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Leituras de Janeiro de 2021

Janeiro foi o segundo mês das minhas leituras para o guia de pesquisa e leitura de ficção científica brasileira que escrevo para a Editora Bandeirola. Predominam, portanto, livros brasileiros de FC pertencentes a momentos e tendências diferentes dentro da história do gênero entre nós. 

 

Arte de capa de Carlos da Cunha.

As Robix de Júpiter, de Lúcia Pimentel Góes. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, Pinju: Série Juvenil, 1985, 108 páginas. Arte de capa e ilustrações internas de Carlos da Cunha. Livro de Bolso. Em 1985, todo o impacto da primeira trilogia de Star Wars (1977 a 1983) se fazia sentir. Naqueles anos, era muito mais comum encontrar ficção de gênero no campo infanto-juvenil, assim como atualmente se dá com o campo jovem-adulto. A premiada (Pen Club-SP, entre outros) Góes, que também se dedicou a pensar a literatura para crianças e jovens com o seu Introdução à Literatura Infantil e Juvenil (1984), vinha de publicar em 1981 BIPE, FC sobre um menino robô. Ela entrou no campo infantil e juvenil em 1969. Este As Robix de Júpiter é uma novela para crianças de 9 a 12 anos que se passa no século 23 e envolve uma missão humana ao planeta Júpiter, habitado por alienígenas respiradores de amônia com três pernas. O objetivo é firmar um tratado comercial. Mas enquanto estão lá, os jovens que compõem a missão acabam descobrindo que robôs jupiterianos (“robix” é feminino de robô, segundo a autora) foram reprogramados para realizar sabotagens, a mando e um tirano espacial que já controla um império localizado na galáxia de Andrômeda.

Alice, uma das moças, é raptada pelos invasores, e sua colega Lúcia se apaixona, em um amor sem preconceitos, por um cavalheiresco habitante de júpiter. Após um ataque realizado contra a Terra (no qual a autora expressa uma imaginação apocalíptica não muito diferente daquela do pioneiro Xisto no Espaço, de Lúcia Machado de Almeida), humanos e jupiterianos rechaçam a esquadra invasora vinda da galáxia vizinha, em uma batalha espacial. Tem-se aí, portanto, mais um exemplo de space opera brasileira como o de Rosana Rios, Encontro Inesperado na Terceira Lua, mas aqui com um conflito intergaláctico. A linguagem é ligeira e acontece muita coisa em pouco espaço.

 

The Great Pulp Heroes, de Don Hutchison. Oakville, ON/Buffalo, NY: Mosaic Press, 2ª edição, 1998 [1996], 276 páginas. Ilustrações de Franklyn E. Hamilton. Um delicioso volume com a cara das edições amadoras que imperam no mercado americano voltado para os quadrinhos, com jeitão de fanzine mas repleto de informações preciosas. Hutchison define o herói pulp como o protagonista de séries de ficção pulp em revista própria. Por esse critério, o primeiro herói pulp seria The Shadow ou O Sombra, surgido em 1931. Walter Gibson (sob o pseudônimo de “Maxwell Grant”) foi o seu principal escritor. Antes de tratar dele, porém, Hutchison contextualiza as pulp magazines surgidas em fins do século 19, e faz uma curiosa afirmativa, incorreta: “Possivelmente a única categoria editorial inventada pelos pulps foi aquela da ficção científica.” Doc Savage, o “Homem de Bronze”, teria sido o segundo pulp hero (em 1933). Assim como O Sombra, foi criação empresarial da editora Street & Smith. Lester Dent foi o principal autor (escrevendo como “Kenneth Robeson”). Possuindo mais elementos de FC, Doc teria sido uma das inspirações para o Homem de Aço, o Super-Homem de Jerry Siegal & Joe Shuster. Assim como o Sombra, teve um programa de rádio e foi para o cinema, mas décadas depois. Ao contrário do pioneiro, teve um grande revival em paperback, na década de 1970, mas apenas o Sombra foi publicado no Brasil, em dois momentos diferentes (no segundo, por ação de R. F. Lucchetti). Em seguida, Hutchison trata de um bizarro herói de aventuras aéreas, G8 (1933), que chegou a ter uma aventura envolvendo morcegos gigantes no Mato Grosso. O autor era Robert Jasper Hogan. Há um capítulo posterior, dedicado a outros heróis de aventuras aéreas, entre eles o mais futurista Terrence X. O’Leary. (O capítulo também informa que o piloto Major Donald E. Keyhoe escreveu aventuras de Philip Strange, “o ás fantasma do G.2”, antes de ficar famoso escrevendo livros sobre discos voadores.)

G8 tinha aspectos de horror, e o herói Spider (1933), também. Criação de Henry Steeger da gigante Popular Publications (também criador do G8), era um “herói” moralmente ambíguo, em série que Hutchison define como weird fiction. Vários autores assinavam as histórias, mas quem deu a sua cara foi Norvell W. Page. O personagem virou seriado de cinema em 1938 e 1941, mas nos quadrinhos, só em 1991. Indo noutra direção, Operator #5 (1934) foi uma revista com histórias de invasão e espionagem, expressando a paranoia americana de que potências estrangeiras desejariam, desde sempre, tomar do país a sua liberdade e estilo de vida. Segundo Hutchison:

“Ela brindava os Estados Unidos isolacionista com não uma, mas com quantidades de fantasias paranoicas sem paralelo na história da literatura.” E ainda: “Como espelho social surrealista das fobias coletivas do seu tempo, a revista permanece sem paralelo na história da cultura popular.” —Don Hutchison. The Great Pulp Heroes.

