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Leituras de Agosto de 2018

 

Em agosto, dobradinhas de livros de Braulio Tavares e Nelson de Oliveira, mas de leitura variada entre eles. Gostei especialmente da biografia de Raymond Chandler, por Tom Williams.

 

Histórias para Lembrar Dormindo, de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 1.ª edição, 2013, 176 páginas. Ilustrações internas de Christiano Menezes. Brochura. Na minha modesta opinião, o miniconto ou flash fiction desfruta de um interesse injustificado no Brasil. A prática se comunica com a crônica, formato de produção de ficção ou não-ficção que também tem aqui prestígio desmedido, chegando a exportar o seu tom, em geral subjetivo, para o conto e até o romance. Além disso, muita gente que vai trás do miniconto carece da habilidade necessária para o acúmulo de efeitos que ele precisa ter pra valer a pena. Sua escrita é mais afinada com a precisão cuidadosa que o poema precisa, do que com os recursos de ambientação, caracterização, narração e diálogos, do conto. Mas aí temos Braulio Tavares, um escritor que possui exatamente essas habilidades. 

Todos os textos deste Histórias para Lembrar Dormindo foram publicados na coluna diária que ele mantém no Jornal da Paraíba e vão de 2.900 a 3.000 toques. São 40 deles distribuídos em duas partes, todos com duas páginas de ilustração feitas por Christiano Menezes, remetendo à ilustração científica. Em quase todos, a prosa precisa requerida, num estilo brilhante e finais surpreendentes sempre bem casados com o curto desenvolvimento. A ponto de o leitor ficar antecipando a rasteira elegante, brutal, inquietante ou irônica que, muitas vezes, revela o fantástico dentro do fantástico. Muitas das histórias possuem um tom mitológico próprio do Nordeste, formando um conjunto particularmente saboroso, enquanto outras são ambientadas em diferentes países. Algumas nos levam a outros universos — e as letras intercaladas na capa sugerem esse elemento dominante, filosófico, da interpenetração do real com o irreal. No limite de três mil toques, Braulio Tavares muitas vezes cria heterotopias que exploram, de modo sugestivo, as incertezas pós-modernistas. Já falei de um outro livro de Braulio Tavares aqui, Sete Monstros Brasileiros, e enxergo esse autor como um dos principais nomes da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira, e um dos melhores escritores em atividade que temos. Eu pessoalmente gostaria de vê-lo escrevendo novelas e romances, mas em Histórias para Lembrar Dormindo você e eu temos 40 exemplos do seu talento inigualável no quadro nacional da ficção especulativa.

 

Arte de capa de Maercio Siqueira.

Peleja de Braulio Tavares com Marco Haurélio, de Braulio Tavares & Marco Haurélio. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2017, 32 páginas. Capa de Maercio Siqueira. Brochura. A vida é muito estranha. Um dia depois de acabar a leitura de Histórias para Lembrar Dormindo, minha esposa Finisia Fideli e eu encontramos Braulio “Brown Leo” Tavares diante do estande da Editora Draco, na 25.º Bienal do Livro de São Paulo. Por pura coincidência. Ele nos levou ao maravilhoso estande da Editora IMEPH e da Câmara Cearense do Livro, dominado por um enorme caminhão que transporta o seu acervo e, no local, transformou-se em um palco para cantadores e artesãos. Braulio, um dos melhores autores brasileiros de ficção científica de todos os tempos, foi nosso guia nesse mundo paralelo que ele habita — o da poesia de cordel e do repente. Conhecemos o novo livro do Braulio, o romance Bandeira Sobrinho: Uma Vida e Alguns Versos (IMEPH, 2017). Fomos apresentados por ele aos poetas Evaristo Geraldo, Rouxinol do Rinaré e Marco Haurélio — este último, seu parceiro num duelo de repentista feito no Facebook e compilado neste livro. “Você que apanhou do Braulio, então?” brinquei com ele. É claro, a prática é menos de disputa e mais de colaboração, e dependendo do intervalo das respostas em verso, feitas nos comentários do Facebook, pode ter sido mais como um round-robin, em que um escritor se compromete a levar adiante um trecho escrito pelo anterior, respeitando suas soluções, antes de repassá-lo a outro ou ao mesmo para uma nova rodada.

