Tag Arquivo para herói pulp

Leituras de Janeiro de 2021

Janeiro foi o segundo mês das minhas leituras para o guia de pesquisa e leitura de ficção científica brasileira que escrevo para a Editora Bandeirola. Predominam, portanto, livros brasileiros de FC pertencentes a momentos e tendências diferentes dentro da história do gênero entre nós. 

 

Arte de capa de Carlos da Cunha.

As Robix de Júpiter, de Lúcia Pimentel Góes. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, Pinju: Série Juvenil, 1985, 108 páginas. Arte de capa e ilustrações internas de Carlos da Cunha. Livro de Bolso. Em 1985, todo o impacto da primeira trilogia de Star Wars (1977 a 1983) se fazia sentir. Naqueles anos, era muito mais comum encontrar ficção de gênero no campo infanto-juvenil, assim como atualmente se dá com o campo jovem-adulto. A premiada (Pen Club-SP, entre outros) Góes, que também se dedicou a pensar a literatura para crianças e jovens com o seu Introdução à Literatura Infantil e Juvenil (1984), vinha de publicar em 1981 BIPE, FC sobre um menino robô. Ela entrou no campo infantil e juvenil em 1969. Este As Robix de Júpiter é uma novela para crianças de 9 a 12 anos que se passa no século 23 e envolve uma missão humana ao planeta Júpiter, habitado por alienígenas respiradores de amônia com três pernas. O objetivo é firmar um tratado comercial. Mas enquanto estão lá, os jovens que compõem a missão acabam descobrindo que robôs jupiterianos (“robix” é feminino de robô, segundo a autora) foram reprogramados para realizar sabotagens, a mando e um tirano espacial que já controla um império localizado na galáxia de Andrômeda.

Alice, uma das moças, é raptada pelos invasores, e sua colega Lúcia se apaixona, em um amor sem preconceitos, por um cavalheiresco habitante de júpiter. Após um ataque realizado contra a Terra (no qual a autora expressa uma imaginação apocalíptica não muito diferente daquela do pioneiro Xisto no Espaço, de Lúcia Machado de Almeida), humanos e jupiterianos rechaçam a esquadra invasora vinda da galáxia vizinha, em uma batalha espacial. Tem-se aí, portanto, mais um exemplo de space opera brasileira como o de Rosana Rios, Encontro Inesperado na Terceira Lua, mas aqui com um conflito intergaláctico. A linguagem é ligeira e acontece muita coisa em pouco espaço.

 

The Great Pulp Heroes, de Don Hutchison. Oakville, ON/Buffalo, NY: Mosaic Press, 2ª edição, 1998 [1996], 276 páginas. Ilustrações de Franklyn E. Hamilton. Um delicioso volume com a cara das edições amadoras que imperam no mercado americano voltado para os quadrinhos, com jeitão de fanzine mas repleto de informações preciosas. Hutchison define o herói pulp como o protagonista de séries de ficção pulp em revista própria. Por esse critério, o primeiro herói pulp seria The Shadow ou O Sombra, surgido em 1931. Walter Gibson (sob o pseudônimo de “Maxwell Grant”) foi o seu principal escritor. Antes de tratar dele, porém, Hutchison contextualiza as pulp magazines surgidas em fins do século 19, e faz uma curiosa afirmativa, incorreta: “Possivelmente a única categoria editorial inventada pelos pulps foi aquela da ficção científica.” Doc Savage, o “Homem de Bronze”, teria sido o segundo pulp hero (em 1933). Assim como O Sombra, foi criação empresarial da editora Street & Smith. Lester Dent foi o principal autor (escrevendo como “Kenneth Robeson”). Possuindo mais elementos de FC, Doc teria sido uma das inspirações para o Homem de Aço, o Super-Homem de Jerry Siegal & Joe Shuster. Assim como o Sombra, teve um programa de rádio e foi para o cinema, mas décadas depois. Ao contrário do pioneiro, teve um grande revival em paperback, na década de 1970, mas apenas o Sombra foi publicado no Brasil, em dois momentos diferentes (no segundo, por ação de R. F. Lucchetti). Em seguida, Hutchison trata de um bizarro herói de aventuras aéreas, G8 (1933), que chegou a ter uma aventura envolvendo morcegos gigantes no Mato Grosso. O autor era Robert Jasper Hogan. Há um capítulo posterior, dedicado a outros heróis de aventuras aéreas, entre eles o mais futurista Terrence X. O’Leary. (O capítulo também informa que o piloto Major Donald E. Keyhoe escreveu aventuras de Philip Strange, “o ás fantasma do G.2”, antes de ficar famoso escrevendo livros sobre discos voadores.)

G8 tinha aspectos de horror, e o herói Spider (1933), também. Criação de Henry Steeger da gigante Popular Publications (também criador do G8), era um “herói” moralmente ambíguo, em série que Hutchison define como weird fiction. Vários autores assinavam as histórias, mas quem deu a sua cara foi Norvell W. Page. O personagem virou seriado de cinema em 1938 e 1941, mas nos quadrinhos, só em 1991. Indo noutra direção, Operator #5 (1934) foi uma revista com histórias de invasão e espionagem, expressando a paranoia americana de que potências estrangeiras desejariam, desde sempre, tomar do país a sua liberdade e estilo de vida. Segundo Hutchison:

“Ela brindava os Estados Unidos isolacionista com não uma, mas com quantidades de fantasias paranoicas sem paralelo na história da literatura.” E ainda: “Como espelho social surrealista das fobias coletivas do seu tempo, a revista permanece sem paralelo na história da cultura popular.” —Don Hutchison. The Great Pulp Heroes.

O herói James Christopher, um agente secreto que teria sido um James Bond antes de James Bond, é chamado por Hutchison de “um Super-Homem”. O prolífico Frederick C. Davis foi o primeiro autor da série, e o seu criador junto à Popular Publications (sob o pseudônimo de “Curtis Steele”). Mas cedeu o lugar a continuadores, que fizeram o herói enfrentar invasores japoneses, alemães e da Europa do Leste. O conteúdo que remetia à guerra futura era especulativo o suficiente para inserir a série no campo da FC — algo enfatizado por um episódio de invasão alienígena. O próprio Hutchison afirma que os romances do Operador 5 devem ser lidos como FC. Isso se dava mais obviamente com Curt Newton, ou o Captain Future (1939): segundo Hutchison, o único herói de space opera de então, a ser honrado com a própria revista. O escritor de FC Edmund Hamilton foi o autor mais vinculado ao herói, um patrulheiro espacial do Sistema Solar do futuro, mas quem o criou foi o editor Leo Margulis, da Standard — embora o personagem tenha sido rapidamente remodelado por Hamilton.

Outros heróis pulp examinados pelo Hutchison são o famoso The Phantom (1933), mais um milionário detetive e outra criação de Margulis, e longeva (durou vinte anos); The Avenger (1939), outro herói mascarado da Street & Smith a compor ficção de crime com traços de FC; Doctor Death (1935), da Dell Magazines e um pulp villain, ao invés de pulp hero, neste caso com narrativas de “weird menace” — o mesmo com Wu Fang (1935) da Popular Publications, e os grotescos Octopus e Scorpion. Em tudo, The Great Pulp Heroes fornece uma leitura rica e engajante. O livro traz também páginas e ilustrações em fac-símile, e desenhos pontilistas de Frank Hamilton, representando autores e editores, feitas na década de 1970 para algum afortunado fanzine.

 

Arte de capa de Lívia.

A Ordem dos Futuros, de Ricardo Gouveia. São Paulo: Editora Moderna, 3.ª edição, 1994 [1993], 144 páginas. Arte de capa e ilustrações internas de Lívia. Brochura. Assim como A Cidade Proibida (1997), de Álvaro Cardoso Gomes; Megalópolis (2006), de Júlio Emílio Braz; Cyber Brasiliana (2010), de Richard Diegues; e Rio: Zona de Guerra (2014), de Leo Lopes, esta novela juvenil é exemplo de cyberpunk nacional que não deve ser confundido com o “tupinipunk” (cyberpunk tupiniquim). Tem a distinção de ser ganhadora do prêmio de Melhor Livro Juvenil da Associação Paulista dos Críticos de Arte. A história, totalmente ambientada em uma São Paulo do século 23, abre com uma garota paulistana chamada Lenorah (uma “índia ítalo-japonesa”) metida com um jogo virtual, Aventura no Futuro. E com um garoto chamado Djíndji o Vermelho (um judeu-brasileiro ruivo), que, em liberdade condicional de recuperação juvenil, torna-se suspeito do assassinato de uma ricaça madura que o assediara. O moço entra na mira tanto do monolítico governo do futuro da novela, quanto do grupo radical ao qual havia participado, e que o vê como traidor: o Movimento Ecoxita [sic]. Nenhuma sutileza na disposição do autor em apontar um ambientalistalismo terrorista, a partir de deixa tomada de matéria da revista Veja, mencionando “ecoxiitas” .

Acompanha os dois a inteligência artificial OZ-03, que, interessada no humor humano, por isso mesmo funciona como alívio cômico, mesmo enquanto caminha para a plenitude da “singularidade tecnológica”, ao substituir “Verme do Silício”, a vilânica IA de alcance nacional. Na cola do casalzinho está o matador juvenil Tinhoso, parte dos ecoxitas mas com jeito de pixote, capturado e torturado pela polícia e depois reprogramado com um implante de vigilância, para encontrá-los. Há momentos de ciberespaço envolvendo o já mencionado “videogueime”, perseguições e conspirações entre IAs, compondo uma densidade de ideias de FC que se aproxima do costumeiro dentro do cyberpunk internacional, e dispostas em tom brincalhão. Mas tudo em um amálgama superficial jocoso e irreverente que, a par com o título do livro, iguala ideologias, posturas e processos históricos, passando perto de naturalizar alguns dos contextos mais dramáticos da nossa história, como neste trecho:

“Tinhoso olhou mais uma vez para a bandeira.

