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Leituras de Agosto de 2017

Este foi um mês de novas leituras de fantasia e de ficção científica, mas com espaço para não-ficção, quadrinhos e ficção literária.

 

Arte de capa de Kevin Murphy.

Adiamante, de L. E. Modesitt, Jr. Nova York: Tor Books,1998 [1996], 312 páginas. Capa de Kevin Murphy. Paperback. Assim como Jack McDevitt, comentado mês passado, Modesitt é um escritor que se repete muito mas sempre entrega um trabalho consistente, despretensioso e, muitas vezes, instigante. É o caso deste Adiamante, obra de impacto que se expressa como exercício de filosofia moral numa ficção científica de futuro distante. Nesse futuro, a humanidade se dividiu em três grupos: os demi[gods], os cyb[orgs] e os draffs. Num passado indeterminado, o cybs se insurgiram e foram expulsos da Terra. No tempo do romance, eles retornam com uma esquadra de naves superpoderosas feitas com a substância mais resistente que a tecnologia humana é capaz de produzir: o “adiamante” do título.

Uma das características do autor é narrar na primeira e na terceira pessoas. Aqui o livro acompanha, na maior parte, a narrativa do protagonista, Ecktor. Ele é o Coordenador planetário da Velha Terra, indicado quando os cybs ressurgem. A sociedade que representa e fundada no respeito ao indivíduo, no aproveitamento energético (até a classe dirigente tem que prestar serviços à comunidade, quando consome energia com caprichos) e na recuperação ambiental. Ecologia é um tema de Modesitt — o primeiro livro dele que li foi um ecothrillerThe Green Progression, escrito com Bruce Scott Levinson. Em Adiamante, a humanidade, escolada em guerras e poluição em escala planetária, aprendeu as lições da história. Os demis adotaram um código estrito de conduta ética e integraram a própria ideia da resistência pacífica aos seus genes — exatamente dentro da conclusão de Reinhold Niebuhr em Moral Man and Immoral Society (1930), que discuti aqui em julho. A maior parte do intenso suspense que surge do romance vem de sabermos o tempo todo que os demis têm poder para destruir os cybs (Ecktor tem um pedaço de adiamante como peso de papel), mas evitam fazê-lo até que as intenções dos invasores, por seus próprios atos, fiquem claras. A única coisa que eles jamais farão, é um ataque preventivo, coisa que virou doutrina oficial americana durante a administração George W. Bush.

“Poder sem moralidade é o desastre; moralidade sem poder é inútil.” —L. E. Modesitt, Jr. Adiamante.

Além disso, a impossibilidade de comunicação quando os sistemas de valores são opostos também é marcada ao longo da narrativa, com Ecktor padecendo de um isolamento moral em relação aos cybs, que é partilhado por toda a coletividade de demis. Esse grupo escolhe o sacrifício de grande dos seus quadros, para que não cometessem um ato que iria corromper e destruir as bases da sua sociedade — eles têm sua própria versão da “psico-história” de Asimov, com previsões de alta percentagem indicando isso. Uma escolha tão singular, que só encontrei exemplos semelhantes em duas outras ocasiões, nas minhas leituras: na novela “Zanzalá” (1938), do brasileiro Afonso Schmidt (mas em tom farsesco), e no romance Pastwatch: The Redemption of Cristopher Columbus (1996), de Orson Scott Card. A FC costumava ser assim… romances compactos que dramatizavam com engenhosidade conceitos éticos e sociais caros à civilização. Esta foi uma das minhas melhores leituras neste ano, até aqui. A capa de Kevin Murphy é simples mas busca o tipo de textura de materiais que o mestre inglês Jim Burns costuma realizar.

“Apesar de todas as nossas redes, de todas as nossas comunicações, os humanos — cybs ou demis — são alienígenas, alienígenas uns para os outros, e para o universo, e é por isso que devemos ter confiança.” —L. E. Modesitt, Jr. Adiamante.

 

Arte de capa de Paola Giometti.

O Chamado dos Bisões, de Paola Giometti. São Paulo: Andross Editora, 2017, 144 páginas. Capa e ilustrações internas de Paola Giometti. Brochura. Ramo talvez recursivo da fantasia — hipótese enfatizada pela série Redwall do escritor inglês Brian Jacques (1939-2011) —, a fábula de animais é um pouco rara no Brasil. Eu gosto de bichos, e desse tipo de fábula desde que li uma num livro da Disney, quando era menino. Por sorte, tenho feito a preparação de texto da série de fábulas sobre animais norte-americanos escrita por Paola Giometti, e que inclui O Destino do Lobo (2014) e O Código das Águias (2016). Todos têm a mesma moldura: um jovem que viaja da cidade para zonas mais ermas, florestas e montanhas, onde ouve fábulas de animais importantes para a cultura nativo-americana, pela boca do seu sábio bisavô. O bicho deste terceiro volume é o bisão americano, e o tema é a migração como rito de passagem na formação de uma pequena bisonte que se separou da mãe e do rebanho. Quem conhece os volumes anteriores é premiado com aparições de personagens que viveram as aventuras precedentes. Todos os livros da trilogia tratam dos atritos muito ambíguos entre os animais e os seres humanos. Há um leve toque místico, no culto aos antepassados, pelas várias espécies. Parte da diversão desse tipo de fábula é como os animais são humanizados — aqui, com a inclusão de atitudes e modos de falar dos jovens. A função moralizante da fábula é explicitada pelas reações do jovem que ouve a história contada pelo avô. Com este livro, lançado em 12 de agosto na Biblioteca Viriato Corrêa, a série Fábulas da Terra se completa como uma trilogia. O lançamento contou com convidados muito especiais, duas corujas e uma águia-chilena mantidas pelo grupo de criadores Turma do Gavião, sendo que a águia Ragnar e a coruja Sansão aparecem como personagens no livro. (Minha esposa Finisia Fideli adorou ver os bichos e conversar com os criadores.) Giometti, que escreve com graça e vivacidade, e ilustra os próprios livros, pretende escrever agora narrativas de realismo mágico.

 

Arte de capa de Steve Stone

Dragon Haven: Volume Two of the Rain Wilds Trilogy, de Robin Hobb. Nova York: EOS, 1.ª edição, 2010, 508 páginas. Capa de Steve Stone. HardcoverEste é o segundo livro da tetralogia Rain Wild Chronicles, de Robin Hobb. E parte de uma longa série muito maior, iniciada com a Trilogia Farseer, conhecida no Brasil como Trilogia do Assassino. Hobb é o pseudônimo de Megan Lindholm, que apareceu na Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Científica com esse nome. Hobb/Lindholm é uma das melhores autoras de fantasia que conheço. Seu vasto mundo secundário é complexo e humano. A Trilogia Liveship Traders termina com o retorno de um dragão aos céus desse mundo. Um número de serpentes marinhas consegue se instalar no Rio Rain Wilds, onde criam casulos que vão chocar os dragões. Na Trilogia Tawny Man, dois personagens marcantes da Trilogia Farseer, Fitz e o Bobo, integram expedição a terras distantes e geladas, em busca de um dragão congelado. O Bobo diz que o seu objetivo na vida é trazer os dragões de volta ao mundo — uma loucura, na visão de Fitz. Para quê trazer feras destruidoras, famintas e arrogantes de volta? Para equilibrar a arrogância humana. Um projeto que tem a minha simpatia, e é a razão não religiosa mais abstrata possível para o preservacionismo ambiental.

No primeiro livro das Rain Wilds Chronicles, Dragon Keeper (2010), um grupo de dragões mal-formados emerge dos casulos. Eles não se viram sozinhos, e o Conselho de Comerciantes da cidade de Trehaug não quer pagar pelo seu sustento. Para se livrar dos dragões, montam uma expedição à cidade perdida de Kelsingra, em algum lugar subindo o rio. Jovens indesejados de Trehaug são convertidos em tratadores de dragões, e enviados com os bichos. A garota Thymara é um deles, e a expedição conta ainda com a aristocrata de Bingtown (a cidade da Trilogia Liveship Traders) Alise Kincarron, uma erudita no estudo dos dragões, que vai acompanhada de seu amigo de infância Sedric Meldar — o amante secreto do marido de Alise, Hest Finbok. Dragon Haven discute o quanto o secretismo em torno da homossexualidade leva a comportamentos esquivos: Sedric deseja comercializar partes de dragão, de alto valor de junto aos salcedeanos, uma das nações mais canalhas do mundo secundário criado por Hobb. Seu objetivo é enriquecer o bastante para viver com Hest sem precisar esconder o relacionamento. O livro também enfoca o sexo e os custos da gravidez adolescente, considerando que, por viverem no Rio Rain Wilds, os tratadores sofrem de deformidades que limitam sua chances de reprodução. Nem sempre eles entendem isso, e Thymara, em particular, é pressionada a escolher um parceiro para evitar atritos entre os rapazes. De personalidade forte, ela resiste. Os percalços do enredo incluem uma cabeça d’água que causa baixas na expedição; as ideias utópicas do tratador Greft, de criar sua própria sociedade livre em Kelsingra, fazendo uma guinada na direção de O Senhor das Moscas, de William Golding; o conflito entre os expedicionários, fomentado por traficantes de partes de dragões, infiltrados entre eles; e a maturação violenta dos próprios dragões, que começam a transformar fisicamente seus tratadores, como fizeram no passado na civilização desaparecida dos elderlings. Hobb é mestre em encontrar o timing preciso entre os diversos pontos do enredo, e quando o seu discurso sobre sexo e gravidez adolescente parece estar enchendo a paciência, ela põe em cena os mais terríveis argumentos. Sua sensibilidade a faz também relativizar o papel desagregador de Greft, e o retrato da homossexualidade que vinha construindo — achando um namorado honesto e dedicado para Sedric. Os elementos do gênero romance, combinados com a fantasia, estão mais claros no relacionamento apimentado de Alise com Leftrin, capitão da barcaça que acompanha a expedição. Um homem rude, mas que a aprecia mais do que o arrogante Hest jamais o faria.