A “peleja” começa com os poetas saudando um ao outro e Marco Haurélio perguntando a Braulio o que é o cordel. Segue-se, em sextilhas, definições e elogios à poesia de cordel. Há, nesse ponto, um elemento de saudosismo rural que me agradou, tendo crescido no interior de São Paulo. Segue-se uma alternância de formatos. Na seção em “martelo galopado” (dez versos por estrofe), Ésio Rafael forneceu o mote repetido nos dois versos finais. Em “gemedeira”, as sextilhas têm mote de Rouxinol do Rinaré e se desenvolvem em torno do gemer como padecer ou reclamar, e o conteúdo foi mais de crítica política e social (sobre o Brasil, claro). Em “galope à beira-mar”, os poetas expressam maior erudição e inventividade nas imagens, em dez versos de mais fôlego. No “mote de sete sílabas” também são dez versos, e num mote que celebra o sertanejo. Em “oito pés a quadrão”, oito versos discutem a arte — e aí também evoca-se o clássico e o contemporâneo, tendência de muito cordel por aí. No “martelo alagoano”, os poetas reafirmam a tradição e suas influências individuais. Não há como não admirar essa dupla de artistas da palavra. Na xilogravura de Maercio Siqueira, Braulio é o da esquerda e Marco o da direita.

 

Arte de capa de Maercio Siqueira.

Os Curumins e as Estrelas, de Evaristo Geraldo. Alto Santo, CE: Edição do autor, abril de 2018, 8 páginas. Capa de Maercio Siqueira. Folheto. Braulio nos recomendou os folhetos de Os Domínios do Rei Peste (2015), de Evaristo Geraldo, e A Sombra do Corvo (2017), de Rouxinol do Rinaré, por adaptarem para o estilo poético do cordel dois contos de Edgar Allan Poe. Mas também adquiri A Árvore de Todos os Frutos (Lenda Indígena), de Geraldo, e este Os Curumins e as Estrelas, de Rouxinol, pelo meu interesse pelo tema indígena brasileiro. Há um cruzamento temático aí, não, um que também cheira a colaboração entre dois poetas diferentes? Afinal, quais são as chances?…

O texto é bem curto e declaradamente adapta uma lenda indígena, em que um bando de curumins roubam o fubá que as índias tinham preparado pra receber seus maridos de volta da pesca. Na hora de enfrentar o castigo, eles fogem e são perseguidos por homens e mulheres, até que um bando de tuiuiús fica com dó dos safados e os leva para o céu, onde se instalam em bases permanentes. Lá, eles só têm olhos para a Terra, talvez de saudade… Os olhos brilhantes se transformam, com o tempo, no céu estrelado, de modo que se trata de um mito de criação. A narrativa versificada de Evaristo é a tradicional sextilha e ela se realiza de modo muito objetivo e escorreito, com um padrão de três rimas por estrofe, bem marcado em cima de uma mesma sílaba.

 

Raymond Chandler: Uma Vida (A Mysterious Something in the Light: The Life of Raymond Chandler), de Tom Williams. São Paulo: Editora Benvirá, 2014 (2012), 456 páginas. Tradução de Fabio Storino. Brochura. Eu não leio muitas biografias literárias, embora tenha adquirido há anos uma de John Steinbeck e outra de Joyce Carol Oates. A exceção são biografias ou livros de memórias que abordam dois autores em particular: Ernest Hemingway e Raymond Chandler. Quanto a Chandler, já li aquela escrita por Tom Hiney, Raymond Chandler: A Biography, e todos os volumes de cartas e anotações que consegui adquirir: Raymond Chandler Speaking, editado por Dorothy Gardiner & Kathrine Sorley Walker, e The Raymond Chandler Papers: Selected Letters and Nonfiction, 1909-1959, editado por Tom Hiney & Frank McShane.

Para mim, Chandler é uma fonte muito arguta, divertida e incisiva, especialmente em suas cartas, de comentários sobre a relação entre a ficção de gênero e o mainstream literário. Seu credo literário é único, ao combinar com muita personalidade o ethos do escritor pulp e do escritor mainstream. É claro, antes de mais nada sou um fã dos seus romances e contos de ficção de detetive, que descobri durante a adolescência.