“O intenso fundo verde evocava as matas perdidas, a natureza ameaçada de total destruição. Sobre ele, um grande círculo vermelho, quase tocando as bordas superior e inferior: o vermelho do sangue derramado e ainda por derramar até o dia da vitória. No meio do círculo, em preto, a foice e o martelo. O antigo símbolo comunista fora modificado para lembrar outro símbolo muito antigo e vigoroso, a suástica […]” —Ricardo Gouveia. A Ordem dos Futuros.

 

Arte de capa de Nelson Lopes.

A Porta de Chifre, de Herberto Sales. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986, 248 páginas. Arte de capa de Nelson Lopes. Brochura. A Amazônia transformada em deserto. Essa é a imagem central desta FC de Sales, que antes escreveu O Fruto do Vosso Ventre (197 ), ganhador do Prêmio Jabuti. A Porta de Chifre é ambientado em 2352, quando não existe mais água na superfície do planeta, sendo arrancada do subsolo e comercializada como se fosse petróleo. Uma expedição de pesquisa vai à região amazônica com uma limusine Rolls Royce puxada por dromedários. Dentro de uma cadeia de montanhas na Amazônia, os exploradores internacionais encontram um idílico mundo perdido subterrâneo com água e vegetação: Aanac (“Canaã” ao contrário). Assim como os elois eram presa dos morlocks em A Máquina do Tempo (1895), de H.G. Wells, os pacíficos habitantes do lugar são atacados periodicamente pelos grotescos homens-formigas (alusão à livro de Tarzã, de 1924?) de uma caverna próxima. E assim como os aventureiros liderados pelo Prof. Challenger de O Mundo Perdido (1912), de Arthur Conan Doyle, tomam partido dos indígenas contra os hominídeos do planalto em que eles estão em conflito, os personagens de Sales exterminam o formigueiro.

Uma mistura curiosa de Terra moribunda com mundo perdido, retrabalha situações costumeiras desse segundo subgênero da FC dentro do estilo repetitivo do autor, assim como cria o próprio technobabble nonsense para a tecnologia do futuro, que permite a sobrevivência da humanidade num quadro desfavorável à vida. O resultado é um pastiche pós-modernista, e um parágrafo no frontispício explicita a sua tônica:

“Sucinto relato anticientífico, com ingredientes de ficção, que se faz de uma viagem, no ano de 2352, à maneira dos velhos romances, quando ainda se escreviam romances e havia quem por ler os lesse.” —Herberto Sales, A Porta de Chifre.

 

Kalum, de Menotti del Picchia. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. [1936], 206 páginas. Apresentação de Afrânio Coutinho. Ilustrações internas de Teixeira Mendes. Quando Del Picchia, depois de A República 3000, retornou ao conceito de uma civilização cretense incógnita no Brasil Central, com o romance Kalum: O Mistério do Sertão, outra mulher única, impossivelmente loura e alta, é apresentada: Elinor, a líder de uma sociedade infantilizada e em declínio causado pela automação e pela autocomplacência, em luta para garantir uma sobrevida aos seus concidadãos. “Nós somos um dos ramos dos habitantes da República 3.000”, anuncia ao herói. “Somente, que eles puderam emigrar para um vale feliz, onde conseguiram dispor de todos os elementos materiais para evoluir. Os fundadores de nossa pátria, porém, tiveram menos sorte. Eram também, como os cidadãos daquela república, emigrados cretenses.” A primeira parte obedece àquela estrutura da luta na selva antecedendo ao contato com a civilização oculta. Desta vez, trata-se de expedição de um cineasta alemão, Karl Sopor. Eles vêm da selva boliviana com destino a Porto Velho até o Amazonas, onde pretendem filmar, para um documentário, um grupo de indígenas antropófagos — a etnia ficcional Kurongang. Um outro alemão, o rechonchudo Fritz Unzer, funciona como alívio cômico, e há até um chinês no grupo, o cozinheiro Pei-Fu. Talvez em consequência de serem predominantemente estrangeiros na expedição, as descrições regionalistas quase desaparecem da narrativa.

Ao mesmo tempo, os Kurongangs soam mais africanos do que indígenas brasileiros. São repetidamente descritos como gigantes negros, falam em uma língua gutural com vocalizações como “Catulê Catô! Mm bamba! Changô!” e são comandados pelo brutal Kalum, uma pigmeu entre guerreiros zulus. Depois de capturados, os exploradores se encontram com um padre português também prisioneiro mas integrado os Kurongangs como o chefe dos pajés. Apiedado de Karl e dos seus homens, ele ajuda o herói a enganar Kalum com um truque clássico desse tipo de aventura: o documentarista filma um ritual das “virgens de Bangô, o deus da volúpia” e, ao exibi-lo para o assustado Kalum, apresenta-se como tendo aprisionado a alma de todos aqueles que foram capturados em película. De posse do diário de um cretense que havia saído da sua cidade perdida para explorar os arredores, Colaço e Karl fogem para a entrada do mundo perdido. O padre é ferido mortalmente, de modo que o herói entra sozinho no lugar — a cidade perdida de Elinor.

É preciso reconhecer o quanto Del Picchia parece ter desejado invadir, com este segundo romance, o território de H. Rider Haggard. Assim como em O Irmão do Diabo ou O Ouro de Manoa, de Jeronymo Monteiro, os indígenas do continente comportam-se mais como guerreiros africanos (na capa da edição da Coleção Saraiva, o artista Nico Rosso deu a Kalum adereços faciais de um caçador de cabeças da Nova Guiné) e os índices de aventura colonial são mais evidentes. A República 3000, publicado também na França e Itália, aparentemente alcançou sucesso a ponto de inspirar a sequência — e possivelmente para que Del Picchia a aproximasse das aventuras coloniais de Haggard, conhecidas do público leitor europeu. A versão da utopia cretense que Elinor oferece tem o seu próprio enfoque em relação à República 3000. Se naquela podíamos testemunhar o salto evolutivo, nesta temos a decadência racial. O que Karl descobre é uma raça infantilizada de mulheres minúsculas e de homens transformados em anões grotescos, encolhidos pelo ócio que a técnica avançada da cidade subterrânea proporciona, e pela falta de perspectiva do seu enclausuramento. Elinor, a mulher, é chamada pelas mulherzinhas de “o Rei”, em evidente chacota, por ter altura e aparência distintas e o dinamismo de quem ainda busca soluções e remédios para a decadência. Sendo a única compatível com Karl, logo se desenvolve uma paixão entre os dois.

Um dos primeiros a propor uma mudança morfológica da humanidade do futuro foi H. G. Wells, no já mencionado A Máquina do Tempo. Os seus ociosos elois são pequenos e infantilizados, enquanto os laboriosos morlocks do submundo são grandes e animalizados. Ambos descendem do Homo sapiens. Também é possível que haja algo de A. Merritt na composição do brasileiro, já que The Moon Pool (1919) apresenta o mesmo tipo de dimorfismo sexual: os homens são anões, as mulheres, normais e lindas. O destino reservado a Elinor, a cidade, é apocalíptico, com a sua invasão pelos cruéis Kurangangs e com a sabotagem intencional da máquina que renovava a oxigenação dos espaços subterrâneos. Escapa o casal apaixonado, deixando o duplo holocausto para trás.

 

Cummunká, de Menotti Del Picchia. São Paulo: Coleção Obras de Menotti Del Picchia, Livraria Martins, 1958, 260 páginas. Arte de capa de Italo Bianchi. Brochura. A sátira Cummunká (1938), um romance, é ambientada em um Brasil sem geografia humana, dividido simplesmente entre cidade e sertão. Uma “bandeira” moderna é organizada pela redação de um jornal como golpe de publicidade, mas, alertada pelo rádio — pelo qual ouvem música clássica e programas culturais europeus —, a nação Xavante se prepara para recebê-la, capturando a todos com seu conhecimento superior de táticas militares e, mais tarde, numa escalada repentina, derrotando a Cidade. Descritos como mais sábios, cultos e capazes que os não indígenas, os Xavantes são liderados pelo personagem-título, caracterizado como um filósofo e crítico cultural modernista, que sentencia: “Vossa cultura é a matriz perpétua da guerra. Ela cria apenas para destruir. […] Que importam os prodígios da vossa ciência, se essa mesma ciência estuda outras mil formas de assassinar os homens em massa? […] Não é viver tirar um torpe proveito material das coisas dentro de uma atmosfera de ameaças e de pavor.”

Mas é um outro pensador ficcional, o também cacique Ambará e também personagem de Cummunká, que vale citar em conexão com os anteriores A República 3000 e Kalum: “Que a máquina, criada para ser a passiva escrava do homem, trazendo-lhe mais confôrto e poupando-lhe o esfôrço [sic], se transformou em algoz das massas, apossadas como foi pelo capitalismo […]. [O] ritmo clássico da vida dos brancos foi quebrado pela errônea utilização da máquina, gerando-se desse fato, a inquietação e a guerra… É a vingança da máquina que convulsiona o mundo.”

Embora com ênfase na aventura, os dois romances anteriores fazem parte dessa mesma visada do escritor modernista Menotti Del Picchia: críticos dos terríveis prodígios da tecnologia e seu impacto sobre a consciência humana. Ambará argumenta perante os seus pupilos indígenas: “A criatura humana não é nem uma subcriatura, nem uma hipercriatura. A idéia [sic] de um ‘super-homem’ é concepção de uma ‘coisa diferente’, ou melhor, de um ‘novo ser’, ou de um monstro. Para que ela viva é mister criar-se um outro mundo, isto é, um supermundo. O homem verdadeiro é uma constância; deformar o homem é violar uma lei eterna. É artificializar o homem, arrancá-lo do plano natural. O mesmo se dá com a paisagem que o cerca: a deformação da paisagem é violência contra a natureza, é a superposição do artifício à realidade…”

Na sua síntese, é quase como se Del Picchia olhasse para a discussão que havia iniciado com as utopias de A República 3000 e Kalum, escritas sob a escusa de espairecer depois de trabalhos mais sérios ou de buscar o mercado do leitor jovem, mas que se tornaram clássicos da FC nacional — até por incorporarem essa discussão central para o Modernismo.