O herói James Christopher, um agente secreto que teria sido um James Bond antes de James Bond, é chamado por Hutchison de “um Super-Homem”. O prolífico Frederick C. Davis foi o primeiro autor da série, e o seu criador junto à Popular Publications (sob o pseudônimo de “Curtis Steele”). Mas cedeu o lugar a continuadores, que fizeram o herói enfrentar invasores japoneses, alemães e da Europa do Leste. O conteúdo que remetia à guerra futura era especulativo o suficiente para inserir a série no campo da FC — algo enfatizado por um episódio de invasão alienígena. O próprio Hutchison afirma que os romances do Operador 5 devem ser lidos como FC. Isso se dava mais obviamente com Curt Newton, ou o Captain Future (1939): segundo Hutchison, o único herói de space opera de então, a ser honrado com a própria revista. O escritor de FC Edmund Hamilton foi o autor mais vinculado ao herói, um patrulheiro espacial do Sistema Solar do futuro, mas quem o criou foi o editor Leo Margulis, da Standard — embora o personagem tenha sido rapidamente remodelado por Hamilton.

Outros heróis pulp examinados pelo Hutchison são o famoso The Phantom (1933), mais um milionário detetive e outra criação de Margulis, e longeva (durou vinte anos); The Avenger (1939), outro herói mascarado da Street & Smith a compor ficção de crime com traços de FC; Doctor Death (1935), da Dell Magazines e um pulp villain, ao invés de pulp hero, neste caso com narrativas de “weird menace” — o mesmo com Wu Fang (1935) da Popular Publications, e os grotescos Octopus e Scorpion. Em tudo, The Great Pulp Heroes fornece uma leitura rica e engajante. O livro traz também páginas e ilustrações em fac-símile, e desenhos pontilistas de Frank Hamilton, representando autores e editores, feitas na década de 1970 para algum afortunado fanzine.

 

Arte de capa de Lívia.

A Ordem dos Futuros, de Ricardo Gouveia. São Paulo: Editora Moderna, 3.ª edição, 1994 [1993], 144 páginas. Arte de capa e ilustrações internas de Lívia. Brochura. Assim como A Cidade Proibida (1997), de Álvaro Cardoso Gomes; Megalópolis (2006), de Júlio Emílio Braz; Cyber Brasiliana (2010), de Richard Diegues; e Rio: Zona de Guerra (2014), de Leo Lopes, esta novela juvenil é exemplo de cyberpunk nacional que não deve ser confundido com o “tupinipunk” (cyberpunk tupiniquim). Tem a distinção de ser ganhadora do prêmio de Melhor Livro Juvenil da Associação Paulista dos Críticos de Arte. A história, totalmente ambientada em uma São Paulo do século 23, abre com uma garota paulistana chamada Lenorah (uma “índia ítalo-japonesa”) metida com um jogo virtual, Aventura no Futuro. E com um garoto chamado Djíndji o Vermelho (um judeu-brasileiro ruivo), que, em liberdade condicional de recuperação juvenil, torna-se suspeito do assassinato de uma ricaça madura que o assediara. O moço entra na mira tanto do monolítico governo do futuro da novela, quanto do grupo radical ao qual havia participado, e que o vê como traidor: o Movimento Ecoxita [sic]. Nenhuma sutileza na disposição do autor em apontar um ambientalistalismo terrorista, a partir de deixa tomada de matéria da revista Veja, mencionando “ecoxiitas” .

Acompanha os dois a inteligência artificial OZ-03, que, interessada no humor humano, por isso mesmo funciona como alívio cômico, mesmo enquanto caminha para a plenitude da “singularidade tecnológica”, ao substituir “Verme do Silício”, a vilânica IA de alcance nacional. Na cola do casalzinho está o matador juvenil Tinhoso, parte dos ecoxitas mas com jeito de pixote, capturado e torturado pela polícia e depois reprogramado com um implante de vigilância, para encontrá-los. Há momentos de ciberespaço envolvendo o já mencionado “videogueime”, perseguições e conspirações entre IAs, compondo uma densidade de ideias de FC que se aproxima do costumeiro dentro do cyberpunk internacional, e dispostas em tom brincalhão. Mas tudo em um amálgama superficial jocoso e irreverente que, a par com o título do livro, iguala ideologias, posturas e processos históricos, passando perto de naturalizar alguns dos contextos mais dramáticos da nossa história, como neste trecho:

“Tinhoso olhou mais uma vez para a bandeira.

“O intenso fundo verde evocava as matas perdidas, a natureza ameaçada de total destruição. Sobre ele, um grande círculo vermelho, quase tocando as bordas superior e inferior: o vermelho do sangue derramado e ainda por derramar até o dia da vitória. No meio do círculo, em preto, a foice e o martelo. O antigo símbolo comunista fora modificado para lembrar outro símbolo muito antigo e vigoroso, a suástica […]” —Ricardo Gouveia. A Ordem dos Futuros.