Os dragões são um interesse à parte, na sua arrogância e pomposidade, e na interação com os jovens tratadores. Ao contrário daqueles de Game of Thrones, eles falam e também se comunicam telepaticamente. A ilustração de capa de Steve Stone tem uma bonita tonalidade, mas qualquer fã de fantasia vai dizer que seus dragões são um completo engano.

 

Arte de capa de Carlos Chagas.

Céu Vermelho, de Júlio Emílio Braz. Rio de Janeiro: Editora Ao Livro Técnico, 1995, 56 páginas. Capa e ilustrações internas de Carlos Chagas. O ano de 1995 foi aquele em que as coleções Novos Mundos da Ficção Científica (Francisco Alves) e Ficção Científica GRD (Edições GRD) deixaram de circular. A publicação de FC no Brasil, que já era esporádica, minguou ainda mais — situação que só se reverteu oito ou dez anos depois. A área juvenil sempre foi mais rica, mas nela também a FC tinha uma presença incerta. O colega Júlio Emílio Braz, um dos poucos afro-brasileiros trabalhando no campo da FC, foi roteirista de quadrinhos e escritor de livros de western para a Editora Escala, sob pseudônimo e vendidos em banca de jornal. Quando se instalou no campo infantojuvenil, ganhou fama e foi publicado no exterior. Imagino o quanto este Céu Vermelho — que encontrei outro dia numa arrumação — não representa um momento de transição do Júlio Emílio. Tem muito de faroeste, com perseguição a ladrões de cavalos, circo de horrores, duelo em saloom e confronto final entre herói e vilão. A palavra “xerife” conseguiu se enfiar no texto, inclusive…

Mas é ficção científica. Do tipo ufológica com direito a OVNIs e “ufonautas tipo 1”: um alienígena sinistrado na Terra acaba se integrando à família do militar que o abriga. Isso, num canto do Sul do Brasil chamado Cerros Bravos, na segunda metade do século 19. Lembra aí “Um Moço Muito Branco” (1962), de Guimarães Rosa, passado em Minas Gerais em 1872, com um alien abandonado acidentalmente nos rincões do lugarejo Serro Frio… O E.T. de Céu Vermelho conquista as crianças do lugar, manipulando a matéria e curando um guri com poliomielite, mesmo enquanto o padre local (que tem um não explicado neto) quer organizar um grupo de linchamento contra ele. Mas é um bando de bandoleiros que o ameaça de fato, capturando-o para a dona de um mafuá de passagem pela região. Li outros livros juvenis de Júlio Emílio (que li quando meu filho estudava no Colégio Notre Dame aqui perto de casa, onde conhecemos o escritor numa feira de livros dentro da escola). Neles, nota-se que o autor não é fã de finais felizes. Este não é exceção. O conto de Rosa tem no “estilo roseano” a marca maior, a novela de Júlio Emílio, também ela com um léxico rico, talvez devedor de Erico Verissimo, é marcada pelos elementos de aventura que ele combinou.

A Editora Ao Livro Técnico é responsável pela publicação do primeiro livro de arte de FC lançado no Brasil, Naves Espaciais: 2000 a 2100. Sua edição de Céu Vermelho deixou a desejar na revisão, mas a capa e as cinco ilustrações internas (em preto e branco) de Carlos Chagas são um plus. Chagas está lá com Manuel Victor como um dos grandes da ilustração de livros para crianças no Brasil, e embora aqui ele não explore muito os elementos de FC, suas artes remetem à pintura brasileira dos tipos regionais (tipo José de Ferraz Almeida Junior), reforçando a mistura sugestiva que o escritor criou. Há pelo menos mais um livro de FC juvenil pela editora, Os Semeadores da Via Láctea, de Paulo Rangel. Também com arte de Chagas.

 

Romance com Pessoas: A Imaginação em Machado de Assis, de José Luiz Passos. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014 [2007], 400 páginas. Brochura. Ainda envolvido com Machado de Assis, desta vez peguei um estudo a respeito dele, pelo professor universitário e romancista José Luiz Passos. Seu O Sonâmbulo Amador ganhou o Grande Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2013. O foco deste estudo está em como Machado busca na psicologia dos seus protagonistas a exploração da moralidade e das máscaras que usamos para transitar dentro da sociedade. Passos afirma que o nível de penetração psicológica que Machado alcançou seria uma contribuição dele para o romance latino-americano (embora não forneça contra-exemplos).

Um dado interessante é o quanto Machado teria bebido de William Shakespeare. Isso parece óbvio para quem conhece seus contos e romances, mas Passos foi além e fez um levantamento das ocorrências de Shakespeare, menções e citações, na obra toda de Machado. Há uma listagem no final do livro, com ocorrências majoritárias de peças como Otelo e Hamlet. Muito menos das que tratam da história da Inglaterra, e menos ainda, não pude deixar de notar, daquelas com elementos fantásticos como A Tempestade e Sonho de uma Noite de Verão. A tradução de um romance de Vitor Hugo também pode ter influenciado Machado na adoção das suas estratégias literárias mais características, assim como a obra do russo Ivan Turgueniev. Passos revela que o interesse de Machado pelo realismo teria surgido da sua apreciação do teatro da época, já que foi crítico de teatro e já que o realismo chegou antes às artes brasileiras via teatro, e não pela prosa literária. Aí também tem-se uma pista do privilégio do adultério como tema na sua obra, já que foi um assunto muito visitado por esse teatro pioneiro. O livro tem um estilo acessível e apresenta capítulos relativamente curtos, escritos com leveza e uma certa autonomia. Assim, os argumentos de um reforçam os de outros, mas sem que haja uma lógica de tese universitária amarrando-os — o que é muito positivo. O foco está nos romances de Machado, embora o autor também mencione alguns contos e novelas. Cita muito Antonio Candido e Roberto Schwarz, como seria de se esperar, mas também alguns estrangeiros, e trata ainda da polêmica entre Machado e um dos seus primeiros críticos, Sílvio Romero. Em tudo, expressa a admiração pelo modo como Machado de Assis deu a seus personagens o caráter de pessoas.

“Será que ganhamos algo de fundamental quando consideramos os protagonistas de um romance pessoas, e não meras instanciações simbólicas de qualidades mais abstratas?” —José Luiz Passos. Romance com Pessoas: A Imaginação em Machado de Assis.

 

Dicionário de Pequenas Solidões, de Ronaldo Cagiano. Rio de Janeiro: Língua Geral, Coleção Ponta-de-Lança, 2006, 136 páginas. Texto de orelha de Ignácio de Loyola Brandão. Brochura.  Conheci Ronaldo Cagiano por intermédio do escritor mineiro João Batista Melo, que, como contista, às vezes explora a ficção científica e a fantasia. Quando João Batista vem a São Paulo, costumamos nos reunir os três (às vezes quatro, quando a esposa de Cagiano, a escritora Eltania André, o acompanha) para um papo. Cagiano e eu temos algumas coisas em comum: somos fãs de João Batista; costumamos reclamar muito da situação do mercado editorial; somos os dois oriundos de cidades pequenas, ele de Cataguases-MG, e eu de Sumaré-SP — duas cidades que contribuíram incidentalmente para a ficção científica. Mas ele escreve ficção literária e eu, ficção de gênero.