Pouca gente sabe ou lembra que Chandler escreveu histórias de fantasia, uma delas publicada na revista Unknown do editor John W. Campbell, Jr. Uma das coisas que este livro sedimenta é que o escritor considerou se voltar para o gênero com mais constância. Além disso, a ansiedade em obter reconhecimento literário teria sido mais forte na vida do escritor, do que as outras biografias deram a entender. A outra contribuição do inglês Williams é se focar mais na relação dele com a Inglaterra (Chandler nasceu nos EUA mas migrou com a mãe para a Inglaterra ainda criança, antes de retornar definitivamente aos EUA para trabalhar). A situação do escritor nos Estados Unidos também é muito bem tratada por ele, incluindo alguns pontos que Hiney aborda pouco, como o background familiar e pessoal da esposa de Chandler, Cissy. E se a memória não falha, ele também discorre mais sobre os anos de velhice e viuvez de Chandler, com o ápice do alcoolismo e do comportamento presunçoso e patético. Também se a memória não falha, em Hiney Chandler emerge como alguém que tentava elevar a ficção de crime e que, se por um lado tem preocupações de estilo e ansiedades que o aproximam do modernismo, por outro faz uma crítica do modernismo literário e do seu intelectualismo. Já em Williams, Chandler surge, em traços trágicos, como presa do desejo de reconhecimento literário. Adivinha com qual versão eu me identifico mais.

 

Conjurações & Terra Seca, de Paola Siviero. São Paulo: Edição de autor, 1.ª edição, 2015, 20 páginas. Folheto. Ainda investigando a relação entre a fantasia e a matéria sertaneja expressa também na poesia de cordel, eu retornei a este conto publicado como um folheto, escrito por Paola Siviero. Mesmo porque a autora encontrou um novo lar na jovem editora Dame Blanche, de São Paulo, de modo que, felizmente, o seu projeto Agreste Fantástico terá continuidade — com o livro O Auto da Maga Josefa. Este primeiro episódio é uma fantasia heroica com uma ambientação historicamente indeterminada, com uma dupla de heróis: a feiticeira Josefa, filha do Dito Cujo, e o esgrimista da peixeira, Toninho. O texto é em prosa e a autora habilmente combina um bom conhecimento dos leitmotifs da fantasia, com um humor centrado na adaptação deles aos tipos, ambientes e modos de expressão sertanejos. Certamente, o cordel deve ter um papel de intermediação desses aspectos regionais, e no final do livreto Toninho ensaia um repente.

É bom lembrar (tudo tem história!), que esse veio de fusões de conteúdos e tradições literárias tem precedente nas novelas A Tisana (1989) e O Pão de Cará (1995), de Roberto de Mello e Souza, que levam as narrativas arturianas de Tristão e Isolda e Percival para o sertão, e no conto “O Lugar do Mundo” (1984), de Daniel Fresnot, em que um duelo de repentistas se transmuta em duelo de magos. Paola Siviero tem nos seus heróis uma dupla de matadores de monstros e demônios, assim como Gerard van Oost & Oludara, da série A Bandeira do Elefante e da Arara, de Christopher Kastensmidt, ou da dupla Adoulla Makhslood & Raseed, de Saladin Ahmed no romance Throne of Crescent Moon (2012). Mas quem Josefa & Toninho perseguem é um cigano (o feiticeiro da história) que invocara um chupa-cabras, e depois

“um zumbi cangaceiro, um demônio d’água no São Francisco e uma assombração de corno — dos fantasmas, os mais ferozes — que castrou dois Don Juans logo na saída do forró.” —Paola Siviero, Conjurações & Terra Seca.

Daí se vê que o humor é uma das delícias da narrativa, escrita com precisão e simultânea desenvoltura. Além disso, há uma certa tensão entre a dupla de heróis, com ele a fim dela, mas sem achar brecha na casca grossa de perigo e independência, da filha do demo. Eu não sei como O Auto da Maga Josefa vai sair (por enquanto, só vi o folhetinho com um excerto), mas vou atrás. É muito bom saber que Paola Siviero continua mantendo a essa vereda aberta dentro da fantasia brasileira.

