Tag Arquivo para Editora Draco

Leituras de Agosto de 2020

O mês de agosto foi reservado principalmente à leitura de mais space opera, nacional e traduzida, na literatura e nos quadrinhos.

 

Arte de capa de Ingrid Guimarães Leitão.

O Palácio do Amor (The Palace of Love), de Jack Vance. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, Coleção Novos Mundos da Ficção Científica, 1992 [1967], 210 páginas. Tradução de Ruy Jungmann. Arte de capa de Ingrid Guimarães Leitão. Brochura. O terceiro volume da Saga dos Príncipes Demônios surgiu dez anos após o primeiro, com a coleção Mundos da Ficção Científica (coordenada durante uma década por Fausto Cunha) transformada em Novos Mundos da Ficção Científica, agora dirigida pelo tradutor e cineasta Sylvio Gonçalves. A nova coleção parece ter se nutrido do agito causado pela Isaac Asimov Magazine nas bancas nacionais. Gonçalves colaborou com a revista, inclusive, com traduções e um conto premiado. O tradutor Ruy Jungmann, a propósito, foi um autor da Primeira Onda da FC Brasileira. Os dois primeiros volumes eu discuti nas leituras do mês passado.

Difícil entender o que se passou pela cabeça de Vance, para escrever este romance. Trata-se, de tudo o que poderia se encaixar no mundo da ficção científica de aventura, de um romance boêmio. Do tipo visto na literatura europeia do século 19, começo do século 20. Aparentemente, Vance teve uma vida boêmia em San Francisco, e isso apareceu em sua ficção. O livro começa com uma desajeitada concessão às situações do livro anterior, A Máquina de Matar (1964), com a separação do herói Kirth Gersen da princesa espacial Alusz Iphigenia, que entende que não pode competir com a sua missão obsessiva de livrar a galáxia dos príncipes-demônios. A gota d’água foi uma situação deveras pulp em um planeta de envenenadores, orgulhosos do seu ofício em uma inversão de valores muito vista nos contos de Robert Sheckley, com Gersen avaliando tudo clinicamente. Mas a personagem já havia se transformado em uma sombra da cativante personalidade feminina do episódio anterior. E a lógica interna da série tem o mesmo destino, já que, para abraçar a perspectiva do romance boêmio, Vance precisou abrir mão de toda aquela coisa do alienígena reptiliano capaz de se passar por humano. No rastro do príncipe-demônio Viole Falushe, Gersen vai à Terra, tendo como única pista um poeta maldito que conhecera o criminoso, em sua infância, no colégio em que ele estudou, e no qual foi humilhado por uma garota. Gersen chega a visitar a mãe de Falushe — ela mesma aparentemente tão humana quanto o próprio herói. Não há mesmo qualquer menção àquela característica central, mencionada nos dois livros anteriores.

Navarth, o poeta maldito, é um personagem excêntrico e interessante em si mesmo, enquanto a garota que vive com ele, Zan Zu de Eridu, é outra personagem feminina que parece muito mais cativante do que a descrição de Vance daria a entender. De algum modo, o contexto boêmio amplia seus encantos. Criada por Navarth sem estudo e de modo anônimo, parece exercer um apelo incomum sobre Falushe. Uma primeira tentativa de desentocar o príncipe-demônio por meio de uma performance de Navarth não dá certo, restando a Gersen usar de um anacrônico truque de ataque pessoal por intermédio de uma revista comprada por ele, para enfim enfrentá-lo no seu território: o “Palácio do Amor”, um prostíbulo planetário (outra premissa digna de Sheckley) onde é possível encenar elaboradas fantasias — e onde Zan Zu é colocada em perigo mortal. Em meio a movimentos que lembram os filmes de James Bond e suas ações em espaços subterrâneos, a grande revelação trágica é menos a identificação de Falushe, e mais o reconhecimento da profundidade da desilusão amorosa da juventude, que ainda o motiva. Nesse ponto, a descoberta de uma infinidade de clones de Zan Zu gerados ao longo dos anos para serem objetos do amor/ódio do vilão também amplia o quanto a garota representa: no se encanto, ela pode ser mais do que ela mesma, tanto como representação dos vários estágios do feminino, quanto do nível de projeção masculina. Um livro muito incomum, que talvez triunfe mais na sua adoção de elementos do romance boêmio.

 

A ilustração de capa desta edição americana de 1979 dá o spoiller da revelação final envolvendo os clones da heroína. Arte de capa de Gino D’Achille.

 

 

The Case of the Restless Redhead, de Earle Stanley Gardner. Nova York: Pocket Book, 2.ª edição, 1961 [1954], 194 páginas. Paperback. Não me lembro se já tinha lido algum livro anterior da série Perry Mason de Earle Stanley Gardner na infância. Talvez, mas a série da HBO inspirada nela me chamou a atenção o suficiente para eu buscar nas caixas de papelão um dos paperbacks que havia juntado desde que me mudei pra São Paulo e tive acesso aos sebos da capital paulista. A nova série brincou com o fato conhecido de que Mason é um advogado de defesa — nela, ele começa como investigador particular de um escritório de advocacia, e, depois que o advogado morre, é alçado a advogado graças a um esquema comandado pela secretária do escritório…

Uma pesquisa na Wikipedia revelou que The Case of the Restless Redhead foi o primeiro livro de Gardner adaptado na primeira série de TV, mesmo sendo o volume 45 da série de livros. Abre com Mason assistindo a um julgamento em cidade vizinha de Los Angeles, e trava contato com um inexperiente advogado de defesa, que passa a aconselhar. O caso envolve Evelyn Bagby, uma garçonete ruiva de fechar o comércio, a caminho de Hollywood para tentar a vida como starlet, e que é acusada de roubar uma cara joia pertencente a uma dama das altas-rodas. Gardner lida bem com os elementos investigativos da história, análise forense, e com o jogo de classes sociais tão importante para a ficção de crime americana. O seu advogado põe a mão na massa, embora neste episódio ao menos não se possa dizer que é um thriller, quer dizer, sua vida não corre um risco grave. Muita atenção é dada aos personagens secundários, todos tratados com inteligência, fugindo dos clichês. Assim, Evelyn não é uma aventureira amoral, e Della não é uma secretária boazuda, mas mulher esperta e capaz. Interessante que a série da HBO tenha “atualizado” os personagens dando a Della a caracterização de uma jurista prática sem oportunidades em um mundo masculino, com um relacionamento estável com uma outra mulher; e transformando o detetive particular Paul Drake em um policial negro que teve de se demitir para manter sua integridade, deixando de uma estrutura corrupta que o excluía e limitava. Mais difícil de justificar é Mason como figura decadente, marginal e atormentada.

 

Arte de capa de John Berkey.

John Berkey: Painted Space, de John Berkey & Sharon Berkey. Pittsburg: Friedlander Publishing, 1991, 96 páginas. Introdução de Michael Friedlander. Arte de capa de John Berkey. Brochura. Já tive este livro (adquirido de José Carlos Neves), mas ao emprestá-lo a um professor de pintura, nunca mais o vi. Com a doação de Alfredo Keppler, tive a oportunidade de ler novamente esta compilação de ilustrações de John Berkey (1932-2008), com texto de sua filha. Um prolífico pintor americano, Berkey fez posters de cinema (incluindo o King Kong de 1978) e capas de livros de FC, tendo sido um dos primeiros a trabalhar com Star Wars. Sem receber o crédito, foi responsável por parte da estética da animação WALL-E (2008), e a revista de arte Juxtapoz tem uma galeria de imagens dele, em seu website.

Berkey começou pintando imagens de calendário (folhinhas) para um gigante do ramo, a Brown and Bigelow, onde pintou todo tipo de coisa. Essa prática intensa e constante lhe deu muita cancha. Paisagens rurais, marinhas e históricas são brevemente representadas nas páginas 8 a 13, do livro. Os seus efeitos dominantes de aglomerar pinceladas e de explorar elementos focados e desfocados para sugerir a impressão de realismo das composições já estão presentes lá. O texto revela que um dos seus “segredos” era um dispositivo de espelhos, criado para projetar para longe os segmentos da tela, produzindo a falta de foco (a discussão da sua técnica está nas páginas 32 a 34). Quando o livro foi publicado, Berkey havia feito mais de 200 capas de livros, FC na maioria, o que invertia a relação entre representação e imaginação. Em muitos casos, há uma luz imaginária, em cores quentes, que cativa o olhar e determina muito das formas. Na maioria, manchas longas e oleosas, com o predomínio do branco e de cinza azulado, para contrastar com o fundo negro do espaço — que o artista povoava com planetas e luas em concentrações pouco realistas. O interesse principal costuma estar na espaçonave e em outras estruturas futuristas, mas estudos feitos para o poster do filme catástrofe Inferno na Torre (1974) mostram que ele era um bom fisionomista.

As páginas 36 e 37 trazem um centerfold, com uma imagem acompanhada de vários estudos coloridos. Outros, aparecem ao longo do livro, confrontando a arte-final. As páginas 40 e 41 trazem a imagem de um habitat espacial, praticamente o único exemplo da sua ilustração científica (ele fez muita coisa para a revista Popular Mechanics). As páginas 80 e 81 trazem quase que um passo a passo dos estudos para a ilustração de capa deste livro dedicado à arte de John Berkey, um dos grandes da arte de ficção científica em todos os tempos.

 

Mais um livro de arte de FC de John Berkey, este pela colecionadora Jane Frank, publicado em 2003.

 

Arte de capa de Stephan Martiniere.

Fleet of Worlds, de Larry Niven & Edward M. Lerner. Nova York: Tor Books, 1.ª edição, 2007, 302 páginas. Arte de capa de Stephan Martiniere. Hardcover. Este é um romance de FC hard pertencente à série Known Space de Larry Niven. Outro livro doado por Alfredo Keppler. Eu já conhecia essa sequência ambientada 200 anos antes do clássico de Niven Ringworld (1970), de um outro romance: Betrayer of Worlds (2010). Desse modo, na leitura eu estou retornando ao início da sequência. A ilustração de capa de Stephan Martiniere, um dos grandes artistas digitais dedicados à FC na atualidade, não é particularmente inspirada, mas captura a essência épica do conceito da série: os alienígenas puppeteers ou “marionetistas”, temendo uma reação em cadeia de supernovas disparada a partir do centro galáctico (onde os sóis são mais próximos um do outro), empregam a sua hipertecnologia para colocar os seus planetas em voo para fora da galáxia, rumo ao halo galáctico.

Na rota da “frota de mundos”, é preciso viajar adiante em velocidade maior que a da luz para fazer um reconhecimento avançado. Os puppeteers são proverbialmente covardes demais para isso, mas têm a solução perfeita: humanos descendentes de uma nave subluz resgatada por eles em fins do século 22 (a história se passa no século 27) estão a seu serviço. As coisas se complicam quando os jovens batedores humanos, liderados pela dinâmica Kirsten Quinn-Kovacks, descobrem um planeta no caminho, com uma civilização nascente que, quando os puppeteers passarem por ali, poderão estar avançados o suficiente para representarem uma ameaça. O caso é que os mestres alienígenas desses humanos — a maioria deles habitando um planeta pertencente à “frota”, como em uma reserva — consideram, em sua covardia inerente, o extermínio preventivo. Na tentativa de salvar os habitantes desavisados desse planeta, Kirsten e seus companheiros acabam descobrindo que os puppeteers não foram exatamente altruístas, ao abrigar os seus antepassados.

O romance explora as divisões políticas entre os puppeteers; a sua estranha forma contra-intuitiva em termos evolucionários, de reprodução por “mútua alcovitagem” de dois machos com uma fêmea não senciente da espécie (algo que aparece também no mundo partilhado das guerras humano-kzin, criado por Niven); o temor e o conservadorismo dos colonizadores humanos; e uma aventura de Kirsten e seus companheiros até a preservada nave original dos seus avós. Conhecendo a verdade, resta disseminá-la entre os colonos para conquistar o seu apoio, e, ao mesmo tempo, assenhorar-se de meios tecnológicos para colocar os mestres marionetistas em cheque e forçar um novo acordo. Bem se vê que é um romance movimentado e relativamente compacto, considerando tudo o que narra, repleto de grandes ideias de FC hard — característica essencial do Known Space que colocou Niven no estrato superior da FC americana no século 20.

