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Leituras de Janeiro de 2021

Janeiro foi o segundo mês das minhas leituras para o guia de pesquisa e leitura de ficção científica brasileira que escrevo para a Editora Bandeirola. Predominam, portanto, livros brasileiros de FC pertencentes a momentos e tendências diferentes dentro da história do gênero entre nós. 

 

Arte de capa de Carlos da Cunha.

As Robix de Júpiter, de Lúcia Pimentel Góes. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, Pinju: Série Juvenil, 1985, 108 páginas. Arte de capa e ilustrações internas de Carlos da Cunha. Livro de Bolso. Em 1985, todo o impacto da primeira trilogia de Star Wars (1977 a 1983) se fazia sentir. Naqueles anos, era muito mais comum encontrar ficção de gênero no campo infanto-juvenil, assim como atualmente se dá com o campo jovem-adulto. A premiada (Pen Club-SP, entre outros) Góes, que também se dedicou a pensar a literatura para crianças e jovens com o seu Introdução à Literatura Infantil e Juvenil (1984), vinha de publicar em 1981 BIPE, FC sobre um menino robô. Ela entrou no campo infantil e juvenil em 1969. Este As Robix de Júpiter é uma novela para crianças de 9 a 12 anos que se passa no século 23 e envolve uma missão humana ao planeta Júpiter, habitado por alienígenas respiradores de amônia com três pernas. O objetivo é firmar um tratado comercial. Mas enquanto estão lá, os jovens que compõem a missão acabam descobrindo que robôs jupiterianos (“robix” é feminino de robô, segundo a autora) foram reprogramados para realizar sabotagens, a mando e um tirano espacial que já controla um império localizado na galáxia de Andrômeda.

Alice, uma das moças, é raptada pelos invasores, e sua colega Lúcia se apaixona, em um amor sem preconceitos, por um cavalheiresco habitante de júpiter. Após um ataque realizado contra a Terra (no qual a autora expressa uma imaginação apocalíptica não muito diferente daquela do pioneiro Xisto no Espaço, de Lúcia Machado de Almeida), humanos e jupiterianos rechaçam a esquadra invasora vinda da galáxia vizinha, em uma batalha espacial. Tem-se aí, portanto, mais um exemplo de space opera brasileira como o de Rosana Rios, Encontro Inesperado na Terceira Lua, mas aqui com um conflito intergaláctico. A linguagem é ligeira e acontece muita coisa em pouco espaço.

 

The Great Pulp Heroes, de Don Hutchison. Oakville, ON/Buffalo, NY: Mosaic Press, 2ª edição, 1998 [1996], 276 páginas. Ilustrações de Franklyn E. Hamilton. Um delicioso volume com a cara das edições amadoras que imperam no mercado americano voltado para os quadrinhos, com jeitão de fanzine mas repleto de informações preciosas. Hutchison define o herói pulp como o protagonista de séries de ficção pulp em revista própria. Por esse critério, o primeiro herói pulp seria The Shadow ou O Sombra, surgido em 1931. Walter Gibson (sob o pseudônimo de “Maxwell Grant”) foi o seu principal escritor. Antes de tratar dele, porém, Hutchison contextualiza as pulp magazines surgidas em fins do século 19, e faz uma curiosa afirmativa, incorreta: “Possivelmente a única categoria editorial inventada pelos pulps foi aquela da ficção científica.” Doc Savage, o “Homem de Bronze”, teria sido o segundo pulp hero (em 1933). Assim como O Sombra, foi criação empresarial da editora Street & Smith. Lester Dent foi o principal autor (escrevendo como “Kenneth Robeson”). Possuindo mais elementos de FC, Doc teria sido uma das inspirações para o Homem de Aço, o Super-Homem de Jerry Siegal & Joe Shuster. Assim como o Sombra, teve um programa de rádio e foi para o cinema, mas décadas depois. Ao contrário do pioneiro, teve um grande revival em paperback, na década de 1970, mas apenas o Sombra foi publicado no Brasil, em dois momentos diferentes (no segundo, por ação de R. F. Lucchetti). Em seguida, Hutchison trata de um bizarro herói de aventuras aéreas, G8 (1933), que chegou a ter uma aventura envolvendo morcegos gigantes no Mato Grosso. O autor era Robert Jasper Hogan. Há um capítulo posterior, dedicado a outros heróis de aventuras aéreas, entre eles o mais futurista Terrence X. O’Leary. (O capítulo também informa que o piloto Major Donald E. Keyhoe escreveu aventuras de Philip Strange, “o ás fantasma do G.2”, antes de ficar famoso escrevendo livros sobre discos voadores.)

G8 tinha aspectos de horror, e o herói Spider (1933), também. Criação de Henry Steeger da gigante Popular Publications (também criador do G8), era um “herói” moralmente ambíguo, em série que Hutchison define como weird fiction. Vários autores assinavam as histórias, mas quem deu a sua cara foi Norvell W. Page. O personagem virou seriado de cinema em 1938 e 1941, mas nos quadrinhos, só em 1991. Indo noutra direção, Operator #5 (1934) foi uma revista com histórias de invasão e espionagem, expressando a paranoia americana de que potências estrangeiras desejariam, desde sempre, tomar do país a sua liberdade e estilo de vida. Segundo Hutchison:

“Ela brindava os Estados Unidos isolacionista com não uma, mas com quantidades de fantasias paranoicas sem paralelo na história da literatura.” E ainda: “Como espelho social surrealista das fobias coletivas do seu tempo, a revista permanece sem paralelo na história da cultura popular.” —Don Hutchison. The Great Pulp Heroes.

O herói James Christopher, um agente secreto que teria sido um James Bond antes de James Bond, é chamado por Hutchison de “um Super-Homem”. O prolífico Frederick C. Davis foi o primeiro autor da série, e o seu criador junto à Popular Publications (sob o pseudônimo de “Curtis Steele”). Mas cedeu o lugar a continuadores, que fizeram o herói enfrentar invasores japoneses, alemães e da Europa do Leste. O conteúdo que remetia à guerra futura era especulativo o suficiente para inserir a série no campo da FC — algo enfatizado por um episódio de invasão alienígena. O próprio Hutchison afirma que os romances do Operador 5 devem ser lidos como FC. Isso se dava mais obviamente com Curt Newton, ou o Captain Future (1939): segundo Hutchison, o único herói de space opera de então, a ser honrado com a própria revista. O escritor de FC Edmund Hamilton foi o autor mais vinculado ao herói, um patrulheiro espacial do Sistema Solar do futuro, mas quem o criou foi o editor Leo Margulis, da Standard — embora o personagem tenha sido rapidamente remodelado por Hamilton.