 

A Desintegração da Morte, de Orígenes Lessa. Rio de Janeiro: Edições de Ouro/Tecnoprint, Coleção Futurâmica, s.d., 132 páginas. Livro de bolso. A inclusão deste livro nacional na Coleção Futurâmica é fato extraordinário, já que ela, surgida em 1959 ou 1960, era dominada por traduções e, possivelmente, com a inclusão de obras brasileiras sob pseudônimo. É uma curta coletânea de histórias, aberta por “A Desintegração da Morte”, novela originalmente publicada em 1948 e que mais tarde entrou em Os Melhores Contos de Orígeness Lessa (2003), editado por Glória Pondé. Imagina um invento do bem-intencionado Prof. Klepstein, que anula a morte por violência ou envelhecimento. Abre com o seu laboratório sendo invadido por homens armados que o metralham inutilmente, a mando de um “reverendo”. A novela — ambientada principalmente nos EUA — passa a descrever, saltando de situação em situação à maneira do romance A Guerra das Salamandras (Vàlka s Mloky, 1936), de Karel Čapek, os efeitos da invenção nas relações humanas. A chave é satírica, denunciando o quanto questões como religião, indústria bélica e indústria hospitalar e de medicamentos nutrem-se da morte. Também é satírica a presença de índices de ficção pulp. Lessa viveu nos EUA na década de 1940, e sua formação como pastor presbiteriano deve ter tido papel nas reflexões da novela.

A coletânea (erroneamente tratada de romance em nota no final da edição) é completada por três contos narrados em primeira pessoa. Nenhum deles é FC, e apenas o segundo, “O Instituto Nacional do Amendoim”, partilha do formato sátira — política. É ambientado em país fictício recentemente vítima de golpe militar em que todas as instâncias de opressão econômica e laboral, corrupção, prevaricação e nepotismo são racionalizadas em ternos nacionalistas que transformam, nos termos mais ufanistas, as circunstâncias econômicas menos relevantes (a produção de amendoim) em oportunidades de locupletação. “Nós, o Mar e Conceição” explora muito bem a dinâmica de desejos sexuais do narrador por uma “mulher fácil” a bordo de um navio e passageiros na mira de submarinos alemães, na II Guerra Mundial, com um clima tétrico no final. Também realizando sondagem psicológica, “Reencontro”, conto de ficção militar, é narrado por um jovem que foi partícipe relutante do bullying de um colega de escola, e que, agora com ambos na mesma unidade lutando na Revolução Constitucionalista, perversamente vigia o amigo na antecipação do instante em que o verá ruir psicologicamente. É forçado a testemunhar o heroísmo do colega, ao invés. (Lessa lutou naquele conflito, em 1932.)

Na década de 1960, o autor já era um autor multipremiado e um jornalista de relevo. O elogioso texto do crítico Ricardo Ramos, incluído no fim da edição e funcionando como anúncio do livro de contos Balbino, O Homem do Mar (1960), sugere que este A Desintegração da Morte entrou na Série Futurâmica menos por desejo de desenvolver a FC brasileira, e mais por conhecimento e prestígio de Lessa (que seria eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1981), como oportunidade de promovê-lo como contista.

 

Arte de capa de Geraldo Degasperi.

Quase Além da Fantasia, de Luigi Maria Sarcinella. São Paulo: Editora Maltese, 1994, 188 páginas. Arte de capa de Geraldo Degasperi. Brochura. Nascido na Itália, Sarcinella (1920-2013) é autor do relato de guerra Salto no Escuro (1968) — no caso, a Segunda Guerra Mundial, da qual participou como combatente, prisioneiro de guerra e guerrilheiro. Sua aventura na FC, esta coletânea com uma noveleta e dois contos, tem o sentido coincidente de condenar a insanidade humana. O artifício convocado para isso é o do homem comum mas bem informado, que recebe a visita de um alienígena superior e bem intencionado. No caso da primeira história, “Luana, o Andróide”, um ser artificial criado em Ganimedes (a lua de Júpiter) para interagir com o narrador. Ao discutir com ela, o narrador aponta um número de obras científicas e seus autores, mas comete enganos conceituais como imaginar que a velocidade da luz depende da cor (ou vibração) da fonte luminosa. O protagonista se apaixona pela androide, descrita como uma mulher perfeita, mas não consuma a sua paixão.

Narrado em terceira pessoa, “Quase Além da Fantasia” dá título ao livro e tem premissa semelhante: Jean, o protagonista, tem um contato com tripulante de um disco voador que discute com ele as diferenças no avanço moral entre o seu mundo e a Terra, com ideias influenciadas pela hierarquia espiritual do espiritismo, e, neste caso, cita obras e pensadores em notas de rodapé. São duas narrativas de FC ufológica a serviço da especulação filosófica, infelizmente superficial. Em “Que Pílulas!”, a terceira e última narrativa, Sarcinella desce do pedestal das boas intenções e produz um divertido conto de humor, malicioso e politicamente incorreto, que remete ao Ciclo de Narrativas de Chiste e Sátira da primeira metade do século 20 no Brasil, ainda no Período Pioneiro (1857 a 1957): um cientista bombardeia com raios-X uma glândula desconhecida de um macaco cobaia, e elabora a fórmula S.P.Q.R. 2V, que, sob a forma de pílulas, é capaz de dar qualquer mulher um corpo escultural e insaciável apetite pelo sexo. Transformada em uma poderosa negra, sua rejuvenescida esposa quer colocá-lo à prova e fala em convocar outros parceiros. O conto, portanto, dá outro ângulo ao tema da mulher ou ginoide idealizada, presente em “Luana, o Andróide”. Mas efeitos colaterais observados na cachorrinha do casal fazem o inventor aplicar um antídoto a tempo. Melhor se conformar com o modo como as coisas são.

 

QUADRINHOS

Arte de capa de Joe Kubert.

Sgt. Rock: A Profecia (Sgt. Rock: The Prophecy), de Joe Kubert. Barueri-SP: Panini Brasil, 2009 [2006, 2007], 146 páginas. Tradução de Fábio Fernandes/FD. Arte de capa de Joe Kubert. Brochura. Mês passado eu comentei Sgt Rock: Entre a Morte e o Inferno, escrito por Brian Azzarello. Este A Profecia está mais perto do caráter do herói e da Companhia Moleza, e provavelmente é um projeto mais pessoal de Kubert, o principal desenhista vinculado ao personagem. Neste gibi comemorativo dos 50 do Sgt. Rock, a Moleza é retirada da campanha na Itália, no inverno de 1943, e lançada secretamente de paraquedas em algum ponto da Europa do Leste, entre a Letônia e a Lituânia, em uma missão especial: evacuar da zona de guerra um jovem profeta, um messias judeu adolescente. É portanto situação do tipo Resgate do Soldado Ryan (1998), em que as vidas de muitos homens é posta em risco para garantir a de um. A diferença é que o messias judeu é importante para toda uma comunidade, e não apenas para uma família. É visto como um trunfo pelo alto comando. Sem bem entender o que fazem, os caras da Companhia Moleza mesmo assim dão tudo de si.

A história passeia por várias circunstâncias daquele teatro de operações: atrocidades nazistas e também dos partisans locais, de tropas russas e de colaboracionistas, culminando na exploração de um campo de extermínio abandonado e no contato com locais colaboracionistas. Em meio a isso tudo, lampejos dramáticos de humanidade na forma de um cachorrinho adotado pelo Soldado Bulldozer; uma bela mulher entre os partisans, um casal de irmãos que recusa a ajuda da Moleza, uma menina bebê de colo que passa a viajar com eles, sendo cuidada pelo jovem profeta. Há uma qualidade fantasmagórica a muitas das situações. A narrativa é vigorosa e tem o seu ápice na extração aérea do messias (com o uso de um protótipo de helicóptero). Certamente, uma alegoria da ascensão do jovem que, em outros momentos, já se mostrara abençoado por Deus. Em contraste ao álbum escrito por Azzarello, este de Kubert parece mais “in character” quanto a Rock e a Moleza. Significa, por outro lado, que mantem as inconsistências que afligiam a série. Mais importante, recupera aquela sensação de que a guerra representa uma ruptura em nossa concepção da realidade, a ponto de dar espaço ao grotesco, o estranho e, neste caso, também o maravilhoso. Kubert (1926-2012) era judeu polonês, e aqui explora com muita felicidade a sua herança étnica.

 

Arte de capa de J. Scott Campbell.

Marvel Saga: O Espetacular Homem-Aranha: Feliz Aniversário, de J. Michel Straczynski (texto) & John Romita, Jr. (arte). Barueri-SP: Coleção Marvel Saga: O Espetacular Homem-Aranha N.º 4, Panini Comics, 2020, 200 páginas. Introdução de Fernando Lopes. Tradução de Mario Luiz C. Barroso. Arte de capa de J. Scott Campbell. Capa dura. No início deste livro, Peter Parker, o professor de Ciências do ensino médio, está preocupado com a vulnerabilidade de uma aluna afro-americana em particular. Esse é o tipo de momento que faz valer a passagem de Straczynski pelo herói. Logo, porém, surge o personagem Ezekiel, um bilionário que partilha dos seus poderes e conhece o lore sobre homens-aranhas, no qual tem educado o herói. Mais tarde, a preocupação com o irmão desaparecido de uma das alunas de Peter traz Ezekiel novamente ao enredo. As coisas aceleram mesmo quando o uma daquelas típicas invasões transdimensionais de Nova York mobiliza não apenas o Aranha, mas os Vingadores, o Quarteto Fantástico e os X-Men.