 

Arte de capa de Hugo Vera.

Space Opera: Aventuras Fabulosas por Universos Extraordinários, de Hugo Vera & Larissa Caruso, eds. São Paulo: Editora Draco, 1.ª edição, 2015, 356 páginas. Introdução de Hugo Vera & Larissa Caruso. Prefácio de Flávio Medeiros Jr. Arte de capa de Hugo Vera. Brochura. Este é o terceiro volume, e até o momento o último, da vitoriosa série de antologias originais editada por Vera & Caruso para a Editora Draco. A space opera é um subgênero da FC, mas mesmo como subdivisão de um gênero maior, pode ser muitas coisas diferentes. Por isso a diversidade de abordagens é importante para uma antologia com este tema. No seu prefácio, Flávio Medeiros Jr. aponta que a space opera apresenta possibilidades múltiplas, e como a série de antologias vem atualizando o gênero. Também que os dois volumes anteriores redundaram em Prêmios Argos para melhor ficção curta. Informa que o terceiro volume, ao contrário dos anteriores, recebeu submissões espontâneas, ao invés de se convidar individualmente cada um dos autores. Nota-se, neste, além do novo processo de composição do conteúdo, a ausência de uma história de Caruso. O segundo volume eu discuti aqui mês passado.

“Convite do Imperador”, de Roberta Spindler, abre com uma situação erótica, de sexo interespécies em que uma piloto espacial tem contato com um alien, o que lhe faculta alucinar com um amante perdido. Mais tarde ela é recrutada por piratas espaciais que tentarão tomar de assalto uma instalação planetária, empregando um robô de combate operado por ela. A história terminando como o primeiro episódio de uma série. “Na Crista da Onda”, do veterano autor português Luis Filipe Silva, muito ativo na cena brasileira, é uma história de FC hard sobre astronautas internacionais em missão arranjada por um bilionário, para guiar um cometa até a superfície de Marte. A história tem uma cadência controlada e eficiente, mas embora seja de aventura, não é necessariamente uma space opera. O mesmo se dá com o noveleta seguinte, de Antonio Luiz M. C. Costa, “Nosso Estranho Amor”, ambientado em um futuro mais longínquo. Trata da visita a um planeta extrassolar por uma ciborgue pós-humana, e, como outros textos do autor, despreza o enredo em favor de uma espirituosidade discreta, ideias modernas, impulso utópico embutido em situações de amor livre, e uma prosa sempre elegante. O duo de autores portugueses Júlia Durand & Rui Leite é responsável por “Uma Princesa de Stroff-Bingen”, com uma abordagem nova para a série de antologias: o humor que explora os clichês do subgênero. “Os Argonautas”, de Sid Castro, tem abordagem quase oposta — sua movimentada novela de space opera exótica cita e empresta elementos de um dos textos fundadores da viagem fantástica, uma das raízes aventurescas da FC, ainda na antiguidade clássica (A Argonáutica, de Apolônio de Rhodes, é do século 3 a.C.). O liberdade que a space opera confere para se montar cenários e criar imagens também está na narrativa mais curta de Carol Chiovatto, “Ecos de Maztah”, com direito a mulheres aladas como fadas (também vistas em um dos primeiros textos atribuídos ao subgênero, A Honeymoon in Space, de 1901, por George Griffith) misturadas com traços de Star Wars — uma Aliança Galáctica cuja derrota dá origem a uma Resistência, e uma princesa que recruta os serviços de um relutante e cínico capitão de nave estelar chamado Solomon.

A prática de citação, homenagem e humor se combina radicalmente em “O Cortiço e as Estrelas”, de Pedro Vieira — que conheço do seu interessante “Instinto Materno” na antologia Cyberpunk: Histórias de um Futuro Extraordinário (2010), editada por Richard Diegues para a Tarja Editorial (foi o único texto tupinipunk na antologia). Aqui, Vieira empresta situações do clássico do naturalismo brasileiro, O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, agora uma nave de transporte cheia de intrigas, pequenos abusos e sacanagens, além de piratas espaciais. Tem muita verve e o contraste entre linguagem arcaica e futurismo. Hugo Vera traz, com “As Filhas de Cassiopeia: A Cruzada pela Liga Interestelar”, mais uma aventura da sua série de space opera exótica, e a novela mais longa da antologia. Suas influências são exploradas de modo menos ostensivo, e a preocupação com enredo, intriga e ação são fortes. É a narrativa mais épica dentro de uma antologia que, aparentemente por razões aleatórias, optou por um forte tempero de pastiche, paródia e referencialismo pós-modernista. Eu me pergunto se a tendência vem de estarmos rodeados de space opera no cinema, TV, HQ e games sem que nos relacionemos fortemente com nenhuma, ou se a série de antologias em questão foi tão bem-sucedida em tornar a space opera parte da nossa paisagem (algo que eu ainda acho insuficiente), que já podemos entrar na fase de brincar com suas características.

A melhor história do livro é a que fecha o volume, “Nenhuma Babilônia nos Dará Ordens!”, do brilhante Cirilo S. Lemos, um dos melhores autores da Terceira Onda da FC Brasileira. Trata-se de uma noveleta complexa, sofisticada tanto em termos das suas ideias de FC quanto no estilo e narrativa, e que mira a civilização suméria como elemento de composição. E um dos textos mais representativos da new space opera e do New Weird no Brasil — lembrando que, segundo China Miéville, há um cruzamento claro entre as duas tendências. Isso o torna um texto exemplar, obrigatório para entendê-las entre nós, e eu recomendo a aquisição do e-book se você não quiser ler a antologia toda.

 

Quadrinhos

Arte de capa de John Romita Jr. & Scott Hanna.

Marvel Saga: O Espetacular Homem-Aranha: Até as Estrelas Esfriarem, de J. Michael Straczynski (texto) & John Romita, Jr. (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2020, 216 páginas. Tradução de Mario Luiz C. Barroso. Arte de capa de John Romita Jr. & Scott Hanna. Capa dura. A maior parte deste segundo volume da coleção Marvel Saga: O Espetacular Homem-Aranha já havia saído como o volume 22 da coleção Marvel Graphic Novels. Mas esta edição tem três itens que são muito atraentes: duas páginas de texto do editor Fernando Lopes, e as HQs publicadas na revista The Amazing Spider-Man 36 e 39. A primeira aborda diretamente do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 em Nova York, assunto do editorial de Lopes. Trata-se de uma narrativa que eu conhecia apenas de anúncios, e que agora tive o grande prazer de ler. Foi a primeira reação do mundo dos quadrinhos àquele evento terrível que ainda dá forma ao mundo atual, e Lopes conta que Straczynski ficou bloqueado por semanas até escrever tudo em 45 minutos! Nessa história, o Aranha, que sempre foi, por trás do apelo adolescente, um herói capaz de filosofar, intervém — juntamente com vários outros super-heróis e supervilões — nas operações de resgate. Por meio de um monólogo, ele reflete sobre a tragédia. Muito comovente.

O grosso do volume está focado nas encrencas de Peter Parker longe da esposa Mary Jane Watson, e agora tendo que lidar com uma Tia May que agora sabe que ele é o Homem-Aranha. Sempre ativa, ela está disposta a mudar sozinha a imagem que a sociedade faz do herói — protegendo o sobrinho em todas as situações. Uma primeira sequência envolve o desaparecimento de jovens marginalizados em Nova York (um deles irmão de uma aluna de Peter na velha escola que ele cursou), algo que envolve o sobrenatural e, quase que por consequência, a participação do Dr. Estranho. Há uma visita ao astral pelo herói atarantado, em que ele pode ter pode ter arrumado uma encrenca sobrenatural a cobrar o seu preço mais tarde, e uma viagem astral junto a MJ, na Costa Oeste. Disposto a ir até ela, o herói se coloca no caminho do velho inimigo, o Dr. Octopus — e de uma versão mais nova e mais moderna do vilão —, com MJ e May no fogo cruzado. A aventura em Hollywood também dá a Straczynski chance de brincar com a sua experiência na Fábrica dos Sonhos, rindo de várias situações de filmes-B de monstros, de produtores malucos e astros superficiais.

 

Arte de capa de David Marquez & Matthew Wilson.

Star Wars: Motim em Mon Cala, de Kieron Gillen (texto) & Salvador Larroca (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2020, 136 páginas. Tradução de Tiago P. Zanetic. Arte de capa de David Marquez & Matthew Wilson. Brochura. A bonita capa de Marquez & Wilson engana: a arte interna de Larroca é meio dura, embora cumpra muito bem o requisito necessário a toda HQ de Star Wars: representar bem fisionomias e maquinários. A história começa em uma faixa de areia em um atol alienígena — com o detalhe da rocha “Dedo de Deus” da Ilha de Fernando de Noronha aparecendo claramente no segundo quadro.

Depois das situações de Star Wars Episódio IV: Uma Nova Esperança (1977), Luke, Leia, Han, C3P0 e o Almirante Ackbar estão ali para negociar, com o líder do povo dele em Mon Cala, a entrada deles na Aliança Rebelde. É claro, o império está bem ali na cola deles, e a ação começa cedo. A estratégia, depois que eles fogem do primeiro ataque, é libertar o monarca mon calamari das garras do império e restituí-lo. Para isso, precisam primeiro libertar e recrutar um metamorfo da espécie clawdita (apresentada em Star Wars Episódio II: Ataque dos Clones), um tal de Tunga Arpagion, tipo irônico metido a artista. Na melhor tradição do capa e espada, Tunga deve imitar um afetado oficial do império para obter acesso ao prisioneiro a ser libertado. Em vários momentos, a cor de Guru e-FX empresta charme ao desenho, e até imersão no exotismo que inclui aventuras submarinas e muitas escapadas. O final do livro é uma história quase solo em que os heróis têm de pelejar para se reunirem à armada rebelde, e, subsequentemente, cumprirem sua promessa de libertarem Tunga. O livro apresenta como coadjuvante uma mulher que faz parte das relações antigas de Leia, também ela da realeza: Trios, Rainha de Shu-Torun, e que vai ser importante nos próximos episódios.

 

No quadro central, a famosa rocha de Fernando de Noronha foi parar na Galáxia Distante

 

Arte de capa de Travis Clareth.

Star Wars: A Esperança Morre, de Kieron Gillen (texto) e Salvador Larroca (arte). Barueri-SP: Panini Comics, abril de 2020, 192 páginas. Tradução de Dandara Palankof. Arte de capa de Travis Clareth. Brochura. Li este gibi em maio, mas apenas agora me dei conta de que a narrativa viria depois daquela de Motim em Mon Cala. A princesa Leia e Trios, Rainha de Shu-Torun, ocupam muito do palco central nesta aventura, mas a tradicional ação dividida contempla Han e Chewbacca retornando de uma missão e encontrando grande dificuldade para se reunirem à armada rebelde. As dificuldades incluem a rara situação do Millennium Falcon sendo avariado, a ponto de Han, para continuar lutando, se enfia no cockpit de um caça Asa-X…

A longa sequência parece ter emprestado algo do trecho de Star Wars Episódio VIII: O Último Jedi (2017; dirigido por Rian Johnson) em que uma flotilha da Resistência é perseguida por uma força superior do império. Luke Skywalker também está num Asa-X, assim como Wedge Antiles. Coadjuvantes de A Nova Esperança aparecem, assim como Vader no seu super-destroier estelar. Giuseppi Camuncoli assume os desenho na segunda parte dessa aventura, trazendo ainda mais artes baseadas em computador e pinçadas dos fotogramas do episódio IV. A última história, porém, traz um desenho mais vivo e criativo, mais colorido, pelo lápis de Ario Anindito. Kieron Gillen cede a escrita a Cullen Bunn, que inventou uma história em que Luke faz par com a contrabandista e ex-namorada de Han, Sana Starros, na busca por um sabre de luz que pertenceu a um Lord Sith das antigas, e objeto de desejo de Darth Vader. O sabre empresta o guarda-mão laser visto nos episódios VII a IX. Relíquias jedi já foram McGuffins em outras aventuras, como a gema de Splinter of the Mind’s Eye (1978), de Alan Dean Foster. A aventura escrita por Bunn apresenta um final mais do que adequado.