 

Arte de capa de Nelson Lopes.

A Porta de Chifre, de Herberto Sales. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986, 248 páginas. Arte de capa de Nelson Lopes. Brochura. A Amazônia transformada em deserto. Essa é a imagem central desta FC de Sales, que antes escreveu O Fruto do Vosso Ventre (197 ), ganhador do Prêmio Jabuti. A Porta de Chifre é ambientado em 2352, quando não existe mais água na superfície do planeta, sendo arrancada do subsolo e comercializada como se fosse petróleo. Uma expedição de pesquisa vai à região amazônica com uma limusine Rolls Royce puxada por dromedários. Dentro de uma cadeia de montanhas na Amazônia, os exploradores internacionais encontram um idílico mundo perdido subterrâneo com água e vegetação: Aanac (“Canaã” ao contrário). Assim como os elois eram presa dos morlocks em A Máquina do Tempo (1895), de H.G. Wells, os pacíficos habitantes do lugar são atacados periodicamente pelos grotescos homens-formigas (alusão à livro de Tarzã, de 1924?) de uma caverna próxima. E assim como os aventureiros liderados pelo Prof. Challenger de O Mundo Perdido (1912), de Arthur Conan Doyle, tomam partido dos indígenas contra os hominídeos do planalto em que eles estão em conflito, os personagens de Sales exterminam o formigueiro.

Uma mistura curiosa de Terra moribunda com mundo perdido, retrabalha situações costumeiras desse segundo subgênero da FC dentro do estilo repetitivo do autor, assim como cria o próprio technobabble nonsense para a tecnologia do futuro, que permite a sobrevivência da humanidade num quadro desfavorável à vida. O resultado é um pastiche pós-modernista, e um parágrafo no frontispício explicita a sua tônica:

“Sucinto relato anticientífico, com ingredientes de ficção, que se faz de uma viagem, no ano de 2352, à maneira dos velhos romances, quando ainda se escreviam romances e havia quem por ler os lesse.” —Herberto Sales, A Porta de Chifre.

 

Kalum, de Menotti del Picchia. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. [1936], 206 páginas. Apresentação de Afrânio Coutinho. Ilustrações internas de Teixeira Mendes. Quando Del Picchia, depois de A República 3000, retornou ao conceito de uma civilização cretense incógnita no Brasil Central, com o romance Kalum: O Mistério do Sertão, outra mulher única, impossivelmente loura e alta, é apresentada: Elinor, a líder de uma sociedade infantilizada e em declínio causado pela automação e pela autocomplacência, em luta para garantir uma sobrevida aos seus concidadãos. “Nós somos um dos ramos dos habitantes da República 3.000”, anuncia ao herói. “Somente, que eles puderam emigrar para um vale feliz, onde conseguiram dispor de todos os elementos materiais para evoluir. Os fundadores de nossa pátria, porém, tiveram menos sorte. Eram também, como os cidadãos daquela república, emigrados cretenses.” A primeira parte obedece àquela estrutura da luta na selva antecedendo ao contato com a civilização oculta. Desta vez, trata-se de expedição de um cineasta alemão, Karl Sopor. Eles vêm da selva boliviana com destino a Porto Velho até o Amazonas, onde pretendem filmar, para um documentário, um grupo de indígenas antropófagos — a etnia ficcional Kurongang. Um outro alemão, o rechonchudo Fritz Unzer, funciona como alívio cômico, e há até um chinês no grupo, o cozinheiro Pei-Fu. Talvez em consequência de serem predominantemente estrangeiros na expedição, as descrições regionalistas quase desaparecem da narrativa.

Ao mesmo tempo, os Kurongangs soam mais africanos do que indígenas brasileiros. São repetidamente descritos como gigantes negros, falam em uma língua gutural com vocalizações como “Catulê Catô! Mm bamba! Changô!” e são comandados pelo brutal Kalum, uma pigmeu entre guerreiros zulus. Depois de capturados, os exploradores se encontram com um padre português também prisioneiro mas integrado os Kurongangs como o chefe dos pajés. Apiedado de Karl e dos seus homens, ele ajuda o herói a enganar Kalum com um truque clássico desse tipo de aventura: o documentarista filma um ritual das “virgens de Bangô, o deus da volúpia” e, ao exibi-lo para o assustado Kalum, apresenta-se como tendo aprisionado a alma de todos aqueles que foram capturados em película. De posse do diário de um cretense que havia saído da sua cidade perdida para explorar os arredores, Colaço e Karl fogem para a entrada do mundo perdido. O padre é ferido mortalmente, de modo que o herói entra sozinho no lugar — a cidade perdida de Elinor.