Outros heróis pulp examinados pelo Hutchison são o famoso The Phantom (1933), mais um milionário detetive e outra criação de Margulis, e longeva (durou vinte anos); The Avenger (1939), outro herói mascarado da Street & Smith a compor ficção de crime com traços de FC; Doctor Death (1935), da Dell Magazines e um pulp villain, ao invés de pulp hero, neste caso com narrativas de “weird menace” — o mesmo com Wu Fang (1935) da Popular Publications, e os grotescos Octopus e Scorpion. Em tudo, The Great Pulp Heroes fornece uma leitura rica e engajante. O livro traz também páginas e ilustrações em fac-símile, e desenhos pontilistas de Frank Hamilton, representando autores e editores, feitas na década de 1970 para algum afortunado fanzine.

 

Arte de capa de Lívia.

A Ordem dos Futuros, de Ricardo Gouveia. São Paulo: Editora Moderna, 3.ª edição, 1994 [1993], 144 páginas. Arte de capa e ilustrações internas de Lívia. Brochura. Assim como A Cidade Proibida (1997), de Álvaro Cardoso Gomes; Megalópolis (2006), de Júlio Emílio Braz; Cyber Brasiliana (2010), de Richard Diegues; e Rio: Zona de Guerra (2014), de Leo Lopes, esta novela juvenil é exemplo de cyberpunk nacional que não deve ser confundido com o “tupinipunk” (cyberpunk tupiniquim). Tem a distinção de ser ganhadora do prêmio de Melhor Livro Juvenil da Associação Paulista dos Críticos de Arte. A história, totalmente ambientada em uma São Paulo do século 23, abre com uma garota paulistana chamada Lenorah (uma “índia ítalo-japonesa”) metida com um jogo virtual, Aventura no Futuro. E com um garoto chamado Djíndji o Vermelho (um judeu-brasileiro ruivo), que, em liberdade condicional de recuperação juvenil, torna-se suspeito do assassinato de uma ricaça madura que o assediara. O moço entra na mira tanto do monolítico governo do futuro da novela, quanto do grupo radical ao qual havia participado, e que o vê como traidor: o Movimento Ecoxita [sic]. Nenhuma sutileza na disposição do autor em apontar um ambientalistalismo terrorista, a partir de deixa tomada de matéria da revista Veja, mencionando “ecoxiitas” .

Acompanha os dois a inteligência artificial OZ-03, que, interessada no humor humano, por isso mesmo funciona como alívio cômico, mesmo enquanto caminha para a plenitude da “singularidade tecnológica”, ao substituir “Verme do Silício”, a vilânica IA de alcance nacional. Na cola do casalzinho está o matador juvenil Tinhoso, parte dos ecoxitas mas com jeito de pixote, capturado e torturado pela polícia e depois reprogramado com um implante de vigilância, para encontrá-los. Há momentos de ciberespaço envolvendo o já mencionado “videogueime”, perseguições e conspirações entre IAs, compondo uma densidade de ideias de FC que se aproxima do costumeiro dentro do cyberpunk internacional, e dispostas em tom brincalhão. Mas tudo em um amálgama superficial jocoso e irreverente que, a par com o título do livro, iguala ideologias, posturas e processos históricos, passando perto de naturalizar alguns dos contextos mais dramáticos da nossa história, como neste trecho:

“Tinhoso olhou mais uma vez para a bandeira.

“O intenso fundo verde evocava as matas perdidas, a natureza ameaçada de total destruição. Sobre ele, um grande círculo vermelho, quase tocando as bordas superior e inferior: o vermelho do sangue derramado e ainda por derramar até o dia da vitória. No meio do círculo, em preto, a foice e o martelo. O antigo símbolo comunista fora modificado para lembrar outro símbolo muito antigo e vigoroso, a suástica […]” —Ricardo Gouveia. A Ordem dos Futuros.

 

Arte de capa de Nelson Lopes.

A Porta de Chifre, de Herberto Sales. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986, 248 páginas. Arte de capa de Nelson Lopes. Brochura. A Amazônia transformada em deserto. Essa é a imagem central desta FC de Sales, que antes escreveu O Fruto do Vosso Ventre (197 ), ganhador do Prêmio Jabuti. A Porta de Chifre é ambientado em 2352, quando não existe mais água na superfície do planeta, sendo arrancada do subsolo e comercializada como se fosse petróleo. Uma expedição de pesquisa vai à região amazônica com uma limusine Rolls Royce puxada por dromedários. Dentro de uma cadeia de montanhas na Amazônia, os exploradores internacionais encontram um idílico mundo perdido subterrâneo com água e vegetação: Aanac (“Canaã” ao contrário). Assim como os elois eram presa dos morlocks em A Máquina do Tempo (1895), de H.G. Wells, os pacíficos habitantes do lugar são atacados periodicamente pelos grotescos homens-formigas (alusão à livro de Tarzã, de 1924?) de uma caverna próxima. E assim como os aventureiros liderados pelo Prof. Challenger de O Mundo Perdido (1912), de Arthur Conan Doyle, tomam partido dos indígenas contra os hominídeos do planalto em que eles estão em conflito, os personagens de Sales exterminam o formigueiro.

Uma mistura curiosa de Terra moribunda com mundo perdido, retrabalha situações costumeiras desse segundo subgênero da FC dentro do estilo repetitivo do autor, assim como cria o próprio technobabble nonsense para a tecnologia do futuro, que permite a sobrevivência da humanidade num quadro desfavorável à vida. O resultado é um pastiche pós-modernista, e um parágrafo no frontispício explicita a sua tônica:

“Sucinto relato anticientífico, com ingredientes de ficção, que se faz de uma viagem, no ano de 2352, à maneira dos velhos romances, quando ainda se escreviam romances e havia quem por ler os lesse.” —Herberto Sales, A Porta de Chifre.

 

Kalum, de Menotti del Picchia. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. [1936], 206 páginas. Apresentação de Afrânio Coutinho. Ilustrações internas de Teixeira Mendes. Quando Del Picchia, depois de A República 3000, retornou ao conceito de uma civilização cretense incógnita no Brasil Central, com o romance Kalum: O Mistério do Sertão, outra mulher única, impossivelmente loura e alta, é apresentada: Elinor, a líder de uma sociedade infantilizada e em declínio causado pela automação e pela autocomplacência, em luta para garantir uma sobrevida aos seus concidadãos. “Nós somos um dos ramos dos habitantes da República 3.000”, anuncia ao herói. “Somente, que eles puderam emigrar para um vale feliz, onde conseguiram dispor de todos os elementos materiais para evoluir. Os fundadores de nossa pátria, porém, tiveram menos sorte. Eram também, como os cidadãos daquela república, emigrados cretenses.” A primeira parte obedece àquela estrutura da luta na selva antecedendo ao contato com a civilização oculta. Desta vez, trata-se de expedição de um cineasta alemão, Karl Sopor. Eles vêm da selva boliviana com destino a Porto Velho até o Amazonas, onde pretendem filmar, para um documentário, um grupo de indígenas antropófagos — a etnia ficcional Kurongang. Um outro alemão, o rechonchudo Fritz Unzer, funciona como alívio cômico, e há até um chinês no grupo, o cozinheiro Pei-Fu. Talvez em consequência de serem predominantemente estrangeiros na expedição, as descrições regionalistas quase desaparecem da narrativa.