 

Comics Star Wars Clássicos 6. Embu das Artes, Quinhau, SP: Editora Planeta DeAgostini do Brasil, Coleção Comics Star Wars N.º 6, 2015, 200 páginas. Capa dura. “Quim Thrussel”, blogueiro muito ativo em tudo o que diz respeito a quadrinhos e ficção pulp, me chamou a atenção para esse volume da coleção Comics Star Wars: “Peguei a edição [6] da Coleção de Star Wars da Planeta DeAgostini, tem duas histórias que a Marvel não usou de John Carter e transformaram em Star Wars, John Carter vira Aron Peacebringer.” Curioso, fui conferir. Vamos lembrar, antes de mais nada, que as histórias reunidas neste volume em capa dura são as histórias originais criadas pela Marvel ainda na década de 1970, com todo o frescor do momento em que o primeiro filme, Guerra nas Estrelas (Star Wars; 1977), ainda estava na memória e no coração das pessoas — mas talvez com todo um outro conjunto de vícios e faltas, quando as comparamos com as HQs mais atuais, pós-Disney…

Com roteiro de David Michelinie e desenhos do admirável Walt Simonson, a primeira história se passa logo após O Império Contra-Ataca (1980). Nela, Luke, Leia e os robôs, além de Lando Calrissian e Chewbacca, participando do esforço da Aliança para encontrar um outro planeta para instalar uma nova base rebelde, depois que eles foram expulsos, por Vader, do planeta gelado Hoth. A aventura envolve um desenvolvimento particularmente interessante: um complô de oficiais do império para eliminar o próprio Vader. Michelinie sai de banda e ninguém menos que Chris Claremont assume o roteiro, justamente das histórias apontadas por Quim Thrussel. Na primeira, uma nave que transporta Leia sofre uma pane e ela é a única sobrevivente, indo parar, em um casulo de escape, em um planeta de fantasia heroica. Salva de homúnculos por um galante chefe-guerreiro que vive dando pulos prodigiosos como John Carter, o herói criado por Edgar Rice Burroughs, Leia torna-se sua hóspede e alvo do seu interesse erótico-romântico. Uma variação interessante que traz outra dimensão a Leia, embora a maior parte da história adote o ponto de vista do tal Aron Peacebringer — que tem a sua própria Dejah Thoris e se sente dividido, agora que apaixonou por Leia. Carmine Infantino fez o desenho, mais rústico que o de Simonson.

Depois desse desvio, o grupo de heróis encontra enfim um planeta candidato a abrigo da nova base rebelde. Um mundo florestal como a Lua de Yavin, habitado por pequenos telepatas peludos que convencem os rebeldes a enfrentar um monstro espacial que os tem como presa. Outra linha acompanha o retorno de Lando a Bespin e a sua cidade nas nuvens, agora controlada pelos imperiais e onde ele reencontra o seu assistente ciborgue. A intriga envolve uma associação momentânea com o comandante local, e a descida a uma parte do planeta não apresentada no filme: a superfície, onde vivem os pequenos anões-ferreiros que haviam desmontado C3P0. Lando é um personagem bastante sólido, nessa história que termina com Luke aparecendo e exibindo poderes jedi ausentes dos filmes. A próxima história de Michelinie é ainda mais interessante por ser uma FC hard: os rebeldes instalam uma base provisória na cromosfera de uma estrela. Quando as instalações sofrem problemas técnicos, cabe à conhecida dupla de droids saírem em atividade extra-veicular para salvar a todos. O inventivo recurso pode ter sido recuperado em Prisão Rebelde. Na última história, Lando e Luke abordam um traficante de armas para obter recursos para a Aliança, e caem em uma emboscada a ser executada por um monstro gigante — uma aventura mais tradicional.

Roberto Causo

Sem comentários até agora, comente aqui!

Leituras de Julho de 2020

Em julho, prossigo com minha investigação da space opera, relendo romances de Jack Vance, mas também examinando a antologia brasileira Space Opera II, de Hugo Vera & Larissa Caruso.

 

Arte de capa de Raul Rangel e Milton Silva.

Star King: A Saga dos Príncipes-Demônios (Star King), de Jack Vance. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1980 [1964], 208 páginas. Tradução de Marina Leão Teixeira Viriato de Medeiros. Arte de capa de Raul Rangel e Milton Silva. Brochura. Cá estou, relendo mais uma space opera das antigas, publicada no Brasil em 1980 e parte de uma série que ainda chama a atenção, misturando FC e ficção de crime pela verve singular de Jack Vance (que escreveu os dois gêneros). De uma série de cinco romances publicados, a importante coleção Mundos da Ficção Científica lançou dois: este Star King (1964) e A Máquina de Matar (1964). O autor da Geração GRD Fausto Cunha foi o coordenador da coleção. Anos depois, na década de 1990, a coleção — agora Novos Mundos da Ficção Científica e com Sylvio Gonçalves como coordenador — publicou um terceiro: O Palácio do Amor (1967). Dentro da primeira coleção, Antonio Jeremias foi o capista mais prolífico e competente. A capa de Raul Rangel & Milton Silva certamente está aquém.

A série acompanha o jovem Kirth Gersen, treinado por seu avô para ser o vingador da destruição da sua colônia planetária por cinco alienígenas capazes de se passar por humanos, e que, a partir dali, criaram os seus respectivos impérios criminais pela galáxia de Vance, o universo do Oikumene. Os cinco são os “Príncipes Demônios”. Cinco bandidos, cinco romances, com Gersen dando cabo de um após o outro. Por alguma razão, Vance terminou a série com a publicação de The Book of Dreams apenas em 1981. (Atualmente, o escritor canadense Matthew Hughes trabalha em um sexto volume, autorizado pelos herdeiros.) Pseudo-excertos de publicações, depoimentos, relatórios do futuro distante imaginado por Vance expandem o sentido da narrativa do romance, somando à textura elogiada e influente que caracterizou a obra desse autor. A intriga do primeiro livro apresenta Gersen na cola de Attel Malagate, que, aos poucos, ele descobre estar disfarçado de dirigente do principal instituto de exploração planetária do Oikumene. O próprio Gersen emprega o disfarce de explorador. A intriga tem como principal premissa propulsora (“MacGuffin”) um planeta singular, muito rico e edênico, descoberto por um explorador de fato, assassinado no início do romance. A questão é apropriar-se do sensor com as coordenadas desse mundo, interessar o conselho coordenador do instituto, e criar um mise-en-scène que facultasse ao herói identificar Malagate, entre o grupo de suspeitos.

No processo, que inclui vários movimentos e truques da ficção de detetive hard-boiled, Gersen coopta uma das várias mulheres que cruzam o seu caminho na série, a bela, vivaz e inocente Pallis Atrode, a quem Vance reserva um destino de abuso nas mãos de um perverso associado de Malagate. O herói Kirth Gersen não tem a personalidade mais vibrante nem a caracterização mais aprofundada, mas as mulheres de Vance na série possuem invariavelmente um encanto misterioso, já que também não são objeto de uma grande dedicação do autor. Já o planeta edênico tem uma ecologia em que espécies diferentes se “metamorfoseiam” em outras, antecipando algo do planeta Lusitânia no meu favorito Orador dos Mortos (1986), de Orson Scott Card. Enfim, como chefões do crime, os príncipes-demônios ou “reis das estrelas” são seres guiados não apenas pela emulação não apenas da forma humana, mas das suas realizações, e a oportunidade de direcionar uma nova raça deve ser irresistível a Malagate. Nesse detalhe, os príncipes-demônios parecem ser uma representação do arrivismo que impulsiona tantos criminosos — e políticos, como vemos no atual governo de arrivistas que está no poder no Brasil. A mistura de ficção de crime, ficção científica e evocação mítica de Vance neste primeiro volume soa inquietante, traz cores vivas e estimula o pensamento.

 

Drive (Drive), de James Sallis. São Paulo: Editora LeYa, 2012 [2005], 160 páginas. Tradução de Amanda Orlando. Brochura. Com quantos livros se faz um subgênero de ficção de crime? No caso em questão, talvez apenas três: The Getaway Man, de Andrew Vachss, que eu li em 2008; este Drive, de James Sallis; e O Motorista (The Wheelman), de Duane Swierczynski, que está na fila. O trio já rendeu um artigo de Eric Beetner, e compõe o subgênero “piloto de fuga”. Apenas o livro de Vachss não foi traduzido no Brasil. James Sallis escreve fantasia contemporânea e frequenta as páginas da The Magazine of Fantasy & Science Fiction. Este seu Drive virou um filme muito bom, estrelado por Ryan Gosling (aí na capa) e Carey Mulligan, dirigido por Nicolas Winding Refn.

O livro é um romance curto de texto minimalista e capítulos breves. O protagonista é chamado apenas de “Piloto”. É um especialista em livrar assaltantes armados da perseguição da polícia. Sua história abre com um momento crucial, também visto no filme, em que ele é emboscado, junto com a cúmplice Blanche, em um motel. A narrativa, porém, logo mergulha em um longo flashback que conta, capítulo a capítulo, as suas origens e como ele chegou até ali, usado pelo pai em arrombamentos ainda quando criança, como fugiu de casa e foi para Los Angeles e se tornou piloto de façanhas em filmes. A recuperação das trajetória do protagonista se reencontra com aquela cena central no capítulo 9, mas a estratégia dos flashbacks retorna imediatamente após, agora centrada em como ele entrou no mundo do crime.

Um toque de Sallis que não está no filme é o relacionamento do Piloto com Manny, um escritor de roteiros que fornece alguns comentários sobre o mundo literário e suas desilusões. (Manny também é responsável pela ironia final.) Fora dos flashbacks, a situação central é do Piloto, baleado, fazendo uso dos serviços de um médico de bandido, especialista em remover projéteis e costurar buracos de bala. E então como o herói se recupera da emboscada, sai da cidade, se reorganiza e dá a volta por cima contra os operadores locais da máfia italiana, usando suas habilidades específicas atrás do volante — no que se assemelha um pouco com o romance de Vachss. Também na caracterização do Piloto, que, como o herói de Vachss, tem algum déficit de inteligência ou de empatia, possível neurodivergência que sugere ser por isso que ele é um savant na mecânica e na pilotagem. O texto minimalista e emocionalmente apartado reforça essa impressão, ao mesmo tempo em que insere o livro dentro da ficção de crime pós-modernista.

 

Arte de capa de Raul Rangel.

A Máquina de Matar (The Killing Machine), de Jack Vance. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1980 [1964], 192 páginas. Tradução de Luís Corção. Arte de capa de Raul Rangel. Brochura. O segundo livro da série Saga dos Príncipes Demônios vê o herói Kirth Gersen à caça de Kokkor Hekkun, o príncipe-demônio conhecido como “Máquina de Matar”, cuja trilha leva a um mundo de fantasia científica, Thamber, um planeta oculto das autoridades do Oikumene. A única pista de Thamber é uma cantiga folclórica. Raul Rangel retorna como capista em arte de cores aguadas e uma representação da máquina de matar que parece um esboço inacabado. Ilustradores estrangeiros também preferiram representar a estranha centopeia blindada, encomendada por Hekkun a uma empresa de engenharia — mimetizando uma criatura do tal planeta —, e não os personagens.

