Tag Arquivo para João Silvério Trevisan

Leituras de Abril de 2020

Em abril, um mês de leituras particularmente interessantes, li dois livros de não ficção relacionados, de um modo ou de outro, com a astronáutica. E também ficção científica nacional e estrangeira, e alguns álbuns de quadrinhos antigos visualmente deslumbrantes.

 

Arte de capa de John Berkey.

Colonies in Space, de T. A. Heppenheimer. Nova York: Warner Books, 1980 [1978], 322 páginas. Prefácio de Ray Bradbury. Arte de capa de John Berkey. Fotos. PaperbackPensando em escrever uma história das Lições do Matador ambientada em uma estação espacial, recorri a este livro que trata dos projetos da década de 1970, de construção de habitats espaciais. Menos do que me trazer informações úteis especificamente para a história, me fez viajar a uma visão futurista retrô — isto é, um futuro que, infelizmente, a humanidade veio a desprezar.

O primeiro capítulo discute as dificuldades de se encontrar vida em outros mundos, a par com as dificuldades de estabelecer a vida humana em outros planetas do Sistema Solar e da galáxia. A solução explorada é construir colônias no espaço: habitats artificias, como os que aparecem no Universo da Tríade, de Jorge Luiz Calife. Na narrativa de Heppenheimer, a questão começa com o físico Gerard K. O’Neill perguntando a um grupo de pós-graduandos se a superfície de um planeta seria o melhor lugar para uma colônia fora da Terra. Daí surgiram ideias de cilindros rotacionais em certos pontos estáveis (os Lagrange) do sistema Terra-Lua. As ideias foram parar em um congresso, que, por sua vez, capturou a atenção da imprensa e da NASA. Novos projetos aperfeiçoaram as ideias originais, com eles surgindo planos de captar energia solar e enviá-la via emissões de microondas para receptores na Terra, fornecendo energia barata e ecologicamente responsável a bilhões de seres humanos, inclusive de países pobres, tudo devidamente calculado e com o rascunho da tecnologia necessária. O material para a construção das colônias também foi equacionado nos projetos: rastelados na Lua, colocados em órbita por um lançador e apanhado no espaço por uma espécie de luva de baseball gigante acoplada a uma nave espacial, e levado ao local de construção.

Após tratar da engenharia dos espaços internos, o livro mergulha na especulação típica da ficção científica, imaginando gerações nascidas nesse tipo de habitat espacial, e seu estilo de vida, economia, cultura e herança — milhões de anos no futuro, com as colônias funcionando como naves de gerações e chegado a outros sistemas planetários. A edição original do livro é de 1978, e sabemos que, 42 anos depois, nada disso veio a se realizar. A única coisa que temos no espaço orbital é a Estação Espacial Internacional, que é uma realização em si, mas muito aquém do que aqueles visionários haviam imaginado. Ao mesmo tempo, e mesmo reconhecendo o espírito positivista e pouco crítico do utopismo energético daqueles cientistas, ainda temos um mundo que sofre com as consequências ambientais da mesma política energética de então.

 

Arte de capa de Michael Whelan.

In Conquest Born, de C. S. Friedman. Nova York: DAW Books, 1.ª edição, 1987 [1986], 512 páginas. Arte de capa de Michael Whelan. Paperback. Este romance de space opera foi resgatado da substancial estante de literatura em inglês do agora fechado Sebo do Farah, no Centro Velho de São Paulo. Ficou muito tempo em uma caixa de papelão até que eu tornasse a ser cativado pela impressionante arte de capa do artista Michael Whelan. Claramente, sente-se nesta space opera exótica da autora C. S. Friedman a influência da série Duna, de Frank Herbert. Ela imagina duas sociedades em conflito, uma composta por aristocratas absolutos, escravagistas e perversos, além de geneticamente decadentes, os braxins; e a outra, os azeans, mais igualitária e dedicada à manipulação genética. Dois personagens representam as duas sociedades: o ambicioso Zatar, uma espécie de Júlio César que deseja unificar os braxins sob o seu poder; e Anzha lyu Mitethe, uma militar com poderes telepáticos, em ascensão na sua busca por vingança contra os braxins. Apesar de implacáveis e cruéis, cada um ao seu modo, eles são apresentados com simpatia e orbitam em torno um do outro em uma série de situações episódicas que forma um mosaico complexo, envolvendo de duelos com espadas a combates espaciais e atividades extraveiculares, sedução de adversários políticos, traições, intrigas palacianas e assassinato de amantes e de parentes. A fabulosa ilustração de Michael Whelan na capa captura com perfeição a dança entre os dois personagens obsessivos, e a natureza cinzenta da história.

Fica claro que Friedman pescou de Duna a estrutura feudalista que remete às monarquias imperiais dos séculos 18 e 19, e os elementos paranormais como fonte do grande exotismo do romance. Seu feminismo aflora aqui e ali em discussões da condição da mulher nas duas sociedades, especialmente na braxin. Mas, como costuma ocorrer nesse tipo de narrativa fundada em um pensamento darwinista social extrapolado para a sexualidade e a luta de classe sociais, qualquer discurso igualitário e progressista meio que se perde na enxurrada de violência e degradação. De fato, In Conquest Born, que tem uma sequência, The Wilding (2004), é exemplo exacerbado de um pensamento bem americano que naturaliza e advoga opressão e submissão em termos psicanalíticos e darwinistas. Vemos isso em Charles Moulton (o psicanalista William Moulton Marston), criador da Mulher-Maravilha, e no autor de alta fantasia John Norman (o professor de Filosofia John Frederick Lange Jr.), autor da Gorean Saga, que dramatiza situações de escravidão sexual e gerou uma espécie de “culto” S&M que ainda anda solto por aí.