Alguns dos 14 contos do livro se passam em Cataguases, outros em Brasília, por onde Cagiano também passou. Um deles, “Encontros”, narra a passagem de Franz Kafka (1883-1924) por Cataguases nos idos de 1910, instigado pelo cineasta pioneiro Humberto Mauro (1897-1983) e acompanhado de Max Brod. Por isso talvez possamos classificar o conto como história alternativa… Outros contos falam das angústias da vida brasileira, focados em personalidades constrangidas por experiências de infância ou juventude, como a menina violentada em “O Abuso”, a prostituta assassinada em “Solidão”, o jovem frívolo que herda responsabilidades inesperadas com a morte do irmão em “Juízo Final”, a solidão de uma imigrante georgiana entre seus cachorros em “Pavlov”… Uma coisa que me agrada em Cagiano é o fato de ele se esquivar da prosa minimalista que veio a dominar a literatura brasileira com a Geração 90. Seu estilo é mais rico e remissivo dos momentos da literatura e da cultura brasileira que compõem sua formação como escritor, imagino que aqueles estabelecidos especialmente na década de 1970, bastante críticos da urbanização e desumanização da sociedade brasileira. Esse tipo de enfoque e a prosa literária que advém dele tendem ao mergulho psicológico e a um tom introspectivo, reflexivo, que para ser bem marcado costuma limitar a voz dos personagens ou embuti-la num discurso indireto livre. Dos 14 contos, nenhum deles apresenta situações de diálogos — o que não deixa de ser um tipo de redução… A edição da Língua Geral é muito bonita, com uma capa mais rígida do que o costumeiro, uma cinta emborrachada que a abraça (não aparece no scan acima) e apenas uma orelha, assinada por ninguém menos que Ignácio de Loyola Brandão.

“Quando você abre o livro e começa pelos contos da mulher violentada e a visita de Kafka percebe que está diante de um escritor que sabe o que fazer, sabe para onde vai, como se vai, as conduções que deve tomar … Cagiano é um autor que te prende na primeira página.” —Ignácio de Loyola Brandão.

 

Half Life, de Hal Clement. Nova York: Tor Books, 2000 [1999]. Paperback. Hal Clement (Harry Clement Stubs; 1922-2003) escreveu o clássico da ficção científica Mission of Gravity (1953), importante para a retomada da FC hard americana na década de 1970, com Larry Niven et alii. Ainda na primeira metade da década de 1990, a Editora Aleph contratou esse romance, produziu uma tradução e encomendou uma linda capa feita por Vagner Vargas. Mas o livro acabou não saindo. Assim como Mission of Gravity, este Half Life foi primeiro publicado em partes em uma revista, a Absolute Magnitude, mas como histórias interligadas — um fix-up, portanto.

A aventura se passa em um futuro em que a humanidade e a vida na Terra parecem ter seus dias contados. Uma profusão de doenças degenerativas jogou a expectativa de vida para metade da atual. As ciências exatas foram arregimentadas e militarizadas para concentrar o esforço de salvação da humanidade. Uma nave com uma tripulação de doentes terminais é enviada a Titã, a lua de Saturno. Vai em busca de traços de substâncias ou compostos pré-bióticos (constituintes químicos da vida biológica) que possam lançar luz sobre a formação da vida e, indiretamente, sobre a atual ameaça à vida na Terra. Uma FC hard baseada em microbiologia ou bioquímica, portanto (Clement foi professor da área). Há muita ironia tanto na premissa quanto no modo como o romance é narrado. O narrador onisciente salta de personagem em personagem e levantando os pontos científicos, mesmo que muito se desenvolva por meio de diálogos entre os tripulantes que, de tão doentes, não se comunicam fisicamente. Mais ainda em como as mortes dos homens e mulheres bombardeados da tripulação pontuam os passos e as descobertas da expedição, envolvendo uma substância de aparência betuminosa que corrói superfícies metálicas e trajes espaciais. Daí surge, aliás, um estranho senso de estoicismo que é uma das marcas da narrativa. As mortes e a investigação científica mantêm o suspense até o finzinho. O desfecho, ironicamente nada retumbante, sugere a descoberta de uma pista promissora em torno de enzimas perturbadas pelos metais pesados acumulados na biologia humana e animal. A verve de Clement torna Titã um mundo fascinante, e o destino que ele dá aos adoentados tripulantes é uma saudação à persistência da vontade humana. A arte de capa anônima tem Titã, os anéis de Saturno e um “código de barras genético” (atrás do título), mas não comunica muita coisa e parece indistinta e improvisada.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Chris Bachalos & Tim Towsend.

Star Wars Infinitos: O Império Contra-Ataca (Star Wars Infinities: The Empire Strikes Back), de Dave Land (texto) e Davidé Fabbri (desenho). Barueri-SP: Panini Comics, 2017, 108 páginas. Capa de Chris Bachalos & Tim Towsend. Brochura. Em abril, li o primeiro desta série Infinitos, de narrativas alternativas de Star Wars. O Império Contra-Ataca é o meu favorito dentro da franquia no cinema, e fiquei curioso com este livro de quadrinhos. Infelizmente, tanto o roteiro de Dave Land quanto a arte de Davidé Fabbri são inferiores àquelas de Star Wars Infinitos: Uma Nova Esperança, embora com uns pontos interessantes. Começa que a arte de Fabbri e a colorização de Dan Jackson puxam muito para o infantil.

A história abre com Luke Skywalker sendo morto por dois monstros da neve (e não apenas um, como no filme) no planeta Hoth. Mesmo com o pupilo mortalmente ferido, Ben Kenobi aparece e faz um apelo idiota para que ele vá ao planeta Dagobah instruir-se com Yoda. Depois da escaramuça abreviada com destroiers do Império, Han Solo vai parar em Bespin, onde, na cidade das nuvens e já reunido ao amigo Lando Calrissian, troca sopapos com o caça-prêmio Boba Fett. Quando Han finalmente chega a Dagobah, acompanhado da Princesa Leia, descobre que ela é o Skywalker que pode recolocar a força em equilíbrio. É bom ver Leia valorizada e Yoda outra vez no centro das ações (em O Retorno do Jedi ele morre de velho!), mas faltou desenvolvimento. Esta versão tem como ápice uma longa sequência em Dagobah, muito interessante por ter Yoda usando um recurso da força que eu nunca tinha visto antes: uma memory trip que faz Darth Vader rever seus crimes, desde os tempos de padawan. Tendo acesso aos seis filmes canônicos, Land também convoca para essa sequência Kenobi, Mace Windu e Qui-Gon Jinn, que esfregam sal nas feridas morais de Anakin Skywalker. Ao contrário de Star Wars Infinitos: Uma Nova Esperança, esta versão alternativa de O Império Contra-Ataca deixa o imperador fora da ação — e derradeiramente não faz jus ao ótimo filme de Irvin Kershner. (Que, aliás, não precisa de versões alternativas.) Estranhamente, a Panini deixou de dar crédito aos artistas das outras três capas da edição em partes, que aparecem no miolo do livro.

 

Star Wars: Império Despedaçado (Star Wars: Shattered Empire), de Greg Rucka (texto) e Marco Checchetto, Angel Unzueta e Emilio Laiso (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2016, 108 páginas. Capa de Phil Noto. Capa dura. Este livro surgiu ano passado com o selo Jornada para Star Wars: O Despertar da Força; ou seja, vem pavimentar o terreno entre o episódio VI, O Retorno de Jedi, e o VII. Devo dizer antes de mais nada que a arte do italiano Marco Checchetto chama muito a atenção. Ele também está na revista Star Wars nas bancas, edições 016, 017, 018 e 019, com uma aventura de Obi-Wan Kenobi & Anakin Skywalker num mundo meio steampunk. Pena que Checchetto não pôde desenhar o livro inteiro, mesmo porque a oscilação da arte incomoda.

A história começa na Batalha de Endor, quando Luke Skywalker foge da Estrela da Morte II com o seu moribundo pai. Um caça asa-A dos rebeldes intercepta o shuttle Tyridium que Luke pilota, e o poupa quando ele se identifica, passando a escoltá-lo até a lua de Endor. Quem pilota o caça é uma jovem morena chamada Shara Bey. O leitor passa a segui-la numa sucessão de episódios em que ela acompanha Han Solo, Leia Organa e Luke Skywalker em missões do tipo limpeza ou mop-up, enquanto o Império balança com a notícia do fim de Palpatine. A sequência inicial é bem feita, e não apenas as naves são perfeitamente reproduzidas, como traz as marcas da estrutura narrativa vista os filmes, com muitas comunicações em off e naves se cruzando no espaço. Checchetto também é um bom fisionomista, captando bem as caras dos heróis principais, mesmo enquanto mantém seu estilo. Shara, em especial, é encantadora por ter um rosto jovem de expressão ao mesmo tempo alerta e melancólica. Durante a comemoração triunfal em Endor, ela dá uma escapada com o marido, parte de uma tropa de operações especiais de infantaria. Quando Han chama essa grupo de combate, ela vai junto como piloto. Ao saber que o nome do marido é Kes Dameron, fica evidente que ela é mãe de Poe Dameron. A principal linha trata de como Shara, Leia e uma terceira garota salvam um mundo importante para o passado tanto de Leia quanto de Anakin Skywalker, de uma nova arma destruidora de planetas — via manipulação meteorológica. Esse segmento é ilustrado por outro artista, o espanhol Ángel Unzueta, que carece do charme de Checchetto. Numa espécie de epílogo, Shara reencontra Luke, pilotando para ele numa missão para recuperar duas mudas de uma árvore que antes existira dentro do templo jedi em Corusant (deve constar de algum romance ou HQ do universo expandido, imagino). Muitas aventuras, para uma moça que queria mais que tudo liquidar sua fatura com a Aliança Rebelde e se recolher em um planeta pacífico, com o marido e o filho.