É preciso reconhecer o quanto Del Picchia parece ter desejado invadir, com este segundo romance, o território de H. Rider Haggard. Assim como em O Irmão do Diabo ou O Ouro de Manoa, de Jeronymo Monteiro, os indígenas do continente comportam-se mais como guerreiros africanos (na capa da edição da Coleção Saraiva, o artista Nico Rosso deu a Kalum adereços faciais de um caçador de cabeças da Nova Guiné) e os índices de aventura colonial são mais evidentes. A República 3000, publicado também na França e Itália, aparentemente alcançou sucesso a ponto de inspirar a sequência — e possivelmente para que Del Picchia a aproximasse das aventuras coloniais de Haggard, conhecidas do público leitor europeu. A versão da utopia cretense que Elinor oferece tem o seu próprio enfoque em relação à República 3000. Se naquela podíamos testemunhar o salto evolutivo, nesta temos a decadência racial. O que Karl descobre é uma raça infantilizada de mulheres minúsculas e de homens transformados em anões grotescos, encolhidos pelo ócio que a técnica avançada da cidade subterrânea proporciona, e pela falta de perspectiva do seu enclausuramento. Elinor, a mulher, é chamada pelas mulherzinhas de “o Rei”, em evidente chacota, por ter altura e aparência distintas e o dinamismo de quem ainda busca soluções e remédios para a decadência. Sendo a única compatível com Karl, logo se desenvolve uma paixão entre os dois.

Um dos primeiros a propor uma mudança morfológica da humanidade do futuro foi H. G. Wells, no já mencionado A Máquina do Tempo. Os seus ociosos elois são pequenos e infantilizados, enquanto os laboriosos morlocks do submundo são grandes e animalizados. Ambos descendem do Homo sapiens. Também é possível que haja algo de A. Merritt na composição do brasileiro, já que The Moon Pool (1919) apresenta o mesmo tipo de dimorfismo sexual: os homens são anões, as mulheres, normais e lindas. O destino reservado a Elinor, a cidade, é apocalíptico, com a sua invasão pelos cruéis Kurangangs e com a sabotagem intencional da máquina que renovava a oxigenação dos espaços subterrâneos. Escapa o casal apaixonado, deixando o duplo holocausto para trás.

 

Cummunká, de Menotti Del Picchia. São Paulo: Coleção Obras de Menotti Del Picchia, Livraria Martins, 1958, 260 páginas. Arte de capa de Italo Bianchi. Brochura. A sátira Cummunká (1938), um romance, é ambientada em um Brasil sem geografia humana, dividido simplesmente entre cidade e sertão. Uma “bandeira” moderna é organizada pela redação de um jornal como golpe de publicidade, mas, alertada pelo rádio — pelo qual ouvem música clássica e programas culturais europeus —, a nação Xavante se prepara para recebê-la, capturando a todos com seu conhecimento superior de táticas militares e, mais tarde, numa escalada repentina, derrotando a Cidade. Descritos como mais sábios, cultos e capazes que os não indígenas, os Xavantes são liderados pelo personagem-título, caracterizado como um filósofo e crítico cultural modernista, que sentencia: “Vossa cultura é a matriz perpétua da guerra. Ela cria apenas para destruir. […] Que importam os prodígios da vossa ciência, se essa mesma ciência estuda outras mil formas de assassinar os homens em massa? […] Não é viver tirar um torpe proveito material das coisas dentro de uma atmosfera de ameaças e de pavor.”

Mas é um outro pensador ficcional, o também cacique Ambará e também personagem de Cummunká, que vale citar em conexão com os anteriores A República 3000 e Kalum: “Que a máquina, criada para ser a passiva escrava do homem, trazendo-lhe mais confôrto e poupando-lhe o esfôrço [sic], se transformou em algoz das massas, apossadas como foi pelo capitalismo […]. [O] ritmo clássico da vida dos brancos foi quebrado pela errônea utilização da máquina, gerando-se desse fato, a inquietação e a guerra… É a vingança da máquina que convulsiona o mundo.”

Embora com ênfase na aventura, os dois romances anteriores fazem parte dessa mesma visada do escritor modernista Menotti Del Picchia: críticos dos terríveis prodígios da tecnologia e seu impacto sobre a consciência humana. Ambará argumenta perante os seus pupilos indígenas: “A criatura humana não é nem uma subcriatura, nem uma hipercriatura. A idéia [sic] de um ‘super-homem’ é concepção de uma ‘coisa diferente’, ou melhor, de um ‘novo ser’, ou de um monstro. Para que ela viva é mister criar-se um outro mundo, isto é, um supermundo. O homem verdadeiro é uma constância; deformar o homem é violar uma lei eterna. É artificializar o homem, arrancá-lo do plano natural. O mesmo se dá com a paisagem que o cerca: a deformação da paisagem é violência contra a natureza, é a superposição do artifício à realidade…”

Na sua síntese, é quase como se Del Picchia olhasse para a discussão que havia iniciado com as utopias de A República 3000 e Kalum, escritas sob a escusa de espairecer depois de trabalhos mais sérios ou de buscar o mercado do leitor jovem, mas que se tornaram clássicos da FC nacional — até por incorporarem essa discussão central para o Modernismo.