Ao mesmo tempo, os Kurongangs soam mais africanos do que indígenas brasileiros. São repetidamente descritos como gigantes negros, falam em uma língua gutural com vocalizações como “Catulê Catô! Mm bamba! Changô!” e são comandados pelo brutal Kalum, uma pigmeu entre guerreiros zulus. Depois de capturados, os exploradores se encontram com um padre português também prisioneiro mas integrado os Kurongangs como o chefe dos pajés. Apiedado de Karl e dos seus homens, ele ajuda o herói a enganar Kalum com um truque clássico desse tipo de aventura: o documentarista filma um ritual das “virgens de Bangô, o deus da volúpia” e, ao exibi-lo para o assustado Kalum, apresenta-se como tendo aprisionado a alma de todos aqueles que foram capturados em película. De posse do diário de um cretense que havia saído da sua cidade perdida para explorar os arredores, Colaço e Karl fogem para a entrada do mundo perdido. O padre é ferido mortalmente, de modo que o herói entra sozinho no lugar — a cidade perdida de Elinor.

É preciso reconhecer o quanto Del Picchia parece ter desejado invadir, com este segundo romance, o território de H. Rider Haggard. Assim como em O Irmão do Diabo ou O Ouro de Manoa, de Jeronymo Monteiro, os indígenas do continente comportam-se mais como guerreiros africanos (na capa da edição da Coleção Saraiva, o artista Nico Rosso deu a Kalum adereços faciais de um caçador de cabeças da Nova Guiné) e os índices de aventura colonial são mais evidentes. A República 3000, publicado também na França e Itália, aparentemente alcançou sucesso a ponto de inspirar a sequência — e possivelmente para que Del Picchia a aproximasse das aventuras coloniais de Haggard, conhecidas do público leitor europeu. A versão da utopia cretense que Elinor oferece tem o seu próprio enfoque em relação à República 3000. Se naquela podíamos testemunhar o salto evolutivo, nesta temos a decadência racial. O que Karl descobre é uma raça infantilizada de mulheres minúsculas e de homens transformados em anões grotescos, encolhidos pelo ócio que a técnica avançada da cidade subterrânea proporciona, e pela falta de perspectiva do seu enclausuramento. Elinor, a mulher, é chamada pelas mulherzinhas de “o Rei”, em evidente chacota, por ter altura e aparência distintas e o dinamismo de quem ainda busca soluções e remédios para a decadência. Sendo a única compatível com Karl, logo se desenvolve uma paixão entre os dois.

Um dos primeiros a propor uma mudança morfológica da humanidade do futuro foi H. G. Wells, no já mencionado A Máquina do Tempo. Os seus ociosos elois são pequenos e infantilizados, enquanto os laboriosos morlocks do submundo são grandes e animalizados. Ambos descendem do Homo sapiens. Também é possível que haja algo de A. Merritt na composição do brasileiro, já que The Moon Pool (1919) apresenta o mesmo tipo de dimorfismo sexual: os homens são anões, as mulheres, normais e lindas. O destino reservado a Elinor, a cidade, é apocalíptico, com a sua invasão pelos cruéis Kurangangs e com a sabotagem intencional da máquina que renovava a oxigenação dos espaços subterrâneos. Escapa o casal apaixonado, deixando o duplo holocausto para trás.

 

Cummunká, de Menotti Del Picchia. São Paulo: Coleção Obras de Menotti Del Picchia, Livraria Martins, 1958, 260 páginas. Arte de capa de Italo Bianchi. Brochura. A sátira Cummunká (1938), um romance, é ambientada em um Brasil sem geografia humana, dividido simplesmente entre cidade e sertão. Uma “bandeira” moderna é organizada pela redação de um jornal como golpe de publicidade, mas, alertada pelo rádio — pelo qual ouvem música clássica e programas culturais europeus —, a nação Xavante se prepara para recebê-la, capturando a todos com seu conhecimento superior de táticas militares e, mais tarde, numa escalada repentina, derrotando a Cidade. Descritos como mais sábios, cultos e capazes que os não indígenas, os Xavantes são liderados pelo personagem-título, caracterizado como um filósofo e crítico cultural modernista, que sentencia: “Vossa cultura é a matriz perpétua da guerra. Ela cria apenas para destruir. […] Que importam os prodígios da vossa ciência, se essa mesma ciência estuda outras mil formas de assassinar os homens em massa? […] Não é viver tirar um torpe proveito material das coisas dentro de uma atmosfera de ameaças e de pavor.”

Mas é um outro pensador ficcional, o também cacique Ambará e também personagem de Cummunká, que vale citar em conexão com os anteriores A República 3000 e Kalum: “Que a máquina, criada para ser a passiva escrava do homem, trazendo-lhe mais confôrto e poupando-lhe o esfôrço [sic], se transformou em algoz das massas, apossadas como foi pelo capitalismo […]. [O] ritmo clássico da vida dos brancos foi quebrado pela errônea utilização da máquina, gerando-se desse fato, a inquietação e a guerra… É a vingança da máquina que convulsiona o mundo.”

Embora com ênfase na aventura, os dois romances anteriores fazem parte dessa mesma visada do escritor modernista Menotti Del Picchia: críticos dos terríveis prodígios da tecnologia e seu impacto sobre a consciência humana. Ambará argumenta perante os seus pupilos indígenas: “A criatura humana não é nem uma subcriatura, nem uma hipercriatura. A idéia [sic] de um ‘super-homem’ é concepção de uma ‘coisa diferente’, ou melhor, de um ‘novo ser’, ou de um monstro. Para que ela viva é mister criar-se um outro mundo, isto é, um supermundo. O homem verdadeiro é uma constância; deformar o homem é violar uma lei eterna. É artificializar o homem, arrancá-lo do plano natural. O mesmo se dá com a paisagem que o cerca: a deformação da paisagem é violência contra a natureza, é a superposição do artifício à realidade…”

Na sua síntese, é quase como se Del Picchia olhasse para a discussão que havia iniciado com as utopias de A República 3000 e Kalum, escritas sob a escusa de espairecer depois de trabalhos mais sérios ou de buscar o mercado do leitor jovem, mas que se tornaram clássicos da FC nacional — até por incorporarem essa discussão central para o Modernismo.