A narrativa de Greg Rucka me pareceu mais complexa do que costumamos ver nessas HQs de Star Wars, mais episódica também. Mas a alternância de artistas acaba prejudicando o fluir do roteiro. A galeria de capas alternativas das revistas que forneceram o material para o livro inclui uma arte do brasileiro Mike Deodato. Essa que aparece na capa da versão em livro, tipo foto de família e  sem muito brilho, é de Phil Noto e não casa bem com o título.

 

Outras Leituras

O ícone do tumbler Brude’s World

Brude’s World, um tumblr de ilustrações. Eu visito muitos tumblrs de ilustração e imagem, em geral meio que sem sistema e normalmente abrindo direto o arquivo e escolhendo de lá as imagens que quero baixar. Mas recentemente encontrei este Brude’s World que me impressionou com uma curadoria sólida que bate bem com o meu gosto: lida com ficção científica, fantasia e horror na literatura, cinema e quadrinhos e a presenta uma boa continuidade entre esse gêneros e campos. Também entre o ontem e o hoje, recuando até imagens da antiguidade clássica e da ilustração e pintura do século 19 (incluindo os pintores pré-rafaelitas), com alguma coisa de erótico aqui e ali. Acho que tem uma das melhores curadorias dos tumblrs que estão por aí. Quem quer que seja o dono ou donos do tumblr, ele(s) conhece(m) a história desses gêneros e sabe(m) quem são os grandes nomes e o que é um desenho e uma arte-final de qualidade. Tem material lá de Frank Frazetta, Virgil Finlay, Frank R. Paul, Ed Emshwiller, Chesley Bonestell, Jack Kirby, Edward Burne-Jones, J. Allen St. John, N. C. Wyeth, Gustave Doré, Barry Windsor-Smith, Bernie Wrightson, Boris Vallejo, Jeffrey Catherine Jones, Drew Struzan, Moebius e Arthur Rackham. De vez em quando aparece algum brasileiro como Henrique Alvim Corrêa, Benício ou Mike Deodato. As postagens são frequentes e incluem ocasionalmente gifs e vídeos, e muitos daqueles posters alternativos — um tipo de arte de fã ou cartão de visitas de artistas ou estúdios, que virou moda nos tumblrs. Seu slogan é: “Poder, paixão, pin-ups e posters. Quadrinhos, belezuras, criaturas e calafrios.”

 

O banner com o logotipo do site Pulp International

Pulp International. Este é um site baseado em San Jose City, nas Filipinas, e quando diz que é internacional, é internacional mesmo. Traz muito material americano, mas também inglês, alemão, francês, australiano, japonês, mexicano, espanhol, indiano e até brasileiro — como esta postagem sobre a série ZZ7 de ficção de espionagem protagonizada por Brigitte Montfort e ilustrada pelo rei das pin-ups brasileiras, Benício. A definição de pulp que o site adota também é muito ampla, compreendendo a literatura e a indústria editorial centrada nela, e revistas pulp de todo tipo, não apenas de ficção mas de crime da vida real, pornografia (soft, na maior parte), cobertura de Hollywood, e os filmes, séries de TV e quadrinhos derivados. As postagens se agrupam em dez por páginas, o motor de busca funciona bem e os comentários muitas vezes são extensos e interessantes. A maior parte do conteúdo é vintage, mas às vezes aparece alguma postagem sobre algo moderno ou contemporâneo. Em agosto, estive lá baixando uma quantidade de capas de paperbacks de ficção de crime hardboiled com ilustrações de automóveis (vá entender…). Fiquem avisados: nesse site às vezes a gente tropeça em alguma coisa realmente de mau gosto. Mas pulp também é isso, não é verdade?

Roberto Causo

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Leituras de Julho de 2017

A marca das minhas leituras deste mês foi uma ficção científica que sublinha a persistência da condição humana. Nos quadrinhos, mitos indígenas e hindus…

 

Doomsday Book, de Connie Willis. Norwalk, Connecticut: The Easton Press, 2001 [1992], 446 páginas. Ilustração de frontispício de Jerry Vanderstelt. Introdução de Pamela Sargent. Hardcover. Os meus livros da The Masterpieces of Science Fiction, da Easton Press (editora especializada em “livros de estante de senador americano”), são lembrança da época em que fui bolsista da FAPESP e podia assinar a coleção. Este multipremiado romance de Connie Willis acaba de ser lançado no Brasil pela Suma de Letras, como O Livro do Juízo Final, traduzido por ninguém menos que Braulio Tavares, um dos dois ou três mais da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira (1982-2015). Willis está entre os primeiros nomes da chamada “corrente humanista” da FC pós-modernista americana da década de 1980, alternativa ao Movimento Cyberpunk. É uma das autoras mais premiadas da FC americana, vista antes no Brasil apenas na Isaac Asimov Magazine.

O livro de Willis é citado no guia Anatomy of Wonder como um dos melhores romances de viagem no tempo, e está na lista de clássicos do crítico John Clute. Nele, a jovem historiadora Kivrin viaja à Idade Média como parte de um mal-administrado programa na Universidade de Oxford. Enquanto ela desembarca nas mesmas vizinhanças de Oxford mas na primeira metade do século 14, em 2050 o seu supervisor Mr. Dunworthy parece ser o único a se preocupar com o destino dela, enquanto a Oxford do futuro entra em quarentena, vítima de um mortal surto de gripe. Separados por séculos, Kivrin e Dunworthy vivem o tipo de isolamento moral próprio de quem sabe de algo que ninguém mais reconhece, e que os força a assumir duras responsabilidades. Há outros paralelismos – o tema da praga mortal, parte da FC de fim de mundo, é uma constante. Mas também o humor — Willis é uma das humoristas mais competentes da FC recente, com um humor centrado nos tipos humanos e em diálogos dignos de peças teatrais de comédia de costumes, com falas cruzadas divertidíssimas. Nas duas épocas que o romance explora, há crianças espirituosas e valentes: Agnes (5 anos), no passado; e Colin (12 anos), no futuro. O fato de o espaço ser mais ou menos o mesmo — a região de Oxford — nas duas épocas é muito bem explorado pela autora, que consegue dar um teor muito íntimo à narrativa e aos dilemas dos dois heróis. No passado, Kivrin está imersa em uma “sociedade de mulheres”: a esposa, as filhas e a mãe de um nobre que ficou na cidade grande, enviando a família para o campo por razões misteriosas. Mas é com o Padre Roche que ela se identifica mais. Pode-se dizer, porém, que o papel de Roche é mais feminino do que qualquer outra coisa: assim como Dunworth, Roche é um homem que cuida das pessoas à sua volta. Talvez à maneira das mulheres pioneiras do período colonial americano, Kivrin se torna um baluarte da pequena vila que a recebeu. Os estereótipos masculinos nobres da Idade Média, como o cavaleiro audaz e galante, são esvaziados. O livro também traz toques sobre o status sexual da mulher — no passado, uma menina de 12 anos deverá se casar no ano seguinte com um homem de quase 50; no futuro, jovens estudantes universitárias fazem fila para namorar um rapaz pegador. De um lado o comentário é trágico; do outro, cômico. O leitor cairá na armadilha da autora, se achar que esse esquema vigora no livro todo. Seguidamente, Willis nos lembra que não estamos preparados para desafios que envolvam a segurança de quem amamos. Uma lição que transborda da experiência pessoal dos heróis, para contaminar a presunção de que podemos entender intelectualmente os percalços da história da humanidade. Esta não é uma ficção científica sobre máquinas e grandes ideias científicas, mas sim sobre a condição humana. E é nisso que triunfa este que pode ser o grande lançamento da FC no Brasil de 2017.

“Foi o primeiro romance de Connie Willis que li, mas já gostava muito dos contos dela. Não li o livro antes, segui meu processo habitual de ir lendo no máximo uma página à frente, e traduzindo.” —Braulio Tavares, especial para o GalAxis.