Gersen descobre que Hekkun busca levantar uma grana para resgatar uma mulher, Alusz Iphigenia, que se refugiou na matriz de um esquema quase industrial de sequestros e cobrança de resgate, colocando-se voluntariamente em cativeiro sob um resgate bilionário, para proteger-se do vilão. O herói então consegue o patrocínio de uma autoridade do instituto cujos filhos foram sequestrados, e infiltra o cativeiro para ter contato com ela, dona da única pista do paradeiro de Hekkun. Como Gersen obtém a soma absurda para resgatá-la é muito anacrônico para o leitor do século 21: ele forja dinheiro usando uma oficina de arte e laborterapia para os cativos… Chegar a Hekkun depende derradeiramente não apenas da ajuda de Alusz Iphigenia, mas do herói assumindo o controle do projeto da tal máquina assassina encomendada pelo príncipe-demônio.

Alusz Iphigenia é outra das mulheres estranhamente atraentes de Vance, mas quando ela e Gersen chegam a Thamber ela perde algo do interesse, conforme o enredo envereda para situações de fantasia heroica, com a cooptação de grupos tribais pela dupla e o conflito entre esses grupos até que a dupla chegue ao castelo de Hekkun — que nesse mundo cunhou para si uma persona heroica, como se o planeta fosse o seu parque temático privado. Novamente, o príncipe-demônio busca para si mais do que uma distinção como criminoso. E novamente, o herói precisa aparecer com um truque para tirá-lo do seu disfarce humano, aqui, em uma revelação particularmente tétrica. Para além de grotesco, Hekkun assume uma face trágica que nos parece singularmente romântica (talvez mesmo aristocrática) e humana:

“— Ele era um homem em que a imaginação era um dom e uma maldição. Uma única vida não lhe bastava. Ele sentia a necessidade de beber em todas as fontes, de conhecer todas as experiências e viver em todos os extremos. Em Thamber ele encontrou um mundo bem a seu gosto e temperamento. Nas suas diferentes entidades ele criava suas próprias epopéias.” —Jack Vance. A Máquina de Matar.

 

Arte de capa de Hugo Vera.

Space Opera: Jornadas Inimagináveis em uma Galáxia Não Muito Distante, de Hugo Vera & Larissa Caruso, eds. São Paulo: Editora Draco, 1.ª edição, 2012, 380 páginas. Introdução de Gerson Lodi-Ribeiro. Arte de capa de Hugo Vera. Brochura. Romantismo epopeico, épico, exótico e sempre maior que a vida é a província da space opera. Minha noveleta das Lições do Matador, “A Alma de um Mundo”, apareceu nesta antologia de Vera & Caruso, a segunda da sua vitoriosa série de três, as primeiras antologias nacionais dedicadas à space opera. A lista de participantes é grande: Vera e Caruso, Octavio Aragão, Fábio Fernandes, Marcelo Augusto Galvão, Lidia Zuin, Tibor Moricz e Carlos Orsi. Todas as histórias são relativamente longas e sempre movimentadas, e a capa de Hugo Vera é provavelmente a melhor que ele fez para a sua série de antologias originais.

“Obliterati”, de Fernandes, começa in media res, em uma alternância de situações aceleradas, amparadas pela narrativa no tempo presente e em primeira pessoa, mais tarde sucedidas por reflexões descritivas do contexto ficcional, e toques de perda pessoal e de grandes conceitos científicos que apontam para a new space opera. “Tudo por Causa dela”, de Caruso, também é muito movimentado e também inclui um relacionamento passional em seu núcleo (olha o título!), mas com um twist envolvendo um implante cerebral. “Jowjow, Jungermaid e a Deusa de Luz”, de Tibor Moricz, talvez inadvertidamente nos lembra que a expressão “space opera” surgiu para designar uma “faroeste no espaço” — o componente de western (também presente no romance de Moricz, O Peregrino, de 2011) é bastante evidente na aventura de planetary romance do caça-prêmio Jowjow e seu cavalo-robô, acompanhados de uma heroína local na busca por uma importante joia mitológica, a Deusa da Luz. “Rainha das Estrelas — Dias de Sangue na Área Vermelha”, de Octavio Aragão, imagina, em narrativa com muitos movimentos, um império galáctico em futuro distante, repleto de intrigas palacianas e crueldades absolutistas que sugerem a influência de Duna (1965), de Frank Herbert. “Viva Muito, Morra Jovem”, de Lidia Zuin, é relativamente curto, se comparado com a maioria das demais histórias da antologia, e nele a autora mais conhecida por seus contos cyberpunks empresta a sua pena para substanciar a série criada por Hugo Vera, representada no livro pela novela “As Filhas de Cassiopeia — A Ofensiva Draconiana”, outra space opera exóticaA história de Zuin é circunscrita a um único lugar e envolve uma devoradora de homens, parte de uma espécie assexuada mas que se apresenta como fêmea e cujos feromônios ela usa para atrair suas vítimas. De Marcelo Augusto Galvão, “Inferno de Dantes” é uma ágil space opera militar sobre fuzileiros espaciais em um sítio xenoarqueológico no qual procuram um artefato supertecnológico, e lutam contra monstros cheios de tentáculos e um traidor entre eles. Galvão revela familiaridade com o subgênero, com um estilo consistente, ideias de FC formando uma boa textura e alguma ironia e tuckerismos (menções a colegas do mundo da FC brasuca). A já mencionada novela de Hugo Vera rivaliza com a de Aragão como narrativa mais longa do livro, em um universo de space opera exótica que sugere a influência de Duna e de séries de TV como Babylon 5, e de videogames como Mass Effect. Quase um romance, implora expansão para esse formato, para colocar mais substância em suas situações de guerra galáctica e piratas espaciais, agentes secretos e guerreiras determinadas. Mais curto, “No Vácuo Você Pode Ouvir o Espaço Gritar”, de Carlos Orsi, tem ideias científicas mais ricas e também explora o tema de artefatos deixados à deriva por supercivilizações anteriores, além de descreve hábitos culturais do futuro distante, e uma trepidante colaboração entre humanos e uma outra potência espacial, na investigação de um desses objetos. É um dos textos brasileiros que mais se aproxima da new space opera, em tom e em tema, e recebeu o Prêmio Argos, do Clube de Leitores de Ficção Científica, em 2013.

 

Arte de capa de Bruce Jensen.

Divergência: Livro Dois de O Universo dos Construtores (Divergence: Book Two of The Heritage Universe), de Charles Sheffield. Rio de Janeiro: Editora Record, 1994 [1991], 286 páginas. Tradução de Ronaldo Sérgio de Biasi. Arte de capa de Bruce Jensen. Brochura. A bela arte de capa de Jensen revela novos artefatos xenoarqueológicos abandonados pelos Construtores na galáxia humana, e caçados pela especialista Darya Lang, uma erudita de tais objetos, e seu companheiro mais rústico, Hans Rebka. O romance abre introduzindo um novo e excêntrico personagem, C. Indigo Tally, um androide com um supercomputador no lugar de cérebro, e que é ativado e colocado em movimento com a missão de investigar o ocorrido uma semana antes, no planeta binário que foi palco das situações de Maré de Verão (1990), o primeiro da série. Tally está a par com outros personagens talvez britanicamente excêntricos, criados por Sheffield para esta série. Onde vai, ele enche a paciência das pessoas e, depois de cortado, insiste: “Posso falar?” A investigação do propósito dos Construtores leva os vários curiosos até as imediações do gigante gasoso Gargântua (presente aí na colorida capa de Bruce Jensen), onde a equipe de heróis se depara com objetos que se pensava serem asteroides, mas que de fato são novas construções xenoarqueológicas.

A praia de Sheffield (desencarnado em 2002 de um tumor cerebral) era a ficção científica hard desenvolvida quase sempre com uma qualidade de estilo áspero mas plena de ideias de superciência e, às vezes, um toque pulp explícito de filme B. Em Divergência, esse toque está no cenário de labirinto de testes de inteligência armado por um representante cibernético dos Construtores, para avaliar as qualidades das civilizações que acabam chegando até ele, numa variação complexa do leitmotif da arena, na ficção científica. O teste para os heróis humanos e seus parceiros alienígenas inclui uma grupo de belicosos alienígenas com a forma de polvos ou medusas gigantes e que produzem, aos montes, bebês carnívoros insaciáveis. Todas essas qualidades da composição do romance exigem, digamos, um gosto adquirido por parte de um leitor que deve se esbaldar com aquilo que a FC realiza e que poucos ou nenhum outro gênero teria o interesse em reproduzir. Composta de cinco livros (Maré de Verão, Divergência, Transcendence, Convergence e Ressurgence), todos apresentado o mesmo grupo de exploradores idiossincráticos, no Brasil a série parou por aí, talvez por questão de gosto do público leitor, mais provavelmente vítima da crise econômica (hiperinflação, início do Plano Real). A própria Isaac Asimov Magazine, editada por de Biasi, havia terminado em 1993.

 

Quadrinhos

Arte de capa de J. Scott Campbell.

Marvel Saga: Espetacular Homem-Aranha Volume 1, de J. Michael Straczynski & John Romita, Jr. Barueri-SP: Panini Comics, 2020, 210 páginas. Apresentação de Fernando Lopes. Tradução de Mário Luiz C. Barroso. Arte de capa de J. Scott Campbell. Capa dura. Ainda estou perseguindo a escrita de quadrinhos de J. Michael Straczynski, o renomado roteirista de televisão e cinema, conhecido criador da série de space opera Babylon 5. A Panini resolveu facilitar minha vida colocando nas bancas uma coleção dedicada apenas aos roteiros dele, para as aventuras do meu super-herói favorito, o Homem-Aranha. Esse mesmo volume já havia saído antes como parte da coleção Marvel Graphic Novels, da Salvat do Brasil (nome oficial: “Ultimate Marvel Graphic Novel Collection”), edição 21, O Espetacular Homem-Aranha: De volta ao Lar (2013).

Na apresentação, o editor Fernando Lopes fala de como a vida do Aranha foi bagunçada nas páginas dos gibis de 1990, e de como o chefão da Marvel, Joe Quesada, chamou o editor Alex Alonso (ex-DC Comics) para pôr ordem nessa zona aracnídea. Straczynski vinha de uma experiência bem-sucedida com a sua criação Rising Stars para a Top Cow Publications. A mão sempre discreta e humana do escritor mostra um Peter Parker quebrando o galho com professor de ensino médio na mesma escola em que entrou em cena como adolescente supernerd, em 1962. Está envolvido com a comunidade, interessado no futuro dos seus alunos de baixa renda — o que eu acho muito importante nos super-heróis novaiorquinos, como o Demolidor e Luke Cage. Também está separado de Mary Jane Watson, que deu um tempo no casamento para perseguir sua carreira em Hollywood.

Como Aranha, ele é abordado por um tal de Ezekiel Sims, megaempresário que tem habilidades semelhantes às suas. O herói é alertado de que vem aí um caçador de superpoderes, e que é melhor fugir. Ezekiel também dá à origem do Aranha (e dos seus semelhantes, como Ezekil) um fundo místico animista que diverge da mitologia original do personagem, embora não proponha uma revisão total. Além disso, o confronto com o sombrio supervilão Morlun leva a uma das sovas mais duras já sofridas pelo herói — e, com isso, Tia May descobrindo o que o sobrinho apronta nas horas vagas: outra ousadia de Straczynski. Eu sempre demoro a entrar no espírito da arte estilizada de John Romita Jr., mas de qualquer modo, é a escrita de Straczynski o ponto forte do livro, seu modo de trabalhar as características conhecidas do personagem, e a narrativa propriamente. O máximo, para mim, é como — tendo ao fundo e com oposição conceitual o misticismo de Ezekiel e de Morlun — a ciência é que derradeiramente salva a vida do herói. (Especialmente depois de como o lado nerd dele foi tão diminuído nos filmes.)

 

Arte de capa de Lorenzo de Felici.