 

A Verdadeira História da Ficção Científica: Do Preconceito à Conquista das Massas (The History of Science Fiction), de Adam Roberts. São Paulo: Seoman, 1.ª edição, 2018, 704 páginas. Apresentação de Silvio Alexandre. Prefácio de Braulio Tavares. Posfácio de Gilberto Schoereder. Tradução de Mário Molina. Brochura. Em dezembro de 2019, saiu nova edição da revista eletrônica Zanzalá, criada e editada por Alfredo Suppia. É a primeira revista acadêmica dedicada à FC e fantasia no Brasil. Este que é a sua terceira edição trouxe meu artigo “A Editor Seoman e a Ficção Científica”, no qual discuto os livros de não ficção dessa editora que são do interesse do pesquisador e fã de FC. São eles A Vida de Philip K. Dick: O Homem que Lembrava o Futuro (A Life of Philip K. Dick: The Man Who Remembered the Future; 2015), de Anthony Peake; Universo Alien: Se os Extraterrestre Existem… Cadê Eles? (Alien Universe; 2017), de Don Lincoln; A Verdadeira História da Ficção Científica: Do Preconceito à Conquista das Massas (The History of Science Fiction; 2018), de Adam Roberts; e O Guia Geek de Cinema: A História por Trás de 30 Filmes de Ficção Científica que Revolucionaram o Gênero (The Geek’s Guide to SF Cinema; 2019), de Ryan Lambie. Todos aí graças ao interesse do editor Adilson Silva Ramachandra. No afã de atender aos prazos da revista, pulei uns trechos (as notas, especialmente) deste importante livro de Adam Roberts, de modo que só completei a leitura mais tarde. Aqui, empresto alguns trechos do artigo em questão, e acrescento alguma coisa a título de apreciação final.

Roberts escreveu Science Fiction (2000), livro introdutório, parte da conhecida e popular série The New Critical Idiom. É bastante citado entre os jovens pesquisadores brasileiros de ficção científica. Nesse livro anterior, Roberts afirmou achar que a FC é moderna, surgida entre  1780 e 1830. Mas já no prefácio à primeira edição de A Verdadeira História da Ficção Científica, ele afirma:

“Sustento que as raízes do que hoje chamamos de ficção científica são encontradas nas viagens fantásticas da novela [sic] grega antiga” —Adam Roberts. A Verdadeira História da Ficção Científica, página 23.

A mudança de ponto de vista fica estabelecida, portanto, e o próprio autor explicita no prefácio que, com a escrita do livro, sua ignorância quanto à FC diminuiu e que as suas visões evoluíram. Ele nem emprega a expressão “proto-ficção científica” em seu livro, preferindo abandonar qualquer ambiguidade ou divergência do gênero que a expressão poderia indicar, para chamar diretamente de “ficção científica” as obras antigas que investiga.

A tese do novo livro com a nova perspectiva é a de que a FC como a conhecemos deveria muito a um ponto de clivagem até então insuspeito: a Reforma Protestante no século 16. Propõe que, entre a Antiguidade Clássica e o século 17, houve um hiato na escrita de viagens fantásticas, motivado pelas condições sócio-culturais da ordem feudal e do catolicismo. Para Roberts, o ressurgimento da FC vem junto com a reforma protestante. A teoria de Giordano Bruno da pluralidade dos mundos habitados, rechaçada pela Igreja, é um dos pilares desse entendimento da parte de Roberts, e que a imaginação da FC se atrela à cultura protestante ocidental. Imagino que uma primeira reação possível que esse tipo de argumento despertaria em nós seria a suspeita de que Roberts desejaria afirmar a superioridade da cultura protestante, e da colonização anglo-nórdica em detrimento da latina ou das culturas não-ocidentais, especialmente em uma época em que (ainda) se fala em “choque de civilizações” e se volta a falar em “guerra cultural”. Roberts evita o campo minado com argumentos sólidos que remetem mais à história das ideias e das mentalidades. Também foge de uma perspectiva chauvinista anglo. Mais que tudo, Roberts quer firmar uma nova visada dialética sobre a FC. Declara que, se fosse reduzir a tese do seu livro em poucas linhas, diria que

“a ficção científica é determinada com exatidão pela dialética entre os imaginários protestante e católico, que emergiu do particular contexto cultural-ideológico do século XVII. […] [O]s textos de FC são mediadores desses determinantes culturais com diferentes ênfases, algumas mais estritamente materialistas, outras mais místicas ou mágicas.” —Adam Roberts. A Verdadeira História da Ficção Científica, página 29.

Seguem-se capítulos altamente informativos sobre a evolução do gênero ao longo dos séculos, e com um muito bem-vindo viés internacional. De modo ainda mais bem-vindo, traz insights significativos sobre a FC da era dos romances científicos (século 19), da era pulp e sobre o gênero no cinema e nos quadrinhos. Há um esforço honesto em superar vícios críticos elitistas, o que põe o livro no topo das minhas considerações sobre como deve ser uma história da FC. Este é um livro que merece a atenção de todo pesquisador interessado na ficção científica, e de todo fã que deseje conhecer questões culturalmente relevantes por trás da história do gênero. Se me torcessem o braço para apontar um problema, eu diria que Roberts exagera na mecânica dialética quando se foca em minúcias, perdendo a força da afirmativa clara e aberta das suas posições.

 

Arte de capa de Teo Adorno.

Fanfic, de Braulio Tavares. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, 2019, 168 páginas. Texto de orelha de Bandeira Sobrinho. Brochura. Braulio Tavares não poderia faltar em uma coleção de livros montada por Luiz Bras. Um dos melhores contistas da FC brasileira e do nosso conto fantástico em todos os tempos, ele entra com uma coletânea de histórias reunidas sobre uma chave de modéstia literária que enfatiza a intertextualidade e o jogo metalinguístico de reconhecimento de influências. 