 

Adaptação do Funcionário Ruam, de Mauro Chaves. São Paulo: Editora Perspectiva, Coleção Paralelos, 1975, 118 páginas. A FC brasileira da década de 1970, dentro do Ciclo de Utopias e Distopias (1972 a 1982), é pouco conhecida e estudada — dentro de uma produção literária já por si mesma pouco conhecida e estudada. O capítulo de M. Elizabeth Ginway a respeito, no seu Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (2004), é um marco nesse estudo. A novela Adaptação do Funcionário Ruam é discutida lá, e o exemplar que li veio da incrível biblioteca de FC do pracinha, professor e crítico de teatro, colunista de jornal e um dos primeiros da Primeira Onda da FC Brasileira (1957 a 1972) a ser publicado no exterior, Clóvis Garcia. Tem autógrafo e tudo, e atesta o interesse persistente de Garcia pela FC — para ter a biblioteca que ele reuniu, o homem devia bater as livrarias toda semana e frequentar muitos lançamentos. Interessante que o blurb apresente a novela como obra de ciencificção (sinônimo de ficção científica que circulou aqui a partir da década de 1960), fato raro na época, e a define como “orwelliana”. A Coleção Paralelos publicou graúdos como Isaac Bashevir Singer e Paulo Emílio Salles Gomes.

A história se passa numa São Paulo futura. É divertido reconhecer os diversos pontos da cidade, renomeados com uma dicção meio estrangeira — algo que Afonso Schmidt já tinha feito no conto “O Último Homem”, de 1928. Chaves vai além, brincando com palavras, aglutinando termos do inglês, francês ou espanhol a palavras portuguesas. Há ecos do Modernismo de 22 nisso:

“Que imediatamente Carliós saltou da esterola. Puxou então seu apitor. Pendido do pescoço, subeveste. E deu três longos apitos gesticulando para todos os transeuntes daquele plano de underground.” —Mauro Chaves, Adaptação do Funcionário Ruam.

Há outros recursos formalistas: cada capítulo é desenvolvido em parágrafo único (narrado por um computador); a prosa poética assume alguns trechos; situações absurdistas são evocadas. A história começa com Ruam sendo um caxias da “armitropa” que mantém o regime da potestade no futuro. Mas  não consegue esquecer o triângulo bissexual (ordenado pelo regime) que viveu com a esposa Miraia e um soldado morto em combate. O amor erótico dele por Miraia o faz voltar-se contra o regime — praxe da distopia clássica desde o recém-relançado Nós (1924), de Yevgeny Zamyatin, mas aqui numa original cena homoerótica de absurda conferência de estratégia militar numa sauna com piscina. O regime parece ter absorvido os elementos de tipicidade da cultura brasileira: o “fotebol” que todos são obrigados a jogar, onde quer que estejam, duas vezes por dia; o “carnavel” em que um robô tortura os dissidentes “Contaminados”; a mestiçagem “purimarrona”; e até mesmo a iconoclastia e a oposição — os Contaminados têm uma repartição nos prédios do governo. O livro flerta com a ideia da potestade como regime fantoche de conglomerados internacionais. Quando o regime cai, os conglomerados treinam os cidadãos em visões místicas de revelação religiosa – que também falham com Ruam. Ele então é jogado num buraco de Alice e vai parar na São Paulo contemporânea. É preso, internado em hospício e violado por um enfermeiro. Mas o livro também flerta com a noção de que tudo não passava de um surto esquizofrênico ou pesadelo, como em Miss Ferrovia 1999 (1982), de Dolabella Chagas (no qual o sexo homossexual também tem presença). Trata-se, no fim, de realidade sintética em que vários cenários são jogados na consciência de Ruam, para fazê-lo conformar-se. Mais parecido, então, com os posteriores Jogo Terminal (1988), de Floro Freitas de Andrade (também com homossexualismo e computadores tiranos), e o dickiano O Alienado (2012), de Cirilo S. Lemos. O pequeno livro de Chaves curiosamente se posiciona como entroncamento de diversos momentos da FC brasileira. Por codificar muito da literatura pop brasuca da década de 1970, e como ela manipulou a FC distópica.

 

Arte de capa de John Harris.

The Devil’s Eye, de Jack McDevitt. Nova York: Ace Books, 2009 [2008], 374 páginas. Capa de John Harris. Paperback. Dizem que toda família tem um tio chato que nem por isso ela deixa de amar. Se a ficção científica americana é uma família, o tio chato deve ser Jack McDevitt. Especialmente nos romances da série Alex Benedict — da qual já falei aqui antes. E não obstante, esta é a sexta aventura de Benedict que eu leio. Ele é um antiquário do futuro distante — dez mil anos no futuro, com a humanidade espalhada pela galáxia, que é ocupada por apenas uma outra civilização conhecida, os telepatas chamados de “mudos”. Os romances flertam com a aventura e o mistério (do tipo investigativo). Mas invariavelmente o que começa como um mistério do tipo “quem matou?” ou “onde está o objeto roubado?” termina num outro tipo de mistério: o cósmico. Isso é positivo, ao meu ver. Benedict deveria ser uma resposta da FC ao criminalista excêntrico dos romances de mistério do tipo Detection Club de Agatha Christie & Cia., mas o problema é que ele é chato e amorfo. Sua colega investigadora, a piloto espacial Chase Kolpath, faz as vezes do Dr. Watson. Como narradora, ela não traz muito sabor à narrativa — e como personagem, costuma estar a dois passos de ser uma mulher superficial. Mais que isso, a proposta do autor parece ser afirmar que a natureza humana é imutável. Argumento problemático em si, mas não deixa de ser refrescante num contexto pós-cyberpunk em que a FC parece querer esfregar a mudança na cara do leitor. Na sua proposta, McDevitt é sempre eficiente, com uma prosa segura que nos coloca nas situações do seu futuro.

Em The Devil’s Eye, uma famosa escritora de horror envia mensagem de socorro a Alex — e uma fortuna em fundos depositados na conta dele. Logo a dupla investigativa descobre que ela mandou apagar a própria memória. A investigação leva a um planeta fora da Via Láctea, que a escritora visitou antes de tomar essa terrível medida. Alex e Chase seguem suas pegadas, visitando locais sombrios de uma sociedade que parece particularmente mórbida. Não só pelo isolamento, mas por ter emergido há pouco de um regime totalitário. As histórias de monstros, de androides mortos-vivos e de fantasmas resultam numa fieira de momentos tipo Scooby-Do, que estão lá mais para despistar o leitor até que os heróis estejam em posição para as revelações verdadeiras. Nessa altura, num movimento incomum dentro da série, Alex meio que desaparece e a mulher de ação Chase assume o protagonismo. O mistério, claro, é cósmico. Uma informação secreta na qual a escritora esbarrou durante sua viagem. As repercussões são globais para o planeta solitário. Se a revelação é o final do romance de mistério, aqui ele é só o terceiro ato neste romance de FC que parece ilustrar a tese de Reinhold Niebuhr em Moral Man and Immoral Society (1930), discutido aqui mês passado: individualmente ou em comunidade, o ser humano consegue ser moral e solidário; no plano da sociedade e do Estado, não, ou com grande dificuldade.

O ilustrador inglês John Harris é um dos grandes ainda em atividade, sempre com uma qualidade muito “pintada”, e constante junto aos romances de McDevitt. Mas às vezes sua arte puxa mais para o estudo do que para a arte-final — como aqui.

 

Arte de capa de G. B. Castagnedo.

Histórias da Meia-Noite, de Machado de Assis. São Paulo: Editora Globo, Coleção Obras Completas de Machado de Assis, 1997 [1873], 154 páginas. Capa dura. Continuo lendo/relendo Machado (1839-1908), visando escrever um ensaio. Na faculdade, tive dois semestres sobre ele — um deles sobre Machado e o teatro. Histórias da Meia-Noite é o segundo livro de contos do autor. Esta edição é parte de uma coleção popular que a Editora Globo colocou nas bancas de revista na década de 1990. Não tem índice, e eu listo as histórias aqui: “A Parasita Azul”, “As Bodas de Luís Duarte”, “Ernesto de Tal”, “Aurora sem Dia”, “O Relógio de Ouro” e “Ponto de Vista”. Parte da fase romântica do escritor número um da literatura brasileira no século 19, focam-se em questões amorosas, rivalidades e suspeita de adultério. As duas primeiras histórias são relativamento longas — noveletas.