 


Sabixões & Sabixinhos: Philosophus Brasilis
, de Sofia Soft & Teo Adorno. São Paulo: Alink Editora, outono de 2018, 104 páginas. Livro de bolso.
Nelson de Oliveira faz dois dos seus heteronômios dançarem um tango neste livro. “Sofia Soft” cuida dos textos aforísticos e irônicos, enquanto “Teo Adorno” faz os desenhos muito estilizados de animais humanizados e outras figuras como as flechas que aparecem na capa. Esse mesmo material tem aparecido há alguns anos no perfil “Paisagem Personas” no Facebook, e é reunido aqui pela primeira vez numa bonita edição, pra você colocar ao lado de livros das criações do Henfil, de Quino ou de Charles Schultz. Tá nesse nível. Há muitos aforismos e opiniões jocosas sobre o brasileiro, o amor, a política, a justiça, a ciência e a ignorância — ainda que não de um modo específico ou contextualizado. Jogos de palavras iluminam sentidos presentes e ausentes, em lugares-comuns bem brasileiros. Os meus favoritos são os momentos mais filosóficos, em que os sentidos surgem de interações surpreendentes. Algumas falas e figuras aparecem de ponta cabeça na página, reforçando o caráter inquietante, heterodoxo e divertido do livro. Embora a ironia impere, há espaço para algum lirismo, como no exemplo abaixo:

Olhai os delírios do campo:

a vertigem da vida

— o amor —

é uma estrela maciça

incrustada

no breve intervalo

entre a genialidade

e a loucura dos olhos

de um bem-te-vi.

—Sofia Soft & Teo Adorno. Sabixões & Sabixinhos.

 

Às Moscas, Armas! de Nelson de Oliveira. São Paulo: Alink Editora, 2.ª edição, 2018 [2000], 118 páginas. Livro de bolso. Comecei com contos curtos, e termino com contos curtos… Se bem que algumas das histórias deste livro de Nelson de Oliveira têm uma extensão maior. De qualquer modo, este é a segunda leitura do mês que agride minha prevenção contra o miniconto ou a flash fiction.

Às Moscas, Armas! já havia aparecido no ano 2000 como e-book, mas com uma tiragem de 50 exemplares em papel — que hoje deve ser item de colecionador. Em 118 páginas, apresenta 24 textos diferentes, de modo que aí já se tem uma ideia de como predominam as narrativas breves. Assim como Braulio Tavares, Nelson de Oliveira encontra espaço para expressar a sua erudição e inteligência. A maioria dos textos, porém, afasta-se do tom da crônica e fazem da perspectiva, da reiteração e do diálogo ríspido as ferramentas de um texto mais cortante e incisivo. Nem todos são exatamente curtos. “Ah!” usa oito páginas e diálogos não marcados para narrar uma bizarra “contaminação” que transforma pessoas em bolhas luminosas flutuantes, um recurso típico do realismo mágico. A maior parte dos contos de fato pertence ao realismo mágico ou ao conto fantástico, tendências que marcam o autor, e até mesmo a sua persona voltada para a FC e a literatura juvenil, “Luis Bras”. Com três páginas, “Jacqueline in the Box” oferece uma metáfora da alienação da mulher causada pela violência sexual masculina, em torno da figura banal da caixa de papelão. Do mesmo tamanho, “Górgona” ousadamente se realiza pela linguagem chula masculina. “Ninfas”, uma narrativa de parágrafo único, centra-se nas impressões confusas de um casal em fuga, num cenário urbano e de motivações desconhecidas. “Inveja”, um dos meus favoritos, é um vertiginoso exposé dos bastidores da vida literária, entre o Escritor Que Tinha ou Que Não Tinha Boas Ideias (tudo assim, em iniciais maiúsculas), o Crítico Literário do Jornal do Momento, e outras figuras orbitantes dessa dinâmica. Já “O Homem Só”, de nove páginas, belisca os homens da minha faixa etária e formação, na sua sexualidade. Desenvolvido só com diálogos, “Quinze Minutos” brinca com o ir e vir das pessoas nos seus trabalhos de escritório. Na maioria das situações, tem-se no livro o desejo modernista de expor os azares da modernidade — presentes também na obra dos contistas experimentais Braulio Tavares e Ivan Carlos Regina. Ainda sobre Às Moscas, Armas!, Nelson aponta o conto “Lua, 1969”, como o momento em que a persona de Luis Bras começa a emergir. Com dez páginas e narrado em primeira pessoa no tempo presente, seu tom é mais solene e a situação enigmática é surpreendentemente rica: o narrador faz parte de uma dupla de seres invisíveis que assiste a certo grupo de pessoas velando uma menina moribunda em uma mansão decaída. Da TV que, supostamente, exibe a chegada da Apollo 11 à Lua, uma luz estranha, primal e mítica surge como um raio transportador que permite a visita de uma segunda categoria de seres não humanos, associados à Lua. Aqui, há uma espécie de caminho inverso, muito trilhado pela FC e pela fantasia contemporânea, de iluminar o cotidiano com uma luz fantástica, maravilhosa. Há até mesmo um traço de New Wave, em que eventos subjetivos ou culturais transformam-se em fatos concretos. Sob o livro e esse conto em particular, Nelson me escreveu:

“São contos do final do século passado, mas em pelo menos um deles, ‘Lua, 1969’, hoje eu já consigo notar a iminência de minha guinada pra FC. Esse continho de realismo mágico tem algo de FC esotérica, na linha do Shikasta [de Doris Lessing], por exemplo.” —Nelson de Oliveira.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Daryl Mandryk.