 

A Desintegração da Morte, de Orígenes Lessa. Rio de Janeiro: Edições de Ouro/Tecnoprint, Coleção Futurâmica, s.d., 132 páginas. Livro de bolso. A inclusão deste livro nacional na Coleção Futurâmica é fato extraordinário, já que ela, surgida em 1959 ou 1960, era dominada por traduções e, possivelmente, com a inclusão de obras brasileiras sob pseudônimo. É uma curta coletânea de histórias, aberta por “A Desintegração da Morte”, novela originalmente publicada em 1948 e que mais tarde entrou em Os Melhores Contos de Orígeness Lessa (2003), editado por Glória Pondé. Imagina um invento do bem-intencionado Prof. Klepstein, que anula a morte por violência ou envelhecimento. Abre com o seu laboratório sendo invadido por homens armados que o metralham inutilmente, a mando de um “reverendo”. A novela — ambientada principalmente nos EUA — passa a descrever, saltando de situação em situação à maneira do romance A Guerra das Salamandras (Vàlka s Mloky, 1936), de Karel Čapek, os efeitos da invenção nas relações humanas. A chave é satírica, denunciando o quanto questões como religião, indústria bélica e indústria hospitalar e de medicamentos nutrem-se da morte. Também é satírica a presença de índices de ficção pulp. Lessa viveu nos EUA na década de 1940, e sua formação como pastor presbiteriano deve ter tido papel nas reflexões da novela.

A coletânea (erroneamente tratada de romance em nota no final da edição) é completada por três contos narrados em primeira pessoa. Nenhum deles é FC, e apenas o segundo, “O Instituto Nacional do Amendoim”, partilha do formato sátira — política. É ambientado em país fictício recentemente vítima de golpe militar em que todas as instâncias de opressão econômica e laboral, corrupção, prevaricação e nepotismo são racionalizadas em ternos nacionalistas que transformam, nos termos mais ufanistas, as circunstâncias econômicas menos relevantes (a produção de amendoim) em oportunidades de locupletação. “Nós, o Mar e Conceição” explora muito bem a dinâmica de desejos sexuais do narrador por uma “mulher fácil” a bordo de um navio e passageiros na mira de submarinos alemães, na II Guerra Mundial, com um clima tétrico no final. Também realizando sondagem psicológica, “Reencontro”, conto de ficção militar, é narrado por um jovem que foi partícipe relutante do bullying de um colega de escola, e que, agora com ambos na mesma unidade lutando na Revolução Constitucionalista, perversamente vigia o amigo na antecipação do instante em que o verá ruir psicologicamente. É forçado a testemunhar o heroísmo do colega, ao invés. (Lessa lutou naquele conflito, em 1932.)

Na década de 1960, o autor já era um autor multipremiado e um jornalista de relevo. O elogioso texto do crítico Ricardo Ramos, incluído no fim da edição e funcionando como anúncio do livro de contos Balbino, O Homem do Mar (1960), sugere que este A Desintegração da Morte entrou na Série Futurâmica menos por desejo de desenvolver a FC brasileira, e mais por conhecimento e prestígio de Lessa (que seria eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1981), como oportunidade de promovê-lo como contista.

 

Arte de capa de Geraldo Degasperi.

Quase Além da Fantasia, de Luigi Maria Sarcinella. São Paulo: Editora Maltese, 1994, 188 páginas. Arte de capa de Geraldo Degasperi. Brochura. Nascido na Itália, Sarcinella (1920-2013) é autor do relato de guerra Salto no Escuro (1968) — no caso, a Segunda Guerra Mundial, da qual participou como combatente, prisioneiro de guerra e guerrilheiro. Sua aventura na FC, esta coletânea com uma noveleta e dois contos, tem o sentido coincidente de condenar a insanidade humana. O artifício convocado para isso é o do homem comum mas bem informado, que recebe a visita de um alienígena superior e bem intencionado. No caso da primeira história, “Luana, o Andróide”, um ser artificial criado em Ganimedes (a lua de Júpiter) para interagir com o narrador. Ao discutir com ela, o narrador aponta um número de obras científicas e seus autores, mas comete enganos conceituais como imaginar que a velocidade da luz depende da cor (ou vibração) da fonte luminosa. O protagonista se apaixona pela androide, descrita como uma mulher perfeita, mas não consuma a sua paixão.

Narrado em terceira pessoa, “Quase Além da Fantasia” dá título ao livro e tem premissa semelhante: Jean, o protagonista, tem um contato com tripulante de um disco voador que discute com ele as diferenças no avanço moral entre o seu mundo e a Terra, com ideias influenciadas pela hierarquia espiritual do espiritismo, e, neste caso, cita obras e pensadores em notas de rodapé. São duas narrativas de FC ufológica a serviço da especulação filosófica, infelizmente superficial. Em “Que Pílulas!”, a terceira e última narrativa, Sarcinella desce do pedestal das boas intenções e produz um divertido conto de humor, malicioso e politicamente incorreto, que remete ao Ciclo de Narrativas de Chiste e Sátira da primeira metade do século 20 no Brasil, ainda no Período Pioneiro (1857 a 1957): um cientista bombardeia com raios-X uma glândula desconhecida de um macaco cobaia, e elabora a fórmula S.P.Q.R. 2V, que, sob a forma de pílulas, é capaz de dar qualquer mulher um corpo escultural e insaciável apetite pelo sexo. Transformada em uma poderosa negra, sua rejuvenescida esposa quer colocá-lo à prova e fala em convocar outros parceiros. O conto, portanto, dá outro ângulo ao tema da mulher ou ginoide idealizada, presente em “Luana, o Andróide”. Mas efeitos colaterais observados na cachorrinha do casal fazem o inventor aplicar um antídoto a tempo. Melhor se conformar com o modo como as coisas são.

 

QUADRINHOS

Arte de capa de Joe Kubert.