Alguns contos foram vistos em outras reuniões dos seus textos admiráveis, mas o segundo olhar me revelou, por exemplo, a criatividade vibrante presente na exótica space opera “The Ghost in the Machine” [sic], cujas notas-glossário explicitam o jogo da influência e o diálogo específico mantido pela ficção científica. A riqueza da linguagem irônica remete à New Wave e é de fazer inveja a um Brian W. Aldiss ou a um Samuel R. Delany. Já “Finegão Zuêra”, que abre o livro, pode se ligar ao romance Finnegans Wake (1939) de James Joyce, pela brincadeira irônica com o título e pela densidade de neologismos e jogos de palavras na narrativa precipitada em parágrafo único. Em oposição, “O Homem que Perdeu seu Reflexo” é conto fantástico, curto, em tom memorialista. Urbano e violento, “Haxan” caberia bem em uma antologia tupinipunk. “Sete OVNIs” é episódico, composto de pequenos parágrafos-narrativas, um para cada personagem diferente, em locais diversos mundo afora. “Fenda no Espaçotempo” é anedótico e divertido, enquanto “Concerto Noturno” é um conto de horror. Também curto (muitos dos contos devem ter sido pescados da coluna diária que ele mantém no Jornal da Paraíba), “A Estética Eliminacionista” é um ensaio ficcional, e “Universos Tangenciais” é outra narrativa metaficcional, sobre o poder da leitura. “A Arca” é texto poético aliterativo que lembra, pelos parágrafos curtos, as narrativas de Ivan Carlos Regina, enquanto “A Demanda do Bosque Sombrio” retoma o tom mais introspectivo e de parágrafos e sentenças longas, num dos contos mais compridos e de maior expressividade lexical. “A Propósito da Difração Quântica nas Regiões Periféricas da Consciência” saiu na edição especial da revista Ficções: Revista de Contos, editada por Dorva Rezende em 2006, e é um dos contos de melhor equilíbrio entre enredo e estilo. “Um Só seu Filho” é conto fantástico irônico, com um fundo de ficção religiosa, e “A República do Recurso Infinito” dialoga com Kafka, na figuração fantástica da burocracia. “O Vale da Maldição” é uma divertida história de pós-holocausto nuclear, e “Gronk” é outro conto humorístico, sobre um intercâmbio não entre gente de países diferentes, mas de planetas diferentes. “Aquele de Nós” é narrado em primeira pessoa por uma entidade coletiva, e “O Polvo” é um conto de horror com final surpresa. Em “A Ilha ao Meio”, o narrador investiga uma ilha dividida “cirurgicamente” no meio — como em muitas das suas histórias, o estranho desemboca em alguma reação impulsiva que parece descarregar o estranhamento acumulado pelo componente descritivo da narrativa.

Duas histórias mais longas, e com um envolvimento maior, fecham o livro: “Frankenstadt” e “O Molusco e o Transatlântico”. O primeiro explora o conceito da realidade virtual e é outra história em primeira pessoa. O último, “O Molusco e o Transatlântico”, partilha dessa característica, em narrativa que trata de um psíquico sendo treinado em uma estação espacial, envolvido com o contato com alienígenas. Embora eu anseie por ver Braulio retornando com FC aos formatos da noveleta e do romance, aqui se tem uma amostra do vigor e da versatilidade deste estilista. Muito adequado para o espírito geral da Coleção Futuro Infinito.

 

Piquenique na Estrada, de Arkádi & Boris Strugátski. São Paulo: Editora Aleph, 2017 [1972], 370 páginas. Prefácio de Ursula K. Le Guin. Posfácio de Bóris Strugátski. Tradução de Tatiana Larkina. Capa dura. Ainda me lembro do renomado escritor João Silvério Trevisan me recomendando a leitura deste romance, em uma oficina literária coordenada por ele em 1988. Minha primeira tentativa de lê-lo, poucos anos depois em edição da Caminho Ficção Científica com o título de Stalker, foi frustrada. Desta vez eu apanhei a bela edição da Aleph e fui até o fim. O romance clássico dos irmãos Strugátski parte da premissa de que alienígenas incognoscíveis passam pela Terra a caminho de alguma outra destinação, deixando para trás restos hipertecnológicos na sua passagem. A analogia é com o lixo deixado para trás depois de um piquenique à beira da estrada. Ocorre que existe um grande interesse humano por esses restos, com os autores irmãos construindo consistentemente relações científicas e de mercado negro em torno dos artefatos encontrados nos arrabaldes da cidade britânica de Harmont. Estruturalmente, o romance também é relativamente engenhoso, com saltos temporais e a narrativa a partir de personagens-pontos de vista diferentes. Grosso modo, porém, a história segue o “stalker” Redrick Schuhart, primeiro um funcionário do instituto de pesquisas, especialista em entrar na zona proibida e encontrar e resgatar os artefatos. Para isso ele precisa contornar pontos perigosos em que as leis da física são alteradas por forças desconhecidas resultantes dos artefatos, frequentemente com resultados fatais. Muito depende da caracterização de Red, um cara duro mas amoroso, especialmente com a mulher e a filha — que nasceu com algum tipo de sequela causada pelas emissões dos artefatos. O personagem precisa representar ao mesmo tempo o que há de caloroso, valoroso e insensato no ser humano. Fora do instituto, Red se torna um requisitado contrabandista. A história de Red é intercalada pela canalhice de autoridades como a do representante industrial Richard Goonan, que comanda o mercado negro local e um dos bordéis mais concorridos. Red acumula um resíduo de emoções e ressentimentos ao longo dos anos, que alcança uma descarga genuinamente pungente no final.

O romance, que pode ser lido como uma crítica ao capitalismo e o seu aceno constante de um “Santo Graal” de fama e fortuna, foi proibido na União Soviética em razão da linguagem chula de Red e de outros personagens, num texto visto como “pouco edificante” pelos burocratas do regime. O fato, porém, é que o romance, a partir da sua premissa e do final, motiva um leque de interpretações: o alienígena como o inescrutável, o maravilhoso trivializado e objetificado pelo comércio e pela busca pelo poder, a incapacidade de canalizarmos os nossos impulsos utópicos para algo que de fato dignifique a condição humana. Na sua articulação de sentidos, é um romance que expressa, como poucos, a insensatez do empreendimento humano na era da ciência. O posfácio de Bóris, com os bastidores da escrita e da publicação do romance, é um documento que vale ser conhecido por si próprio.

 

The Way of the Explorer: An Apollo Astronaut’s Journey Through the Material and Mystical Worlds, do Dr. Edgar Mitchell & Dwight Williams. Nova York: G. P. Putnam’s Sons, 1996, 230 páginas. Hardcover. Muitos vão discordar, mas um dos grandes índices dessa insensatez é a divisão estrita e frequentemente belicosa entre ciência e religião. Esse é um dos pontos balizares deste livro do astronauta americano Edgar Mitchell (1930-2016), que foi à Lua como parte da missão Apollo 14, em 1971. Nos anos seguintes, eu (que nasci em 1965) me lembro de ter lido e visto programas de TV que mencionavam que ele teria feito experimentos de paranormalidade durante o voo espacial. O livro — que adquiri no curto período em que fui assinante do Book-of-the-Month Club — trata disso, é claro, mas os primeiros capítulos são um esboço biográfico de Mitchell. Há muita informação interessante sobre a sua atividade como astronauta.