Mass Effect Omnibus Volume 1, de Mac Walters, Patrick Weekes, John Dombrow & Sylvia Feketekuty. Milwalkie, OR: Dark Horse Books, novembro de 2016, 400 páginas. Arte de capa de Daryl Mandryk. Trade paperback. Omnibus” é uma reunião de vários livros em um único volume — no Brasil, Turno da Noite, de André Vianco, e Trilogia Padrões de Contato, de Jorge Luiz Calife, são exemplos. Este aqui eu comprei num bota-fora da Saraiva do Shopping Eldorado, em São Paulo. Nele, estão quatro minisséries do universo expandido, em quadrinhos, do videogame Mass Effect, produzido pela empresa canadense BioWare. Tanta gente trabalhou nessas minisséries, que só mencionei aí em cima os caras que bolaram as histórias. Mesmo porque, na hora de montarem o omnibus, a Dark Horse deixou alguns créditos de fora. As HQs são: Redemption, Evolution, Invasion e Homeworlds.

Não jogo videogames de console (atualmente, só jogo o Tadaroids, criado por Vagner Vargas aqui no GalAxis!) mas tento acompanhar alguma coisa desses que são space operas: Mass Effect, Halo, Destiny. Deste game em particular, há alguns anos li um paperback chamado Mass Effect: Ascension, de Drew Karpyshyn. Este compêndio de HQs da franquia estão sob a premissa de que o Comandante Shepard, o principal protagonista do game, está morto e diversos grupos lutam para se apoderar do seu corpo. A telecineta Liara T’Soni, a alienígena mais atraente da franquia (na bela capa de Mandryk, ao lado), chega ao asteroide/habitat espacial Omega para impedir que o Colecionador fique com os restos do herói. O sidekick de Liara é o malandro E.T. Feron, de outra espécie. Aria, a implacável comandante de Omega, é da mesma espécie de Liara, e não quer saber de encrenca na sua estação. O núcleo da história é a tensão entre Liara e Feron, de qualquer modo. A segunda história é interessante não apenas por apresentar uma arte superior, mas por oferecer uma narrativa de origem do “Illusive Man”, um chauvinista humano e um dos principais antagonistas do universo de Mass Effect. É narrativa mais dramática e moralmente ambígua, mas na qual não falta o impertinente clichê da space opera atual, a figura do zumbi. Aria e Omega retornam na história seguinte, quando o asteroide/estação espacial é invadida por uma força militar ou para-, comandada pelo erudito Oleg Petrovsky e enviada pela Cerberus, a organização secreta do Illusive Man, sob pretexto de defendê-la de um contingente de reapers, a ameaça à galáxia que a franquia apresenta. Centrada na relação entre Aria e Petrovsky, o episódio traz alianças momentâneas, traições, capturas, fugas e até batalhas espaciais. E, no todo, a melhor arte do livro todo. O fuzileiro fisiculturista James Vega é o centro da narrativa seguinte, e a alienígena Tali’Zorah nar Rayya no da próxima. Garrus Vakarian, outro E.T., e Liara T’soni fecham essa galeria presente em Homeworlds. Enfim, o omnibus é fechado por duas histórias relativamente fracas e avulsas, protagonizadas por Aria e o investigador Capitão Bailey. No geral, gostei do mergulho no universo de Mass Effect que o livro faculta. As HQs atendem ao visual determinado pela pré-produção do game, de modo que sua coerência sacrifica algo da variação e inventividade, de uma HQ para a outra. A arte de Daryl Mandryk na capa tem todas as virtudes das artes digitais da atualidade, vinculadas aos videogames, e as capas das minisséries, reproduzidas no interior, via de regra também expressam o encanto e o exotismo da space opera.