Mas é com o surgimento do Doutor Estranho que as coisas se complicam de fato — o herói místico revela que a ação das equipes repelindo os alienígenas resultou na libertação do demoníaco Dormammu. Inadvertidamente, o Homem-Aranha acaba sendo arremessado a uma dimensão anterior ao espaçotempo, Ao tentar resgatá-lo, o Doutor Estranho funciona como o seu “espírito dos natais passados” — dispositivo que permite ao herói rever os principais momentos, os mais dramáticos e centrais, da sua trajetória, às vésperas do seu aniversário. Na introdução, Fernando Lopes aponta o fato de que muitos personagens do universo Marvel amadurecem e envelhecem, transformam-se ao longo do tempo. De modo característico do seu talento, Straczynski trabalha a memory trip deste que é o meu super-herói favorito com grande humanidade e sensibilidade. O ápice é o presente de aniversário do Doutor Estranho: alguns minutos de Peter com o seu tio Ben. As histórias finais preparam o que virá a seguir, e uma delas é toda sob o ponto de vista da Tia May.

Roberto Causo

Sem comentários até agora, comente aqui!

Leituras de Outubro de 2017

Em outubro, resolvi explorar o meu relacionamento com a loja Terramédia, em São Paulo, lendo vários livros de tipos e gêneros diversos, adquiridos nela. Hoje, a loja, que passou a se chamar Omniverse, está sob nova direção, de Luís Mauro Gonçalves Batista, a quem desejo boa sorte.

Quando ingressei no fandom de ficção científica em meados da década de 1980, as lojas especializadas em assuntos nerds/geeks era raríssimas. Eu conhecia apenas a Muito Prazer, na Av. São João em São Paulo, loja que eu visita quando vinha a São Paulo para as reuniões mensais do Clube de Leitores de Ficção Científica. Essa loja era basicamente um corredor amplo como uma garagem, abarrotado de gibis, revistas, fanzines, alguns livros e posters. Lá, comprei muitos exemplares originais da saudosa revista em quadrinhos The Nam, e as primeiras edições da Locus com que tive contato. As lojas geeks de hoje são voltadas para um público de classe média alta, com decoração temática e  atendentes hipsters. Bem diferente da aura alternativa da Muito Prazer.

A loja Omniverse tem justamente essa aura de classe trabalhadora, o tipo de estabelecimento no qual você dá uma passada depois da escola ou do trabalho em busca das novidades em quadrinhos, ou espera o fim de semana para se encontrar lá com seus amigos ou grupo de RPG e cardgame. Mais do que buscar o material de venda certa, vício comum das lojas geeks atuais, a agora Omniverse está abarrotada de material raro, antigo ou alternativo. Meu amigo Christopher Kastensmidt diz que essa loja é que é o real deal. Luís Mauro explica a mudança do nome da loja:

“Assim como eu, o Douglas e o Yano acharam importante mudar o nome, para deixar explícito a desvinculação com a Devir. Essa desvinculação é oficial e formal, porém o trabalho é de continuidade e o espírito é o mesmo que a Devir sempre cultivou.” —Luís Mauro Gonçalves Batista.

 

Em 13 de outubro, o mundo da literatura especulativa brasileira e da nossa cultura nerd/geek perdeu o editor Douglas Quinta Reis, um dos fundadores da Devir Brasil e da Terramédia. Douglas, além de ser meu editor na Devir, era um bom amigo, que me deu inúmeras oportunidades e me ajudou a explorar a loja, junto à qual cedo me incluiu como um “parceiro” com direito a descontos especiais. Douglas tinha apenas 63 anos. Durante seus 30 anos de atividade junto à Devir, teve atuação importante na formação do mercado nacional para RPGs e jogos de tabuleiro, livros de quadrinhos nas livrarias e literatura de ficção científica, fantasia e horror. Vai deixar saudades, e dificilmente será substituído na sua generosidade e abertura para autores nacionais e estrangeiros de várias tendências. Fica aqui a minha homenagem.

—Roberto Causo

 

Arte de capa de Gahan Wilson.

Now We Are Sick, de Neil Gaiman & Stephen Jones, eds. Minneapollis: DreamHaven Books, 1994 [1991], 94 páginas. Capa de Gahan Wilson. Ilustrações de Andrew Smith. Trade paperback. Onde mais, senão na Omniverse, você poderia encontrar, por exemplo, esta antologia de poemas de horror e humor, editada por ninguém menos que Neil Gaiman (com Stephen Jones), de quando ele ainda não era um superastro da literatura de fantasia?

Montado originalmente em 1991 a partir de uma sugestão de Clive Barker, o livro reúne poemas rimados, irônicos, safados e nojentos de um time de astros das décadas de 1980 e 1990 nos Estados Unidos e, principalmente, Reino Unido. Diana Wynne Jones, autora da série os Mundos de Crestomanci e de O Castelo Animado, e mentora de Gaiman, abre a antologia. Atrás dela vêm Kim Newman, Allan Moore, Stephen Gallagher (um tremendo escritor de dark suspense), Terry Pratchett, John Grant, Brian Aldiss (o mestre inglês da FC, falecido este ano), Colin Greenland, Ramsey Campbell, Garry Killworth, John M. Ford, James Herbert (autor de ficção de horror mais vendido que Stephen King, na Inglaterra), Storm Constantine, Jo Fletcher, Samantha Lee, R. A. Lafferty, Gene Wolfe, Robert Bloch (autor do romance Psicose), e outros. O tema acaba sendo a infância, seus medos e as reações das crianças a essas criaturas ameaçadoras: os adultos. Há muito humor no meio do nojo, da malícia e do horror. Há também algo de mais sério em vários poemas, especialmente na seção “Adults Only” na qual o sexo e o abuso entram na discussão. É difícil imaginar este estranho livro sendo lido para crianças — é para adultos com uma lembrança crítica, sombria e irônica da infância. As ilustrações de Andrew Smith funcionam muito bem nesse contexto, e a capa é do famoso chargista de humor negro Gahan Wilson, muito visto na revista Playboy. Este é o livro de Gaiman mais estranho que já li? Muito provavelmente.

This book is CLIVE BARKER’s fault—blame him.” —Neil Gaiman & Stephen Jones, Now We Are Sick.

 

Arte de capa de Bill Willingham.

The Monster Maker, de Bill Willingham. Austin, TX: Clockwork Storybook, 2002, 108 páginas. Capa de Bill Willigham. Trade Paperback. Este é um livro com uma novela e um conto, que estendem o universo de Coventry, um estado americano imaginário, antes explorado em histórias em quadrinhos escritas por Willingham. Daí eu encontrar o livro naquilo que é basicamente uma loja de gibis, como a Omniverse. 

Willingham escreve uma variante cínica e violenta da tradição dos heróis pulps. No caso, seu herói é Beowulf, aquele mesmo do poema homônimo em inglês antigo, traduzido ou modernizado por nomes importantes como J. R. R. Tolkien ou Sheamus Heaney (ganhador do Nobel em 1995). E explorado na ficção popular em obras como Devoradores de Mortos (1976), de Michael Crichton. Este Beowulf tornou-se imortal quando matou o dragão da narrativa original, cobrindo-se com o sangue mágico da criatura. No momento ele é um “herói particular” sem licença. É procurado por uma elegante investigador a serviço de um instituto dedicado à destruição de monstros. Nesse universo, o sobrenatural é reconhecido e estudado, de modo que  empresta algo da moda das fantasias urbanas. O contraste está no lado pulp seco e masculino, sem qualquer romance, e no contexto rural. Uma cidade de menos de 100 habitantes é vítima de uma onda de suicídios, e o tal instituto quer que a garota e Beowulf investiguem o ocorrido, juntamente com as autoridades federais. Na sua primeira saída, o herói é atacado por um monstro aparentemente invencível. Eviscerado, ele leva dias para se recuperar — como o Wolverine do filme Logan. Mais algumas encrencas se seguem depois, até que ele tenha o confronto final com o vilão, ele mesmo sobrenatural e parente do herói. A narrativa rápida tem um ritmo seguro e é cheia de detalhes interessantes ou divertidos, e de diálogos cortantes. A novela é seguida de uma seção de agradecimentos que comenta muito do conteúdo dos capítulos, com detalhes autobiográficos do autor (que estudou o Beowulf original em profundidade). Fecha o livro o conto “Green Grow the Rushes Oh”, também estrelado pelo herói. Willingham claramente conhece a história dos heróis pulp, e criou um atualizando as suas características ao mesmo tempo em que mantém suas raízes.

 

Poems for the Dead, de Hart D. Fisher. Scottsdale, AZ: Chaos! Comics, July 1997, 134 páginas. Introdução de Wayne Allen Sallee. Prefácio de Brian Patrick Pulido. Ilustrado. Trade paperbackMais um livro singular, que você provavelmente só conseguiria adquirir na Omniverse: um livro de poesia escrito por uma personalidade da área do horror nos quadrinhos e no cinema, publicado por uma editora de HQs. Mais do que esse aspecto associativo, o livro sugere uma terrível confusão entre horror e um momento brutal da vida pessoal de Fisher. Ele, que causou escândalo ao publicar uma série de HQs baseada nos crimes do serial killer conhecido como “Canibal de Millwalkee” (curiosamente, figura presente no romance de estreia do brasileiro Alexey Dodsworth, Dezoito de Escorpião). Além disso, Fisher daria o primeiro trabalho ao músico e quadrinista Gerald Way (que já apareceu por aqui pela Devir Brasil), e escreveu e produziu o filme independente The Garbage Man (2008), sobre um serial killer afro-americano. Esse filme marca uma das bordas de uma situação de terrível ironia e enorme tragédia na vida de Fisher: enquanto a produção acontecia em 1993, a namorada de Fisher, Michelle Davis, de apenas 20 anos, foi assassinada por um serial killer da vida real. Este livro é dedicado a ela, e seus poemas de verso livre são um mergulho nu e brutal em sentimentos de depressão, culpa, raiva, desespero e desejo de suicídio. Parte do relacionamento turbulento entre Fisher e Davis é descrito nos poemas, mas alguns transbordam para um contexto que parece ser externo e geral. Certamente, um ethos urbano, artístico e bem americano transpira dos poemas — muitos dos quais sem título, aparecendo apenas como “Poem #1” a “Poem #60”. Um aspecto interessante da poesia visceral de Fisher são as transições rápidas e ásperas, entre as imagens. O crédito dos 10 artistas que ilustram o livro aparece apenas no índice. Essas ilustrações, ao contrário da maioria dos poemas, remetem de diversas maneiras, ao horror como expressão artística.

