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Leia o Prefácio de Roberto Causo à Antologia “Vislumbres de um Futuro Amargo”

Em 15 de fevereiro de 2020 foi lançada em São Paulo a antologia de histórias originais Vislumbres de um Futuro Amargo, organizada por Gabriela Colicigno & Damaris Barradas, para a Agência Magh. A antologia, muito bem ilustrada, reúne autores novos e resultou de um projeto de financiamento coletivo. Leia abaixo o prefácio escrito por Roberto Causo para a antologia.

Seis Vozes para o Futuro

 

Arte de capa de Túlio Cerquize.

A ficção científica é um gênero literário que evolui por meio de uma constante renovação de autores, temas e abordagens do seu fabuloso leque de possibilidades. Com esta antologia de histórias originais, Vislumbres de um Futuro Amargo, a Agência Magh faz o seu primeiro gesto de apoio a essa renovação. Gabriela Colicigno, a fundadora da Magh, ao lado de Damaris Barradas, recorreu às autoras e autores representados pela agência, além de uma convidada externa, pedindo que escrevessem histórias de FC com uma atitude crítica e dentro do clima que o título expressa. A maioria desses autores e autoras é relativamente jovem, e nova no campo da FC, e este livro não registra apenas as suas primeiras pegadas deixadas nesse campo, como as atitudes e ansiedades da sua geração.

Na história de abertura, “Antônio do Outro Continente”, Anna Fagundes Martino se mostra muito habilidosa na criação de uma expressão brasileira daquela ficção científica mais literária, que incorpora a observação social ao gênero. Essa estratégia existe há muito tempo na FC em língua inglesa, tornando-se a tônica de importantes revistas americanas como The Magazine of Fantasy & Science Fiction e Galaxy, ambas surgidas em fins da década de 1940 e início da de 1950. Mais modernamente, a tendência ganhou grande reconhecimento nas páginas da importante Asimov’s Science Fiction — que teve inclusive uma edição brasileira, a Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Científica (1990-1993), publicada aqui pela Editora Record. No Brasil, a tensão entre a literatura de costumes e a ficção científica de aventura se estabelece muito cedo, com, por exemplo, o pioneiro romance feminista de Emília Freitas, A Rainha do Ignoto (1899).

Nesse tipo de narrativa próprio da Asimov’s, firma-se uma discreta tensão ou ironia em torno da exploração de costumes que podem não parecer muito diverso dos nossos, e o pano de fundo que descreve mudanças radicais trazidas pelo futuro, por alienígenas ou por invenções transformadoras. Anna Martino trabalha essa ironia com graça e percepção, ao tratar da visita de um casal vindo de uma colônia espacial agrícola aos seus parentes suburbanos na Terra.

Lady Sybylla contribui com a segunda história, “Corra, Alícia, Corra”, narrativa que mergulha na ação e na agitação mental da sua personagem-título, uma jovem que foge pelas entranhas das instalações onde é mantida prisioneira, tendo por companhia apenas uma outra mulher. Ela é caçada por todo o caminho, enfrentando as armas poderosas e a superioridade numérica dos perseguidores. Como se não bastasse, a intensa narrativa guarda a aparição intrigante de um robô, perto de sua conclusão. Lady Sybylla já provou que sabe lidar com uma ficção científica centrada na ação, por sua história “Cão 1 Está Desaparecido” (2014), incluída na premiadíssima antologia Fractais Tropicais: O Melhor da Ficção Científica Brasileira (2018), organizada por Nelson de Oliveira. Apesar de toda ação, o que marca a história é justamente os sentimentos da heroína.

Em “Eletricidade em suas Veias”, de Waldson Sousa, também um robô aparece, mas de modo bem mais ostensivo. Mais que isso, a narrativa panorâmica apresenta uma força oculta, composta de pós-humanos imortais, dentro da nossa sociedade. Quem narra é uma cientista que criou um robô asimoviano — um “homem bicentenário” capaz de sonhar e sangrar — que ela solta para vagar pelo mundo, em séculos passados e em situação desvantajosa: assim como ela e os seus semelhantes, o seu androide tem pele negra, e logo é transformado em escravo e levado ao continente americano. Por meio desse personagem, a história nos conta algo da experiência da diáspora africana ao longo do tempo, já que ele também é imortal. O centro da narrativa, porém, está na experiência existencial de criadora e criatura, em uma espécie de metáfora cibernética da reencarnação.