Oblivion Song Volume Dois: Entre Dois Mundos (Oblivion Song Volume Two), de Robert Kirkman (texto) & Lorenzo de Felici (arte). Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2020 [2019], 136 páginas. Tradução de Fernando Scheibe. Arte de capa de Lorenzo de Felici. Brochura. O primeiro desta série, discuti aqui em abril de 2019. Eu já dizia que a criação de Kirkman parecia ajustada para despertar o interesse de produtores de séries audiovisuais que ainda estivessem à procura do novo Lost (2004-2010), mesmo depois de The 4400 (2004-2007), Les Revenants (2012-2015), The Leftovers (2014-2017) e, mais recentemente, Manifest (2018-2021) e a norueguesa Beforeigners (2019- ). O determinante é o tema de FC e fantasia que poderíamos chamar de “transferência” (chamado exatamente assim, na história) — de uma dimensão a outra, de um mundo a outro, de uma ecologia a outra; ou de lugares estranhos para o nosso mundo. No pacote, estão a figura do cientista atormentado pelo experimento que levou à tragédia, o tema muito americano dos irmãos estranhados, e também paranoia governamental e monstros lovecraftianos. Tudo isso, amparado pela “estética do feio” presente no desenho de Lorenzo de Felici.

O ponto focal deste episódio é o retorno de Ed, irmão do cientista atormentado, Nathan Cole. Antes de ser transferido para o mundo paralelo, ele era um perdidão viciado em drogas — mas lá ele é o líder de uma comunidade que se firma em uma nova fronteira. Tem-se aí outro tema muito americano: o espírito pioneiro, a expansão territorial contra as uma natureza e a noção adjacente de que os obstáculos e a luta forjam o caráter e determinam a essência de um povo. Obviamente, seja neste ou no outro mundo, há um marcante conflito de interesses entre os irmãos. Um ponto forte deste volume são as cores de Annalisa Leoni.

Roberto Causo

Temos 2 comentários, veja e comente aqui

Leituras de Fevereiro de 2019

Só livros de brasileiros lidos em fevereiro, quando resolvi atacar a pilha de títulos aguardando leitura, alguns há um bom tempo. Inclui ficção científica, fantasia, horror e poesia de cordel. Há também um brasileiro na minha leitura de quadrinhos nesse mês.

 

Sob o Trópico de Capricórnio, de Pedro Carcereri. Belo Horizonte: Letreramento, 2018, 98 páginas. Brochura. Nelson de Oliveira me passou este romance curto do roteirista e cineasta Pedro Carcereri. É uma ficção científica dentro do subgênero distopia, muito em voga na literatura dos millennials e muito significativo hoje em dia, diante do quadro político atual. Mas aqui temos, rascunhado em traços rápidos e num estilo mais introspectivo, fusão de preocupações atuais e o tom das distopias brasileiras da década de 1970 — o Ciclo de Utopias e Distopias, dentro da ficção científica nacional. Isso provavelmente é mais resultante das escolhas pessoais de Carcereri, do que de uma pesquisa ou leitura prévia de trabalhos de autores como Ignácio de Loyola Brandão, Ruth Bueno, Silveira Júnior ou Mauro Chaves.

Também é interessante que o autor empregue temas bastante recentes e relevantes, nestes tempos de globalização: alimentos transgênicos por toda parte e a proibição estrita do plantio de qualquer coisa que o governo centralizado desaprove; o cultivo de plantas e a criação de animais não-transgênicos, como meio de resistência político-econômica. O premiadíssimo The Windup Girl (2009), de Paolo Bacigalupi, aborda tema nessa linha, projetado para um futuro de construção mais rica. A ideia de “vales” em que comunidades agrícolas guardam um princípio utópico está em Sob o Trópico de Capricórnio e também no romance tupinipunk do político verde Alfredo Sirkis, Silicone XXI (1985). A novela de Carcereri começa na Zona Oeste de São Paulo (exatamente a região em que eu moro), com o protagonista Daniel sendo sequestrado por um desses grupos de resistência. Ele acaba cooptado por eles para realizar uma ação em particular, e o grupo se move pelas ruas de Sampa para realizá-la, mas com o aparelho repressor em cima deles. A história tem muito movimento, com os personagens viajando por São Paulo Capital e Interior, como na novela pós-apocalíptica A Terceira Expedição (1987) de Daniel Fresnot. Mas o final é abrupto, como se o livro fosse a primeira instância de um trabalho maior ou de uma série a ser desenvolvida.

 

Quatro Soldados, de Samir Machado de Machado. Porto Alegre: Não Editora, 2013, 320 páginas. Brochura. O escritor gaúcho Samir Machado de Machado me enviou este seu romance um ou dois anos depois do seu lançamento. Com três leitores compulsivos na casa, o livro acabou passando de mão em mão e desapareu. Ano passado, Christopher Kastensmidt me recomendou o livro om muita ênfase, e passei várias semanas procurando-o sempre que surgia um momento livre. Como acontece invariavelmente nesses casos, achei o livro quando não o procurava. Valeu muito a leitura, de qualquer modo. De fato, este é um romance que, com vênia para o fato de ele poder ser lido como uma apropriação histórica ficcional muito própria da ficção pós-modernista, pode ser visto com um marco da fantasia brasileira. Fantasia histórica, é claro, por ser ambientado no Sul do Brasil do século 18.

Há três coisas meio que obrigatórias, na ficção pós-modernista que se estabelece na segunda metade do século 20, e que a gente encontra no romance de Machado de Machado: metaficção (a ficção que comenta a ficção), um espírito brincalhão ou iconoclasta, em torno da forma ou do assunto, e a fragmentação da narrativa. O romance é divido em quatro livros ou partes. Longas epígrafes precedem cada uma dessas partes. Em outros trechos, há uma reprodução da dicção e da grafia arcaica do português de então. O primeiro soldado foi abandonado pelo pai e acabou recrutado. A caminho de uma missão jesuíta, são perseguidos por uma criatura monstruosa até um labirinto. Desaparecidos, são seguidos pelo seu comandante, que tem melhor sorte contra o monstro. A narrativa corta então para contar o que houve com o jovem sobrevivente, que foi abrigado por um inventor e erudito que apresenta a ele a obra de Shakespeare — e um discurso literário elitista. O segmento termina com a chegada do oficial pronto para o resgate. Na segunda parte, o soldado resgatado encontra-se com mais um erudito, mas livre-pensador, irônico, boêmio e com a característica incomum de enxergar melhor no escuro do que a maioria das pessoas. O elemento fantástico surge como um novo monstro, que os dois enfrentam em subterrâneos lovecraftianos de clima pesado e descrições arrepiantes. Na terceira parte, o oficial que aparece na primeira é tratado com mais profundidade, na narrativa que investiga a sua infância e juventude, enquanto ele se coloca no caminho de um assassino psicopata em missão secreta dos poderes coloniais, num episódio com direito à aparição da versão gaúcha do anhangá. Na parte final, ficamos sabendo mais sobre o psicopata, e retornam o homem dos olhos especiais e um enredo de mistério criminal. A força da criação de Samir Machado de Machado está na textura e na evocação, no toque transformador do estranho e do sobrenatural, e na estrutura narrativa engenhosa. Mesmo tendo em mente que esta edição do seu romance se beneficiaria de mais um polimento, Quatro Soldados vai para a mesma prateleira com O Caçador de Apóstolos (2010), de Leonel Caldela, e A Bandeira do Elefante e da Arara (2016), de Christopher Kastensmidt, dos romances brasileiros de fantasia mais destacados dos últimos anos.

 

Arte de capa de Mozart Couto.

As Horripilantes Narrativas Alimentares do Clube Canibal, de Júlio Emílio Braz. São Paulo: Devir Brasil, 2018, 96 páginas. Arte de capa de Mozart Couto. Brochura. O autor mineiro Júlio Emílio Braz começou escrevendo roteiro de quadrinhos para revistas e fanzines na década de 1980. (Mozart Couto, o artista da capa, é um dos mais experientes e respeitados desenhistas de quadrinhos do Brasil.) Eu tava lá, eu vi. Ele teve uma experiência escrevendo westerns de bolso, sob pseudônimo, para a Cedibra, depois fez o salto para a literatura infanto-juvenil, onde encontrou fama e sucesso como um autor afro-brasileiro respeitado nacional e internacionalmente, ganhando um Jabuti com o seu livro de estreia em 1988. Mesmo nos seus livros para jovens, ele costuma ser bastante duro. Este livro sobre canibalismo certamente não passaria como literatura juvenil.

O título e os textos de abertura dão a entender que as histórias reunidas no livro formam um conjunto coeso em torno do tema do clube canibal. Como as histórias são ambientadas em Porto Alegre, é possível que Júlio Emílio tenha se inspirado no caso dos “Crimes da Rua do Arvoredo” naquela capital, ocorridos entre 1863 e 1864 e envolvendo um trio de assassinos e o açougue de um deles. Meu pai costumava citar esse caso para embasar a sua pouca fé no ser humano…

A falta de um índice com os contos reforça a ideia de que o livro deveria ser lido como uma espécie de novela fix-up. Na minha leitura, porém, não é o que acontece e os seis textos ficcionais acabam tendo uma individualidade maior do que o necessário para isso, mesmo com todos eles narrados na primeira pessoa. Em uma das histórias, por exemplo, uma mulher traída serve ao marido a amante dele — mas nada do clube. Na história seguinte, sim; um serial killer é contratado para abastecer a associação. No próximo conto, o narrador cínico cede ao narrador horrorizado ao descobrir que seu noivado com uma aristocrata rural de origem germânica vai ser celebrado com um terrível ritual, mas aí não se trata do mesmo clube. O mesmo acontece na última história, narrada por um agente funerário que se envolve com uma família de canibais, mas não germânica e sim espanhola. De qualquer modo, o livro é efetivo tanto em criar um clima pesado apropriado ao gênero, quanto em evocar o horror do canibalismo. Há também uma atmosfera de sordidez urbana brasileira que casa muito bem com o projeto. Júlio Emílio Braz teve um conto incluído ano passado na antologia As Melhores Histórias Brasileiras de Horror (Devir Brasil), editada por Marcello Simão Branco & Cesar Silva.

 

A Eva Mecânica e Outras Histórias de Ginoides, de Daniel I. Dutra. Praia Grande-SP: Editora Literata, 2013, 126 páginas. Prefácio de Gerson Lodi-Ribeiro. Brochura. Conheci Daniel Dutra na Odisseia de Literatura Fantástica de 2013, onde adquiri seu livro de contos com o tema da fembot ou ginoide (o feminino de “androide”). As histórias dialogam com os contos do pioneiro da FC brasileira Berilo Neves (1899-1974), best-seller no seu tempo com contos e crônicas publicadas em revistas e jornais e reunidas em livro. Neves frequentemente brincava com o que a tecnologia faria em termos de alteração do comportamento sexual e social humano, se, por exemplo, homens e mulheres artificiais fossem inventados, ou uma encubadora que permitisse a reprodução fora do útero.

Com mais sofisticação, Dutra tenta examinar que transformações a introdução das ginoides trariam à sociedade humana. No prefácio, Gerson Lodi-Ribeiro conta que tudo começou com a publicação de “A Mulher Imperfeita” na antologia de histórias originais organizada por ele, Erótica Fantástica 2 (Editora Draco, 2012). Mas obviamente Dutra já visava um livro com o tema, pois submeteu ao todo quatro histórias para a antologia. As quatro estão no livro, junto com outras quatro. “A Eva Mecânica” é relativamente curto, narrado em primeira pessoa, e conta como o narrador recorreu a um contrabandista para garantir a sua ginoide, já que não se qualificava para possuir uma. No fim, descobre que depositara o seu afeto em um produto falsificado. Há uma certa ironia aí, de que a valorização da mulher mecânica não passa de projeção do macho da espécie. O conto parece estar aí mais para apresentar o histórico da inovação tecnológica sobre o qual o livro especula. Vem então “A Substituta”, também em primeira pessoa: o narrador mata a esposa em uma briga de casal, confessa a um amigo que revela ter substituído sua mulher por uma ginoide, e oferece a ele essa possibilidade, com resultados trágicos. Há aí ecos do romance de Ira Levin, As Possuídas (The Stepford Wives, 1972), segundo Lodi-Ribeiro assinala no prefácio. A terceira história, “Ela, a Ginoide”, abre com as Leis da Robótica de Isaac Asimov, e narra como uma ginoide-babá foge dessas leis — “enlouquecida”, mata a todos os que lhe parecem ameaçar sua protegida. “A Mulher Imperfeita” é mais filosófico e explora os sentimentos que levariam um homem comum a priorizar a mulher artificial sobre a natural, e também outras situações de relacionamentos poliamorosos por causa do excedente de humanas disponíveis, agora que elas têm de concorrer com as máquinas. “Veronica Lake Fake” satiriza um movimento pelo “amor cibernético”, contrário à proibição das ginoides; “A Casa da Dor” se apresenta como um depoimento colhido no julgamento de um homem que descarrega secretamente seus impulsos sádicos nas mulheres artificiais; e em “Sabine”, uma mulher idosa usa um aparato de realidade virtual para experimentar uma vida mais jovem como uma ginoide. A noveleta “A Última Mulher da Terra” dialoga diretamente com o conto de Berilo Neves, “A Última Eva”, que Braulio Tavares incluiu na sua antologia Páginas de Sombra: Contos Fantásticos Brasileiros (Casa da Palavra, 2003).