A caminho da Lua — expressão que uso impunemente porque o sujeito de fato esteve lá e trabalhou no satélite natural da Terra por mais de quatro horas —, Mitchell conduziu um experimento solitário, realizado com o conhecimento de apenas quatro pessoas. Mentalizou um conjunto de números aleatórios combinados com os símbolos das cartas Zener, enquanto na Terra outros aguardavam para reproduzir as combinações “emitidas”. No retorno, ele repetiu o experimento. Mas o livro registra mais do que isso, centrando-se em uma epifania sentida por ele, também no voo de volta:

“Conforme olhei para além da própria Terra, para a magnificência da cena mais ampla, houve um espantoso reconhecimento de que a natureza do universo não era o que me havia sido ensinado. Meu entendimento da qualidade distinta e separada e da relativa independência de movimento daqueles corpos cósmicos foi estilhaçada. Houve uma irrupção de novo insight combinado com um sentimento de ubíqua harmonia — um senso de interconexão com os corpos celestiais que cercavam a nossa espaçonave.” —Dr. Edgar Mitchell. The Way of the Explorer, página 58.

Ele não define essa epifania como religiosa, e nos anos seguintes buscou explicá-la e aos resultados dos seus experimentos à luz de investigações científicas ou paracientíficas, que o levaram a fundar o Institute of Noetic Sciences. A partir de muitas pesquisas e leituras, além do contato com supostos paranormais como Uri Geller e Norbu Chen, ele convocou a mecânica quântica, o xamanismo e a tradição de misticismo oriental para propor o seu “Modelo Diádico da Realidade” (Dyadic Model), no qual as qualidades de consciência e intenção são propriedades partilhadas pelo cosmos, com o campo de ponto zero (da mecânica quântica) servindo como órgão de ressonância das consciências. Isso explicaria os fenômenos paranormais e a sua “não-localidade”.

“Matéria e consciência são uma díade inseparável, não um dualismo com dois reinos irreconciliáveis.” —Dr. Edgar Mitchell. The Way of the Explorer, página 160.

Para ele, consciência e experiência são informação, que, por sua vez, é uma forma de organização de energia. E energia pode ser transformada e assumir outras formas. Argumentos empregando funções quânticas para explicar a consciência têm se tornado mais comuns e consistentes, ao longo dos anos. Roger Penrose e Stuart Hameroff propuseram — na teoria da Redução Quântica Orquestrada — que estruturas celulares conhecidas como “microtúbulos” teriam um número de átomos pequeno o suficiente para amparar fenômenos quânticos, e que a água ordenada no interior das células impediria a interferência do ambiente sobre esses efeitos. A maioria dos cientistas que trabalha com teorias semelhantes não assumem o misticismo de Mitchell, e aqui cabe lembrar de algo que ele disse, nos primeiros capítulos do seu admirável livro, tão bem escrito e tão instigante:

“O público foi lançado ao espaço exterior pelas experiências dos astronautas. Através deles, caminharam em outros mundos.” —Dr. Edgar Mitchell. The Way of the Explorer, página 160.

O mundo das experiências humanas foi ampliado pelos astronautas, para fora da atmosfera terrestre, para a órbita e até a Lua. Mas a maioria dos astronautas, cosmonautas e taikonautas do mundo nos prestaram um desserviço, quando limitarem os seus testemunhos aos de garotos-propaganda das suas nacionalidades, e ao se restringirem a posturas de engenheiros e militares. O alargamento das nossas experiências exige poetas, filósofos, visionários — e místicos. Edgar Mitchell foi um astronauta que — não importa o que possamos pensar objetivamente das ideias que ele veio a desenvolver — ousou dar esse passo adiante na sua representação do olhar humano fora do nosso planeta.

 

Arte de capa de Frede Marés Tizzot.

Uma Cidade Flutuante (Une ville flottante), de Jules Verne. Curitiba: Arte & Letra Editora, Coleção EM Conserva, 2010 [1870], 208 páginas. Tradução de Beatriz Sidou. Arte de capa de Frede Marés Tizzot. Livro de Bolso em estojo de metal. Este é o último livro do lote que adquiri na mesa da Arte & Letra, na feira do livro da Universidade de São Paulo, em  29 de novembro de 2017. Outros foram A Sombra do Abutre, de Robert E Howard; A Fúria do Cão Negro, de Cesar Alcázar; Três Viajantes, de Thiago Tizzot; e Fábulas Ferais: Histórias dos Animais de Shangri-lá, Conforme Relatadas no Atlas Ageográfico dos Lugares Imaginários, de Ana Cristina Rodrigues.

Este romance curto é provavelmente um dos menos conhecidos de Jules Verne. Faz parte da Coleção EM Conserva, que inclui outros autores clássicos em domínio público: Liev Tolstói, com Nota Falsa; Émile Zola, com As Aventuras do Grande Sidoine e do Pequeno Médéric; Charles Dickens & Wilkie Collins, com A Viagem Preguiçosa de Dois Aprendizes Vazios; e Robert Louis Stevenson, com O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Sr. Hyde. Um material muito bom, com uma apresentação bastante original: além das ilustrações de capa de Frede Marés Tizzot, que imitam as ilustrações de miolo em xilogravura comuns no século 19, os livros vêm dentro de uma latinha de metal — daí o nome Coleção EM Conserva, o que pega bem com a ideia de se publicar clássicos.

Uma Cidade Flutuante é uma aventura de amor e violência ocorrida a bordo do maior navio do mundo, segundo a descrição, minuciosa, de Verne. O SS Great Eastern existiu de fato, e Verne discorre longamente sobre as dificuldades de se manter, operar e navegar o colosso de 211 metros de comprimento. O narrador é amigo de um militar inglês, o Capitão Fabian MacElwin, que, uma vez a bordo, descobre que o amor de sua vida, a jovem Ellen Hodges, também está na viagem, acompanhada do seu marido abusivo, Harry Drake. Vários acidentes trágicos acompanham a viagem, que parece amaldiçoada, e, por proximidade, alimentam de tensão palpável o duelo eminente entre MacElwin e Drake. É um texto que se lê com grande prazer, fluido e com pitadas de humor e sugestão do sobrenatural no denouement.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Juan Giménez.

Leo Roa Book 1: The True Tales of Leo Roa (Leo Roa tome 1: le veritable histoire de Leo Roa), Juan Giménez. Hollywood, CA: Humanoids Publishing, 2001 [1992], 60 páginas. Arte de capa de Juan Giménez. Álbum capa dura. Giménez, um dos meus artistas de quadrinhos favoritos em todos os tempos, desencarnou no dia 2 deste mês de abril. Foi uma das primeiras vítimas, no mundo nerd/geek, da COVID-19. Confesso que foi uma morte que me atingiu. Além de admirar muito o trabalho dele, tinha-o como uma influência. Este álbum gigante eu adquiri há alguns anos na antiga loja Terramédia — hoje Omniverse. Me deparei com ele durante uma das minhas faxinas da madrugada, e o peguei prontamente para ler.