 

A Desintegração da Morte, de Orígenes Lessa. Rio de Janeiro: Edições de Ouro/Tecnoprint, Coleção Futurâmica, s.d., 132 páginas. Livro de bolso. A inclusão deste livro nacional na Coleção Futurâmica é fato extraordinário, já que ela, surgida em 1959 ou 1960, era dominada por traduções e, possivelmente, com a inclusão de obras brasileiras sob pseudônimo. É uma curta coletânea de histórias, aberta por “A Desintegração da Morte”, novela originalmente publicada em 1948 e que mais tarde entrou em Os Melhores Contos de Orígeness Lessa (2003), editado por Glória Pondé. Imagina um invento do bem-intencionado Prof. Klepstein, que anula a morte por violência ou envelhecimento. Abre com o seu laboratório sendo invadido por homens armados que o metralham inutilmente, a mando de um “reverendo”. A novela — ambientada principalmente nos EUA — passa a descrever, saltando de situação em situação à maneira do romance A Guerra das Salamandras (Vàlka s Mloky, 1936), de Karel Čapek, os efeitos da invenção nas relações humanas. A chave é satírica, denunciando o quanto questões como religião, indústria bélica e indústria hospitalar e de medicamentos nutrem-se da morte. Também é satírica a presença de índices de ficção pulp. Lessa viveu nos EUA na década de 1940, e sua formação como pastor presbiteriano deve ter tido papel nas reflexões da novela.

A coletânea (erroneamente tratada de romance em nota no final da edição) é completada por três contos narrados em primeira pessoa. Nenhum deles é FC, e apenas o segundo, “O Instituto Nacional do Amendoim”, partilha do formato sátira — política. É ambientado em país fictício recentemente vítima de golpe militar em que todas as instâncias de opressão econômica e laboral, corrupção, prevaricação e nepotismo são racionalizadas em ternos nacionalistas que transformam, nos termos mais ufanistas, as circunstâncias econômicas menos relevantes (a produção de amendoim) em oportunidades de locupletação. “Nós, o Mar e Conceição” explora muito bem a dinâmica de desejos sexuais do narrador por uma “mulher fácil” a bordo de um navio e passageiros na mira de submarinos alemães, na II Guerra Mundial, com um clima tétrico no final. Também realizando sondagem psicológica, “Reencontro”, conto de ficção militar, é narrado por um jovem que foi partícipe relutante do bullying de um colega de escola, e que, agora com ambos na mesma unidade lutando na Revolução Constitucionalista, perversamente vigia o amigo na antecipação do instante em que o verá ruir psicologicamente. É forçado a testemunhar o heroísmo do colega, ao invés. (Lessa lutou naquele conflito, em 1932.)

Na década de 1960, o autor já era um autor multipremiado e um jornalista de relevo. O elogioso texto do crítico Ricardo Ramos, incluído no fim da edição e funcionando como anúncio do livro de contos Balbino, O Homem do Mar (1960), sugere que este A Desintegração da Morte entrou na Série Futurâmica menos por desejo de desenvolver a FC brasileira, e mais por conhecimento e prestígio de Lessa (que seria eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1981), como oportunidade de promovê-lo como contista.

 

Arte de capa de Geraldo Degasperi.

Quase Além da Fantasia, de Luigi Maria Sarcinella. São Paulo: Editora Maltese, 1994, 188 páginas. Arte de capa de Geraldo Degasperi. Brochura. Nascido na Itália, Sarcinella (1920-2013) é autor do relato de guerra Salto no Escuro (1968) — no caso, a Segunda Guerra Mundial, da qual participou como combatente, prisioneiro de guerra e guerrilheiro. Sua aventura na FC, esta coletânea com uma noveleta e dois contos, tem o sentido coincidente de condenar a insanidade humana. O artifício convocado para isso é o do homem comum mas bem informado, que recebe a visita de um alienígena superior e bem intencionado. No caso da primeira história, “Luana, o Andróide”, um ser artificial criado em Ganimedes (a lua de Júpiter) para interagir com o narrador. Ao discutir com ela, o narrador aponta um número de obras científicas e seus autores, mas comete enganos conceituais como imaginar que a velocidade da luz depende da cor (ou vibração) da fonte luminosa. O protagonista se apaixona pela androide, descrita como uma mulher perfeita, mas não consuma a sua paixão.

Narrado em terceira pessoa, “Quase Além da Fantasia” dá título ao livro e tem premissa semelhante: Jean, o protagonista, tem um contato com tripulante de um disco voador que discute com ele as diferenças no avanço moral entre o seu mundo e a Terra, com ideias influenciadas pela hierarquia espiritual do espiritismo, e, neste caso, cita obras e pensadores em notas de rodapé. São duas narrativas de FC ufológica a serviço da especulação filosófica, infelizmente superficial. Em “Que Pílulas!”, a terceira e última narrativa, Sarcinella desce do pedestal das boas intenções e produz um divertido conto de humor, malicioso e politicamente incorreto, que remete ao Ciclo de Narrativas de Chiste e Sátira da primeira metade do século 20 no Brasil, ainda no Período Pioneiro (1857 a 1957): um cientista bombardeia com raios-X uma glândula desconhecida de um macaco cobaia, e elabora a fórmula S.P.Q.R. 2V, que, sob a forma de pílulas, é capaz de dar qualquer mulher um corpo escultural e insaciável apetite pelo sexo. Transformada em uma poderosa negra, sua rejuvenescida esposa quer colocá-lo à prova e fala em convocar outros parceiros. O conto, portanto, dá outro ângulo ao tema da mulher ou ginoide idealizada, presente em “Luana, o Andróide”. Mas efeitos colaterais observados na cachorrinha do casal fazem o inventor aplicar um antídoto a tempo. Melhor se conformar com o modo como as coisas são.

 

QUADRINHOS

Arte de capa de Joe Kubert.

Sgt. Rock: A Profecia (Sgt. Rock: The Prophecy), de Joe Kubert. Barueri-SP: Panini Brasil, 2009 [2006, 2007], 146 páginas. Tradução de Fábio Fernandes/FD. Arte de capa de Joe Kubert. Brochura. Mês passado eu comentei Sgt Rock: Entre a Morte e o Inferno, escrito por Brian Azzarello. Este A Profecia está mais perto do caráter do herói e da Companhia Moleza, e provavelmente é um projeto mais pessoal de Kubert, o principal desenhista vinculado ao personagem. Neste gibi comemorativo dos 50 do Sgt. Rock, a Moleza é retirada da campanha na Itália, no inverno de 1943, e lançada secretamente de paraquedas em algum ponto da Europa do Leste, entre a Letônia e a Lituânia, em uma missão especial: evacuar da zona de guerra um jovem profeta, um messias judeu adolescente. É portanto situação do tipo Resgate do Soldado Ryan (1998), em que as vidas de muitos homens é posta em risco para garantir a de um. A diferença é que o messias judeu é importante para toda uma comunidade, e não apenas para uma família. É visto como um trunfo pelo alto comando. Sem bem entender o que fazem, os caras da Companhia Moleza mesmo assim dão tudo de si.