Imagino que exista uma variedade de modos em que se pode assumir uma postura crítica feminista na literatura, para além da representação positiva ou idealizada da mulher. Histórias que expõem as ilusões ou vícios do comportamento masculino, por exemplo — como “A Mulher Imperfeita” e outros momentos em que os homens não estão bem na foto, nos contos de Dutra. E também histórias que expõem as ilusões ou vícios do comportamento feminino — como “A Última Mulher da Terra”, em que a última mulher, salva de uma cápsula criogênica secreta na Amazônia, é uma bisonhona cheia de ilusões sobre seu apelo perante homens que vivem há séculos só com ginoides. Lendo suas histórias depois das histórias de Angry Candy, do qual tratei mês passado, me ocorreu que Harlan Ellison também usa dispositivos semelhantes para revelar os azares dos relacionamentos humanos. Falta a Dutra, porém, menos adesão às fôrmas alegóricas das suas especulações, e justamente mais ironia para temperar as narrativas. Parte da produção contística de Berilo Neves cabia no tema da “guerra dos sexos”, que também apareceu na noveleta “Éden 4” (2001), de Alexandre Raposo, na qual um astronauta é revivido milhares de anos no futuro, quando não existem mais homens na Terra.

 

Os Domínios do Rei Peste, de Evaristo Geraldo. Fortaleza: Edição do Autor, junho de 2015, 16 páginas. Folheto. Evaristo Geraldo foi outro cordelista a quem Braulio Tavares me apresentou no maravilhoso estande do IMEPH na Bienal do Livro de São Paulo, em 2018. Assim como Rouxinol do Rinaré fez com o seu A Sombra do Corvo, Evaristo Geraldo se inspira em um texto de Edgar Allan Poe, desta vez um conto de horror, “O Rei Peste” (“King Pest: A Tale Containing an Alegory, 1835). Na história, que não é uma das mais famosas do celebrado escritor americano, dois marinheiros malandros vão parar em um bairro de Londres que concentrava os doentes da peste. Inadvertidamente, a dupla, descrita como um cara muito alto e o outro um anão, deparam-se com uma bizarra cena que se desenrola em uma funerária. O poeta brasileiro desenvolve um certo humor, até que o clima de horror se fixa nessa cena em especial, muito bem expressa no poema.

O cordel é completado por um segundo poema narrativo de Evaristo Geraldo, “O Camponês Ganancioso”.

 

 

Arte de capa de Maércio Siqueira.

A Árvore de Todos os Frutos (Lenda Indígena), de Evaristo Geraldo. Alto Santo-CE: Edição do Autor, setembro de 2017, 12 páginas. Arte de capa de Maércio Siqueira. Folheto. Evaristo Geraldo retorna aqui usando uma lenda indígena como inspiração para o seu cordel, representada na xilogravura de Máercio Siqueira. Um elogio à cultura indígena abre o poema narrativo, que conta do amor da Lua pelo Sol. Um eclipse possibilitou a união amorosa dos dois corpos celestes. Um curumim foi o fruto desse encontro, Macunaíma, incumbido de proteger uma árvore que dava todos os frutos encontrados na floresta. O herói mágico distribuía os frutos aos homens e mulheres dos Macuxis, de acordo com sua sabedoria — registro lendário daquilo que os antropólogos chamam de “chiefdom“, o domínio do chefe que exerce esse direito a partir de um capital simbólico que o autoriza a organizar a sociedade. Mas o povo ganancioso passa por Macunaíma e ataca a árvore pensando em plantar um pomar a partir dos seus ramos. Mas ela morre, privando o povo da sua magia e fazendo o herói reagir com uma fúria que incendeia a mata e transforma trechos da floresta em rochedos estéreis. O tom do poema é mais solene e captura bem a lógica lendária dos mitos.

 

Quadrinhos

 

Arte de capa de Marini.

Arte de capa de Marini.

Batman: O Príncipe Encantado das Trevas, Volume 2 (Batman: The Dark Prince Charming Volume 2), de Marini. Barueri-SP: Panini Books, 2018. Arte de capa de Marini. Álbum capa dura. A investida do artista francês Enrico Marini na mitologia de Batman, criado por Bob Kane & Bill Finger, termina com este segundo volume. A qualidade da arte e da narrativa se mantém, enquanto a luta de Bruce Wayne para resgatar a menina Alina, que pode ser sua filha, das garras do Coringa engata a terceira marcha. Como Batman, Wayne patrulha as ruas, ataca uma gangue de motoqueiros tietes do Coringa. Mas é o supervilão, descrito como um psicopata que mata em rompantes, quem precipita as ações, e enquanto não assassina seus colaboradores como alívio de tensão. Ele aborda o multibilionário Wayne para que ele adquira um colar de diamantes — sonho de consumo da sua namorada Arlequina (Harley Queen). No meio do caminho, a joia vai parar nas mãos da ladrona Mulher-Gato, que mais tarde segue Batman até o local do desenlace da história. O interessante dessa sequência final é como, feito um malabarista habilidoso, Marini faz com que todos os personagens participem da ação: Batman, Coringa, o mordomo Alfred, a Mulher-Gato, Arlequina, o palhaço anão e suicida Archie, e a própria Alina. A menina, em particular, demonstra ser cheia de recursos. Isso não só traz maior interesse para o desfecho da minissérie, como também funciona como prenúncio do final surpresa — que sugere que ela pode não ser de fato filha de Bruce Wayne. O desenho e o uso de cor e tonalidade por Marini continua deslumbrante, mesmo que neste segundo volume ele não tenha realizado painéis duplos de tirar o fôlego, como no primeiro. Em sua aventura dentro da mitologia de Batman, Marini levou algo da dualidade da sua série Gypsy, cujo herói hiperviolento faz o que for necessário para proteger uma menina inocente — irmã menor, em Gypsy; suposta filha, aqui.

 

Arte de capa de Darrick Robertson.

Astronauts in Trouble: Live From the Moon, de Larry Young (texto), Charlie Adlard e Matt Smith (arte). San Francisco, CA: AIT/Planet Lar, 2.ª edição, 2001 [1999], 144 páginas. Introdução de Warren Ellis. Arte de capa de Darrick Robertson. Trade paperback. Folheei este livro de quadrinhos várias vezes na loja Terramédia (hoje Omniverse), e o desenho que empresta recursos do autocontraste nunca me passou muita confiança. Me convenci a comprá-lo por causa da recomendação de Warren Ellis, no seu livro de não-ficção Come in Alone. Ellis assina a introdução do livro, onde reafirma a sua paixão pela astronáutica, algo também presente na sua ótima HQ Ministério do Espaço (Devir Brasil).

A história criada por Larry Young, primeiro publicada em 1999, é ambientada em 2019, quando o pouso da Apollo 11 na Lua faz cinquenta anos. Nela, uma equipe de telejornalismo é envolvida na fuga de um megaempresário para o satélite natural da Terra, depois que as suas indústrias são atacadas por supostos ecoterroristas. Aos poucos, o empresário se mostra uma espécie de supervilão como um Dr. No, de 007, pronto para chantagear o mundo depois de conquistar o derradeiro terreno elevado — a Lua. Ele até patrocinara a suposta organização terrorista contra si mesmo, para lhe dar a desculpa para fugir para o satélite, sem supervisão governamental. Embora apareçam senadores corruptos na história, o executivo do governo americano nunca é acionado. Num truque narrativo estranho e bizarro, é uma espécie de máfia que lança uma trinca de misseis contra a Lua. O ápice da de Astronauts in Trouble divide-se entre o empresário e a equipe televisiva, tentando escapar do ataque. A narrativa é irônica e divertida, com muitas referências à cultura popular em diálogos extensos, mas é às vezes confusa e eclíptica. O fato do artista Matt Smith ter abandonado o trabalho nas páginas finais, assumidas por Adlard, não ajudou. De qualquer modo, passado o estranhamento inicial, a arte acaba sendo envolvendo o bastante. Fecha o livro uma história independente da narrativa principal, em que macacos tripulando cápsulas em voos-teste dão espaço para o humor sarcástico de Larry Young. O livro reitera a importância da iniciativa privada nas histórias de FC de viagem interplanetária, algo firmado pelo escritor Robert A. Heinlein e pelo editor John W. Campbell, Jr. O ano de 2019 com o cinquentenário da Apollo 11 está aí, e o megaempresário Elon Musk já anunciou seu desejo de chegar à Lua “o mais cedo possível”.

 

Ate de capa de Danilo Beirut.

Astronauta: Entropia, de Danilo Beyruth. Barueri, SP: Panini Books, 2018, 98 páginas. Arte de capa de Danilo Beiruth. Álbum. Mais astronautas pra nóis, no quarto álbum da série criada por Danilo Beiruth para a Maurício de Sousa Produções, em sua linha de “graphic novels“. O terceiro, eu discuti aqui em junho de 2017. Nele, o Astronauta foi apresentado à uma versão dele mesmo e de sua família, formada em um universo paralelo, e acaba ficando com a filha adolescente, Isabel.

Os dois estão perdidos em uma região inexplorada da galáxia, sem contato com a agência espacial do Astronauta, a BRASA. Isabel sugere que eles busquem sinais de civilizações alienígenas que possam lhes dizer onde estão. Encontram um sinal e chegam a um aglomerado de naves espaciais, o Sargaço, habitado por náufragos e piratas em conflito. Os dois são pegos nessa guerra e acabam separados. Astronauta faz um trato com a liderança dos piratas, e vai com a bela alien Shie’r — que mais tarde se revela como protótipo beyruthiano da personagem Cabeleira Negra, vista em histórias anteriores do personagem. A ideia de uma estação espacial habitada por uma subclasse de desclassificados também pode ter surgido da pena de Heinlein, para se tornar um clichê absurdo que chegou a alcançar até as séries Babylon 5. Mas Beyruth lida bem com essa parte da trama, e o caótico desenho de Sargaço faz homenagem a várias naves da FC, incluindo aquelas de Star Trek. A HQ investe nas qualidades da cooperação e da luta contra a tirania, e seu final deixa um gancho para complicações futuras, num quinto volume. Já neste ponto, Astronauta é uma série de álbuns vitoriosa dentro do campo dos quadrinhos nacionais de ficção científica. Algo que o próprio Mauricio de Sousa celebra no introdução.

—Roberto Causo

Sem comentários até agora, comente aqui!

Roberto Causo Escreve Sobre o Editor Gumercindo Rocha Dorea

A revista Correio das Artes, suplemento literário do jornal A União, de João Pessoa,, na Paraíba, pediu a Roberto Causo um artigo sobre o editor Gumercindo Rocha Dorea, das Edições GRD, e a sua dedicação à ficção científica. A solicitação foi feita pelo colaborador do Correio das Artes, o cineasta documentarista Claudio Brito, que fez a ponte com o editor André Cananéa. O artigo foi publicado na edição de setembro de 2019, com uma bela arte digital de Domingos Sávio.