—Roberto Causo

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Leituras de janeiro de 2017

Janeiro foi um mês de muitas leituras interessantes e variadas para mim. Partilho algumas anotações sobre os livros cuja leitura completei no primeiro mês de 2017.

 

Trópicos Utópicos, de Eduardo Giannetti. São Paulo: Companhia das Letras, 1.ª edição, 2016, 210 páginas. Capa dura. O economista e intelectual Eduardo Giannetti deu uma entrevista para a jornalista Miriam Leitão na GloboNews mencionando este livro, que procurei imediatamente por tratar daquilo que o autor chama de “utopia brasileira”. Me pareceu tocar o meu conceito de “sonho brasileiro”, que explorei pontualmente em vários textos diferentes — a noção de que se pode vir de qualquer parte do mundo e encontrar aqui uma vida simples e descomplicada, em contato com a natureza e sem divisões étnicas, religiosas e ideológicas marcantes. Tem, é claro, o sonho americano como contraponto, e Giannetti também explora a versão ianque (que se pode vir aos EUA vindo de qualquer parte do mundo e encontrar lá a fama e a fortuna) como contraponto da sua utopia brasileira.

Giannetti é muito lúcido e erudito ao discutir as mazelas modernas, sem cair na visão “apocalíptica” do modernismo/pós-modernismo. Mas concentra sua discussão da utopia brasileira nas páginas finais, apelando para os “suspeitos usuais” (Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro) e concluindo com aquilo que é basicamente um apelo, sem fundamentá-lo nem dar pistas de como chegar a essa utopia. Eu concordo plenamente, mas gostaria de mais força no argumento. Fisicamente é um livro simpático, mas com um formato de texto incomum, não necessariamente positivo — são micro-capítulos, vários por página ou um em uma ou duas páginas, que se comunicam mais por subordinação do que por coordenação.

 

Teoria do Drone (Théorie du drone), de Grégoire Chamayou. São Paulo: Cosac Naify, 2015 [2013], 288 páginas. Tradução de Célia Euvaldo. Brochura. Uma das questões políticas, militares e tecnológicas mais graves da atualidade é o emprego de veículos aéreos não tripulados em ataques contra “alvos assimétricos”, principalmente na assim chamada “guerra contra o terror”. Minha própria série As Lições do Matador trata de tema próximo, uma vez que as naves robôs dos alienígenas tadais são a principal oposição aos assuntos humanos na galáxia. Este ensaio teórico sobre a drone warfare americana, escrito pelo filósofo francês Grégoire Chamayou, um especialista em história das ciências, é o melhor texto sobre o assunto que encontrei até o momento.

Chamayou resgata informações, cita especialistas e teoriza sobre a guerra aérea e a contrainsurgência pelo ar — as práticas que antecedem o surgimento do drone de ataque. Trata dos princípios teóricos do sujeito como objeto legítimo de caça, num contexto em que divisões entre combatentes e não combatentes, países oficialmente em guerra e espaços nacionais delimitados por fronteiras tornam-se indistintos. O corpo humano individual (muitas vezes, combatentes apenas “presumidos”) torna-se o alvo das hostilidades. Ele opõe aos VANTs o conceito do kamikase, citando, de um lado, a distância quase absoluta do videogame, e de outro, o “engajamento integral” representado pelo sacrifício do piloto suicida. Na seção “Necroética”, desmascara os argumentos humanitários no uso do drone de ataque, e a seguir mostra o quanto ele se afasta dos princípios consagrados da filosofia do direito de matar em combate. O resultado é a guerra facilitada, trivial, inquestionável. Nesse sentido, expõe como a distância física entre aparelho e piloto projeta-se como uma distância intelectual e discursiva na qual o pacifismo e o questionamento das decisões militares e jurídicas dos governos democráticos tornam-se mais difíceis de terem efeito. Chamayou não deixa de lado as discussões atuais sobre o drone autônomo, robô de fato, que decidirá por meio de um algoritmo, como e quando alguém deve ser morto — nem esconde a sua indignação com o uso atual dessas armas. Drones têm aparecido em vários filmes de FC e de super-heróis, além dos noticiários, e este é o livro para se entender a sua problemática.

 

Arte de capa de Neil Roberts.