A primeira fala de um jovem médico brasileiro que estudou na França, onde vivia a boemia, antes de ser forçado a voltar ao lugarejo de Goiás onde tem família. As coisas começam a ficar interessante para ele quando encontra uma garota que foi sua conhecida de infância, e que, agora uma beldade, ele passa a disputar com um amigo ciumento. A moça gosta dele mas quer manter a paixão platônica que vem nutrindo desde um episódio em que ele cai de uma árvore, depois de pegar uma orquídea para ela. A ironia machadiana está no fato de que, anos depois, ela só se aceita o noivado depois que ele se joga de um barranco. A segunda história dá um panorama divertido e ebuliente, centrado em tipos humanos e numa prosa que salta de personagem em personagem, sobre um grupo de pessoas que se une em torno de um casamento — e do cômico orador convidado para abrilhantar a festa. O conto seguinte trata do personagem título, que disputa uma garota cínica e casamenteira com um anônimo rival. Já “Aurora sem Dia” é um daqueles contos que, mesmo escrito na fase romântica de Machado, faz crítica aos excessos do Romantismo e da conexão entre literatura e política. Junto com “A Chinela Turca” (1875), que comentei mês passado, é talvez um conto anti-romântico, e parece dizer que em Machado as impropriedades intelectuais e artísticas se traduzem como impropriedades sociais. “O Relógio de Ouro” traz um final surpresa em torno da suspeita do adultério. Em todas essas histórias, o narrador onisciente pega o leitor pela mão e, falando-lhe ao pé do ouvido, frequenta espaços sociais e mentais. Mas o último, como o próprio título indica, é exercício de ponto de vista narrativo, limitado pelo formato epistolar, em que duas amigas trocam cartas dominadas pelo assunto de um moço que uma delas parece desprezar, só que não. As oscilações dos sentimentos e humores dos personagens, especialmente jovens e numa sociedade em que a expressão aberta é reprimida, formam o tema da coletânea.

 

Arte de capa de Poliane Gicele.

Guanabara Real: A Alcova da Morte, de Enéias Tavares, Nikelen Witter & A. Z Cordenonsi. Porto Alegre: AVEC Editora, 1.ª edição, 2017, 240 páginas. Capa de Poliane Giceli. Brochura. Uma das práticas que caracterizam a Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira é o intenso processo de atualização das correntes da FC e fantasia no Brasil, tomadas a partir dos desenvolvimentos da década de 1990 para cá, no mundo da ficção especulativa anglo-americana. Quem se aplicou a isso foram editoras pequenas e médias, vinculadas ao fandom e ancoradas na Internet. De tudo o que apareceu por aqui nesse esforço, o steampunk foi a tendência que melhor se fixou, produzindo textos marcantes como conto “Uma Vida Possível Atrás das Barricadas” (2009), de Jacques Barcia, e A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison (2014), de Enéias Tavares.

Este romance a seis mãos apresenta um trio de investigadores em um Rio de Janeiro steampunk, de 1892, às voltas com casos de assassinato e desaparecimento. Representados na competente arte digital de Poliane Giceli (um nome deveras steampunk), estão: a patroa Maria Tereza, uma ex-menina de rua; o místico indígena e dandy cosmopolita Remy Rudá; e o engenheiro e inventor negro Firmino Boaventura. Ela foi desenvolvida por Nikelen Witter, e os rapazes por Enéias Tavares e A. Z. Cordenonsi, respectivamente. Cada capítulo acompanha um personagem. Juntos, eles representam não apenas o mito brasileiro das três raças, mas também o ideal da diversidade independente e orgulhosa. Olhar para o passado com uma perspectiva do presente é tática pós-modernista para a qual o steampunk se presta especialmente bem. A história começa com um assassinato misterioso envolvendo dardos envenenados disparados em um cômodo secreto, revelado acidentalmente na inauguração de uma estátua no Morro do Corcovado. Os três heróis passam a investigar o crime, cada um com os seus talentos, e o desaparecimento de mais pessoas na então capital federal do Brasil. As pistas levam a uma instalação fortificada nos arrabaldes da cidade, onde acontece o clímax do romance. No caminho, uma fieira de ideias intrigantes e bizarras: um demônio imemorial lovecraftiano, vilões insidiosos, próteses mecânicas, carros a vapor, bordéis requisitados, sessões mediúnicas, cultos secretos e missas negras, gorilas ciborgues e máquinas de guerra retrofuturistas. A interação entre os heróis poderia ser mais interessante, algumas sequências muito “econômicas” deveriam ter sido mais desenvolvidas. Faltou alguma preparação de texto. Além disso, a diagramação teria se beneficiado de uma mancha mais compacta. Nada disso invalida este que é claramente o primeiro romance de uma série que vale acompanhar.

 

Arte de capa de Nicolas Antoine Taunay.

Várias Histórias, de Machado de Assis. São Paulo: Editora Globo, Coleção Obras Completas de Machado de Assis, 1997 [1896], 182 páginas. Capa dura. Em relação à coletânea anterior de Machado, Histórias da Meia-Noite, esta, mas tardia em sua carreira, traz histórias mais curtas e muitas delas influenciada pela contística de Edgar Allan Poe (citado na nota introdutória). Há neste livro algumas histórias famosas, como “A Cartomante” (1884), que pode ser lido como conto fantástico (a cartomante sabia ou não que o herói seria vítima de vingança passional?), e que já foi adaptado para o cinema. “Entre Santos” é outra história que bordeja o fantástico, com um padre que, diz o narrador, sonha que ouve os santos conversando na igreja, sobre um fiel de quem o padre dificilmente saberia tanto. Outros famosos: “Uns Braços” (1885) e “A Causa Secreta” (1885), este último uma história macabra digna de Poe, e também um filme. “Viver!” tem um formato incomum, de diálogo (e praticamente sem sumário, o que a aproxima do drama) entre Prometeu e o Judeu Errante — um formato que Poe também utilizou em textos como “The Conversation of Eiros and Charmion” (1839) e “The Colloquy of Monos and Una” (1841). Eu já observei antes sobre o narrador onisciente de Machado, e na história “O Cônego ou Metafísica do Estilo”, esse narrador que conversa diretamente com o leitor acaba sendo abertamente metalinguístico, comentando a própria narrativa ou composição textual. Em outros momentos, o elemento metalinguístico é mais sutil. Em 1990, quando mostrei ao meu amigo Walter Paiva, de Sumaré-SP, as minhas ideias para um romance (Anjo de Dor) em que um jovem pinta uma garota que sai do quadro para estar com ele à sós, Walter reagiu dizendo: “Igual àquele conto de Machado de Assis.” Pois o conto se chama “Mariana” e está em Várias Histórias.

Ler estas duas coletâneas como um parêntese envolvendo A Alcova da Morte foi experiência interessante por ressaltar as diferenças de abordagem e ênfase literárias. Todos se passam no século 19 mas as histórias de Machado, mesmo aquelas que enveredam pelo extraordinário e o bizarro, atrelam-se ao cotidiano e focam-se no mundo interior dos personagens — terríveis faltas da literatura brasileira ao longo das décadas. Em contraste, o romance do trio riograndense tem movimento, aventura e confronto físico. Parece que a aventura como modo literário é a maior e mais ausente subversão literária possível, no quadro das letras brasileiras.

 

Eugenia: Esbozo novelesco de costumbres futuras, de Eduardo Urzaiz. México, DF: Universidad Nacional Autónoma de México, 2006, 134 páginas. Introdução de Carlos Peniche Ponce. Livro de Bolso. Há alguns anos, incitado por M. Elizabeth Ginway, o pesquisador mexicano de ficção científica Miguel Ángel Fernández Delgado esteve em São Paulo para um dos Fantasticons, evento criado por Silvio Alexandre. Deu uma ótima palestra, traduzida por Martha Argel, na qual ficou clara a semelhança entre alguns pontos da FC mexicana e da FC brasileira. Mais tarde, trocamos. Entre eles, este Eugenia, de 1919, e que tem com os brasileiros o assunto eugenia, que apareceu aqui primeiro em 1922 e fez parte do nosso Ciclo de Panfletos Utópicos (1922-1929).

A novela do médico e acadêmico Urzais leva vantagem, por exemplo, sobre Sua Excia. a Presidente da República no Ano 2500 (1929), de Adalzira Bittencourt: é narrativa melhor desenvolvida e menos prescritiva. Seu futuro socialista está longe do século 20. Apresenta famílias compostas por afinidade, controle populacional, sexo livre, a mulher emancipada da maternidade para ocupar posições universitárias, artísticas e públicas, e o fumo corriqueiro da Cannabis indica. Faz crítica ao imperialismo e ao belicismo, prevendo novas guerras mundiais e uma estabilização posterior, via amadurecimento da civilização depois que a eugenia emerge durante o período de repopulação da humanidade. Um dos resultados mais estranhos — e mais originais a esta novela — do processo é o homem assumindo o papel de portador do embrião gerado na mulher, desenvolvendo o bebê no peritônio (gravidez abdominal, ideia que eu usei no meu conto “Pré-Natal”) até a hora da cesariana. Por que a mulher desenvolve repulsa pelo parto nunca é bem explicado, exceto talvez como interiorização radical de um discurso feminista de abandono dos papéis tradicionais, em busca de oportunidades fora da família. Ela se torna mais egoísta e mais livre para ocupar seu espaço na vida pública, enquanto o homem que engravida perde parte do seu suposto egoísmo natural.