Talvez o melhor trabalho dele tenha sido a arte da criação de Alejandro Jodorowsky, a Saga dos Metabarões (publicada aqui pela Devir Brasil), mas a série Leo Roa também é uma space opera exótica. A tônica, porém, vai para o cômico: Leo é um telejornalista medíocre que sonha em ser um grande herói aventureiro, admirado pelas garotas. Ao tropeçar em uma informação decisiva sobre a identidade do mais notório pirata da galáxia, descobre que a sua ambição heroica é mais complicada e perigosa do que nos seus sonhos. Com a ajuda do primo Meke, um roqueiro ainda mais atrapalhado do que ele, Leo tenta escapar dos seus perseguidores, atrás do mesmo segredo. Vai parar nas garras do dito cujo, o pirata Capitão Drake, um ciborgue megalomaníaco, e da sua ninfomaníaca primeira em comando, Crapula.

A narrativa rocambolesca inclui escapadas, monstros cheios de tentáculos e um outro muito ciumento de Crapula, uma batalha espacial e feitos sexuais do herói atrapalhado mas dotado de estranho sex-appeal. Há uma ironia específica aí, já que o sonho de interessar as garotas se realiza sem que ele banque o herói, mas como está sempre na correria para salvar a vida, aproveita pouco. Crapula, aliás, está no gancho fixado para o volume 2. Com uma arte e uma cor aquarelada mais luminosa e arejada do que na Saga dos Metabarões, Giménez exibe aqui o seu imenso talento para o desenho de estruturas e veículos, artefatos hipertecnológicos e vestimentas. Mesmo com a modulação voltada para o humor, ele fornece aquele sense of wonder tão apreciado, na ficção científica.

 

Arte de capa de Richard Corben.

Den 1: Neverwhere, de Richard Corben. Kansas City, MO: Fantagor Press, 1991 [1978], 112 páginas. Arte de capa de Richard Corben. Álbum. Outro dos tesouros encontrados na madrugada, Den era um velho conhecido das páginas brilhosas da revista Heavy Metal, e também do filme antologia de 1981. Naquela época, quando eu mal sabia ler em inglês, tive contato apenas com fragmentos deste volume 1 e dos posteriores. Ler o volume completo agora me permitiu desfrutar muito mais das referências intertextuais ao Edgar Rice Burroughs da série Barsoom, e ao H. P. Lovecraft dos Mitos de Cthulhu.

A história abre com um parrudão tipo Schwarzenegger aparecendo em uma planície rochosa, sem roupas e sem pelos, aos poucos se lembrando de ter sido um nerd franzino chamado David Norman, que descobriu, nas anotações do tio desaparecido, como construir uma espécie de máquina de transmigração da alma. Apanhado na máquina, ele ressurge no mundo de Neverwhere como Den. Aparentemente, como a história vai contando, Den também era a persona do seu tio, de modo que ele não herda apenas o corpanzil, mas uma história de conflitos nesse mundo. Mal pôs os pés lá, e se vê em uma intriga envolvendo uma perversa rainha e um degenerado imortal, pela posse de um objeto mágico, Loc-Nar, necessário para invocar o Grande Uhluhtc (Cthulhu ao contrário). No caminho, Den luta com todas as armas disponíveis, conhece inimigos e aliados valorosos mesmo entre os habitantes bestiais do lugar. A cada passo da sua jornada, encontra mulheres que seguem um mesmo padrão conhecido dos fãs de Corben: rechonchudas, peitudas e depiladas. Primeiro a moça indígena de adereço asteca da cabeça, e que tenta alimentar um dragão com ele; depois a Rainha que o assedia na cara dos seus súditos; e a escritora inglesa Katherine Wells, que também veio da Terra, mas do século 19. Den se apaixona por Kathy, que acaba nas mãos do vilânico imortal Ard. A arte de efeitos tridimensionais de Corben, sua iluminação e cor quase psicodélica e o dinamismo que ele dá aos personagens capturam o olhar e a imaginação. A diagramação dos balões e outros textos, porém, ficou meio perdida nessa edição da Fantagor. A nudez é impossível de ser desvinculada desta obra. Trabalhando com o material de Burroughs e de Lovecraft não nas décadas de 1920 e 30, mas na década de 1970 pós-revolução sexual, Corben “dessublima” o conteúdo sexual do romance planetário heroico e do horror cósmico, tornando-o explícito e celebrado.

—Roberto Causo

Sem comentários até agora, comente aqui!

Leituras de abril de 2017

A fantasia ganhou da ficção científica neste mês, mas minhas leituras continuam variadas, incluindo ficção de crime e não ficção. Pela primeira vez, trago anotação de uma leitura de história em quadrinhos.

 

Arte de capa de Christian McGrath.

Mistborn: The Final Empire, de Brandon Sanderson. Nova York: Tor Books, 2008 [2006], 648 páginas. Capa de Christian McGrath. Paperback. Li Elantris, o livro de estreia de Sanderson, antes de ele chegar ao Brasil. Comprei Mistborn em seguida, mas admito que só terminei a leitura por insistência do meu filho Roberto Fideli, do Who’s Geek, que gostou muito do romance. Leu o livro na edição brasileira (LeYa, 2014) com tradução de Marcia Blasques. Minha edição tem essa bonita arte de Chris McGrath — não é o melhor dele, mas ainda assim superior à brasileira, pelo francês Marc Simonetti. O tratamento esmaecido da arte fotográfica de McGrath disfarça até o desgaste nos cantos do meu paperback.