A vinculação desse livro com o horror é uma questão para se pensar. Dentre os três gêneros da literatura imaginativa (a ficção científica, a fantasia e horror), ele é aquele que mais se confunde com estados de espírito, opções existenciais e estilos de vida relacionados ao seu assunto — como o movimento gótico. O livro certamente se remete ao gênero pela editora que o publicou e pelas ilustrações. Mas a poesia de Fisher se insere no horror de um modo mais do que associativo — imagens e atmosfera do horror contemporâneo, urbano, violento e desesperançado costuram os seus poemas e parecem informar a expressão dos seus sentimentos obsessivos, numa atitude que iria além de qualquer noção de oportunismo. Uma lembrança terrível e impactante, de que os gêneros populares podem ser mais do que entretenimento comercial.

 

Arte de capa de John Bolton.

Dragon Moon, Chris Claremont & Beth Fleisher. Nova York: Bantam Books, 1994, 124 páginas. Capa e ilustrações internas de John Bolton. Brochura. Como a maioria das pessoas, conheço o trabalho de Chris Claremont pelas HQs de X-Men, que cheguei a acompanhar na década de 1980. Mas ele já andou escrevendo romances de ficção científica e fantasia (uma trilogia escrita para George Lucas continuando as aventuras de Willow). Aqui ele se aliou à sua esposa Beth Fleisher para produzir uma novela de fantasia contemporânea como um livro ilustrado. O artista é o capista de quadrinhos John Bolton.

Assim com outros livros neste mês, este tem uma associação com o mundo dos quadrinhos. Cass Dunreith é herdeira de uma propriedade senhorial na Escócia, mas depois de perder a família, torno-se escritora de quadrinhos de fantasia em Nova York. Todo ano ela participa de um festival de medievalismo com combates simulados e tudo. Um detalhe interessante, porque esse tipo de revival foi uma tendência da década de 1990. Lá, aos poucos Cass descobre que um grupo de guerreiros mitológicos celta foi convocado, com resultados possivelmente desastrosos aos frequentadores do festival. Descrita como uma mulher forte e determinada, Cass leva algum tempo para entender que cabe a ela impedir o massacre. Para isso ela precisa admitir a herança mágica que faz parte da sua família. O foco da novela é colocar o leitor em um espaço de estilo de vida que é invadido pela magia, mas exclusivamente pela consciência da heroína. Embora tenha sua atividade profissional, passado e amizades apenas rascunhadas, Cass é interessante o suficiente. O único problema está no modo como os autores desenvolveram a dinâmica dos diálogos, com Cass sempre insolente e respondona. Toda vez que ela discute com as pessoas ao seu redor, perde interesse como personagem. A arte de Bolton para este livro é bem variada mas consistente. As pranchas coloridas são robustas e vívidas, com efeitos de aerógrafo. Mas também há desenhos a bico de pena, ilustrações monotonais e detalhes de armas e objetos, não apenas de personagens. Imagens de Cass dominam, e ele a representou como uma mulher pernuda e robusta, traços finos e um corte de cabelo mohawk. Gosto muito das capas que Bolton fez para os quadrinhos da franquia Aliens, da Dark Horse Comics.

 

Come in Alone, de Warren Ellis. San Francisco: AIT/Planet Lar, 2001, 246 páginas. Trade paperback. Hesitei muito em adquirir este livro, já que a escrita do roteirista de quadrinhos Warren Ellis ainda não havia me conquistado. Enfim, quando meu filho propôs um curso de extensão sobre jornalismo nerd/geek na Faculdade Cásper Líbero, achei interessante ele e eu termos acesso ao que essa personalidade de destaque dos quadrinhos atuais disse sobre o campo, em uma coluna no site Comic Book Resources, entre dezembro de 1999 e dezembro de 2000. Como são 52 colunas reunidas neste livro, deve ter tido periodicidade semanal. Como muitos livros de ficção e de não ficção publicados por editoras de quadrinhos (inclusive estes anotados acima), este é um volume muito mal diagramado e editado. O que importa é o conteúdo.

Ellis faz parte de um grupo muito inovador de criadores britânicos de quadrinhos que inclui Garth Ennis e Grant Morrison. Sua postura neste livro é atacar o modo como as grandes corporações — do tipo Marvel e DC — tratam os quadrinistas, e defender a independência criativa e profissional. A Marvel é a empresa que ele mais acompanha, porque enxergava na época a HQ de super-herói como um beco sem saída e um negócio ameaçado, e a Marvel andava em dificuldades. Seu foco então é o graphic novel entendido como um livro com uma HQ completa e autocontida; o oposto dos gibis de super-heróis, é claro. Além das colunas opinativas e editorais, ele entrevista colegas ou descreve suas andanças como um astro da área, viajando à Finlândia e aos Estados Unidos. Não tem muito de positivo a dizer sobre o fandom de super-heróis nem o de FC no cinema e televisão (na Comic Con de San Diego, por exemplo), mas faz apelos frequentes aos leitores de quadrinhos para realizar ações de lobby em favor das HQs independentes. Outro foco das suas reflexões são as lojas especializadas, de venda direta ao consumidor (que pré-encomenda os quadrinhos, livros ou brinquedos do seu interesse), que, segundo ele, deveriam se abrir para uma diversidade maior. No Brasil, a rede de lojas especializadas está se formando apenas atualmente, e sua articulação como algo mais do que revistarias foi um dos projetos da Devir Brasil, seguindo a batuta do editor Douglas Quinta Reis. Ellis também via a Internet como um novo veículo para os quadrinhos, com um potencial que começava a ser explorado na época. Assim como Ennis e Morrison, Ellis tem uma irreverência e iconoclastia boca suja meio punk, meio beatnik, e isso transparece também nestes textos. Tudo se insere dentro da problemática de ter os quadrinhos distanciados das suas origens juvenis, e assumidos como uma forma de arte adulta. Muita coisa mudou no mundo nerd/geek nestes 17 anos desde que ele se meteu a escrever a coluna. Mas muita coisa também não mudou, e aqui o leitor encontra um retrato da situação e das ansiedades em torno da indústria anglo-americana das histórias em quadrinhos.

“Os quadrinhos são um meio pequeno, hoje em dia. Cinquenta e poucos anos atrás, uma revista em quadrinhos venderia cinco milhões, sem esforço. Enquanto eu escrevi isso hoje, seriam necessários todos os recursos de marketing de uma das duas maiores editoras americanas para fazer a sua revista principal vender perto de cento e cinquenta mil exemplares. Quer dizer, não é bem o mercado para a poesia, mas está chegando lá. Esses são números tristes para o que seria uma mídia de narrativa visual de baixo custo, relativamente não corrompida. Há uma razão desse material costumar vender cinco milhões de exemplares num estalo. A mesma razão da indústria do filme agora buscar o impulso criativo dessa mídia. A mesma razão do Pulitzer reconhecer os quadrinhos A mesma razão dos escritores e artistas dos quadrinhos serem contratados constantemente por outras mídias.” —Warren Ellis, Come in Alone.

 

Arte de capa de Erick Sama.

Mistérios do Mal: Contos de Horror, de Carlos Orsi. São Paulo: Editora Draco, 2016, 234 páginas. Capa de Erick Sama. Brochura. Carlos Orsi é um contemporâneo meu, da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira (1982-2015). No começo da década de 1990, ele publicou o conto “Aprendizado” no Somnium, o fanzine do Clube dos Leitores de Ficção Científica. Eu me lembro de ter sugerido a ele que o ampliasse e submetesse à Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Científica. Dito e feito: estreia profissional. Seu primeiro livro de contos apareceu em 1996, Medo, Mistério e Morte. O segundo, O Mal de um Homem, é de 2001; e o terceiro, Tempos de Fúria, foi lançado em 2015. Fiquei feliz em ver este que é o quarto à venda na Omniverse — que dá espaço à Draco, à Argonautas, à Jambô e outras pequenas da literatura brasileira de fantasia e ficção científica.

“Aprendizado” é uma fantasia científica com clima de horror, e está em Mistérios do Mal. O livro reúne algumas histórias saídas das duas coletâneas anteriores, mais duas outras ainda não colecionadas. Está aqui a excepcional “A Fábrica”, que usa arquitetura e geometria para evocar o seu “horror cósmico”. Essa é uma forma de horror explorada pelo americano H. P. Lovecraft (1890-1937), de longe o autor mais influente sobre a ficção de Orsi, um autor brasileiro que conscientemente emprega os recursos da weird fiction de Lovecraft e outros autores da era das revistas pulp. Há, é claro, atualizações e adaptações. Especialmente aquelas que trazem o horror para o contexto brasileiro, invocando locações exóticas, magia indígena e heresias do Brasil Colônia. Uma das histórias, porém, busca o horror cósmico de Lovecraft e dos seus Mitos de Cthulhu nas planícies vermelhas de Marte. Das duas narrativas não vistas previamente nas coletâneas do autor, “Rex Ex Machina” é a mais longa e interessante, sendo homenagem à famosa novela de horror de Robert W. Chambers, O Rei de Amarelo (The Yellow King, 1895), celebrizado recentemente por ter sido uma das fontes da primeira temporada de True Detective, e disponível no Brasil em tradução pela Intrínseca. Orsi imagina um hipponga tentando encenar uma versão teatral da obra, durante a ditadura militar. A história faz transparecer o interesse do autor pelo registro oral, que ele explora em diálogos e também na estrutura narrativa (que aqui é um depoimento). A segunda história colecionada, “Criaturas da Noite”, é mais curta e exemplifica outra vertente do autor — a sobreposição do horror de rituais e de monstruosidades arcanas, aos horrores quotidianos da nossa sociedade. A ilustração de capa de Erick Sama, o titular número um da Editora Draco, captura a atmosfera bizarra e monstruosa da weird fiction tropical de Carlos Orsi.