Neste ponto, vale questionar: por que um futuro sombrio? A maioria destes autores e autoras são jovens, e sentem a pressão de um mundo em crise ambiental e climática, e de práticas autoritárias que resistem, com cada vez mais empáfia e agressividade, aos avanços sociais. Não são, porém, apenas a questão ambiental e o autoritarismo que nos ameaçam, mas igualmente a sombra da revolução industrial 4.0, uma incógnita que já está transformando o comportamento, a política e o trabalho.

Mesmo assim, a maioria das narrativas reunidas em Vislumbres de um Futuro Sombrio hesita em abraçar o futurismo que especula coerentemente sobre o amanhã a partir das condições do presente. Historicamente, dentro da nossa ficção científica a imaginação do Brasil do futuro próximo é muito rara e inconstante. É como se o país fosse um grande enigma, impossível de resolver e prognosticar, que frustra não apenas as especulações do gênero mas também a nossa própria capacidade de planejamento e de organização social e política. Entre dar guinadas e adquirir um rumo existe uma grande diferença. E esse Garrincha do processo histórico vai driblando tanto os escritores de ficção científica quanto os cientistas políticos…

A narrativa de Lu Ain-Zala, “Eu, Algoritmo”, trata justamente da revolução 4.0. Parodiando o título da famosa coletânea de histórias de robôs de Asimov, troca o ícone do autômato por aquele da inteligência artificial. Neste acaso, uma IA surgida de algoritmos de reconhecimento de padrões na internet e nas redes sociais, e pelo acompanhamento das mídias móveis. O assunto a coloca junto com nomes internacionais importantes, como a americana Connie Willis, e o australiano Greg Egan. Combinando elementos de ensaio e de narrativa, a história pinta um quadro bastante coerente da problemática, tornando o conto o mais próximo que o livro tem a oferecer, do enfoque futurista, mesmo que com poucos traços Brasil. A narrativa, por sua vez, cresce até o ponto de grandes revelações — e indagações — se instalarem, com um toque de Jogos Vorazes se apresentando.

O robô retorna em “O Pingente”, de Cláudia Fusco, escritora, conhecedora da ficção científica e palestrante ubíqua em eventos em São Paulo. Aqui, ela produziu um conto que também poderia figurar nas páginas da Asimov’s, envolvendo uma robô-babá que testemunha os azares humanos e cresce com a menina que é objeto dos seus cuidados. O lado futurista está presente na sugestão de como os sistemas da robô analisam as situações e produzem respostas coerentes. Há ainda o toque delicado e espirituoso que já nos acostumamos a esperar da autora, como no anterior “A Guerra das Máquinas” (2019), na edição especial do Estadão QR.

Vale assinalar que Fusco e os demais autores estão sintonizados com a nova sensibilidade abraçada pela ficção científica internacional, valorizando a diversidade étnica e de gênero e as suas questões. Lembro que em 1997, Bruce Sterling e eu criamos, com o tradutor Carlos Angelo, a lista Rede Global Paraliterária, voltada à promoção da dimensão internacional da FC. Em 1999, nas páginas da Locus—The Magazine of the Science Fiction & Fantasy Field, publiquei o texto de opinião “The Next Wave”, antecipando que a próxima onda na FC seria uma abertura para nacionalidades e sensibilidades étnicas pouco representadas no gênero. Eu estava errado, é claro, já que logo o New Weird entrou em evidência, assim como a new space opera, tendências que mantiveram o domínio anglo-americano ao revisitarem formas antigas de FC e fantasia com novos pendores políticos.

Mas em 2015, durante o evento “Encontro Irradiativo” ocorrido em São Paulo, os escritores Jim Anotsu e Vic alertaram que em breve a questão da diversidade e da representatividade viriam a dominar a fantasia e a FC, especialmente nos livros voltados para os jovens. Na minha cabeça, o continuum aí é o da representação de identidades e subjetividades. Já na avaliação do ano de 2016 na Locus de fevereiro de 2017, o crítico Gary K. Wolfe observou que a “FC e a fantasia internacional continuaram a ganhar uma bem-vinda visibilidade”, enquanto a crítica Colleen Mondor proclamou: “Foi um ano no qual a diversidade, finalmente, arriscou ser a regra e não a exceção.” Nas histórias discutidas até aqui em Vislumbres de um Futuro Amargo, temos personagens afro e casais homoafetivos, e a crítica ao bullying e à atitude retrógrada.