A história passeia por várias circunstâncias daquele teatro de operações: atrocidades nazistas e também dos partisans locais, de tropas russas e de colaboracionistas, culminando na exploração de um campo de extermínio abandonado e no contato com locais colaboracionistas. Em meio a isso tudo, lampejos dramáticos de humanidade na forma de um cachorrinho adotado pelo Soldado Bulldozer; uma bela mulher entre os partisans, um casal de irmãos que recusa a ajuda da Moleza, uma menina bebê de colo que passa a viajar com eles, sendo cuidada pelo jovem profeta. Há uma qualidade fantasmagórica a muitas das situações. A narrativa é vigorosa e tem o seu ápice na extração aérea do messias (com o uso de um protótipo de helicóptero). Certamente, uma alegoria da ascensão do jovem que, em outros momentos, já se mostrara abençoado por Deus. Em contraste ao álbum escrito por Azzarello, este de Kubert parece mais “in character” quanto a Rock e a Moleza. Significa, por outro lado, que mantem as inconsistências que afligiam a série. Mais importante, recupera aquela sensação de que a guerra representa uma ruptura em nossa concepção da realidade, a ponto de dar espaço ao grotesco, o estranho e, neste caso, também o maravilhoso. Kubert (1926-2012) era judeu polonês, e aqui explora com muita felicidade a sua herança étnica.

 

Arte de capa de J. Scott Campbell.

Marvel Saga: O Espetacular Homem-Aranha: Feliz Aniversário, de J. Michel Straczynski (texto) & John Romita, Jr. (arte). Barueri-SP: Coleção Marvel Saga: O Espetacular Homem-Aranha N.º 4, Panini Comics, 2020, 200 páginas. Introdução de Fernando Lopes. Tradução de Mario Luiz C. Barroso. Arte de capa de J. Scott Campbell. Capa dura. No início deste livro, Peter Parker, o professor de Ciências do ensino médio, está preocupado com a vulnerabilidade de uma aluna afro-americana em particular. Esse é o tipo de momento que faz valer a passagem de Straczynski pelo herói. Logo, porém, surge o personagem Ezekiel, um bilionário que partilha dos seus poderes e conhece o lore sobre homens-aranhas, no qual tem educado o herói. Mais tarde, a preocupação com o irmão desaparecido de uma das alunas de Peter traz Ezekiel novamente ao enredo. As coisas aceleram mesmo quando o uma daquelas típicas invasões transdimensionais de Nova York mobiliza não apenas o Aranha, mas os Vingadores, o Quarteto Fantástico e os X-Men.

Mas é com o surgimento do Doutor Estranho que as coisas se complicam de fato — o herói místico revela que a ação das equipes repelindo os alienígenas resultou na libertação do demoníaco Dormammu. Inadvertidamente, o Homem-Aranha acaba sendo arremessado a uma dimensão anterior ao espaçotempo, Ao tentar resgatá-lo, o Doutor Estranho funciona como o seu “espírito dos natais passados” — dispositivo que permite ao herói rever os principais momentos, os mais dramáticos e centrais, da sua trajetória, às vésperas do seu aniversário. Na introdução, Fernando Lopes aponta o fato de que muitos personagens do universo Marvel amadurecem e envelhecem, transformam-se ao longo do tempo. De modo característico do seu talento, Straczynski trabalha a memory trip deste que é o meu super-herói favorito com grande humanidade e sensibilidade. O ápice é o presente de aniversário do Doutor Estranho: alguns minutos de Peter com o seu tio Ben. As histórias finais preparam o que virá a seguir, e uma delas é toda sob o ponto de vista da Tia May.

Roberto Causo

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Leituras de Fevereiro de 2020

Em fevereiro, muita arte de Star Wars nos quadrinhos, muita ficção científica brasileira, um romance de Robin Hobb e histórias de Robert Sheckley.

 

Arte de capa de Dave Dorman.

Star Wars Art: Comics, de anônimo, ed. Nova York: Abrams, 2011, 180 páginas. Foreword de Dennis O’Neil, prefácio de Douglas Wolk, introdução de Virginia Mecklenburg. Arte de capa de Dave Dorman. Hardcover. O exemplar que adquiri deste livro é testemunha e sobrevivente dos maus tratos recebidos por livros de arte com sobrecapa, em muitas livrarias brasileiras. Foi comprado com desconto substancial na loja Geek.etc.br, em São Paulo, com rasgo na lombada e a sobrecapa ausente. A que aparece ao lado foi apanhada na www, e traz uma linda e impactante ilustração de Dave Dorman com ecos de Frank Frazetta, feita originalmente para a minissérie Star Wars: Crimson Empire. É claro, se o livro estivesse inteiro e impecável, eu dificilmente teria como adquiri-lo.

Há algo de catálogo de galeria na sua organização, com reproduções que buscam o original com seus defeitos, e itens majoritariamente com ausência de letreramento e outros toques gráficos finais. Num sentido semelhante, o livro dá atenção não só às artes “oficiais”, que resultaram em produtos de venda massificada, mas também às requests — artes encomendadas (“private commissions“, como o livro adota). Muitas vezes, são grandes nomes produzindo essas encomendas, como Joe Kubert, Mike Mignola, Bill Sienkiewicz, John Cassaday, Michael Kaluta, John Romita, Arthur Adams, P. Craig Russell, George Pérez, Paul Gulacy e Carlos Sarzon. Os editores até reservaram a uma request um dos spreads de quatro páginas do livro: uma arte de J. H. Williams III.

Em termos de artes de capa, existe um look de Star Wars consagrado nas revistas em quadrinhos. Os responsáveis são, principalmente, Dave Dorman, Ken Kelly e Hugh Fleming — com a arte do cartazista de cinema Drew Struzan como influência nos bastidores (ele não está no livro). No que diz respeito à arte de miolo, temos itens desenhados por Howard Chaykin, Dave Cockrum, Al Williamson, Carmine Infantino, Terry Dodson, Tony Dezuniga, Drew Johnson, o canadense Michel Lacombe e o japonês Hiromoto-Sin-Ichi. Alguns painéis de Killian Plunkett são especialmente impactantes, mas gostei mesmo foi de ver as páginas a lápis de Doug Wheatley, cujo trabalho com o ciclo Dark Times eu achei fabuloso. Senti falta de páginas desenhadas por Walt Simonson, que trabalhou com Star Wars na primeira fase da franquia com a Marvel, e de Cam Kennedy. A única arte que expressa o que temos visto mais recentemente, com o domínio da cor digital, é um request de Ryan Sook. O requisitado Adam Hughes também está presente, assim como o destacado capistas de FC Jon Foster, e me agradaram as páginas em preto e branco de David Michael Beck, muito utilizadas ao longo de todo o livro. Fiquei agradavelmente surpreso com o registro de brasileiros que trabalharam com Star Wars nos quadrinhos: Rodolfo Damaggio e Rod Pereira. Star Wars Art: Comics é um livro precioso, que expressa a produtividade do universo de Star Wars no campo da arte de ficção científica, e um registro do seu impacto na FC em quadrinhos. As requests também nos falam da força afetiva desse universo sobre o público, e o interesse de colecionadores sobre ele. Fecha com a transcrição de uma reunião de trabalho entre George Lucas e Howard Chaykin, quando da adaptação do filme Guerra nas Estrelas (Star Wars, 1977), com o então editor da Marvel, Roy Thomas, intermediando a conversa que resultaria no pontapé inicial da presença de Star Wars no universo dos quadrinhos.

