007), de André Carneiro. Seu romance Distrito Federal (2014) leva a FC tupinipunk a novas direções e produz uma dos mais contundentes denúncias do status quo do Brasil pós-Mensalão. O movimento que ele lançou a partir do ensaio “Convite ao Mainstream” é um dos desenvolvimentos mais interessantes da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira, situando-se no polo oposto do apelo à estética pulp, desse contexto característico do século 21.

A novela Não Chore vem com a chancela do ProacSP, mas faz par com Distrito Federal. Repete a estrutura de rapsódia, e sua crítica mira agora a questão do crime e as omissões do Estado. O caráter experimental está na mistura de trechos em terceira, primeira e segunda pessoas do singular, e na prosa poética que emprega repetições, reiterações e o entrecruzamento de linhas narrativas. No plano temático, o malabarismo surrealista é com uma organização de viajantes no tempo, nuvens de nanomáquinas, realidade virtual, clonagem, anarquistas em ação contra policiais, entidades espirituais afro-nativo-brasileiras, ameaça de choque de asteroides contra São Paulo, e um futuro ou realidade alternativa distópica em que presídios apresentam reality shows de tortura de prisioneiros. O texto aqui tem menos espinhos dirigidos à autoridade e ao poder, mas nos traz personagens mais próximos e vozes mais comoventes, do que o de Distrito Federal. Alguns personagens meio que desaparecem antes na melancólica conclusão, mas o texto conserva sua força e complexidade estrutural até o fim. As ilustrações de Teo Adorno (outro heteronômio) apresentam personagens de traços afros, homens e mulheres, acompanhados de reflexões e confissões pessoais. Funcionam em si mesmas, mas uma delas dá a chave metaficcional deste que é, derradeiramente, um texto de fabulation pós-modernista:

“A mentira da ficção é mais verdadeira que a verdade do jornalismo e da historiografia porque a realidade não é ‘real’, é uma convenção social cuidadosamente ajustada. As obras mais realistas (mais verdadeiras) são as que denunciam o autoengano social dessa irrealidade cotidiana.” —Luiz Bras, Não Chore.

 

Arte de capa de Paul Chadwick.

Another Chance To Get it Right: A Children’s Book for Adults, de Andrew Vachss. Milwalkee, OR: Dark Horse Books, 1995, 64 páginas. Ilustrações internas. Capa de Paul Chadwick. Brochura. Continuo encontrando material de interesse nas prateleiras de promoções da loja Terramédia, de São Paulo. Este é um livro ilustrado com a proposta muito importante, de nos lembrar da vulnerabilidade da criança perante a desigualdade, a guerra, o vício, a violência e o abuso. Andrew Vachss é um advogado que milita na área, com experiência pessoal como investigador de campo do serviço de saúde pública, supervisor de serviço social, e diretor de ONGs. Além disso tudo, é romancista de ficção de crime, autor da série Burke, com um detetive particular que se especializa em casos de abuso infantil.

Vachss também escreve para quadrinhos, sendo autor de Batman: The Ultimate Evil (1995) e de outros trabalhos. Another Chance To Get it Right é uma coletânea de textos sem títulos, ilustrada só por craques da área: Tim Bradstreet, Paul Chadwick, Geof Darrow, Rick Geary, Gary Gianni (que já desenhou Príncipe Valente e Conan), Dave Gibbons (o artista de Watchmen) e Warren Pleece. Em alguns momentos, os desenhos que acompanham o texto são de arte sequencial mesmo, faltando apenas os balões. O livro de Vachss é eficiente em chamar a atenção do leitor para a situação da infância ameaçada. E seu texto tem uma qualidade poética saudada por Joe R. Lansdale na contracapa. Esse elemento poético vem da ternura que pulsa por baixo de toda a dureza das situações descritas. E essa ternura expressa esperança que as crianças trazem, para o mundo — está no título, inclusive: as crianças representam uma outra chance de acertarmos, em como nos relacionamos com o mundo.

Levei um tempo para me recordar de que já tinha lido um livro de Andrew Vachss antes, o competente romance de crime The Getaway Man (2003). Na época, eu procurava livros sobre pilotos de fuga para inspirar a escrita de Mistério de Deus, e nesse Vachss trata de um delinquente juvenil de inteligência limítrofe, mas que é uma espécie de idiot savant no volante de carros de fuga.

—Roberto Causo

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