Fecha o livro a aventura espacial “SIA Está Esperando”, de Roberto Fideli, autor que estreou na antologia anterior da Magh, Histórias (Mais ou Menos) Assustadoras (2019), um e-book. Fideli se apoia no repertório de ficção científica adquirido quando ele mantinha o canal Clássicos da Ficção Científica no YouTube, para narrar com eficiência os percalços de uma nave perdida em um pequeno planeta inóspito e inabitado, e os tropeços dos tripulantes, distraídos da tarefa de reparar a nave pelo surgimento de um mistério que realmente vale a pena investigar.

Grande parte da história envolve a interação entre a capitã de origem asiática e a inteligência artificial que monitora os sistemas e os tripulantes. Na antologia, as narrativas em primeira pessoa imperam, e “SIA Está Esperando” é narrada por mais esta inteligência artificial feminina e protetora. Todas as decisões tomadas pela capitã e por seus oficiais são compreensíveis, assim como as da inteligência artificial. A premissa torna o conto uma espécie de “problem story”, tradição que encontrou um lar privilegiado na longeva revista Analog (que comemora seus 90 anos de existência em 2020). Nesse tipo de FC, um problema (em geral de engenharia) é posto, para ser resolvido com engenhosidade, sob pena dos personagens não escaparem com vida. Mas Fideli conduz a narrativa de modo a subverter a estrutura da problem story, levando-a não a um fecho apenas mecânico, mas sim emocional e profundo, sublinhando a vontade humana (ou pós-humana, no caso) de sobreviver aos infortúnios da vida, presente em outras histórias da antologia.

Louva-se não apenas o talento e a sensibilidade das escritoras e escritores, mas também da organizadora, que encadeou os contos de modo que um repercutisse sobre o outro, tanto no que diz respeito ao tema, quando ao tom.

Meu pai costumava dizer — quando aparecia alguém afirmando que o fim do mundo estava próximo — que o mundo não acaba, o que acaba são as nossas vidas. (Na verdade, o mundo acabará, mas em um evento cosmológico tão distante de nós no tempo, que a questão é irrelevante.) De modo semelhante, os autores de Vislumbres de um Futuro Amargo parecem afirmar que não haverá um inevitável futuro negativo nos aguardando, mas sim a possibilidade de vidas individuais com um futuro ruim. Pela mesma lógica, podemos fazer algo para que nossas vidas individuais não sejam ruins, sem sentido ou oprimidas — e coletivamente, agir para que outras vidas também tenham a oportunidade de serem positivas.

O amanhã é uma página aberta, e neste showcase da Agência Magh temos seis autores para o futuro, capazes de preenchê-la com narrativas instigantes e visões muito pessoais do que a ficção científica pode ser.

 

Roberto Causo

São Paulo, janeiro de 2020.

Com arte de capa de Túlio Cerquize, Vislumbres de um Futuro Amargo conta com ilustrações internas de Renata Aguiar, Deoxy Diamond, Estevão Ribeiro, Roberta Nunes, Stephanie Marino e Roberto de Sousa Causo, distribuídas ao longo das suas 200 páginas. As minhas duas ilustrações foram feitas para a noveleta do meu filho Roberto Fideli, “SIA Está Esperando”, e colorizadas por Stephanie Marino. Foi uma experiência estimulante, ilustrar a história do meu filho.

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Leia o Posfácio de Roberto Causo para o Livro “Fantástico Brasileiro”

De autoria de Bruno Anselmi Matangrano & Enéias Tavares, Fantástico Brasileiro: O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo (Arte & Letra Editora, 2018) traz um raro levantamento e uma ousada defesa dessa literatura no Brasil. Roberto Causo teve o privilégio de escrever o prefácio do livro, que você pode conferir abaixo.

 

 

Arte de capa de Karl Felippe.

Uma Questão Literária para o Século 21

 

O principal produto da cultura brasileira é o esquecimento.

Costumamos nos esconder desse fato atrás de justificativas muito repetidas, mas que nunca fizeram muito sentido. A principal delas é a de que o tempo — ele mesmo uma abstração sem senso crítico ou noção de justiça — faz a seleção do que deve ou não permanecer para a posteridade. Uma falácia que esconde, ao mesmo tempo, a preguiça em emitir opiniões e o jogo de forças por trás da seleção efetiva realizada pelos atores do sistema literário — no caso específico da literatura, que é o interesse deste notável livro que você tem em mãos.