Assim como em Elantris, o forte de Mistborn está na ambientação (urbana e sombria) e no sistema de magia (baseado no uso de metais que dão poderes a uma classe especial de humanos, os “mistborn“). A concepção do romance deve muito aos RPGs; e seu andamento, ao cinema de espetáculo de Hollywood. A menina da capa é uma Oliver Twist adolescente, recrutada pelo outro protagonista do livro, um príncipe dos ladrões (também presente em Throne of the Crescent Moon, de Saladin Ahmed, que li mês passado), para uma revolução armando contra o supervilão, um tirano imortal. É que Vin, a garota, é descoberta por ele como sendo uma mistborn. Muito do livro narra seu treinamento e como ela é infiltrada na aristocracia escravagista local, onde conhece um incomum pretendente. Nem tudo faz muito sentido no mundo secundário criado por Sanderson, especialmente a vida num ecossistema degradado por condições atmosféricas possivelmente de origem mágica. Talvez venham explicações melhores, nos volumes posteriores, dois deles já lançados no Brasil. O mesmo para o sistema de magia, com suas situações constantes de kung-fu aéreo — improváveis mas divertidas. Com Elantris, gostei de chegar até o final, que achei hiperbólico e hollywoodiano demais. Com Mistborn, gostei do final apesar de faltas semelhantes (mas atenuadas). Mas foi difícil chegar a ele, por causa da monotonia da ambientação, da repetição de situações e da pequena alternância de personagens ponto de vista. O mais importante está, porém, na dramatização do desejo de resistência à opressão e à tirania, com um bem-vindo subtexto religioso emergindo no final.

 

Arte de capa de Alan Gutierrez.

Steel Brother, de Gordon R. Dickson. Nova York: Tor Books, dezembro de 1985, 236 páginas. Capa de Alan Gutierrez. Introdução de Poul Anderson. Paperback.  Pouco publicado em português, Gordon Dickson (1923-2001) foi um autor prolífico e popular no campo da ficção científica americana. Os dorsai, seus superguerreiros mercenários do futuro do Ciclo Childe, inspiraram os meus minutemen, casta de ciborgues guerreiros que aparecem nas séries As Lições do Matador e Shiroma, Matadora Ciborgue. Até como crítica ao libertarianismo (ou libertarismo) que identifiquei nos dorsai — e muito da FC militar da atualidade. Ideologia muito americana, o libertarianismo acaba sendo uma das marcas da FC hard e militar em língua inglesa. O trabalho de Dickson, junto com o de Poul Anderson, Robert A. Heinlein e Ann Rand, certamente tem um papel nisso. Tal casamento entre literatura e ideologia política resultou até num prêmio literário, o Prometheus. Dickson também se propunha a escrever uma literatura filosófica no formato de aventura de FC, e eu ainda estou explorando tal conceito e os limites da versatilidade desse autor.

Steel Brother é uma coletânea de histórias de Dickson. A introdução de Anderson revela que ela foi montada para homenagear o autor por ocasião da sua escolha como Convidado de Honra da Convenção Mundial de FC de 1984. Curiosamente, a primeira história, “Out of the Darkness” (1961), é ficção de crime primeiro publicada na Ellery Queen Mystery Magazine. A novela “Perfectly Adjusted” (1955) é o texto mais longo do livro: um aventureiro vai parar num mundo dividido entre duas utopias: uma libertariana rural e outra autoritária coletivista. Para não se sentirem ameaçados pelo comportamento dos outros, as duas comunidades se auto-hipnotizam para não enxergarem a outra. É parte da premissa do muito posterior e festejado A Cidade e a Cidade (2009), de China Miéville. Num tom mais farsesco, Dickson satiriza a cegueira ideológica (e não poupa um libertarianismo de cara hippie). “The Hard Way” (1963) é outra história longa, pelo ponto de vista de um ambicioso e implacável alienígena que lidera uma expedição batedora à Terra. Ela explora o darwinismo social cósmico, com uma solução engenhosa para a ideia do ataque preventivo comum à FC hard. “Steel Brother” (representado na capa) é FC militar de tom mais próximo ao que Dickson fez em romances do Ciclo Childe, como Tactics of Mistake (1970). Meu favorito do livro é a noveleta “The Man in the Mailbag”, publicada originalmente na revista Galaxy em 1959. É ambientada no planeta de alienígenas peludos de 2,50 m de altura. Um jovem humano é chamado para trazer uma garota fujona, Boy Is She Built (Cara Como Ela É Carnuda), de volta ao seu clã. Ele vai com o carteiro local, e passa a ser chamado de Half Pint Posted (Meia Dose Remetida). Hilariante. Fazia tempo que não lia uma história de aventura cômica tão engraçada. Fecha o livro um ensaio de Dickson sobre o Ciclo Childe, e uma entrevista dada a Sandra Miesel, pesquisadora que acompanhou a obra do autor.

 

Cronista de um Tempo Ruim, de Ferréz. São Paulo: Selo Povo, 2009, 126 páginas. Livro de bolso. Ferréz é um dos meus heróis. Ele transformou uma origem e contexto desfavoráveis em uma militância literária das mais interessantes vistas recentemente no Brasil. Vi surgir seu movimento Literatura Marginal na revista Caros Amigos, e mais tarde o conheci pessoalmente em eventos do SESC em Curitiba e Salvador. Também é especialmente inteligente o modo como ele busca transformar pelas palavras e pelas ações a geografia cultural da periferia: com uma grife (a loja conceito 1DaSul) que explicita, ao agir corretamente, a exploração do trabalho dos moradores por grandes marcas de confecções; e com livros traficados, como esta coletânea de 23 crônicas antes publicadas em jornais e revistas. Meu exemplar eu recebi de Ferréz em 2010, quando Bruce Sterling, Jasmina Tesanovic e eu o visitamos em Capão Redondo.

O apelo ao cotidiano e à subjetividade do cronista me desagradam na crônica como literatura. Afinal, escrevo ficção científica, fantasia e outras formas de ficção de gênero que buscam o extraordinário no contemporâneo. Além disso, tais características da crônica contaminam o conto e o romance brasileiros. Muitas vezes, o resultado é uma voz narrativa dominante, monótona, que entra no caminho da variedade e da diversidade. Mas Ferréz tem uma voz fora da curva, na denúncia das hipocrisias costumeiras da sociedade brasileira quanto aos pobres e os moradores da favela e da periferia. Sua denúncia chega às autoridades, que não enfrentam a violência policial e mantêm, pela corrupção, a situação violenta que ceifa as vidas dos jovens e limita suas possibilidades de avanço. Alguns dos textos do livro repercutem os ataques do PCC em 2006, e a reação violenta da polícia e de esquadrões da morte. Outros, condenam o consumismo ou apontam o preconceito com que o morador da periferia é apresentado pela imprensa. Muitos têm a cadência e a dicção do hip hop brasuca. O retrato que Ferréz faz do estrago social produzido pela corrupção e descaso das autoridades é visceral. Põe Cronista de um Tempo Ruim na prateleira daquilo que venho chamando de “Literatura do Brasil pós-Mensalão”, ao lado do premiado O Rei do Cheiro (2009), de João Silvério Trevisan; e de Distrito Federal (2014) e Não Chore (2016), de Luiz Bras.