 

Arte de capa de Domingos Sávio.

No artigo “Gumercindo Rocha Dorea e a Ficção Científica”, Causo faz um curto esboço biográfico de Dorea, nascido em 1924 em Ilhéus, na Bahia, antes de entrar no assunto ficção científica. A grande colaboração do editor baiano está na coleção Ficção Científica GRD e sua irmã, a Ficção Científica Gigante, as duas publicando, na década de 1960, grandes nomes internacionais do gênero, e a primeira dando espaço a autores nacionais que, juntos, formaram o núcleo da Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira. Um desses autores, o também crítico Fausto Cunha, nomeou-os “Geração GRD” em homenagem a Dorea e em reconhecimento do seu empenho em enraizar a FC entre os brasileiros. Outros nomes importantes publicados por ele são André Carneiro, Álvaro Malheiros, Antonio Olinto, Clóvis Garcia, Dinah Silveira de Queiroz, Guido Wilmar Sassi, Jeronymo Monteiro, Leon Eliachar, Levy Menezes, Lúcia Benedetti, Rubens Teixeira Scavone e Zora Seljan.

Entre os estrangeiros publicados por Dorea estão nomes que se tornaram referência na FC internacional, vistos aqui pela primeira vez: Ray Bradbury, H. P. Lovecraft, C. S. Lewis, Robert A. Heinlein, Clifford D. Simak, James Blish, Kurt Vonnegut e vários outros, incluindo franceses e russos. Alguns dos títulos que Dorea publicou pela primeira vez entre nós foram relançados recentemente pela Editora Aleph, numa demonstração da sua importância e durabilidade como referência.

Além do artigo em questão, a edição da Correio das Artes trouxe uma entrevista com o autor brasileiro de FC e tradutor destacado Braulio Tavares, que discorreu sobre utopia e distopia, o quanto a televisão e o audiovisual estão determinando o que é ficção científica para uma grande parcela do público, e as dificuldades de se traduzir o gênero. Ele atribui o atual boom da FC no Brasil à republicação de clássicos, e cita como importantes para o mercado as editoras Aleph, Devir e Draco. A entrevista menciona as antologias organizadas por ele, e o escritor fecha a entrevista, dada a André Cananéa, falando de como o gênero funciona como um espelho da realidade. A revista apresentou também uma página com recomendações de leitura.

Para receber gratuitamente um arquivo em PDF com a revista Correio das Artes em questão, escreva para http://universogalaxis.com.br/contato-imediato/

Temos 3 comentários, veja e comente aqui

Leituras de Agosto de 2018

 

Em agosto, dobradinhas de livros de Braulio Tavares e Nelson de Oliveira, mas de leitura variada entre eles. Gostei especialmente da biografia de Raymond Chandler, por Tom Williams.

 

Histórias para Lembrar Dormindo, de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 1.ª edição, 2013, 176 páginas. Ilustrações internas de Christiano Menezes. Brochura. Na minha modesta opinião, o miniconto ou flash fiction desfruta de um interesse injustificado no Brasil. A prática se comunica com a crônica, formato de produção de ficção ou não-ficção que também tem aqui prestígio desmedido, chegando a exportar o seu tom, em geral subjetivo, para o conto e até o romance. Além disso, muita gente que vai trás do miniconto carece da habilidade necessária para o acúmulo de efeitos que ele precisa ter pra valer a pena. Sua escrita é mais afinada com a precisão cuidadosa que o poema precisa, do que com os recursos de ambientação, caracterização, narração e diálogos, do conto. Mas aí temos Braulio Tavares, um escritor que possui exatamente essas habilidades. 

Todos os textos deste Histórias para Lembrar Dormindo foram publicados na coluna diária que ele mantém no Jornal da Paraíba e vão de 2.900 a 3.000 toques. São 40 deles distribuídos em duas partes, todos com duas páginas de ilustração feitas por Christiano Menezes, remetendo à ilustração científica. Em quase todos, a prosa precisa requerida, num estilo brilhante e finais surpreendentes sempre bem casados com o curto desenvolvimento. A ponto de o leitor ficar antecipando a rasteira elegante, brutal, inquietante ou irônica que, muitas vezes, revela o fantástico dentro do fantástico. Muitas das histórias possuem um tom mitológico próprio do Nordeste, formando um conjunto particularmente saboroso, enquanto outras são ambientadas em diferentes países. Algumas nos levam a outros universos — e as letras intercaladas na capa sugerem esse elemento dominante, filosófico, da interpenetração do real com o irreal. No limite de três mil toques, Braulio Tavares muitas vezes cria heterotopias que exploram, de modo sugestivo, as incertezas pós-modernistas. Já falei de um outro livro de Braulio Tavares aqui, Sete Monstros Brasileiros, e enxergo esse autor como um dos principais nomes da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira, e um dos melhores escritores em atividade que temos. Eu pessoalmente gostaria de vê-lo escrevendo novelas e romances, mas em Histórias para Lembrar Dormindo você e eu temos 40 exemplos do seu talento inigualável no quadro nacional da ficção especulativa.

 

Arte de capa de Maercio Siqueira.

Peleja de Braulio Tavares com Marco Haurélio, de Braulio Tavares & Marco Haurélio. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2017, 32 páginas. Capa de Maercio Siqueira. Brochura. A vida é muito estranha. Um dia depois de acabar a leitura de Histórias para Lembrar Dormindo, minha esposa Finisia Fideli e eu encontramos Braulio “Brown Leo” Tavares diante do estande da Editora Draco, na 25.º Bienal do Livro de São Paulo. Por pura coincidência. Ele nos levou ao maravilhoso estande da Editora IMEPH e da Câmara Cearense do Livro, dominado por um enorme caminhão que transporta o seu acervo e, no local, transformou-se em um palco para cantadores e artesãos. Braulio, um dos melhores autores brasileiros de ficção científica de todos os tempos, foi nosso guia nesse mundo paralelo que ele habita — o da poesia de cordel e do repente. Conhecemos o novo livro do Braulio, o romance Bandeira Sobrinho: Uma Vida e Alguns Versos (IMEPH, 2017). Fomos apresentados por ele aos poetas Evaristo Geraldo, Rouxinol do Rinaré e Marco Haurélio — este último, seu parceiro num duelo de repentista feito no Facebook e compilado neste livro. “Você que apanhou do Braulio, então?” brinquei com ele. É claro, a prática é menos de disputa e mais de colaboração, e dependendo do intervalo das respostas em verso, feitas nos comentários do Facebook, pode ter sido mais como um round-robin, em que um escritor se compromete a levar adiante um trecho escrito pelo anterior, respeitando suas soluções, antes de repassá-lo a outro ou ao mesmo para uma nova rodada.

A “peleja” começa com os poetas saudando um ao outro e Marco Haurélio perguntando a Braulio o que é o cordel. Segue-se, em sextilhas, definições e elogios à poesia de cordel. Há, nesse ponto, um elemento de saudosismo rural que me agradou, tendo crescido no interior de São Paulo. Segue-se uma alternância de formatos. Na seção em “martelo galopado” (dez versos por estrofe), Ésio Rafael forneceu o mote repetido nos dois versos finais. Em “gemedeira”, as sextilhas têm mote de Rouxinol do Rinaré e se desenvolvem em torno do gemer como padecer ou reclamar, e o conteúdo foi mais de crítica política e social (sobre o Brasil, claro). Em “galope à beira-mar”, os poetas expressam maior erudição e inventividade nas imagens, em dez versos de mais fôlego. No “mote de sete sílabas” também são dez versos, e num mote que celebra o sertanejo. Em “oito pés a quadrão”, oito versos discutem a arte — e aí também evoca-se o clássico e o contemporâneo, tendência de muito cordel por aí. No “martelo alagoano”, os poetas reafirmam a tradição e suas influências individuais. Não há como não admirar essa dupla de artistas da palavra. Na xilogravura de Maercio Siqueira, Braulio é o da esquerda e Marco o da direita.

 

Arte de capa de Maercio Siqueira.

Os Curumins e as Estrelas, de Evaristo Geraldo. Alto Santo, CE: Edição do autor, abril de 2018, 8 páginas. Capa de Maercio Siqueira. Folheto. Braulio nos recomendou os folhetos de Os Domínios do Rei Peste (2015), de Evaristo Geraldo, e A Sombra do Corvo (2017), de Rouxinol do Rinaré, por adaptarem para o estilo poético do cordel dois contos de Edgar Allan Poe. Mas também adquiri A Árvore de Todos os Frutos (Lenda Indígena), de Geraldo, e este Os Curumins e as Estrelas, de Rouxinol, pelo meu interesse pelo tema indígena brasileiro. Há um cruzamento temático aí, não, um que também cheira a colaboração entre dois poetas diferentes? Afinal, quais são as chances?…

O texto é bem curto e declaradamente adapta uma lenda indígena, em que um bando de curumins roubam o fubá que as índias tinham preparado pra receber seus maridos de volta da pesca. Na hora de enfrentar o castigo, eles fogem e são perseguidos por homens e mulheres, até que um bando de tuiuiús fica com dó dos safados e os leva para o céu, onde se instalam em bases permanentes. Lá, eles só têm olhos para a Terra, talvez de saudade… Os olhos brilhantes se transformam, com o tempo, no céu estrelado, de modo que se trata de um mito de criação. A narrativa versificada de Evaristo é a tradicional sextilha e ela se realiza de modo muito objetivo e escorreito, com um padrão de três rimas por estrofe, bem marcado em cima de uma mesma sílaba.

 

Raymond Chandler: Uma Vida (A Mysterious Something in the Light: The Life of Raymond Chandler), de Tom Williams. São Paulo: Editora Benvirá, 2014 (2012), 456 páginas. Tradução de Fabio Storino. Brochura. Eu não leio muitas biografias literárias, embora tenha adquirido há anos uma de John Steinbeck e outra de Joyce Carol Oates. A exceção são biografias ou livros de memórias que abordam dois autores em particular: Ernest Hemingway e Raymond Chandler. Quanto a Chandler, já li aquela escrita por Tom Hiney, Raymond Chandler: A Biography, e todos os volumes de cartas e anotações que consegui adquirir: Raymond Chandler Speaking, editado por Dorothy Gardiner & Kathrine Sorley Walker, e The Raymond Chandler Papers: Selected Letters and Nonfiction, 1909-1959, editado por Tom Hiney & Frank McShane.

Para mim, Chandler é uma fonte muito arguta, divertida e incisiva, especialmente em suas cartas, de comentários sobre a relação entre a ficção de gênero e o mainstream literário. Seu credo literário é único, ao combinar com muita personalidade o ethos do escritor pulp e do escritor mainstream. É claro, antes de mais nada sou um fã dos seus romances e contos de ficção de detetive, que descobri durante a adolescência.

Pouca gente sabe ou lembra que Chandler escreveu histórias de fantasia, uma delas publicada na revista Unknown do editor John W. Campbell, Jr. Uma das coisas que este livro sedimenta é que o escritor considerou se voltar para o gênero com mais constância. Além disso, a ansiedade em obter reconhecimento literário teria sido mais forte na vida do escritor, do que as outras biografias deram a entender. A outra contribuição do inglês Williams é se focar mais na relação dele com a Inglaterra (Chandler nasceu nos EUA mas migrou com a mãe para a Inglaterra ainda criança, antes de retornar definitivamente aos EUA para trabalhar). A situação do escritor nos Estados Unidos também é muito bem tratada por ele, incluindo alguns pontos que Hiney aborda pouco, como o background familiar e pessoal da esposa de Chandler, Cissy. E se a memória não falha, ele também discorre mais sobre os anos de velhice e viuvez de Chandler, com o ápice do alcoolismo e do comportamento presunçoso e patético. Também se a memória não falha, em Hiney Chandler emerge como alguém que tentava elevar a ficção de crime e que, se por um lado tem preocupações de estilo e ansiedades que o aproximam do modernismo, por outro faz uma crítica do modernismo literário e do seu intelectualismo. Já em Williams, Chandler surge, em traços trágicos, como presa do desejo de reconhecimento literário. Adivinha com qual versão eu me identifico mais.