Alguém sempre escolhe, e esse alguém, que muitas vezes se apresenta como autoridade em razão de formação, bom gosto ou posição de destaque nos meios de comunicação ou aparelhos culturais, não está distante de empregar no campo da política literária, os mesmos recursos baixos utilizados na política partidária ou ideológica, como o Dr. Martim Vasques da Cunha apontou no seu importante embora desastrado ensaio A Poeira da Glória (2015). Recursos que incluem a difamação, a desonestidade intelectual no momento da crítica, e o empenho em colocar inimigos literários no ostracismo acionando aliados em círculos intelectuais e artísticos — e atualmente, fomentando consensos fabricados nas redes sociais.

Outro argumento, muito ouvido há alguns anos no ambiente da literatura especulativa (ficção científica, fantasia e horror) brasileira, é o de que a internet e os recursos de comunicação e socialização advindos dela representam uma mudança radical de paradigmas. E essa mudança tornaria irrelevante o que veio antes, já que a maior necessidade seria o fomento e a criação de espaços para a geração de autores (no que chamei de Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira) surgida dentro desses novos paradigmas.

O que se expressava então era, antes de qualquer outra coisa, a ansiedade de jovens escritores em serem publicados, comentados e integrados a um mercado editorial de literatura especulativa que, na época, crescia de maneira sem precedentes. Trata-se, de qualquer modo, de outra instância de política literária, uma que ignora a importância do diálogo intertextual como mecanismo de evolução literária — e que nega a possibilidade de um diálogo específico com textos brasileiros, e não apenas com as influências internacionais contemporâneas. Essa postura tem uma resposta óbvia: quem não está disposto a lembrar, dificilmente será lembrado. Porque com essa negação solapamos a formação de um futuro quadro institucional disposto e apto a lembrar.

Finalmente, existe ainda a questão do lugar destinado, dentro das letras brasileiras e do atual sistema literário, tanto à literatura especulativa propriamente, quanto aos outros ramos agrupados dentro do útil conceito do Prof. Flavio García, o insólito. O que subjaz aqui é que essa produção ou esse aspecto da literatura brasileira, dentro do sistema literário, não mereceria ser lembrado. Seria “secundário”, “minoritário”, “irrelevante”, “subliterário”, “impertinente”, “espúrio”, “ideológico”… Dependendo, é claro, do alvo da avaliação. Secundário, quando ocorrendo na obra de grandes nomes como Machado de Assis, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Monteiro Lobato, Erico Verissimo, Jorge Amado, João Guimarães Rosa, Dinah Silveira de Queiroz, Antonio Olinto, Lygia Fagundes Telles, Ignácio de Loyola Brandão, Conceição Evaristo, Rubem Fonseca, João Ubaldo Ribeiro, Flávio Carneiro, Rubens Figueiredo e Nelson de Oliveira. Subliterário, quando configurado como um gênero popular como a ficção científica, a fantasia e o horror — vistos pela intelligentsia como parte da “indústria cultural” ou “mera literatura de entretenimento”.

Diante desse estado de coisas, é preciso um tipo especial de generosidade para contextualizar historicamente uma produção como a literatura especulativa, no contexto das letras brasileiras. Escrito pelos Profs. Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares, Fantástico Brasileiro: O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo, vem se juntar a uma pequena produção de livros que se incumbiu de — muitas vezes para além da muleta intelectual do recorte de pesquisa — levantar, interpretar e nos lembrar da existência e da importância dessa produção no Brasil. Entre eles estão Viagem às Letras do Futuro: Extratos de Bordo da Ficção Científica Brasileira: 1947-1975 (2002), de Francisco Alberto Skorupa; Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (2004), de M. Elizabeth Ginway; a iniciativa em vários volumes do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica (2004 a 2013), de Cesar Silva & Marcello Simão Branco; e Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro (2013), de Alfredo Suppia.

Essa generosidade é em si mesma uma ousadia, que Matangrano & Tavares multiplicam ao colocarem sob a mesma chave grandes autores do romance e do conto brasileiro, ao lado dos menos conhecidos, desconhecidos ou iniciantes — como conterrâneos de um mesmo território literário. Tamanho ecletismo e destemor tem precedente no singular Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog preparado por Braulio Tavares para a Fundação Biblioteca Nacional, em 1991. O insólito abraça a todos, e essa postura não hierarquizante também é algo a ser reconhecido e aplaudido, no trabalho dos autores de Fantástico Brasileiro.