Sgt. Rock: A Profecia (Sgt. Rock: The Prophecy), de Joe Kubert. Barueri-SP: Panini Brasil, 2009 [2006, 2007], 146 páginas. Tradução de Fábio Fernandes/FD. Arte de capa de Joe Kubert. Brochura. Mês passado eu comentei Sgt Rock: Entre a Morte e o Inferno, escrito por Brian Azzarello. Este A Profecia está mais perto do caráter do herói e da Companhia Moleza, e provavelmente é um projeto mais pessoal de Kubert, o principal desenhista vinculado ao personagem. Neste gibi comemorativo dos 50 do Sgt. Rock, a Moleza é retirada da campanha na Itália, no inverno de 1943, e lançada secretamente de paraquedas em algum ponto da Europa do Leste, entre a Letônia e a Lituânia, em uma missão especial: evacuar da zona de guerra um jovem profeta, um messias judeu adolescente. É portanto situação do tipo Resgate do Soldado Ryan (1998), em que as vidas de muitos homens é posta em risco para garantir a de um. A diferença é que o messias judeu é importante para toda uma comunidade, e não apenas para uma família. É visto como um trunfo pelo alto comando. Sem bem entender o que fazem, os caras da Companhia Moleza mesmo assim dão tudo de si.

A história passeia por várias circunstâncias daquele teatro de operações: atrocidades nazistas e também dos partisans locais, de tropas russas e de colaboracionistas, culminando na exploração de um campo de extermínio abandonado e no contato com locais colaboracionistas. Em meio a isso tudo, lampejos dramáticos de humanidade na forma de um cachorrinho adotado pelo Soldado Bulldozer; uma bela mulher entre os partisans, um casal de irmãos que recusa a ajuda da Moleza, uma menina bebê de colo que passa a viajar com eles, sendo cuidada pelo jovem profeta. Há uma qualidade fantasmagórica a muitas das situações. A narrativa é vigorosa e tem o seu ápice na extração aérea do messias (com o uso de um protótipo de helicóptero). Certamente, uma alegoria da ascensão do jovem que, em outros momentos, já se mostrara abençoado por Deus. Em contraste ao álbum escrito por Azzarello, este de Kubert parece mais “in character” quanto a Rock e a Moleza. Significa, por outro lado, que mantem as inconsistências que afligiam a série. Mais importante, recupera aquela sensação de que a guerra representa uma ruptura em nossa concepção da realidade, a ponto de dar espaço ao grotesco, o estranho e, neste caso, também o maravilhoso. Kubert (1926-2012) era judeu polonês, e aqui explora com muita felicidade a sua herança étnica.

 

Arte de capa de J. Scott Campbell.

Marvel Saga: O Espetacular Homem-Aranha: Feliz Aniversário, de J. Michel Straczynski (texto) & John Romita, Jr. (arte). Barueri-SP: Coleção Marvel Saga: O Espetacular Homem-Aranha N.º 4, Panini Comics, 2020, 200 páginas. Introdução de Fernando Lopes. Tradução de Mario Luiz C. Barroso. Arte de capa de J. Scott Campbell. Capa dura. No início deste livro, Peter Parker, o professor de Ciências do ensino médio, está preocupado com a vulnerabilidade de uma aluna afro-americana em particular. Esse é o tipo de momento que faz valer a passagem de Straczynski pelo herói. Logo, porém, surge o personagem Ezekiel, um bilionário que partilha dos seus poderes e conhece o lore sobre homens-aranhas, no qual tem educado o herói. Mais tarde, a preocupação com o irmão desaparecido de uma das alunas de Peter traz Ezekiel novamente ao enredo. As coisas aceleram mesmo quando o uma daquelas típicas invasões transdimensionais de Nova York mobiliza não apenas o Aranha, mas os Vingadores, o Quarteto Fantástico e os X-Men.

Mas é com o surgimento do Doutor Estranho que as coisas se complicam de fato — o herói místico revela que a ação das equipes repelindo os alienígenas resultou na libertação do demoníaco Dormammu. Inadvertidamente, o Homem-Aranha acaba sendo arremessado a uma dimensão anterior ao espaçotempo, Ao tentar resgatá-lo, o Doutor Estranho funciona como o seu “espírito dos natais passados” — dispositivo que permite ao herói rever os principais momentos, os mais dramáticos e centrais, da sua trajetória, às vésperas do seu aniversário. Na introdução, Fernando Lopes aponta o fato de que muitos personagens do universo Marvel amadurecem e envelhecem, transformam-se ao longo do tempo. De modo característico do seu talento, Straczynski trabalha a memory trip deste que é o meu super-herói favorito com grande humanidade e sensibilidade. O ápice é o presente de aniversário do Doutor Estranho: alguns minutos de Peter com o seu tio Ben. As histórias finais preparam o que virá a seguir, e uma delas é toda sob o ponto de vista da Tia May.

Roberto Causo

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Leia o Posfácio de Roberto Causo para o Livro “Fantástico Brasileiro”

De autoria de Bruno Anselmi Matangrano & Enéias Tavares, Fantástico Brasileiro: O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo (Arte & Letra Editora, 2018) traz um raro levantamento e uma ousada defesa dessa literatura no Brasil. Roberto Causo teve o privilégio de escrever o prefácio do livro, que você pode conferir abaixo.