 

Arte de capa de Jackie Morris.

Blood of Dragons: Volume Four of the Rain Wilds Chronicles, de Robin Hobb. Nova York: Harper Voyager, 1.ª edição, 2014 [2013], 482 páginas. Arte de capa de Jackie Morris. Paperback. Robin Hobb, conhecida no Brasil pela série Crônicas do Assassino (The Farseer Trilogy), fecha com este volume a sua tetralogia The Rain Wilds Chronicles, parte do mesmo universo da Farseer Trilogy e da trilogia Mercadores de Navios-Vivos (Liveship Traders). Ele se conecta mais com essa última. Às vezes, o volume final de uma série fica sobrecarregado com linhas narrativas a entrelaçar, pontas a amarrar, e os último traços de drama a raspar do tacho. Blood of Dragons sofre um pouco com isso. Os cuidadores de dragões e seus associados estão em Kelsingra, a antiga cidade dos elderlings que serviam aos dragões e recebiam longevidade e magia em troca. Os tratadores seguem se transformando fisicamente em elderlings, agora com uma atenção maior dos “seus” dragões guiando o processo. Enquanto isso, em outra região do mundo secundário, Tintaglia, a primeira dragão a retornar ao mundo em gerações, é emboscada e ferida pelos soldados do vilânico Duque de Chalced. Subindo o rio, o casal Malta e Reyn Khuprus seguem para Kelsingra, na esperança de reverterem as deformidades do seu filho recém-nascido. Hest, o marido gay de Alise Kincarron, também está a caminho por outras vias, posto em movimento pela ameaça dos agentes de Chalced. Obviamente, chegando à cidade mágica ele tem o potencial de causar muitas complicações para ela e o seu novo homem, o capitão Leftrin, e também para o ex-amante de Hest, Sedric.

Uma das linhas narrativas que mais cresce em peripécias e em força dramática a de Selden, irmão de Malta e um prisioneiro do Duque de Chalced, vendido a ele como um homem-dragão que pode curar o tirano, se este consumir a sua carne. Enquanto se recupera dos maus tratos sofridos em cativeiro, Selden é cuidado pela filha do duque, Chassim, ela mesma vítima da crueldade do pai. Os dois formam uma desesperada aliança. A linha que perde mais é a de Thymara, protagonista em vários momentos dos livros anteriores, e que conserva importância neste último volume. Ela se empenha em descobrir o segredo da regeneração de dragões e elderlings. Mas essa importância acaba empalidecida. Me parece que, na tetralogia, Hobb buscou se aproximar de várias características da fantasia jovem adulta. A heroína dividida em seu amor por dois rapazes se tornou um dos estilemas dessa literatura, que Hobb adota aqui e que meio que abafou as possibilidades de crescimento da personagem, que em Blood of Dragon se caracteriza pela apatia causada pela dúvida cruel. Ao tratar da questão da homossexualidade, Hobb incorpora Kelsingra como um espaço utópico potencial de liberdade e diversidade. Divide, porém, os gays entre os honestos e abertos como Sedric e seu namorado, o caçador Carson; e os que mantêm sua opção secreta e são dissimulados, manipuladores e oportunistas, como Hest. É uma problematização interessante e significativa. Mas a necessidade de fazer Hest ter todas as chances de aprender pela dor e pelo medo, porém recusando-se, coloca-o como a figura a ser punida pelos episódios catárticos ao final do romance. Até mesmo o francamente vilânico Duque de Chalced sai de cena sem tanta fanfarra e ironia sobre ele. Não discordo do destino que Hobb reserva a Hest, apenas me incomoda que tanto foco sobre ele tenha roubado o desenvolvimento de personagens talvez mais interessantes, como Thymara e Alise.

De qualquer modo, Blood of Dragon é uma conclusão satisfatória e, em vários momentos, empolgante da tetralogia. Em especial, a batalha final na capital de Chalced é realmente eletrizante. Um novo status quo é estabelecido para essa região do mundo secundário de Robin Hobb. Os dragões — e os elderlings — estão definitivamente de volta, e o leitor aprende muito sobre o passado desse mundo.

 

Arte de capa de Túlio Cerquize.

Vislumbres de um Futuro Amargo, de Gabriela Colicigno & Damaris Barradas, eds. São Paulo: Magh Agência Literária, fevereiro de 2020, 200 páginas. Prefácio de Roberto Causo. Ilustrações de Renata Aguiar, Deoxy Diamond, Estevão Ribeiro, Roberta Nunes, Stephanie Marino e Roberto de Sousa Causo. Arte de capa de Túlio Cerquize. Brochura. A Agência Literária Magh de Gabriela Colicigno montou um showcase dos seus autores mais novos, em torno do tema de um futuro pessimista e a partir de um projeto de financiamento coletivo via Catarse. Esta antologia original de ficção científica traz, portanto, histórias de Anna Martino, Lady Sybylla, Waldson Souza, Lu Ain-Zaila, Cláudia Fusco e Roberto Fideli. Além disso, as histórias foram ilustradas por Renata Aguiar, Deoxy Diamond, Estevão Ribeiro, Roberta Nunes, Stephanie Marino e R. S. Causo (com colorização de Marino). A arte de capa é de Túlio Cerquize e a diagramação cheia de colorido é de Paula Cruz. Eu tive a honra de escrever o prefácio, que você encontra nesta postagem aqui.

O prefácio comenta o sentido geral da antologia e trata de cada história individualmente, de modo que estas anotações podem ser mais curtas. Mas eu gostaria de mencionar que as histórias que mais me chamaram a atenção foram, na ordem em que aparecem no livro, “Antônio do Outro Continente”, de Anna Martino; “O Pingente”, de Cláudia Fusco; e “SIA Está Esperando”, de Roberto Fideli. Quanto às ilustrações, têm estilos bem diferentes, mas a delicadeza e competência técnica de Deoxy Diamond se destacam. Também gostei de ver Estevão Ribeiro no livro.

 

Pilgrimage to Earth, de Robert Sheckley. Nova York: Bantam Books, 3.ª edição, 1964 [1957], 168 páginas. Paperback. Quando entrei no Clube de Leitores de Ficção Científica em 1986, o escritor americano Robert Sheckley era um favorito dos leitores mais velhos, sendo uma influência sobre o escritor Ivan Carlos Regina. Em 1987, cheguei a fazer a ilustração de capa do seu Ômega, o Planeta dos Condenados, publicado pelas Edições GRD. Como o meu contato com a ficção curta dele havia sido esporádico, resolvi ler esta coletânea da sua primeira fase, reunindo histórias publicadas entre 1952 e 1956. A maioria delas foi publicada na Galaxy, a revista com a qual ele mais se identificou. Este exemplar pertenceu ao escritor Clóvis Garcia, da Primeira Onda da FC Brasileira.