The Recollection, de Gareth L. Powell. Osney Mead: Solaris, 2011, 366 páginas. Capa de Neil Roberts. Paperback. Este é um romance de space opera e viagem no tempo, com boas ideias e estrutura interessante: na Terra dos dias de hoje, portais passam a se abrir aleatoriamente, e o irmão de um dos protagonistas é tragado por um deles. Cada portal leva a um planeta diferente, mas mantendo a velocidade da luz como barreira final no universo. Desse modo, viaja-se também para o futuro. O herói e a mulher de seu irmão encontram outro portal em uma fazenda e se organizam para entrar nele em busca do desaparecido. Trata-se de um triângulo amoroso, porém, e isso traz alguma tensão psicológica ao tema aventuresco. Ao mesmo tempo, no futuro distante, desenvolve-se uma trama paralela em que uma mercadora espacial, um pesquisador erudito, e estranhos alienígenas orbitam a tal da Recollection (“lembrança”), uma arma do juízo final deixada à solta na galáxia para ameaçar todas as formas de vida — como o Enxame do videogame Halo.

O que a Recollection parece fazer é agressivamente incorporar tudo a um único banco de dados e inteligência artificial, desfazendo estruturas em componentes informacionais e transformando pessoas em zumbis. Mas os antigos também deixaram armas secretas para serem usadas pela comunidade espacial do futuro. Lá na frente, as duas linhas narrativas se juntam e se completam, num conceito que recicla traços da new space opera. Sem aprofundar a maioria das situações, o romance mesmo assim funciona, firmando uma imagem de certa força. Um livro do qual gostei, sem saber exatamente por quê.

 

Halo: Coleção Poster de Luxo, Anônimo, ed. São Paulo: Editora Europa/Insight Editions, 2014, 40 páginas. Eu não jogo videogames, mas gosto de arte de ficção científica e essa indústria tem concentrado um número enorme de talentos. Para me inspirar na escrita das histórias das séries As Lições do Matador e Shiroma, Matadora Ciborgue, muitas vezes eu me volto para artes produzidas para videogames — especialmente aqueles de space opera militar como Halo e Mass Effect, e até li alguns tie-ins, romances baseados neles (como a Trilogia Forerunners, do premiado Greg Bear).

Este é um livro de arte sem texto, concebido como um conjunto de 40 posters que você pode destacar e usar como quiser, mas com imagens ocupando as duas páginas de uma mesma folha, o que dificulta as coisas (dura escolha). As ilustrações não são creditadas, infelizmente. Dá pra reconhecer algumas artes do francês Sparth (Nicolas Bouvier), visto no Brasil nas capas da trilogia de Bear, e na capa de Guerra do Velho, de John Scalzi, space opera militar publicada aqui pela Editora Aleph. A maioria é de artes digitais do tipo “épica”, dinâmica ou arte conceitual de interiores, paisagens e estruturas. Há também artes comemorativas de aniversários ou edições especiais do game. Em geral, são bonitas e atraentes, com sugestões de efeitos 3D e de luzes e sombras esmaecidas ou sobrepostas como se tem visto na arte digital de hoje. Para quem acompanha o jogo, as imagens vão até o Halo 4.

 

Arte de capa de Stephan Martiniere.

The Three-Body Problem, de Cixin Liu. New York: Tor Books, 2014 [2006], 400 páginas. Capa de Stephan Martiniere. Traduzido para o inglês por Ken Liu. Capa dura. A publicação de ficção científica no Brasil tornou-se tão dinâmica nos últimos dois anos, que permitiu o aparecimento deste romance chinês de FC hard — publicado aqui como O Problema dos Três Corpos, pela Suma de Letras. Eu li a edição americana, com essa bela capa do premiado artista digital Stephan Martiniere.

O livro, que foi um best-seller na China e sucesso nos Estados Unidos, traz muitos aspectos extremamente intrigantes, e grande complexidade de situações. Melancólico, envolve o desencanto chinês com a terrível Revolução Cultural de Mao Tsé-tung na década de 1960, combinada com a atual situação ambiental desesperadora do planeta. Os aspectos culturais e históricos chineses são fascinantes. Mas este é um romance de primeiro contato com alienígenas, realizado por um grupo de pessoas da Terra que se colocam a serviço e uma civilização de Alfa Centauri, que, eles supõem, irá resolver os graves problemas que nos atingem. Para isso, um videogame tipo Second Life é usado para recrutar gente de alto nível para o movimento. É um emprego criativo daquilo que no Brasil chamamos de “cultos ufológicos”, muito vistos num tipo de FC brasileira incidental e proselitista. No livro, é um recurso fascinante, que foi me conquistando aos poucos pelo atrito entre uma sensibilidade chinesa com a ocidental. A prosa do romance de Cixin Liu, porém, combina o uso constante de frases afirmativas e perguntas retóricas, com um poucos momentos de mergulho na consciência dos personagens ou de descrição poética. Às vezes, traz resoluções ligeiras e passa um ar juvenil.