Mais do que a perspectiva cronológica, o livro tem uma divisão engenhosa cujos tópicos sublinham a mais interessante perspectiva da Terceira Onda — a problemática da diversidade e da representatividade. A ênfase na fantasia — que sentimos no conceito do fantasismo — e na literatura para jovens, são outros pontos constantes da Terceira Onda, aqui também representados com a mesma preocupação de abrangência. Assim como a recorrência à tradição da escrita pulp, nem sempre bem manipulada pela Terceira Onda, mas estabelecida como símbolo de desejo de se engajar o leitor e renunciar ao elitismo literário e à mesmice da alta literatura brasileira, demanda que também caracteriza a situação da leitura e da literatura no século 21.

Ao expressar esses tópicos de retórica literária e das estratégias de ação da Terceira Onda, Fantástico Brasileiro se une ao também recente livro de Kátia Regina Souza, A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil (2017), como um texto que traduz o caráter desse momento tão intenso e inédito dentro da trajetória nacional seja da literatura especulativa, seja do insólito — este, incorporado sob a forma do absurdismo metaficcional (ou fabulation, na expressão do acadêmico americano Robert Scholes) à ficção pós-modernista brasileira desde a década de 1970, e sublinhado pelos autores da Geração 90.

Diversidade e representatividade parecem compor o ponto mais relevante deste momento da Terceira Onda. O “Manifesto Irradiativo” (2015), dos escritores Alliah & Jim Anotsu, e o consequente Encontro Irradiativo (realizado também em 2015) certamente serviram para marcar a eclosão dessa tendência. Nela temos, muito bem expresso no livro de Matangrano & Tavares o fantástico brasileiro como uma alternativa ao infeliz estado de coisas que trouxe perplexidade à Dr.ª Regina Dalcastagnè, quando o segundo round da sua pesquisa sobre o perfil demográfico dos narradores e personagens de ficção na literatura brasileira revelou que pouco havia mudado desde a sua denúncia inicial, há mais de uma década (2005), de que as letras nacionais são ocupadas pela figura do homem branco, heterossexual e de classe média, com valores estagnados e focado majoritariamente na metalinguística da escrita literária. O fato da Dr.ª Dalcastagnè ter se concentrado em três editoras que representaria o núcleo duro (engessado?) da literatura brasileira contemporânea, e de ter excluído deliberadamente qualquer forma de ficção de gênero, é uma daquelas instâncias em que a impertinente instituição do recorte de pesquisa escusa a pesquisadora de buscar remédios para o mal que denuncia. Sem esse olhar para fora, a própria voz que exige mudanças acaba sendo uma daquelas que condena a todos, sem salvar ninguém.

Devo dizer que os resultados levantados pela Dr.ª Dalcastagnè não são e nunca foram surpresa para mim. Já por volta de 1993 eu pedia, implorava e exigia uma variação temática, uma busca maior por representatividade, por enfoques literários diversos dentro da literatura especulativa brasileira. O país que possui a maior biodiversidade do mundo não pode ser o país da monocultura, eu disse mais tarde, numa metáfora ecológica. Se a lit spec brasuca deseja não apenas existir e não só vender bem, mas ser relevante, ela precisa compor um ecossistema forte e diversificado. Não só para crescer e frutificar em si mesma, mas para constituir ela mesma uma variação que se posicione em simultânea articulação e divergência perante o mainstream literário. Um bioma distinto, dentro do ecossistema maior da literatura brasileira.

A proposta de que esse bioma — uma corrente, prática ou conjunto de possibilidades — teria o potencial para contestar, redirecionar ou reposicionar pontos como os levantados pela Dr.ª Dalcastagnè, é uma questão literária significativa para as letras nacionais no século 21. E ela está implícita, eu creio, no anúncio do fantasismo como um movimento literário, feito nas páginas deste livro.

Vale lembrar que antes, no ensaio “Convite ao Mainstream” (de 2009), o escritor Luiz Bras (Nelson de Oliveira) havia apontado o esgotamento dos modelos de protagonista na ficção brasileira contemporânea, e levantado a ficção científica como um possível antídoto. Nisso — assim como Matangrano & Tavares no plano maior da literatura especulativa —, ele enxerga em um gênero literário popular uma força que, em diálogo com o mainstream, poderia conduzir a literatura brasileira a direções diferentes e produtivas. Quem sabe até, sacudi-lo em suas certezas.