A história que dá título ao livro apareceu na Playboy em 1956: um interiorano dos confins da galáxia chega à Terra, cuja derivação para o futuro a transformou em um planeta de hábitos esquisitos, tema recorrente na FC. O rapaz vem em busca de algo ausente na sociedade de sexo livre do seu planeta: o amor. Mas sem saber que o sentimento se tornou só mais uma commodity… assim como a fidelidade feminina. Algo que me surpreendeu foi como algumas histórias soam repetitivas em estilo e estrutura. Em geral, um protagonista ingênuo ou arrogante se depara com situações de FC que expõem a insensatez humana, muitas vezes com um fundo de crítica à adesão do gênero aos parâmetros da literatura colonial do passado — em uma época, a década de 1950, em que o mundo sofria um movimento de descolonização. “Human Man’s Burden” é a história em que isso está mais explícito. Apresenta, em tom farsesco, um colono proprietário de um planeta. Ele é muito solitário, vivendo só com seus auxiliares robôs que falam com o dialeto dos escravos americanos. Ele encomenda uma esposa de uma empresa especializada, mas ao invés do modelo de mulher simples e trabalhadora escolhido, vem, por engano, uma elegante beldade. Os dois, é claro, aprendem a se amar apesar das diferenças, a superar seus vícios de origem, e a cuidar dos seus escravos com afeição.

“All the Things You Are”, “Early Model” e “Milk Run” têm os protagonistas envolvidos com erros crassos ao tratar com culturas alienígenas/estrangeiras. A última história é seguida de “The Lifeboat Mutiny”, que apresenta a mesma dupla de heróis, dois amigos que operam uma empresa de transporte espacial driblando diferentes momentos de esperteza capitalista e de teimosia robótica. Inventos, máquinas e serviços robotizados que enfiam os heróis em situações difíceis formam uma outra constante. Mas “Fear in the Night” é um conto de horror psicológico, a única história protagonizada por uma mulher. “Disposable Service” provavelmente também se insere no horror, lembrando inclusive alguns contos de Stephen King, a partir da premissa de um homem que descobre um serviço de eliminação de pessoas e o contrata para sumir com sua mulher, com quem está estranhado, mas é surpreendido por ela ter se antecipado a ele na contratação da mesma empresa. O desencanto bastante cáustico de Sheckley com a condição humana e sua preocupação com o futuro da sociedade moderna é resumido no conto distópico “The Academy”, no qual um diagnosticador automático de sanidade empurra o herói desajustado a uma terrível conclusão:

“O Status Quo não poderia durar para sempre. E o que a humanidade faria, com toda a dureza, a inventividade, a individualidade extirpada da raça?” —Robert Sheckley.

 

Fazenda Modelo: Novela Pecuária, de Chico Buarque. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 3.ª edição, 1975, 140 páginas. Brochura. Esta é uma novela distópica brasileira, estudada por M. Elizabeth Ginway no capítulo sobre o Ciclo de Utopias e Distopias do seu importante Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (2004). O livro segue a deixa de A Revolução dos Bichos (Animal Farm, 1945), de George Orwell, mas incorpora muitas técnicas daquilo que foi chamado no Brasil de literatura pop, uma das tônicas da década de 1970. O autor, claro, é o cantor, compositor e romancista premiado. Adquiri o livro, usado, na banca Combo Café & Cultura, aqui em São Paulo, em 15 de fevereiro, quando essa banca recebia o lançamento de Vislumbres de um Futuro Amargo.

Uma fazenda modelo — como aquela que eu visitava com meus pais nas vizinhanças de Campinas, para ver uma das minhas tias do lado paterno, que morava e trabalhava lá com o marido e os filhos — é alegoria do Brasil sob o planejamento e a direção tecnocrática e autoritária da ditadura. A densidade absurdista da novela a afasta da obra orwelliana, e deve ter ajudado o livro a escapar da atenção pouco instruída da censura. Abre com um pseudo-prefácio de tom sério, afiançando a importância histórica da experiência da Fazenda Modelo, relatada no que vem a seguir. Mas o componente absurdista logo se afirma: o narrador memorialista se inclui entre os animais da fazenda, ao reportar como as coisas eram antes, a vida boa, o sossego e o amor livre — o “sonho brasileiro”, como tenho chamado. Insatisfeitos com a balbúrdia e com a baixa lucratividade, a direção internacional da fazenda, composta só de gente com nome gringo iniciado com K, promulga Juvenal como o “Bom Boi, conselheiro-mór da Fazenda Modelo”, virtual ditador do lugar, que escolhe como fetiche virilizante e reprodutor número 1 o touro Abá. (Reprodução e controle da sexualidade é um tema constante do nosso Ciclo de Utopias e Distopias, inclusive no cinema.)

Com recursos de montagem e diferentes registros, os recursos pop incluem mapa, poemas, formas concretistas, anotações em diário, listagens, pseudo-escrituras, pseudo-matérias jornalísticas e onomatopeias. Tudo para expressar o ufanismo fora de lugar e a tragédia cotidiana na ascensão e a queda de Abá e da Fazenda Modelo, país imaginário, alegórico, em que a humanidade e a vida pacata, mesmo que fundada em ignorância, que é o traço do sonho brasileiro na novela, foram arregimentados e reprimidos em favor de um projeto fracassado de saída. As linhas finais parecem valer tanto para aquela época quanto para o nosso agora:

“[E]ntão Juvenal mandou liquidar o gado restante, ele compreendido, decretando o fim da experiência pecuária, da Fazenda Modelo, e destinando seus pastos, a partir deste momento histórico, à plantação de soja tão-somente, porque resulta mais barato, mais tratável e contém mais proteína.” —Chico Buarque, Fazenda Modelo.

 

Outras Obras do Ciclo de Utopias e Distopias

Adaptação do Funcionário Ruam , de Mauro Chaves. 1975.

Um Dia Vamos Rir disso Tudo, de Maria Alice Barroso. 1976.

O Fruto do Vosso Ventre, de Herberto Sales. 1976.

Umbra, de Plínio Cabral. 1977.

Asilo nas Torres, de Ruth Bueno. 1979.

Piscina Livre, de André Carneiro. 1980.

Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão. 1981.

Depois do Juízo Final, de Silveira Júnior. 1982.