Sendo um futuro eugenista, apresenta racismo científico e fala maldades dos africanos, que mandam uma delegação à Villautopia onde se dá a história, para descobrir como usar o método para aperfeiçoar a sua raça, já que falham em cativar gente de raças “mais desenvolvidas” disposta a se misturar com eles para “elevá-los”. Argh! A cena lembra aquela famosa em Admirável Mundo Novo (1938), de Aldous Huxley, em que o leitor acompanha um grupo de estudantes dentro da fábrica fordista de embriões. A intriga amorosa, pinçada do Romantismo, é o elemento que eleva a história acima do testemunho das ideias eugenistas e socialistas que transitavam no México (e no Brasil) do período entreguerras. Uma mulher madura ressente-se do seu jovem amante, um adônis perfeito que, ao ser convocado para o serviço como reprodutor, vai se distanciando dela. Os sentimentos parecem genuínos, mas quando ele se apaixona por uma jovem adolescente de corpo feminino perfeito, chamada sintomaticamente de “Eugenia”, a mensagem é clara: o sentimento trágico do amor não correspondido é o preço a pagar pela mulher que não contribui mais à reprodução, quando o homem segue os seus impulsos de aperfeiçoar a raça. Parece ser um primeiro exemplo de uma questão central das narrativas distópicas do século 20: qual é o lugar do amor romântico ou erótico, na sociedade arregimentada? (Igualmente presente em Adaptação do Funcionário Ruam.) Não sei dizer de onde vem essa ideia do sacrifício do amor romântico em favor de um cálculo frio com tal teor, mas ela  está nos brasileiros Adalzira Bittencourt e em Berilo Neves, que escreveram no mesmo período e flertaram com ideias semelhantes. Quanto à eugenia, sinônimo da seleção artificial aplicada ao ser humano, cuidado aí — ela continua a circular, disfarçada de aperfeiçoamento humano via tecnologia médica ou cibernética, facultada não aos melhores exemplares biológicos, mas a quem possuiria visão e dinheiro (não nessa ordem).

 

Quadrinhos

Arte de capa de Renato Guedes.

Papa-Capim: Noite Branca, de Marcela Godoy e Renato Guedes. São Paulo: Panini Comics, 2016, 82 páginas. Capa de Renato Guedes. Apresentação de Mauricio de Sousa. Capa dura. Marcela Godoy, autora do romance de horror Primeiro Relato da Queda de um Demônio, é uma colega escritora na Devir Brasil. Tem criado uma marca para si como roteirista de quadrinhos. Nessa área eu já tinha lido dela Fractal, mistura de horror e suspense de CSI, também pela Devir. Fico feliz que ela tenha entrado na série Graphic MSP, que deve ter muita visibilidade atualmente.

Em Papa-Capim, Marcela conta uma aventura ambientada na aldeia do personagem, atacada por uma força mágica do mal. Ela não foge de reconhecer a tradição indianista do Romantismo brasileiro, citando trechos do poema “I-Juca Pirama” (1851), de Gonçalves Dias. Mas sua história não deixa de ser subversiva ao citar também trechos de um depoimento do nativo-brasileiro Davi Kopenawa Yanomami. Mas, principalmente, por associar a chegada do europeu à malignidade vampírica que ameaça o povo de Papa-Capim. O jovem a enfrenta, com a ajuda do deus Honorato e da Cobra Grande, com uma passagem utra-rápida da condição de garoto para a de guerreiro e de herói. A transformação é convincente porque Marcela deu atenção às situações do menino antes de virar herói, seus relacionamentos e suas tentativas de alertar os mais velhos. As peripécias também são bem imaginadas. O desenho de Renato Guedes é brilhante, com nada de genérico na figura humana. Cada personagem tem sua própria fisionomia e tipo físico — de acordo com a idade, inclusive —, e ele lida muito bem com a nudez do indígena. Tudo isso cria um ar fascinante para a HQ, e nos aproxima das suas situações. Também artista plástico, Guedes é um dos desenhistas brasileiros da atualidade com grande experiência trabalhando para Marvel e DC. Eu só achei que a cor digital, com um efeito de brilho vaporoso, mina um pouco a força do desenho. Uma ótima história de horror e fantasia folclórica, que eu recomendo. Gostaria, inclusive, de ver mais histórias com o personagem, pela mesma dupla de escritora e artista.

 

Arte de capa de Mukesh Singh & Suresh Seetharaman.

Shekhar Kapur’s Snake Woman: A Snake in the Grass, de Zeb Wells e Michael Gaydos. Nova York: Virgin Comics, Director’s Cut, 2007, 148 páginas. Capa de Mukesh Singh & Suresh Seetharaman. Trade paperback. O projeto da Virgin Comics, aparentemente efêmero, de concentrar artistas indianos ou oriundi, e dar maior visibilidade à sua cultura no mundo dos quadrinhos, é dos mais interessantes que encontrei no resgate do meu interesse pelas HQs. Eu antes tinha lido Devi: Namaha (2007), encontrado, assim como este Snake Woman, nas prateleiras da Loja Terramédia, no Cambuci. O selo Director’s Cut inclui projetos criados por John Woo, Guy Ritchie, Edward Burns, Jonathan Mostow e este Shekhar Kapur — um dos fundadores da Virgin Comics e diretor do finalista do Oscar, Elizabeth (2007).

Este livro contém os 5 primeiros episódios de uma série de drama reencarnacionista. Começa seguindo uma garota anglo chamada Jessica, bartender em Los Angeles, onde divide apartamento com a coreana Jin, que namora um rapaz indiano. Aos poucos fica claro que há uma sociedade secreta de homens asquerosos atrás dela, mas um indiano meio mosca de bar chega primeiro e explica a ela o que está acontecendo. No século 18, uma expedição militar britânica no subcontinente indiano se depara com um templo repleto de riquezas. Eles matam os moradores de uma vila no entorno, exceto por uma menina recém-nascida, salva pelo cirurgião militar do grupamento. Mais tarde, a menina, vivendo com o médico na Inglaterra, incorpora o deus cobra do templo, num ataque de vingança. Desde então, formou-se uma sociedade secreta, “Os 68”, em que os membros daquele grupamento reencarnam ao mesmo tempo, encontram-se, e buscam deter a Mulher Cobra que também reencarna para destruí-los. A maldição só vai se dissipar quando ela conseguir matar a todos numa mesma vida. O roteirista Zeb Wells é brilhante na exposição desse evento passado, em cenas de flashback com um estilo diferente, muito bem executado pelo artista Michael Gaydos. O assunto é fascinante. A essa altura já sabemos que Jessica é a encarnação da Mulher Cobra, e que o primeiro membro dos 68 que a aborda no bar deseja que ela controle os arroubos do deus cobra, e conserve a sua humanidade. Mas o malévolo líder dos 68, Harker, tem outros planos para ela. A arte de Gaydos é ao mesmo tempo estilizada e realista. Eu lamentei apenas que roteiro e arte tenham abandonado a moldura do cenário urbano contemporâneo de L.A., quando enveredaram pelos caminhos da sociedade secreta. Ao mesmo tempo, Jessica como personagem é uma jovem meio aturdida, sem muita volição (bem comum hoje em dia), e seu relacionamento com os amigos do seu prédio também fica meio perdido no roteiro. Mas o livro reuniu apenas os primeiros episódios da série, e imagino que houve espaço para o seu crescimento como personagem.

Não sei dizer o que houve com este selo. Certamente, faz sentido na “cultura de convergência” que quadrinhos + filmes + séries de TV já nasçam como properties consolidadas, mas a vida nem sempre é como o magnata das comunicações quer. Se essas HQs chamaram a atenção para alguns cineastas indianos e para a sua cultura, já valeu.

 

Outras Leituras

Arte de capa de Christoph Niemann.

The New Yorker 5 & 12 de junho, 2017 (Especial de Ficção). Já li muita, e ainda leio literatura americana mainstream, mas não tenho tempo nem recursos para acompanhar extensivamente esta ficção que gera tendências por aqui. As edições especiais de ficção da importante revista The New Yorker são sempre um modo de sentir o que anda acontecendo por lá. Esta traz três contos e cinco crônicas, além de um interessante artigo de Philip Roth sobre suas influências literárias nos seus anos de formação. Ele, que é judeu-americano da classe trabalhadora de Newark, Nova Jersey, encontrou inspiração para seu fascínio pela vida americana nos trabalhos da ficção mais rural de Theodor Dreiser, Sherwood Anderson, Sinclair Lewis, Thomas Wolfe e Erskine Caldwell. Daí o empenho em fazer a crônica da mudança social nos Estados Unidos, que se vê em Pastoral Americana (1997), por exemplo.