Tudo isso faz com que o livro de Bruno Anselmi Matangrano & Enéias Tavares não seja exclusivamente um estudo que encara o passado remoto ou recente dessa produção literária esquecida. Lembrar o passado é importante porque todos aqueles que vieram antes no insólito e na literatura especulativa formam um contingente considerável — e você precisa de um exército atrás de si, se quiser fincar sua bandeira em território ocupado. Eu suspeito que Fantástico Brasileiro encara com mais intensamente ainda, o futuro da literatura que ele investiga.

—Roberto de Sousa Causo

São Paulo, 15 de março de 2018.

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Shiroma na Antologia “Trasgo Ano 1”

A primeira história de Shiroma, “Rosas Brancas”, está na antologia Trasgo Ano 1, organizada pelo editor e fundador da revista Trasgo, Rodrigo van Kampen.

 

A primeira antologia da revista Trasgo tem arte de capa de Kelly Santos.

Rodrigo van Kampen resolveu lançar em 2016 uma campanha de financiamento coletivo para uma antologia envolvendo as histórias significativas presentes no primeiro ano da revista eletrônica Trasgo, criada em 2014 e publicada a partir de Campinas, SP, dedicada à ficção científica e fantasia. A antologia foi lançada em 25 de novembro de 2017, em um bar na Rua Oscar Freire, diante da Estação Sumaré do Metrô e não longe de onde mora o escritor Roberto Causo — presente na antologia com a história de Shiroma, “Rosas Brancas”, e com o prefácio do volume.

O livro traz ilustração de capa de Kelly Santos e 26 histórias assinadas por Hális Alves, Karen Alvares, Marcelo Porto, Claudia Dugim, Melissa de Sá, Ana Lúcia Merege, Victor Oliveira de Faria, Jim Anotsu, George Amaral, Albarus Andreos, Cristina Lasaitis, Gael Rodrigues, Caroline Policarpo Veloso, Claudio Parreira, Tiago Cordeiro, Liége Báccaro Toledo, Jessica Borges, Fred Oliveira, Mary C. Muller, Ademir Pascale, Érica Bombardi, Gerson Lodi-Ribeiro, Enrico Tuosto, Lucas Ferraz e do próprio van Kampen — sem dúvida, um mostruário muito bom e diversificado, de autores da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira, temperado com alguns veteranos como o próprio Causo e seu contemporâneo, Lodi-Ribeiro.

O prefácio de Causo faz um apanhado da história das revistas de ficção científica no Brasil, e aponta o lugar possível da Trasgo no contexto do formato eletrônico, destacando justamente essa variedade e abertura:

“A revista de van Kampen supera tendências circunstanciais, círculos e cabalas dentro do campo brasileiro da FC e fantasia. Esta antologia é testemunho de tal abertura, ecletismo e generosidade profissional — derradeiramente, a única estratégia possível para representar a variedade do estado dessa literatura no Brasil.” —Roberto Causo.

Arte de capa e Jânio Garcia.

“Rosas Brancas” foi primeiro publicado na revista Portal Solaris (2008), editada por Nelson de Oliveira, e apareceu mais tarde na Trasgo N.º 3, em 2014. Foi a história de abertura do que se tornaria a série Shiroma, Matadora Ciborgue.

O lançamento ocorreu numa tarde calorenta de sábado, com uma feira de empreendedorismo ocorrendo na frente do local, com direito ao show de uma banda de rock. Causo encontrou-se com van Kampen, Claudia Dugim, e alguns escritores conhecidos mas que não estão na antologia: Marcelo Augusto Galvão e Fábio Fernandes. O primeiro livro de Rodrigo van Kampen, a novela fix-up Trabalho Honesto, uma ficção científica do tipo cyberpunk ambientada em Campinas, também estava sendo autografado. O livro tem capa de Jânio Garcia e ilustração de frontispício de Victor Strang. Faz parte de uma série de histórias com o mesmo herói, formando o universo ficcional O Legado dos Portais.

Depois da sessão de autógrafos, houve um debate sobre o estado da ficção científica e fantasia no Brasil, muito elogiado no Facebook.

 

Roberto Causo agradece a Rodrigo van Kampen pela oportunidade de escrever o prefácio da antologia Trasgo Ano 1.

 

Rodrigo van Kampen.

Claudia Dugim (centro) e Karen Alvares.

À esquerda: Marcelo Augusto Galvão e Fábio Fernandes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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