 

Mulher no Escuro: Um Romance Perigoso (Woman in the Dark), de Dashiell Hammett. Porto Alegre: L&PM Pocket Plus, 2008 [1933], 100 páginas. Tradução de Marcelo Kahns. Introdução de Robert B. Parker. Livro de Bolso. Esta novela de Dashiell Hammett, mestre da ficção de crime americana e criador da narrativa hard boiled, foi “redescoberta” (i.e., ausente das coletâneas do autor e nas antologias do gênero) depois de décadas da sua publicação na revista Liberty em 1933. É pena que a tradução seja uma bagunça — a opção por marcar os diálogos com aspas e não com travessões cria todo tipo de problema. Aspas aparecem onde não deviam estar e desaparecem de onde deviam estar, e dois personagens falam num mesmo parágrafo. Além disso, o uso confuso de pronomes também dificulta saber quem faz ou diz o quê.

Uma jovem suíça chamada Fischer foge das garras do ricaço americano que a trouxe da Europa. Na fuga, ela leva um tombo e se refugia na casa de um cara durão, recém-saído da cadeia, chamado Brazil [sic]. Quando o ricaço e seu capanga chegam, há tiros, socos, e Brazil e a garota fogem para a casa do ex-colega de cela de Brazil, noutra localidade. A polícia vai na cola, dizendo-o suspeito de lesão corporal grave do capanga, e chega ao seu novo endereço. Brazil é baleado, a garota é detida e entregue à polícia da cidade do ricaço. Lá, o advogado de Brazil a espera para pagar a fiança. Mas também é lá que vai acontecer o desenlace violento e a verdadeira natureza do casal de heróis e do vilão será apresentada. A introdução de Robert Parker — um dos herdeiros da tradição criada por Hammett, e de quem tratei aqui — registra que este seria um dos textos mais emocionais e românticos do autor. O próprio subtítulo se refere a relacionamento romântico, e não ao formato literário do romance. Mas não existe uma única colher de açúcar nesta história. Brazil e Fischer obviamente desenvolvem interesse e preocupação um pelo outro. Mas permanecem no nível do hard boiled, em que podem tanto ser baixos nas suas emoções, quanto apenas vestir uma máscara que oculta seus sentimentos verdadeiros. O gênio de Hammett está em manter a tensão constante entre essas possibilidades, até a linha final.

 

Arte de capa de Christopher Stengel.

Os Garotos Corvos (The Raven Boys), de Maggie Stiefvater. Campinas-SP: Verus Editora, 2.ª edição, 2015 [2012], 376 páginas. Capa de Christopher Hengel. Tradução de Jorge Ritter. Minha mulher, Finisia Fideli, lê duas vezes mais rápido do que eu. Provavelmente porque tem o QI duas vezes maior que o meu. É natural, portanto, que ela faça uma certa triagem aqui em casa. Também é boa para descobrir livros valiosos nas livrarias, antes de eles caírem na boca do povo. É o caso de Flora Segunda, de Isabeau S. Wilse; de O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares, de Ransom Riggs — e deste Os Garotos Corvos, de Maggie Stiefvater. Todos fantasia para crianças e jovens, a propósito. Stiefvater é uma favorita de Finisia, que, aliás, terminou há pouco de reler a série de quatro livros.

Não leio muito esse tipo de literatura, mas nunca é tarde para explorá-la. Stiefvater deve estar na elite desse campo tão importante atualmente, para o mercado editorial. O romance acompanha uma garota no centro de um grupo de mulheres médiuns, que se aproxima de um grupo de garotos de uma escola de elite na Virgínia. Blue, a protagonista, é bocuda, inquieta, sensata e desajeitada ao mesmo tempo. Os meninos têm o objetivo secreto de encontrar uma linha de energia mística que cruza o estado. E de fazer contato com um monarca galês de tempos pré-colombianos, enterrado nela. Há um vilão, muitos obstáculos e muito drama, mas o que distingue a autora é a espirituosidade e a habilidade de manter os vários personagens em cena numa dinâmica vigorosa e encantadora. As cenas, construídas com inteligência e solidez, parecem maiores do que são realmente, por causa da rica dinâmica entre os personagens. Há uma série de truques de virtuosismo literário nisso — diálogos inteligentes, vozes claras para cada personagem, descrições que sublinham o caráter de cada um, e exposição precisa do assunto. Mas como esse é o forte da autora, algo acaba sendo sacrificado no plano da ambientação — a cidade e a escola, em particular, não ganham vida própria. O que acontece no terreno da magia tem interesse e lógica interna. Mesmo que marcadas por essa magia, a “cultura de mulheres” e a “cultura de homens” são manuseadas com a mesma verve. Stiefvater tem um talento para metáforas e figuras de linguagem, e a fluidez da sua prosa sobrevive aos pequenos azares da tradução. Este é um romance para se saborear o estilo no plano da prosa, e aquele estilo maior que está na qualidade das imagens e situações. Certamente, um livro para jovens que é original sem ser paternalista, e povoado com gente que parece de verdade justamente por incorporar excentricidades que podem ir até um pouco além do real. Realiza justamente o que se espera da fantasia contemporânea — pôr magia na vida como a conhecemos.

 

A Doutrina Zen da Não-Mente: O Significado do Sutra de Hui-Neng (Wei-Lang) (The Zen Doctrine of No Mind: The Significance of the Sutra of Hui-Neng (Wei-Lang)), de Daisetz Teitaro Suzuki. São Paulo: Editora Pensamento, s.d. [1969], 140 páginas. Tradução de Elza Bebianno. Editado por Christmas Humphreys.  Agora seguindo indicação da Finisia, continuo minhas leituras no budismo com esse livro do especialista D. T. Suzuki, que foi Professor de Filosofia Budista na Universidade de Otani, em Kioto. O assunto é a “não-mente” ou o cancelamento do ego dentro do budismo zen. É algo que entrou na cultura popular há um bom tempo, e foi importante na composição de heróis pulp como o Sombra e o Questão — que no Brasil chegaram a aparecer num mesmo gibi da DC. Essa apropriação surge da sugestão de que o estado mental do sujeito seria capaz de atuar sobre outros seres. Uma citação do livro de Suzuki: “Se você encontrasse um tigre ou um logo nas montanhas, como usaria sua mente […]?” “Quando se avista, é como se não se tivesse avistado; quando se aproxima, é como se nunca se tivesse aproximado; e o animal [reflete] o estado da não-mente. Mesmo um animal selvagem não lhe fará mal.”