 

Vapt-Vupt, de Álvaro de Moya. São Paulo: Clemente & Editora, 2003, 180 páginas. Introdução de Maurice Horn. Brochura. Shazam! (1970), o estudo da história, estrutura e linguagem dos quadrinhos escrito por Álvaro de Moya (1930-2017), foi um dos primeiros livros sobre o assunto — e sobre o mundo nerd/geek — que eu li na vida. Naquela época eu costumava ver de Moya na TV falando sobre a arte das histórias em quadrinhos. Ele se manteve ativo, e  estive com ele em um par de ocasiões, inclusive em 2013, poucos anos antes da sua morte. Uma figura admirável da cultura nerd nacional. Esta reunião de artigos publicados originalmente na Revista Abrigraf (a Associação Brasileira da Indústria Gráfica), eu adquiri no Sebo Riachuelo, no centro de São Paulo. Uma publicação adorável, que, como livro de arte e apesar de um problema gráfico ou editorial aqui e ali, é motivo de admiração. Ganhou o Troféu HQ Mix 2003 de “Melhor Livro Teórico” (aspas porque há pouco de teórico aqui; o termo “não ficção” bastaria).

Uma entrevista com o americano Will Eisner funciona como prólogo e um artigo sobre a imprensa brasileira e as HQs como preâmbulo, antes das diversas seções do livro: “Autores”, “Personagens”, “Miscelânea” e uma seção sobre a Comic Con organizada pela Escola Panamericana de Arte em 1994, com várias listas de super-heróis nacionais e estrangeiros, além dos principais convidados do evento funcionando como anexos. A primeira traça o perfil de nomes como J. Carlos, Alex Raymond, Milton Caniff, Burne Hogarth, Jules Feiffer, Moebius, Hugo Pratt, Jerry Robinson. Muitos suspeitos usuais, que dão espaço para a erudição que de Moya construiu a respeito do campo. Mas eu me perguntou se ele não teria sido um dos primeiros, no Brasil, a reconhecer o talento extraordinário de Neil Gaiman. Dentre os grandes personagens das HQs, ele prestigia o Gato Felix, o Pato Donald, o Fantasma, Tintin, o Príncipe Valente, Mandrake, Recruta Zero, Tex, Mafalda, Asterix e os principais personagens cômicos, em três artigos seriados. Um ensaio sobre o romance gráfico Maus, de Art Spiegelman, está deslocado nessa seção. A lista deixa claro que os sindicalizados americanos têm um grande relevo na memória e no apreço do autor, compreensivelmente, e é importante que o livro garanta que o leitor mais jovem conheça mais sobre eles. Na verdade, a visão do autor é bastante internacional: ele fala dos quadrinhos italianos da Bonelli tanto quanto de mangás e de eventos na Itália e no Brasil. O formato de compilação de artigos inevitavelmente inclui recapitulações e repetição de informações, que não incomodam. Por outro lado, os artigos sobre os quadrinhos brasileiros são minoritários e carentes de informações mais palpáveis, como datas esboços biográficos dos artistas. Em especial no artigo “Quadrinistas Brasileiros Desenham para os Estados Unidos” (1993), raro registro de um momento especial na história dos artistas nacionais, que ainda se desenrola. Menciona o escritor Júlio Emílio Braz e vários artistas da “minha época”: Mozart Couto, Deodato Filho (“Mike Deodato”), Watson Portela, Vilela e Hector Gomes Alísio. Menciona a aventura do estúdio agenciador Art&Comics — da qual o nosso Vagner Vargas participou fazendo a arte de On a Pale Horse, de Piers Anthony —, mas não dá nomes nem datas ou detalhes específicos. Difícil discordar, porém, do seu veredito sobre as HQs nacionais:

“[O] calcanhar de Aquiles dos quadrinhos brasileiros se revela. Seus roteiros são pueris. Previsíveis, derramados. Sem desenvolvimento, sem idéias boas em princípio. O mesmo problema do cinema nacional, do teatro, da televisão. A escrita, a narrativa, a história, enfim, deixam a desejar.” —Álvaro de Moya. “Quadrinistas Brasileiros Desenham para os Estados Unidos”. In Vapt-Vupt.

Com certeza, as coisas mudaram da década de 1990 para cá, mas os sinais de uma sociedade grandemente iletrada persistem nesses meios. Interessante que algumas das tiras que ele destaca nos seus levantamentos centrados nas publicações brasileiras Tico-Tico, O Globo Juvenil e Gibi, tinham elementos de aventura, mistério e FC: A Garra Cinzenta (1937), de Francisco Armand; O Audaz (1938), de Messias de Melo; e Roberto Sorocaba (1934), de Monteiro Filho (que mereceu um obituário incluído no livro), artista que também fez as capas da edição da EBAL de Flash Gordon no Planeta Mongo. Por tudo isso e pelas ricas reproduções de páginas, painéis e capas, Vapt-Vupt me fez viajar na nostalgia e na sua fortuna de informações, dispostas de modo fluido na voz de um homem que claramente conhecia muito e amava ainda mais o mundo das histórias em quadrinhos.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Rafael Albuquerque.

Eight: Forasteiro (Eight), de Rafael Albuquerque [arte] & Mike Johnson [texto]. Barueri-SP: Panini Comics, 1.ª edição, 2015, 130 páginas. Apresentação de Sean Murphy. Tradução de Rafael Scavone. Brochura. Projeto muito interessante, esta HQ de ficção científica foi concebida pelo artista brasileiro Rafael Albuquerque e publicada originalmente pela americana Dark Horse Comics, com texto escrito por Mike Johnson. Eu o comprei na Geek.etc.br, juntamente com o livro de arte Star Wars: Comics. Trata-se de uma FC de viagem no tempo, com direito a dinossauros e com um clima de história de ação — mais uma HQ que parece buscar um lugar ao sol como adaptação para o campo superaquecido do audiovisual.

A arte de Albuquerque tem uma intensidade descabelada, semelhante à de Lorenzo de Felici, mesmo com um traço solto e econômico. A história tem o crononauta Joshua alcançando o ponto de chegada sem lembranças da sua missão. Tem apenas algumas pistas, mas ele é logo abduzido por um grupo de patrulheiros que o tomam por inimigo, levando-o a apanhar de uma garota especialmente caxias. Ele é levado a um aldeamento meio tribal e de gambiarra com sucata futurista, onde é adotado pela caçula dessa garota. Com toques hábeis, aprende-se algo sobre essa comunidade que luta contra tigres-dentes-de-sabre e dinossauros, e voa nas costas de répteis voadores pré-históricos… Aos poucos, o herói vai montando a lembrança dos objetivos da sua missão, com a ajuda eventual dos locais. Ao mesmo tempo, ele se envolve no  conflito deles com um império com pinta de fantasia científica — e a presença de um outro crononauta.

A história é elevada pelo intrincado enredo de Johnson, e o desenho de Albuquerque pelo seu uso de espaço negativo e de um esquema de duas cores por página, variando engenhosamente o jogo tonal contra o verde-acinzentado de base, que dá sombra e volume às formas. Os personagens não possuem a mesma criatividade: o herói atarantado, o mentor cientista, as garotas duronas e a menininha gentil e esperta, o vilão arrogante e imperial. As reviravoltas e revelações perto do final dão esperança, porém, de que o próximo volume trará um desenvolvimento ainda mais instigante.

—Roberto Causo

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