 

 

Arte de capa de Karl Felippe.

Uma Questão Literária para o Século 21

 

O principal produto da cultura brasileira é o esquecimento.

Costumamos nos esconder desse fato atrás de justificativas muito repetidas, mas que nunca fizeram muito sentido. A principal delas é a de que o tempo — ele mesmo uma abstração sem senso crítico ou noção de justiça — faz a seleção do que deve ou não permanecer para a posteridade. Uma falácia que esconde, ao mesmo tempo, a preguiça em emitir opiniões e o jogo de forças por trás da seleção efetiva realizada pelos atores do sistema literário — no caso específico da literatura, que é o interesse deste notável livro que você tem em mãos.

Alguém sempre escolhe, e esse alguém, que muitas vezes se apresenta como autoridade em razão de formação, bom gosto ou posição de destaque nos meios de comunicação ou aparelhos culturais, não está distante de empregar no campo da política literária, os mesmos recursos baixos utilizados na política partidária ou ideológica, como o Dr. Martim Vasques da Cunha apontou no seu importante embora desastrado ensaio A Poeira da Glória (2015). Recursos que incluem a difamação, a desonestidade intelectual no momento da crítica, e o empenho em colocar inimigos literários no ostracismo acionando aliados em círculos intelectuais e artísticos — e atualmente, fomentando consensos fabricados nas redes sociais.

Outro argumento, muito ouvido há alguns anos no ambiente da literatura especulativa (ficção científica, fantasia e horror) brasileira, é o de que a internet e os recursos de comunicação e socialização advindos dela representam uma mudança radical de paradigmas. E essa mudança tornaria irrelevante o que veio antes, já que a maior necessidade seria o fomento e a criação de espaços para a geração de autores (no que chamei de Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira) surgida dentro desses novos paradigmas.

O que se expressava então era, antes de qualquer outra coisa, a ansiedade de jovens escritores em serem publicados, comentados e integrados a um mercado editorial de literatura especulativa que, na época, crescia de maneira sem precedentes. Trata-se, de qualquer modo, de outra instância de política literária, uma que ignora a importância do diálogo intertextual como mecanismo de evolução literária — e que nega a possibilidade de um diálogo específico com textos brasileiros, e não apenas com as influências internacionais contemporâneas. Essa postura tem uma resposta óbvia: quem não está disposto a lembrar, dificilmente será lembrado. Porque com essa negação solapamos a formação de um futuro quadro institucional disposto e apto a lembrar.

Finalmente, existe ainda a questão do lugar destinado, dentro das letras brasileiras e do atual sistema literário, tanto à literatura especulativa propriamente, quanto aos outros ramos agrupados dentro do útil conceito do Prof. Flavio García, o insólito. O que subjaz aqui é que essa produção ou esse aspecto da literatura brasileira, dentro do sistema literário, não mereceria ser lembrado. Seria “secundário”, “minoritário”, “irrelevante”, “subliterário”, “impertinente”, “espúrio”, “ideológico”… Dependendo, é claro, do alvo da avaliação. Secundário, quando ocorrendo na obra de grandes nomes como Machado de Assis, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Monteiro Lobato, Erico Verissimo, Jorge Amado, João Guimarães Rosa, Dinah Silveira de Queiroz, Antonio Olinto, Lygia Fagundes Telles, Ignácio de Loyola Brandão, Conceição Evaristo, Rubem Fonseca, João Ubaldo Ribeiro, Flávio Carneiro, Rubens Figueiredo e Nelson de Oliveira. Subliterário, quando configurado como um gênero popular como a ficção científica, a fantasia e o horror — vistos pela intelligentsia como parte da “indústria cultural” ou “mera literatura de entretenimento”.

Diante desse estado de coisas, é preciso um tipo especial de generosidade para contextualizar historicamente uma produção como a literatura especulativa, no contexto das letras brasileiras. Escrito pelos Profs. Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares, Fantástico Brasileiro: O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo, vem se juntar a uma pequena produção de livros que se incumbiu de — muitas vezes para além da muleta intelectual do recorte de pesquisa — levantar, interpretar e nos lembrar da existência e da importância dessa produção no Brasil. Entre eles estão Viagem às Letras do Futuro: Extratos de Bordo da Ficção Científica Brasileira: 1947-1975 (2002), de Francisco Alberto Skorupa; Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (2004), de M. Elizabeth Ginway; a iniciativa em vários volumes do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica (2004 a 2013), de Cesar Silva & Marcello Simão Branco; e Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro (2013), de Alfredo Suppia.

Essa generosidade é em si mesma uma ousadia, que Matangrano & Tavares multiplicam ao colocarem sob a mesma chave grandes autores do romance e do conto brasileiro, ao lado dos menos conhecidos, desconhecidos ou iniciantes — como conterrâneos de um mesmo território literário. Tamanho ecletismo e destemor tem precedente no singular Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog preparado por Braulio Tavares para a Fundação Biblioteca Nacional, em 1991. O insólito abraça a todos, e essa postura não hierarquizante também é algo a ser reconhecido e aplaudido, no trabalho dos autores de Fantástico Brasileiro.