 

Conjurações & Terra Seca, de Paola Siviero. São Paulo: Edição de autor, 1.ª edição, 2015, 20 páginas. Folheto. Ainda investigando a relação entre a fantasia e a matéria sertaneja expressa também na poesia de cordel, eu retornei a este conto publicado como um folheto, escrito por Paola Siviero. Mesmo porque a autora encontrou um novo lar na jovem editora Dame Blanche, de São Paulo, de modo que, felizmente, o seu projeto Agreste Fantástico terá continuidade — com o livro O Auto da Maga Josefa. Este primeiro episódio é uma fantasia heroica com uma ambientação historicamente indeterminada, com uma dupla de heróis: a feiticeira Josefa, filha do Dito Cujo, e o esgrimista da peixeira, Toninho. O texto é em prosa e a autora habilmente combina um bom conhecimento dos leitmotifs da fantasia, com um humor centrado na adaptação deles aos tipos, ambientes e modos de expressão sertanejos. Certamente, o cordel deve ter um papel de intermediação desses aspectos regionais, e no final do livreto Toninho ensaia um repente.

É bom lembrar (tudo tem história!), que esse veio de fusões de conteúdos e tradições literárias tem precedente nas novelas A Tisana (1989) e O Pão de Cará (1995), de Roberto de Mello e Souza, que levam as narrativas arturianas de Tristão e Isolda e Percival para o sertão, e no conto “O Lugar do Mundo” (1984), de Daniel Fresnot, em que um duelo de repentistas se transmuta em duelo de magos. Paola Siviero tem nos seus heróis uma dupla de matadores de monstros e demônios, assim como Gerard van Oost & Oludara, da série A Bandeira do Elefante e da Arara, de Christopher Kastensmidt, ou da dupla Adoulla Makhslood & Raseed, de Saladin Ahmed no romance Throne of Crescent Moon (2012). Mas quem Josefa & Toninho perseguem é um cigano (o feiticeiro da história) que invocara um chupa-cabras, e depois

“um zumbi cangaceiro, um demônio d’água no São Francisco e uma assombração de corno — dos fantasmas, os mais ferozes — que castrou dois Don Juans logo na saída do forró.” —Paola Siviero, Conjurações & Terra Seca.

Daí se vê que o humor é uma das delícias da narrativa, escrita com precisão e simultânea desenvoltura. Além disso, há uma certa tensão entre a dupla de heróis, com ele a fim dela, mas sem achar brecha na casca grossa de perigo e independência, da filha do demo. Eu não sei como O Auto da Maga Josefa vai sair (por enquanto, só vi o folhetinho com um excerto), mas vou atrás. É muito bom saber que Paola Siviero continua mantendo a essa vereda aberta dentro da fantasia brasileira.

 


Sabixões & Sabixinhos: Philosophus Brasilis
, de Sofia Soft & Teo Adorno. São Paulo: Alink Editora, outono de 2018, 104 páginas. Livro de bolso.
Nelson de Oliveira faz dois dos seus heteronômios dançarem um tango neste livro. “Sofia Soft” cuida dos textos aforísticos e irônicos, enquanto “Teo Adorno” faz os desenhos muito estilizados de animais humanizados e outras figuras como as flechas que aparecem na capa. Esse mesmo material tem aparecido há alguns anos no perfil “Paisagem Personas” no Facebook, e é reunido aqui pela primeira vez numa bonita edição, pra você colocar ao lado de livros das criações do Henfil, de Quino ou de Charles Schultz. Tá nesse nível. Há muitos aforismos e opiniões jocosas sobre o brasileiro, o amor, a política, a justiça, a ciência e a ignorância — ainda que não de um modo específico ou contextualizado. Jogos de palavras iluminam sentidos presentes e ausentes, em lugares-comuns bem brasileiros. Os meus favoritos são os momentos mais filosóficos, em que os sentidos surgem de interações surpreendentes. Algumas falas e figuras aparecem de ponta cabeça na página, reforçando o caráter inquietante, heterodoxo e divertido do livro. Embora a ironia impere, há espaço para algum lirismo, como no exemplo abaixo:

Olhai os delírios do campo:

a vertigem da vida

— o amor —

é uma estrela maciça

incrustada

no breve intervalo

entre a genialidade

e a loucura dos olhos

de um bem-te-vi.

—Sofia Soft & Teo Adorno. Sabixões & Sabixinhos.

 

Às Moscas, Armas! de Nelson de Oliveira. São Paulo: Alink Editora, 2.ª edição, 2018 [2000], 118 páginas. Livro de bolso. Comecei com contos curtos, e termino com contos curtos… Se bem que algumas das histórias deste livro de Nelson de Oliveira têm uma extensão maior. De qualquer modo, este é a segunda leitura do mês que agride minha prevenção contra o miniconto ou a flash fiction.

Às Moscas, Armas! já havia aparecido no ano 2000 como e-book, mas com uma tiragem de 50 exemplares em papel — que hoje deve ser item de colecionador. Em 118 páginas, apresenta 24 textos diferentes, de modo que aí já se tem uma ideia de como predominam as narrativas breves. Assim como Braulio Tavares, Nelson de Oliveira encontra espaço para expressar a sua erudição e inteligência. A maioria dos textos, porém, afasta-se do tom da crônica e fazem da perspectiva, da reiteração e do diálogo ríspido as ferramentas de um texto mais cortante e incisivo. Nem todos são exatamente curtos. “Ah!” usa oito páginas e diálogos não marcados para narrar uma bizarra “contaminação” que transforma pessoas em bolhas luminosas flutuantes, um recurso típico do realismo mágico. A maior parte dos contos de fato pertence ao realismo mágico ou ao conto fantástico, tendências que marcam o autor, e até mesmo a sua persona voltada para a FC e a literatura juvenil, “Luis Bras”. Com três páginas, “Jacqueline in the Box” oferece uma metáfora da alienação da mulher causada pela violência sexual masculina, em torno da figura banal da caixa de papelão. Do mesmo tamanho, “Górgona” ousadamente se realiza pela linguagem chula masculina. “Ninfas”, uma narrativa de parágrafo único, centra-se nas impressões confusas de um casal em fuga, num cenário urbano e de motivações desconhecidas. “Inveja”, um dos meus favoritos, é um vertiginoso exposé dos bastidores da vida literária, entre o Escritor Que Tinha ou Que Não Tinha Boas Ideias (tudo assim, em iniciais maiúsculas), o Crítico Literário do Jornal do Momento, e outras figuras orbitantes dessa dinâmica. Já “O Homem Só”, de nove páginas, belisca os homens da minha faixa etária e formação, na sua sexualidade. Desenvolvido só com diálogos, “Quinze Minutos” brinca com o ir e vir das pessoas nos seus trabalhos de escritório. Na maioria das situações, tem-se no livro o desejo modernista de expor os azares da modernidade — presentes também na obra dos contistas experimentais Braulio Tavares e Ivan Carlos Regina. Ainda sobre Às Moscas, Armas!, Nelson aponta o conto “Lua, 1969”, como o momento em que a persona de Luis Bras começa a emergir. Com dez páginas e narrado em primeira pessoa no tempo presente, seu tom é mais solene e a situação enigmática é surpreendentemente rica: o narrador faz parte de uma dupla de seres invisíveis que assiste a certo grupo de pessoas velando uma menina moribunda em uma mansão decaída. Da TV que, supostamente, exibe a chegada da Apollo 11 à Lua, uma luz estranha, primal e mítica surge como um raio transportador que permite a visita de uma segunda categoria de seres não humanos, associados à Lua. Aqui, há uma espécie de caminho inverso, muito trilhado pela FC e pela fantasia contemporânea, de iluminar o cotidiano com uma luz fantástica, maravilhosa. Há até mesmo um traço de New Wave, em que eventos subjetivos ou culturais transformam-se em fatos concretos. Sob o livro e esse conto em particular, Nelson me escreveu:

“São contos do final do século passado, mas em pelo menos um deles, ‘Lua, 1969’, hoje eu já consigo notar a iminência de minha guinada pra FC. Esse continho de realismo mágico tem algo de FC esotérica, na linha do Shikasta [de Doris Lessing], por exemplo.” —Nelson de Oliveira.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Daryl Mandryk.

Mass Effect Omnibus Volume 1, de Mac Walters, Patrick Weekes, John Dombrow & Sylvia Feketekuty. Milwalkie, OR: Dark Horse Books, novembro de 2016, 400 páginas. Arte de capa de Daryl Mandryk. Trade paperback. Omnibus” é uma reunião de vários livros em um único volume — no Brasil, Turno da Noite, de André Vianco, e Trilogia Padrões de Contato, de Jorge Luiz Calife, são exemplos. Este aqui eu comprei num bota-fora da Saraiva do Shopping Eldorado, em São Paulo. Nele, estão quatro minisséries do universo expandido, em quadrinhos, do videogame Mass Effect, produzido pela empresa canadense BioWare. Tanta gente trabalhou nessas minisséries, que só mencionei aí em cima os caras que bolaram as histórias. Mesmo porque, na hora de montarem o omnibus, a Dark Horse deixou alguns créditos de fora. As HQs são: Redemption, Evolution, Invasion e Homeworlds.

Não jogo videogames de console (atualmente, só jogo o Tadaroids, criado por Vagner Vargas aqui no GalAxis!) mas tento acompanhar alguma coisa desses que são space operas: Mass Effect, Halo, Destiny. Deste game em particular, há alguns anos li um paperback chamado Mass Effect: Ascension, de Drew Karpyshyn. Este compêndio de HQs da franquia estão sob a premissa de que o Comandante Shepard, o principal protagonista do game, está morto e diversos grupos lutam para se apoderar do seu corpo. A telecineta Liara T’Soni, a alienígena mais atraente da franquia (na bela capa de Mandryk, ao lado), chega ao asteroide/habitat espacial Omega para impedir que o Colecionador fique com os restos do herói. O sidekick de Liara é o malandro E.T. Feron, de outra espécie. Aria, a implacável comandante de Omega, é da mesma espécie de Liara, e não quer saber de encrenca na sua estação. O núcleo da história é a tensão entre Liara e Feron, de qualquer modo. A segunda história é interessante não apenas por apresentar uma arte superior, mas por oferecer uma narrativa de origem do “Illusive Man”, um chauvinista humano e um dos principais antagonistas do universo de Mass Effect. É narrativa mais dramática e moralmente ambígua, mas na qual não falta o impertinente clichê da space opera atual, a figura do zumbi. Aria e Omega retornam na história seguinte, quando o asteroide/estação espacial é invadida por uma força militar ou para-, comandada pelo erudito Oleg Petrovsky e enviada pela Cerberus, a organização secreta do Illusive Man, sob pretexto de defendê-la de um contingente de reapers, a ameaça à galáxia que a franquia apresenta. Centrada na relação entre Aria e Petrovsky, o episódio traz alianças momentâneas, traições, capturas, fugas e até batalhas espaciais. E, no todo, a melhor arte do livro todo. O fuzileiro fisiculturista James Vega é o centro da narrativa seguinte, e a alienígena Tali’Zorah nar Rayya no da próxima. Garrus Vakarian, outro E.T., e Liara T’soni fecham essa galeria presente em Homeworlds. Enfim, o omnibus é fechado por duas histórias relativamente fracas e avulsas, protagonizadas por Aria e o investigador Capitão Bailey. No geral, gostei do mergulho no universo de Mass Effect que o livro faculta. As HQs atendem ao visual determinado pela pré-produção do game, de modo que sua coerência sacrifica algo da variação e inventividade, de uma HQ para a outra. A arte de Daryl Mandryk na capa tem todas as virtudes das artes digitais da atualidade, vinculadas aos videogames, e as capas das minisséries, reproduzidas no interior, via de regra também expressam o encanto e o exotismo da space opera.

—Roberto Causo

Sem comentários até agora, comente aqui!