Outro clichê popular relativo ao budismo ou ao zen está na ideia de que o seu praticante ou a pessoa iluminada ou em estado de buda estaria não só livre das demandas sociais, como estaria livre de considerações sobre o bem e o mal. Cheguei a pensar que fosse uma intrusão do pensamento calvinista sobre a visão popular do budismo, mas Suzuki é categórico:  “o Dharma [ensinamentos de Buda ou lei cósmica] tem o poder de perdoar todos os pecados, de modo a perdoar todos os pecadores dos castigos.” A discussão filosófica/teológica de Suzuki parte do mestre chinês Hui-neng (638-713 d.C.) e cita muitos diálogos do tipo mestre-aprendiz, para desenvolver seu argumento. O livro é complexo e os exemplos que Suzuki escolhe não ajudam, pois os mestres posteriores a Hui-neng adoravam apelar para o nonsense para transcender o intelectualismo. Muitas vezes, o budismo zen acaba soando platonista (algo que a síntese espírita de Kardec sublinhou). Em outras, a prática do nonsense lembra a irreverência modernista nas artes como meio de ferir as percepções burguesas. No pós-modernismo se fala do fim das grandes narrativas em razão da multiplicidade discursiva moderna levando a uma equivalência entre discursos. A escrita pós-modernista muitas vezes mergulha nesse entendimento pela hipertrofia textual e narrativa (William S. Burroughs, Thomas Pynchon) ou apontando a linguagem como construtora da percepção do real (fabulation e metaficção). Na minha própria ficção, busco investigar situações em que essa multiplicidade discursiva é calada por situações de violência, qualidade mítica e o esgotamento das teleologias. Parece que aí também o budismo tem algo a contribuir.

 

O Que É Design Gráfico: Conceitos Básicos, de Nobu Chinen. Rio de Janeiro: Duetto Editorial, 2014, 48 páginas. Quem me conhece apenas como escritor não sabe que também já atuei como ilustrador editorial (mesmo como fã de FC, comecei com desenhos). Ano passado, decidi voltar a desenhar e agora adquiri uma mesa digitalizadora para desenvolver arte digital. Mas acho importante ter noções de design gráfico — inclusive para poder lidar melhor com a produção dos meus livros e até deste site. Antigamente, o design parecia apenas subsidiário das indústrias do livro e da publicidade, mas hoje está em toda parte, até em movimentos sociais e artísticos. Este livrinho do especialista nipo-brasileiro Nobu Chinen, professor da Escola de Comunicação e Arte da USP, é uma introdução leve a esse campo muito em voga atualmente. Comprei-o por menos de cinco paus, numa promoção das Lojas Americanas.

Com capítulos curtos (2-3 páginas) e com muita cor e imagens, o livro busca não apenas apresentar as questões em torno do assunto (comunicação, arte, comércio), mas também ilustrar as suas possibilidades. Em grande parte, a leitura foi como recordar os cursos de ilustração publicitária que fiz em Campinas, no século passado. Do mesmo autor, ainda tenho aqui para enfrentar Design Gráfico: Curso Básico (Escala, 2011), bem maior e mais chique.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Tony Harris & Chris Blythe.

Star Wars Infinitos: Uma Nova Esperança (Star Wars Infinities: A New Hope), de Chris Warden (roteiro), Drew Johnson (desenho) e Ray Snyder, Al Rio e Neil Nelson (arte-final). São Paulo: Panini Comics, 2017, 98 páginas. Capa de Tony Harris & Chris Blythe. Brochura. Confesso que já me peguei várias vezes imaginando uma versão alternativa do filme O Retorno de Jedi (1983), na qual tentava resolver as muitas contradições e pontas soltas do enredo da primeira trilogia de Star Wars. Em O Império Contra-Ataca (1980), Luke Skywalker chega a Bespin num Asa-X e sai de lá no Millennium Falcon, deixando para trás o caça que, supõe-se, teria o registro de todo canto em que ele esteve. Enquanto o Império tenta quebrar o código de acesso aos dados, Luke corre de volta a Dagobah para terminar o treinamento com Yoda. Ao mesmo tempo, Leia, Lando e Chewie organizam o resgate de Han. Yoda se sacrifica, ficando em Dagobah para atrair Vader. Luke obtém, por meio de uma visão, o paradeiro de Palpatine num ponto obscuro (uma nebulosa, talvez?) da “galáxia muito distante”. Antes que o Império se organize para destruir a esquadra rebelde, uma ação final é organizada contra Palpatine…

Este gibi curioso parte de uma premissa semelhante — produzir uma visão mais coerente e alternativa da trilogia, mas partindo do primeiro filme (o Episódio IV). Luke atinge as entranhas da Estrela da Morte, mas o torpedo de prótons falha. A base rebelde é destruída, Luke é recolhido por Han e Chewie. Leia é capturada por Vader e levada a Coruscant, onde vira marionete de Palpatine. Obi-Wan se manifesta e Han leva Luke até Dagobah, conhecendo Yoda. O escritor Chris Warden integra elementos da prequência iniciada com A Ameaça Fantasma (1999), criando inversões interessantes: Yoda ainda tem saúde e é Palpatine que tem os dias contados. Leia deveria se tornar a sua herdeira. Com uma ação mais compacta, os heróis convergem para Coruscant, onde ocorre o confronto final — com uma participação maior de Yoda. Pena que essa experiência alternativa de Warden não teve um número maior de fascículos na publicação original, pois ganharia mais diversidade de situações e força narrativa, se ela se espalhasse um pouco mais. Além disso, a quadrinização ficaria menos coalhada. Também é de lamentar o desenho de Johnson — meio rombudo e duro, embora lide bem com fisionomias e estruturas. Aqui estamos livres dos ewoks e da repetição do recurso da construção da nova Estrela da Morte, o relacionamento de Luke e Han tem mais arestas, e Leia ganha ambiguidades. Perde-se, porém, o centro emocional dos dois primeiros filmes — o sentimento de amizade confrontado à indiferença de forças de escala cósmica.

—Roberto Causo

Temos 4 comentários, veja e comente aqui