 

Arte de capa de Howard Chaykin.

The Descent of Anansi, de Larry Niven & Steven Barnes. New York: Tor Books, 1.ª edição, setembro de 1982, 278 páginas. Capa de Howard Chaykin. Paperback. A década de 1980 foi um período formativo importante para mim como leitor de ficção científica. Quando vi este romance de FC hard de 1982, que menciona o Brasil e tem capa do quadrinista Howard Chaykin, coloquei-o no começo da fila. Ele se passa num futuro próximo em que uma estação espacial privada, a Falling Angels, é criada conectando tanques de combustível externo do space shuttle rebocados para perto da Lua por motores iônicos. O tema da empresa espacial privada é um traço libertariano muito comum na FC americana, herdada de Robert A. Heinlein. Niven é um monstro sagrado da FC hard, e Barnes é um dos poucos afro-americanos militando na área. Talvez daí o herói do romance ser um esquimó com traços afro-americanos…

A NASA rompeu com a Falling Angels, que fabrica materiais em microgravidade. Seu carro-chefe é um cabo ultra-fino e ultra-resistente, disputado por uma empresa brasileira e outra japonesa. A japonesa faz uma oferta melhor, e a brasileira articula um plano mirabolante — envolvendo terroristas árabes, um ataque de míssil orbital e um falso resgate usando shuttles brasucas comprados da NASA — para se apossar do carregamento de cabos. Ela conta com o fato do pessoal da estação estar desprotegido legalmente. O romance é uma problem story em que a tripulação que foi entregar o cabo tem que descobrir como baixar o seu shuttle danificado para atmosfera da Terra. O maior atrativo é a ação orbital, com direito a mercenários brasucas fazendo uma abordagem de nave a nave, via atividade extra-veicular. A caracterização e o desenvolvimento são um pouco superficiais, mas eficientes. O Brasil do futuro apresentado no livro extrapola o da época, recém-saído do “milagre econômico” mas autoritário e corrupto (o país ainda vivia a ditadura militar), vendendo armas e serviços de construção (e até material físsil clandestino, dizem) a países como Líbia e Iraque. A FC brasileira daquele período (a Onda de Utopias e Distopias) também enfocou esse Brasil próximo dos militares — como A Invasão (1979), de José Antonio Severo, e A Ordem do Dia (1983), de Márcio Souza — ou de empresas corruptoras — como a novela pop Miss Ferrovia 1999 (1982), de Dolabella Chagas (empreiteiras, no caso).

 

Arte de capa de Jean Philippe.

Na Eternidade Sempre é Domingo, de Santiago Santos. Cuiabá, MT: Carlini & Caniato Editorial, 2016, 140 páginas. Capa de Jean Philippe. Brochura. O Universo GalAxis trata de um futuro em que a América Latina está fundida em um bloco político coeso (um sonho utópico de muita gente) que se lança ao espaço. O livro de estreia de Santiago Santos é um projeto literário dos mais interessantes, que oferece um mergulho na cultura andina: o autor fez viagem tipo mochileiro até a Bolívia, passeando pela antiga paisagem inca acompanhado de um misterioso guia que conta histórias de então, afirmando a sua validade — especialmente em termos de tipos humanos — no presente.

Cada conto é precedido e inspirado por uma foto feita pelo próprio autor. A dinâmica entre o narrador e o seu guia projeta uma argumentação metaficcional que talvez domine mais esta coletânea de contos, do que a evocação de um passado e uma cultura outra, que trans-secciona a cultura ocidental imposta ao continente americano. Para isso, o livro teria que mergulhar mais fundo na fantasia e na consciência do narrador, explorando com maior intensidade o choque cultural e seus atritos. A opção pelo tom leve da crônica é sempre problemática para mim, pois acho que muitas vezes ele invade os campos do conto e do romance, nem sempre com um resultado positivo. Mas o livro conseguiu me prender e me deixar intrigado com essas possibilidades, e já emprestei alguns detalhes culturais incas para colorir um romance futuro das Lições do Matador, Anjos do Abismo.

—Roberto Causo

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