O tema dessa edição é “trabalhos americanos”. “Clean, Cleaner, Cleanest”, de Sherman Alexie, acompanha uma mulher branca, arrumadeira em um motel em que desfilam situações sexuais e escatológicas, amizades e pecados — uma vida. Alexie mantém um tom próximo mas suave, e a ternura é o principal efeito. Ele é um autor nativo-americano muito ativo, que já apareceu várias vezes na revista, teve livro que virou filme com o ator Adam Beach, e foi visto no Brasil com o romance Matador Índio (1996). Mais sofisticado, “Crossing the River No Name”, de Will Mackin é ficção militar, muito literária, sobre uma operação dos SEALs no Afeganistão em que o narrador testemunha a morte de um colega ao atravessar um rio. Sem dúvida, ser soldado é um trabalho americano, mas o conto se move em flashbacks que revelam momentos da vida do protagonista-narrador. Amarra tudo a sugestão de uma contraparte no talebã que seus colegas escolhem poupar:

“Esse seria o homem que nós pouparíamos. Esse seria o homem que cairia de joelhos na lama e, na nuvem de fumaça dos tiros, levantaria as mãos rendendo-se. Esse seria o homem que nos contaria quem ele era, de onde viera, e por quê.” —Will Mackin, “Crossing the River No Name”.

Uma das coisas que essas revistas fazem é chamar a atenção para autores que a gente não conhece. O estilo cintilante de Mackin e a sutileza da construção do conto me atraíram. Vou até procurar o livro de contos no prelo, de onde essa história dele foi pinçada. Já “Show Don’t Tell”, de Curtis Sittenfeld, segue a tendência da ficção pós-modernista americana de discutir a vida de escritores. Tendência muito atacada por seus colegas da ficção de gênero desde a década de 1980… Acompanha pós-graduandos de um curso de escrita criativa, pelo ponto de vista de uma garota que faz parte dele, enquanto aguardam, de modo competitivo e invejoso, para saber quem vai receber um número de bolsas disponíveis. A visão da história é cínica, a prosa não tem nada de mais, e o toque final sobre o escritor sendo alguém com uma postura observadora essencial não se firma muito bem, na minha opinião.

A revista também apresenta ensaios e artigos bem informados e refletidos. “The Other Side of Silence”, de James Wood, analisa vida e obra do escritor alemão W. G. Sebald. Eu já tinha lido e apreciado um livro de não ficção de Sebald, Guerra Aérea e Literatura, e gostei de saber mais sobre o autor. “Civil Wars”, artigo de Joan Acocella, trata do novo romance da premiada escritora indiana Arundhati Roy, O Ministério da Felicidade Absoluta (já disponível no Brasil). Especialmente, trata do que ela fez nos vinte anos que separam este do seu supersucesso O Deus das Pequenas Coisas. (O que Roy fez foi cuidar da realidade da Índia, em artigos e livros de não ficção sobre os muitos desmandos políticos, ofensas ambientais e opressões sociais do país.) Mais próximo do interesse do leitor de ficção científica e fantasia, a revista traz comentário embasado e inteligente da terceira e última temporada da série The Leftovers. Mas, principalmente, uma discussão de Jill Lepore, da ficção distópica atual no apanhado meio desconjuntado “No, We Can’t”. Delineia a evolução desse subgênero da FC ao longo do tempo, traçando paralelos com a política mundial e americana. O próprio título é o reverso do slogan da campanha de Barack Obama, e sugere que a distopia tornou-se uma literatura de impotência política.

“A distopia acabou tendo uma afinidade natural com a adolescência americana. E nisso, eu penso, é que a vida do [sub]gênero acabou sendo esmagada … A distopia costumava ser uma ficção de resistência; tornou-se uma ficção de submissão, a ficção de um século 21 da solidão, desconfiança e escuridão, a ficção das notícias falsas e guerras de informação, a ficção da impotência e da desesperança. Ela não consegue imaginar um futuro melhor, e não pede que alguém se dê ao trabalho de criar um. Nutre rancores e ressentimentos; não demanda coragem; entende que a covardia já basta. Sua única admoestação é: fique ainda mais desesperado. Tem apelo tanto à esquerda quanto à direita, porque, no final, exige tão pouco em termos de imaginação literária, política e moral, pedindo apenas que você aprecie a companhia de pessoas cujo medo do futuro se alinha confortavelmente com o seu próprio. Direita ou esquerda, o pessimismo radical de um distopismo implacável tem contribuído ele mesmo para o desmanche do estado liberal e para o enfraquecimento de um compromisso com o pluralismo político.” —Jill Lepore, “No, We Can’t”

Ruthless Culture, um blog de Jonathan McCalmont. Navegando pelas quebradas da Internet em julho, em busca de um polêmico ensaio crítico de Paul Kincaid (agora não mais disponível no site do Los Angeles Times onde foi publicado), me deparei com um longo post de McCalmont que comenta e expande as observações de Kincaid. O texto de Kincaid fazia, em 2012, a crítica de várias antologias das melhores histórias do ano anterior. O crítico inglês encontrou nelas sinais de um esgotamento da ficção científica e do abandono da proposta do gênero de se engajar na imaginação do futuro.

Provavelmente mais à esquerda, McCalmont é certamente mais polêmico e agressivo — a começar pelo título do seu ensaio, “Cowardice, Laziness and Irony: How Science Fiction Lost the Future” —, ao lamentar uma postura de falta de combatividade e de olhar crítico sobre as muitas formas de opressão e violência social do presente. Para ele, a mistura de gêneros (em especial FC e fantasia) do New Weird e outras tendências é um dos pontos que enfraqueceriam o compromisso de se imaginar o futuro. Defende uma postura “multicultura” para FC e fantasia, em que os dois gêneros partilhariam um mesmo espaço mas mantendo suas características formais e históricas. Fundir FC e fantasia enfatiza uma postura pós-modernista — que resulta em maior aceitação pelo establishment literário, mas também em descaracterização e perda de algumas das funções mais centrais para a FC. Há décadas, Orson Scott Card (autor que McCalmont provavelmente não cogitaria em citar) já vinha alertando para o azar que seria a aproximação da FC e do pós-modernismo.

McCalmont também aponta o dedo acusador a elementos pós-cyberpunk que se tornaram dominantes, especialmente o conceito da singularidade tecnológica, e a citação constante de conceitos científicos e tecnológicos, sem que sejam explorados ou justificados em termos extrapolativos. McCalmont dirige seu olhar à tendência abraçada pelos guerreiros da justiça social, o que mostra uma independência do seu pensamento crítico, de saudar a expressão de minorias e de nacionalidades não anglo-americanas. Lamenta a falta de especificidade desses autores. Haveria aí (um brasileiro da minha geração diria) a pasteurização de um conteúdo cultural diverso.

“Grupos tradicionalmente marginalizados são forçados a impor um equilíbrio entre autenticidade e acessibilidade ocidental: apoie-se demais nos seus próprios temas nativos e os ocidentais vão ignorá-lo, mas abrace demais o vocabulário cultural do Ocidente e você terminará não apenas perdendo a sua própria voz, mas acabará tendo que competir com criadores ocidentais em termos desfavoráveis. É nisso que encontramos a tensão entre a afetação irônica pós-modernista da cena [da ficção científica] e o seu desejo de se tornar mais inclusiva e mais respeitosa das culturas de outros povos. A ideia de que povos não ocidentais possam ter acesso privilegiado às crenças e culturas não ocidentais não assenta bem com uma cultura literária que luta para reconhecer o fato de que todos os artefatos culturais nascem de um mundo material no qual as pessoas lutam, sofrem e morrem. … Num esforço para resolver essa tensão, o campo começou a celebrar obras desses autores de grupos tradicionalmente excIuídos, dentro da compreensão de que, embora esses escritores tenham perspectivas únicas a que todos nós deveríamos atentar, suas histórias nunca deveriam lidar, na verdade, com a realidade do que é ser excluído ou oprimido.” —Jonathan McCalmont, “Cowardice, Laziness and Irony: How Science Fiction Lost the Future”.

Para o leitor e escritor brasileiro de FC, a questão talvez seja mais candente nesse último aspecto. Embora o questionamento do lugar das nossas especificidades culturais, e quais especificidades, sempre tenha sido minoritário. A primeira vez que esse assunto foi levantado, foi na década de 1960, quando o escritor Walter Martins perguntou que tipo de ficção científica um país de Terceiro Mundo como o Brasil poderia produzir. Mais tarde, o Movimento Supernova ou Movimento Antropofágico da Ficção Científica Brasileira, lançado em 1988 por Ivan Carlos Regina, levantou questões semelhantes. Esse questionamento é quase inexistente no âmbito da Terceira Onda, que busca justamente absorver as últimas tendências pós-modernistas na FC anglo-americana.

O blog de Jonathan McCalmont também resenha livros e acompanha, com a mesma postura crítica, os indicados e resultados do prêmio britânico Arthur C. Clarke Award. Ainda sobre a postagem discutida aqui, vale ler os comentários e as respostas de McCalmont. Vale notar ainda que seu apelo por uma literatura de ficção científica que olhe mais para o mundo e menos para os seus procedimentos e tendências, ecoa o clamor de gente como Tzvetan Todorov, Antoine Compagnon e Cristóvão Tezza, de ficção mainstream que faça o mesmo.

—Roberto Causo

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