 

Arte de capa de Dean Williams.

Tarzan: The Lost Adventure, de Edgar Rice Burroughs & Joe R. Lansdale. Milwalkie, OR: Dark Horse Books, Edição Limitada, dezembro de 1995, 212 páginas. Capa de Dean Williams. Ilustrações de Studly O. Burroughs, Gary Gianni, Michael Kaluta, Monty Sheldon, Charles Vess e Thomas Yeates. Prefácio e George T. McWhorter. Hardcover. Quando contei ao editor Gumercindo Rocha Dorea que eu havia ficado com este exemplar, único de uma liquidação da loja Omniverse, ele me fuzilou com os olhos e disse: “Que amigo russo que você é!” Sorry, Guga, mas o mundo é uma selva. O livro é edição limitada do romance resultante de um rascunho perdido de Edgar Rice Burroughs (1875-1950), o criador de Tarzã, John Carter e outros heróis e mundos da fantasia e ficção científica, realizado pelo escritor texano Joe R. Lansdale. Além dessa edição, a Dark Horse Comics colocou na praça, naquele ano, o mesmo romance serializado no formato de revista pulp, em quatro edições ilustradas por esse time de supercraques dos quadrinhos. Também acompanhava a serialização, tiras escritas pelo filho de Burroughs, John Coleman Burroughs, com aventuras de John Carter em Marte. Essas quatro revistas eu consegui para o Gumercindo, um grande fã de Tarzã, e free of charge.

A primeira metade do livro apresenta vários choques entre duas equipes de uma expedição exploratória com um grupo de desertores da Legião Estrangeira, e o próprio Tarzã e seus amigos animais, o macaco Nkima e o leão Jad-Bal-Ja. A segunda metade leva os personagens até a cidade perdida de Ur (o objetivo da expedição) e a um confronto com o seu deus oriundo de Pellucidar, o mundo selvático da Terra oca. Existe aí um crossover de Tarzã com a série iniciada com At the Earth’s Core (1914), Pellucidar (1924) e Tanar of Pellucidar (1928), sendo que o próprio homem macaco andou por lá em Tarzan at the Earth’s Core (1929). Outras aventuras de Tarzã envolvem cidades ou raças perdidas, logo com o segundo livro da série: The Return of Tarzan (1915). Os capítulos curtos são repletos de ação e movimento constante, de um grupo ou outro e do herói e seus assistentes. Em Ur, monarca é um sádico maior do que Calígula. Há um crescendo de tensão, ação violenta e exotismo, culminando com o confronto do herói com uma espécie de louva-a-deus gigante vindo de Pellucidar, em uma arena de gladiadores. Pelas minhas outras leituras de Lansdale, especialmente a novela de steampunk Zeppelins West (2001), ele é adepto de uma ultraviolência pós-modernista de fazer inveja a Quentin Tarantino. Um pouco dessa tendência aparece em The Lost Adventure, mas muita gente apontou o fato de que originalmente Tarzã era uma série de livros muito violenta, distante das incarnações juvenis vistas na TV, nos quadrinhos e no cinema. Considerando que o romance aqui é uma colaboração com um dos colaboradores in absentia, resta a questão da prosa mais ágil e moderna de Lansdale. Alguns especialistas em Burroughs, incluindo o prefaciador George T. McWhorter, afirmam que os últimos livros de Burroughs já tomavam esse rumo.

 

De Volta…

Anacrônicos/Anacrónicos, de Luiz Bras. São Paulo: Alink Editora, 2017, 80 páginas. Capa de Teo Adorno. Tradução de Alejandro Mansilla. Livro de bolso. Eu já tratei aqui, em junho, da versão e-book da noveleta de ficção científica e realismo mágico Anacrônicos, de Luiz Bras (a identidade de Nelson de Oliveira voltada para a ficção científica e a literatura para o leitor jovem). Naquela ocasião, apontei a fusão das duas tradições literárias e comparei a noveleta às histórias do pioneiro André Carneiro (1922-2014). Em setembro, o autor lançou esta mui simpática versão bilíngue português/espanhol pela Alink Editora, com uma tradução competente para o espanhol, pelo escritor, tradutor e diretor argentino Alejandro Mansilla. O livro é pequeno, com um bom tratamento editorial e agradável de manusear. Espero que a história de Luiz Bras ganhe, com essa publicação, muitos leitores brasileiros e internacionais.

Nas minhas leituras de junho de 2017, escrevi sobre a noveleta de Luiz Bras:

 A noveleta segue o ponto de vista de uma jovem que vive os dias de uma estranha invasão: redivivos, feitos de borracha industrial, com a exata aparência e parte da personalidade e comportamento de pessoas falecidas, do conhecimento dela e dos demais habitantes da Terra… Bras coloca a sua própria variação e personalidade no conceito, ao torná-lo global e explicitando a artificialidade dos redivivos. A prosa tem uma qualidade muito intimista, para equilibrar o conteúdo panorâmico, e elegante.

 

Blade Runner: Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick. São Paulo: Editora Aleph, outubro de 2017, 336 páginas. Tradução de Ronaldo Bressane. Prefácio de Rodrigo Fresán. Ilustrações de Dave McKean, Liniers, Peter Kuper, Rebecca Hendin, Elena Gumeniuk, Antonello Silverini, Gustavo Duarte, Guilherme Petreca, Danilo Beyruth e Bianca Pinheiro. Capa dura. A Editora Aleph produziu uma tremenda edição especial do romance clássico de Philip K. Dick, seguindo a onda promocional em torno do filme novo de Denis Villeneuve, Blade Runner 2049. Além da tradução do autor da Geração 90 Ronaldo Bressane, a edição traz muitos “extras” de interesse, incluindo uma carta do próprio Dick ao divulgador do Blade Runner original, de 1982, no ano de lançamento do filme. Em capa dura com sobrecapa, a edição tem design gráfico do celebrado designer Pedro Inoue. Apresenta não apenas uma bela jaqueta de proteção, mas também uma “capa oculta” na encadernação capa dura. O look geral do livro é muito moderno e agradável, e o time de ilustradores de primeira linha, composto de brasileiros e estrangeiros, produziu uma coleção de imagens que parece ter uma coerência estética maior do que aquela do projeto anterior da Aleph, criado com premissa semelhante: a edição especial de Laranja Mecânica de Anthony Burgess. Achei que o resultado foi superior. Preciso agradecer à fotógrafa e youtuber Gabriela Colicigno, e a Luciana Fracchetta, divulgadora da Aleph, pelo exemplar que recebi — uma edição obrigatória para os fãs de Dick e do filme seminal de Ridley Scott. Sobre o romance propriamente, lembro que eu o discuti nas minhas leituras de setembro, afirmando: 

Um romance consistente e realizado dentro de um clima próprio e engenhoso, que faz o leitor coçar a cabeça do começo ao fim. De fato, torna o ato de coçar a cabeça uma experiência de leitura essencial. A ficção científica e as questões de cognição, sobre o que percebemos da realidade, têm uma longa história juntos, desde o século 19. Mas Philip K. Dick foi o autor da FC moderna que mais sistematicamente explorou essa relação.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Fiona Staples.

Saga Volume 2, de Brian K. Vaughan & Fiona Staples. São Paulo: Devir Brasil, 2015 [2013], 164 páginas. Capa de Fiona Staples. Tradução de Marquito Maia. Capa dura. Saga é uma ficção científica satírica, uma space opera pós-modernista, totalmente nonsense, que brinca com chavões e enfia situações adultas e às vezes sombrias no meio da sua narrativa. Publicada nos States pela Image, ganhou um caminhão de prêmios. Meu exemplar eu adquiri na Virada Nerd, promoção da Devir Brasil com vários parceiros, inclusive a própria loja Omniverse, onde eu o comprei.

O casal multi-espécie Alana e Marko, cujos planetas estão em guerra e que são caçados pelas autoridades, pela família e por assassinos profissionais das duas partes em conflito, continuam em fuga na espaçonave viva de que se assenhoraram no volume anterior. Fogem acompanhados da filhinha recém-nascida (que também é a narradora da história) e sua babá fantasma, além dos pais de Marko, que chegaram a eles por via mágica. Enquanto isso, o caça-prêmios Querer passa a ser acompanhado pela ex-noiva de Marko, Gwendolyn (que, apesar do nome anglo, é uma mulata). Flashbacks contam como o casal se apaixonou, enquanto ela era carcereira dele em um planeta campo de concentração. O destino dos fugitivos é a casa do escritor D. Oswald Heist, cujo livro de bolso inspirou não só o romance do casal, quanto a sua suposta disposição “revolucionária”. Trata-se de um romance de love story açucarada, e seu papel nesta HQ pós-modernista parece ser o de sugerir, mesmo com ironia, que a cultura popular guarda sentidos e funções interessantes e que escapam aos incautos. Mas não ao Príncipe Robô IV, ele mesmo na cola do casal. O príncipe, que tem um velho monitor de TV no lugar da cabeça (e que, quando ele está confuso, exibe cenas de um filme pornô gay), chegou primeiro até Heist. O livro, que parece apresentar uma arte um pouco mais sólida da parte de Fiona Staples e uma colorização mais sutil, termina com esse gancho. O volume 3 já saiu, e pretendo lê-lo em breve.

Temos 4 comentários, veja e comente aqui

Leituras de abril de 2017

A fantasia ganhou da ficção científica neste mês, mas minhas leituras continuam variadas, incluindo ficção de crime e não ficção. Pela primeira vez, trago anotação de uma leitura de história em quadrinhos.

 

Arte de capa de Christian McGrath.

Mistborn: The Final Empire, de Brandon Sanderson. Nova York: Tor Books, 2008 [2006], 648 páginas. Capa de Christian McGrath. Paperback. Li Elantris, o livro de estreia de Sanderson, antes de ele chegar ao Brasil. Comprei Mistborn em seguida, mas admito que só terminei a leitura por insistência do meu filho Roberto Fideli, do Who’s Geek, que gostou muito do romance. Leu o livro na edição brasileira (LeYa, 2014) com tradução de Marcia Blasques. Minha edição tem essa bonita arte de Chris McGrath — não é o melhor dele, mas ainda assim superior à brasileira, pelo francês Marc Simonetti. O tratamento esmaecido da arte fotográfica de McGrath disfarça até o desgaste nos cantos do meu paperback.

Assim como em Elantris, o forte de Mistborn está na ambientação (urbana e sombria) e no sistema de magia (baseado no uso de metais que dão poderes a uma classe especial de humanos, os “mistborn“). A concepção do romance deve muito aos RPGs; e seu andamento, ao cinema de espetáculo de Hollywood. A menina da capa é uma Oliver Twist adolescente, recrutada pelo outro protagonista do livro, um príncipe dos ladrões (também presente em Throne of the Crescent Moon, de Saladin Ahmed, que li mês passado), para uma revolução armando contra o supervilão, um tirano imortal. É que Vin, a garota, é descoberta por ele como sendo uma mistborn. Muito do livro narra seu treinamento e como ela é infiltrada na aristocracia escravagista local, onde conhece um incomum pretendente. Nem tudo faz muito sentido no mundo secundário criado por Sanderson, especialmente a vida num ecossistema degradado por condições atmosféricas possivelmente de origem mágica. Talvez venham explicações melhores, nos volumes posteriores, dois deles já lançados no Brasil. O mesmo para o sistema de magia, com suas situações constantes de kung-fu aéreo — improváveis mas divertidas. Com Elantris, gostei de chegar até o final, que achei hiperbólico e hollywoodiano demais. Com Mistborn, gostei do final apesar de faltas semelhantes (mas atenuadas). Mas foi difícil chegar a ele, por causa da monotonia da ambientação, da repetição de situações e da pequena alternância de personagens ponto de vista. O mais importante está, porém, na dramatização do desejo de resistência à opressão e à tirania, com um bem-vindo subtexto religioso emergindo no final.

 

Arte de capa de Alan Gutierrez.

Steel Brother, de Gordon R. Dickson. Nova York: Tor Books, dezembro de 1985, 236 páginas. Capa de Alan Gutierrez. Introdução de Poul Anderson. Paperback.  Pouco publicado em português, Gordon Dickson (1923-2001) foi um autor prolífico e popular no campo da ficção científica americana. Os dorsai, seus superguerreiros mercenários do futuro do Ciclo Childe, inspiraram os meus minutemen, casta de ciborgues guerreiros que aparecem nas séries As Lições do Matador e Shiroma, Matadora Ciborgue. Até como crítica ao libertarianismo (ou libertarismo) que identifiquei nos dorsai — e muito da FC militar da atualidade. Ideologia muito americana, o libertarianismo acaba sendo uma das marcas da FC hard e militar em língua inglesa. O trabalho de Dickson, junto com o de Poul Anderson, Robert A. Heinlein e Ann Rand, certamente tem um papel nisso. Tal casamento entre literatura e ideologia política resultou até num prêmio literário, o Prometheus. Dickson também se propunha a escrever uma literatura filosófica no formato de aventura de FC, e eu ainda estou explorando tal conceito e os limites da versatilidade desse autor.

Steel Brother é uma coletânea de histórias de Dickson. A introdução de Anderson revela que ela foi montada para homenagear o autor por ocasião da sua escolha como Convidado de Honra da Convenção Mundial de FC de 1984. Curiosamente, a primeira história, “Out of the Darkness” (1961), é ficção de crime primeiro publicada na Ellery Queen Mystery Magazine. A novela “Perfectly Adjusted” (1955) é o texto mais longo do livro: um aventureiro vai parar num mundo dividido entre duas utopias: uma libertariana rural e outra autoritária coletivista. Para não se sentirem ameaçados pelo comportamento dos outros, as duas comunidades se auto-hipnotizam para não enxergarem a outra. É parte da premissa do muito posterior e festejado A Cidade e a Cidade (2009), de China Miéville. Num tom mais farsesco, Dickson satiriza a cegueira ideológica (e não poupa um libertarianismo de cara hippie). “The Hard Way” (1963) é outra história longa, pelo ponto de vista de um ambicioso e implacável alienígena que lidera uma expedição batedora à Terra. Ela explora o darwinismo social cósmico, com uma solução engenhosa para a ideia do ataque preventivo comum à FC hard. “Steel Brother” (representado na capa) é FC militar de tom mais próximo ao que Dickson fez em romances do Ciclo Childe, como Tactics of Mistake (1970). Meu favorito do livro é a noveleta “The Man in the Mailbag”, publicada originalmente na revista Galaxy em 1959. É ambientada no planeta de alienígenas peludos de 2,50 m de altura. Um jovem humano é chamado para trazer uma garota fujona, Boy Is She Built (Cara Como Ela É Carnuda), de volta ao seu clã. Ele vai com o carteiro local, e passa a ser chamado de Half Pint Posted (Meia Dose Remetida). Hilariante. Fazia tempo que não lia uma história de aventura cômica tão engraçada. Fecha o livro um ensaio de Dickson sobre o Ciclo Childe, e uma entrevista dada a Sandra Miesel, pesquisadora que acompanhou a obra do autor.

 

Cronista de um Tempo Ruim, de Ferréz. São Paulo: Selo Povo, 2009, 126 páginas. Livro de bolso. Ferréz é um dos meus heróis. Ele transformou uma origem e contexto desfavoráveis em uma militância literária das mais interessantes vistas recentemente no Brasil. Vi surgir seu movimento Literatura Marginal na revista Caros Amigos, e mais tarde o conheci pessoalmente em eventos do SESC em Curitiba e Salvador. Também é especialmente inteligente o modo como ele busca transformar pelas palavras e pelas ações a geografia cultural da periferia: com uma grife (a loja conceito 1DaSul) que explicita, ao agir corretamente, a exploração do trabalho dos moradores por grandes marcas de confecções; e com livros traficados, como esta coletânea de 23 crônicas antes publicadas em jornais e revistas. Meu exemplar eu recebi de Ferréz em 2010, quando Bruce Sterling, Jasmina Tesanovic e eu o visitamos em Capão Redondo.

O apelo ao cotidiano e à subjetividade do cronista me desagradam na crônica como literatura. Afinal, escrevo ficção científica, fantasia e outras formas de ficção de gênero que buscam o extraordinário no contemporâneo. Além disso, tais características da crônica contaminam o conto e o romance brasileiros. Muitas vezes, o resultado é uma voz narrativa dominante, monótona, que entra no caminho da variedade e da diversidade. Mas Ferréz tem uma voz fora da curva, na denúncia das hipocrisias costumeiras da sociedade brasileira quanto aos pobres e os moradores da favela e da periferia. Sua denúncia chega às autoridades, que não enfrentam a violência policial e mantêm, pela corrupção, a situação violenta que ceifa as vidas dos jovens e limita suas possibilidades de avanço. Alguns dos textos do livro repercutem os ataques do PCC em 2006, e a reação violenta da polícia e de esquadrões da morte. Outros, condenam o consumismo ou apontam o preconceito com que o morador da periferia é apresentado pela imprensa. Muitos têm a cadência e a dicção do hip hop brasuca. O retrato que Ferréz faz do estrago social produzido pela corrupção e descaso das autoridades é visceral. Põe Cronista de um Tempo Ruim na prateleira daquilo que venho chamando de “Literatura do Brasil pós-Mensalão”, ao lado do premiado O Rei do Cheiro (2009), de João Silvério Trevisan; e de Distrito Federal (2014) e Não Chore (2016), de Luiz Bras.

 

Mulher no Escuro: Um Romance Perigoso (Woman in the Dark), de Dashiell Hammett. Porto Alegre: L&PM Pocket Plus, 2008 [1933], 100 páginas. Tradução de Marcelo Kahns. Introdução de Robert B. Parker. Livro de Bolso. Esta novela de Dashiell Hammett, mestre da ficção de crime americana e criador da narrativa hard boiled, foi “redescoberta” (i.e., ausente das coletâneas do autor e nas antologias do gênero) depois de décadas da sua publicação na revista Liberty em 1933. É pena que a tradução seja uma bagunça — a opção por marcar os diálogos com aspas e não com travessões cria todo tipo de problema. Aspas aparecem onde não deviam estar e desaparecem de onde deviam estar, e dois personagens falam num mesmo parágrafo. Além disso, o uso confuso de pronomes também dificulta saber quem faz ou diz o quê.

Uma jovem suíça chamada Fischer foge das garras do ricaço americano que a trouxe da Europa. Na fuga, ela leva um tombo e se refugia na casa de um cara durão, recém-saído da cadeia, chamado Brazil [sic]. Quando o ricaço e seu capanga chegam, há tiros, socos, e Brazil e a garota fogem para a casa do ex-colega de cela de Brazil, noutra localidade. A polícia vai na cola, dizendo-o suspeito de lesão corporal grave do capanga, e chega ao seu novo endereço. Brazil é baleado, a garota é detida e entregue à polícia da cidade do ricaço. Lá, o advogado de Brazil a espera para pagar a fiança. Mas também é lá que vai acontecer o desenlace violento e a verdadeira natureza do casal de heróis e do vilão será apresentada. A introdução de Robert Parker — um dos herdeiros da tradição criada por Hammett, e de quem tratei aqui — registra que este seria um dos textos mais emocionais e românticos do autor. O próprio subtítulo se refere a relacionamento romântico, e não ao formato literário do romance. Mas não existe uma única colher de açúcar nesta história. Brazil e Fischer obviamente desenvolvem interesse e preocupação um pelo outro. Mas permanecem no nível do hard boiled, em que podem tanto ser baixos nas suas emoções, quanto apenas vestir uma máscara que oculta seus sentimentos verdadeiros. O gênio de Hammett está em manter a tensão constante entre essas possibilidades, até a linha final.

 

Arte de capa de Christopher Stengel.

Os Garotos Corvos (The Raven Boys), de Maggie Stiefvater. Campinas-SP: Verus Editora, 2.ª edição, 2015 [2012], 376 páginas. Capa de Christopher Hengel. Tradução de Jorge Ritter. Minha mulher, Finisia Fideli, lê duas vezes mais rápido do que eu. Provavelmente porque tem o QI duas vezes maior que o meu. É natural, portanto, que ela faça uma certa triagem aqui em casa. Também é boa para descobrir livros valiosos nas livrarias, antes de eles caírem na boca do povo. É o caso de Flora Segunda, de Isabeau S. Wilse; de O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares, de Ransom Riggs — e deste Os Garotos Corvos, de Maggie Stiefvater. Todos fantasia para crianças e jovens, a propósito. Stiefvater é uma favorita de Finisia, que, aliás, terminou há pouco de reler a série de quatro livros.

Não leio muito esse tipo de literatura, mas nunca é tarde para explorá-la. Stiefvater deve estar na elite desse campo tão importante atualmente, para o mercado editorial. O romance acompanha uma garota no centro de um grupo de mulheres médiuns, que se aproxima de um grupo de garotos de uma escola de elite na Virgínia. Blue, a protagonista, é bocuda, inquieta, sensata e desajeitada ao mesmo tempo. Os meninos têm o objetivo secreto de encontrar uma linha de energia mística que cruza o estado. E de fazer contato com um monarca galês de tempos pré-colombianos, enterrado nela. Há um vilão, muitos obstáculos e muito drama, mas o que distingue a autora é a espirituosidade e a habilidade de manter os vários personagens em cena numa dinâmica vigorosa e encantadora. As cenas, construídas com inteligência e solidez, parecem maiores do que são realmente, por causa da rica dinâmica entre os personagens. Há uma série de truques de virtuosismo literário nisso — diálogos inteligentes, vozes claras para cada personagem, descrições que sublinham o caráter de cada um, e exposição precisa do assunto. Mas como esse é o forte da autora, algo acaba sendo sacrificado no plano da ambientação — a cidade e a escola, em particular, não ganham vida própria. O que acontece no terreno da magia tem interesse e lógica interna. Mesmo que marcadas por essa magia, a “cultura de mulheres” e a “cultura de homens” são manuseadas com a mesma verve. Stiefvater tem um talento para metáforas e figuras de linguagem, e a fluidez da sua prosa sobrevive aos pequenos azares da tradução. Este é um romance para se saborear o estilo no plano da prosa, e aquele estilo maior que está na qualidade das imagens e situações. Certamente, um livro para jovens que é original sem ser paternalista, e povoado com gente que parece de verdade justamente por incorporar excentricidades que podem ir até um pouco além do real. Realiza justamente o que se espera da fantasia contemporânea — pôr magia na vida como a conhecemos.

 

A Doutrina Zen da Não-Mente: O Significado do Sutra de Hui-Neng (Wei-Lang) (The Zen Doctrine of No Mind: The Significance of the Sutra of Hui-Neng (Wei-Lang)), de Daisetz Teitaro Suzuki. São Paulo: Editora Pensamento, s.d. [1969], 140 páginas. Tradução de Elza Bebianno. Editado por Christmas Humphreys.  Agora seguindo indicação da Finisia, continuo minhas leituras no budismo com esse livro do especialista D. T. Suzuki, que foi Professor de Filosofia Budista na Universidade de Otani, em Kioto. O assunto é a “não-mente” ou o cancelamento do ego dentro do budismo zen. É algo que entrou na cultura popular há um bom tempo, e foi importante na composição de heróis pulp como o Sombra e o Questão — que no Brasil chegaram a aparecer num mesmo gibi da DC. Essa apropriação surge da sugestão de que o estado mental do sujeito seria capaz de atuar sobre outros seres. Uma citação do livro de Suzuki: “Se você encontrasse um tigre ou um logo nas montanhas, como usaria sua mente […]?” “Quando se avista, é como se não se tivesse avistado; quando se aproxima, é como se nunca se tivesse aproximado; e o animal [reflete] o estado da não-mente. Mesmo um animal selvagem não lhe fará mal.”

Outro clichê popular relativo ao budismo ou ao zen está na ideia de que o seu praticante ou a pessoa iluminada ou em estado de buda estaria não só livre das demandas sociais, como estaria livre de considerações sobre o bem e o mal. Cheguei a pensar que fosse uma intrusão do pensamento calvinista sobre a visão popular do budismo, mas Suzuki é categórico:  “o Dharma [ensinamentos de Buda ou lei cósmica] tem o poder de perdoar todos os pecados, de modo a perdoar todos os pecadores dos castigos.” A discussão filosófica/teológica de Suzuki parte do mestre chinês Hui-neng (638-713 d.C.) e cita muitos diálogos do tipo mestre-aprendiz, para desenvolver seu argumento. O livro é complexo e os exemplos que Suzuki escolhe não ajudam, pois os mestres posteriores a Hui-neng adoravam apelar para o nonsense para transcender o intelectualismo. Muitas vezes, o budismo zen acaba soando platonista (algo que a síntese espírita de Kardec sublinhou). Em outras, a prática do nonsense lembra a irreverência modernista nas artes como meio de ferir as percepções burguesas. No pós-modernismo se fala do fim das grandes narrativas em razão da multiplicidade discursiva moderna levando a uma equivalência entre discursos. A escrita pós-modernista muitas vezes mergulha nesse entendimento pela hipertrofia textual e narrativa (William S. Burroughs, Thomas Pynchon) ou apontando a linguagem como construtora da percepção do real (fabulation e metaficção). Na minha própria ficção, busco investigar situações em que essa multiplicidade discursiva é calada por situações de violência, qualidade mítica e o esgotamento das teleologias. Parece que aí também o budismo tem algo a contribuir.

 

O Que É Design Gráfico: Conceitos Básicos, de Nobu Chinen. Rio de Janeiro: Duetto Editorial, 2014, 48 páginas. Quem me conhece apenas como escritor não sabe que também já atuei como ilustrador editorial (mesmo como fã de FC, comecei com desenhos). Ano passado, decidi voltar a desenhar e agora adquiri uma mesa digitalizadora para desenvolver arte digital. Mas acho importante ter noções de design gráfico — inclusive para poder lidar melhor com a produção dos meus livros e até deste site. Antigamente, o design parecia apenas subsidiário das indústrias do livro e da publicidade, mas hoje está em toda parte, até em movimentos sociais e artísticos. Este livrinho do especialista nipo-brasileiro Nobu Chinen, professor da Escola de Comunicação e Arte da USP, é uma introdução leve a esse campo muito em voga atualmente. Comprei-o por menos de cinco paus, numa promoção das Lojas Americanas.

Com capítulos curtos (2-3 páginas) e com muita cor e imagens, o livro busca não apenas apresentar as questões em torno do assunto (comunicação, arte, comércio), mas também ilustrar as suas possibilidades. Em grande parte, a leitura foi como recordar os cursos de ilustração publicitária que fiz em Campinas, no século passado. Do mesmo autor, ainda tenho aqui para enfrentar Design Gráfico: Curso Básico (Escala, 2011), bem maior e mais chique.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Tony Harris & Chris Blythe.

Star Wars Infinitos: Uma Nova Esperança (Star Wars Infinities: A New Hope), de Chris Warden (roteiro), Drew Johnson (desenho) e Ray Snyder, Al Rio e Neil Nelson (arte-final). São Paulo: Panini Comics, 2017, 98 páginas. Capa de Tony Harris & Chris Blythe. Brochura. Confesso que já me peguei várias vezes imaginando uma versão alternativa do filme O Retorno de Jedi (1983), na qual tentava resolver as muitas contradições e pontas soltas do enredo da primeira trilogia de Star Wars. Em O Império Contra-Ataca (1980), Luke Skywalker chega a Bespin num Asa-X e sai de lá no Millennium Falcon, deixando para trás o caça que, supõe-se, teria o registro de todo canto em que ele esteve. Enquanto o Império tenta quebrar o código de acesso aos dados, Luke corre de volta a Dagobah para terminar o treinamento com Yoda. Ao mesmo tempo, Leia, Lando e Chewie organizam o resgate de Han. Yoda se sacrifica, ficando em Dagobah para atrair Vader. Luke obtém, por meio de uma visão, o paradeiro de Palpatine num ponto obscuro (uma nebulosa, talvez?) da “galáxia muito distante”. Antes que o Império se organize para destruir a esquadra rebelde, uma ação final é organizada contra Palpatine…

Este gibi curioso parte de uma premissa semelhante — produzir uma visão mais coerente e alternativa da trilogia, mas partindo do primeiro filme (o Episódio IV). Luke atinge as entranhas da Estrela da Morte, mas o torpedo de prótons falha. A base rebelde é destruída, Luke é recolhido por Han e Chewie. Leia é capturada por Vader e levada a Coruscant, onde vira marionete de Palpatine. Obi-Wan se manifesta e Han leva Luke até Dagobah, conhecendo Yoda. O escritor Chris Warden integra elementos da prequência iniciada com A Ameaça Fantasma (1999), criando inversões interessantes: Yoda ainda tem saúde e é Palpatine que tem os dias contados. Leia deveria se tornar a sua herdeira. Com uma ação mais compacta, os heróis convergem para Coruscant, onde ocorre o confronto final — com uma participação maior de Yoda. Pena que essa experiência alternativa de Warden não teve um número maior de fascículos na publicação original, pois ganharia mais diversidade de situações e força narrativa, se ela se espalhasse um pouco mais. Além disso, a quadrinização ficaria menos coalhada. Também é de lamentar o desenho de Johnson — meio rombudo e duro, embora lide bem com fisionomias e estruturas. Aqui estamos livres dos ewoks e da repetição do recurso da construção da nova Estrela da Morte, o relacionamento de Luke e Han tem mais arestas, e Leia ganha ambiguidades. Perde-se, porém, o centro emocional dos dois primeiros filmes — o sentimento de amizade confrontado à indiferença de forças de escala cósmica.

—Roberto Causo

Temos 4 comentários, veja e comente aqui