Mais do que a perspectiva cronológica, o livro tem uma divisão engenhosa cujos tópicos sublinham a mais interessante perspectiva da Terceira Onda — a problemática da diversidade e da representatividade. A ênfase na fantasia — que sentimos no conceito do fantasismo — e na literatura para jovens, são outros pontos constantes da Terceira Onda, aqui também representados com a mesma preocupação de abrangência. Assim como a recorrência à tradição da escrita pulp, nem sempre bem manipulada pela Terceira Onda, mas estabelecida como símbolo de desejo de se engajar o leitor e renunciar ao elitismo literário e à mesmice da alta literatura brasileira, demanda que também caracteriza a situação da leitura e da literatura no século 21.

Ao expressar esses tópicos de retórica literária e das estratégias de ação da Terceira Onda, Fantástico Brasileiro se une ao também recente livro de Kátia Regina Souza, A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil (2017), como um texto que traduz o caráter desse momento tão intenso e inédito dentro da trajetória nacional seja da literatura especulativa, seja do insólito — este, incorporado sob a forma do absurdismo metaficcional (ou fabulation, na expressão do acadêmico americano Robert Scholes) à ficção pós-modernista brasileira desde a década de 1970, e sublinhado pelos autores da Geração 90.

Diversidade e representatividade parecem compor o ponto mais relevante deste momento da Terceira Onda. O “Manifesto Irradiativo” (2015), dos escritores Alliah & Jim Anotsu, e o consequente Encontro Irradiativo (realizado também em 2015) certamente serviram para marcar a eclosão dessa tendência. Nela temos, muito bem expresso no livro de Matangrano & Tavares o fantástico brasileiro como uma alternativa ao infeliz estado de coisas que trouxe perplexidade à Dr.ª Regina Dalcastagnè, quando o segundo round da sua pesquisa sobre o perfil demográfico dos narradores e personagens de ficção na literatura brasileira revelou que pouco havia mudado desde a sua denúncia inicial, há mais de uma década (2005), de que as letras nacionais são ocupadas pela figura do homem branco, heterossexual e de classe média, com valores estagnados e focado majoritariamente na metalinguística da escrita literária. O fato da Dr.ª Dalcastagnè ter se concentrado em três editoras que representaria o núcleo duro (engessado?) da literatura brasileira contemporânea, e de ter excluído deliberadamente qualquer forma de ficção de gênero, é uma daquelas instâncias em que a impertinente instituição do recorte de pesquisa escusa a pesquisadora de buscar remédios para o mal que denuncia. Sem esse olhar para fora, a própria voz que exige mudanças acaba sendo uma daquelas que condena a todos, sem salvar ninguém.

Devo dizer que os resultados levantados pela Dr.ª Dalcastagnè não são e nunca foram surpresa para mim. Já por volta de 1993 eu pedia, implorava e exigia uma variação temática, uma busca maior por representatividade, por enfoques literários diversos dentro da literatura especulativa brasileira. O país que possui a maior biodiversidade do mundo não pode ser o país da monocultura, eu disse mais tarde, numa metáfora ecológica. Se a lit spec brasuca deseja não apenas existir e não só vender bem, mas ser relevante, ela precisa compor um ecossistema forte e diversificado. Não só para crescer e frutificar em si mesma, mas para constituir ela mesma uma variação que se posicione em simultânea articulação e divergência perante o mainstream literário. Um bioma distinto, dentro do ecossistema maior da literatura brasileira.

A proposta de que esse bioma — uma corrente, prática ou conjunto de possibilidades — teria o potencial para contestar, redirecionar ou reposicionar pontos como os levantados pela Dr.ª Dalcastagnè, é uma questão literária significativa para as letras nacionais no século 21. E ela está implícita, eu creio, no anúncio do fantasismo como um movimento literário, feito nas páginas deste livro.

Vale lembrar que antes, no ensaio “Convite ao Mainstream” (de 2009), o escritor Luiz Bras (Nelson de Oliveira) havia apontado o esgotamento dos modelos de protagonista na ficção brasileira contemporânea, e levantado a ficção científica como um possível antídoto. Nisso — assim como Matangrano & Tavares no plano maior da literatura especulativa —, ele enxerga em um gênero literário popular uma força que, em diálogo com o mainstream, poderia conduzir a literatura brasileira a direções diferentes e produtivas. Quem sabe até, sacudi-lo em suas certezas.

Tudo isso faz com que o livro de Bruno Anselmi Matangrano & Enéias Tavares não seja exclusivamente um estudo que encara o passado remoto ou recente dessa produção literária esquecida. Lembrar o passado é importante porque todos aqueles que vieram antes no insólito e na literatura especulativa formam um contingente considerável — e você precisa de um exército atrás de si, se quiser fincar sua bandeira em território ocupado. Eu suspeito que Fantástico Brasileiro encara com mais intensamente ainda, o futuro da literatura que ele investiga.

—Roberto de Sousa Causo

São Paulo, 15 de março de 2018.

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Leituras de Fevereiro de 2018

Fevereiro foi um mês em que fiz leituras rápidas sobre arquitetura e artes plásticas, mas com espaço para ficção científica brasileira e estrangeira, e um gênero do qual eu estava afastado há algum tempo: o horror.

 

Down River, de Stephen Gallagher. Londres: New English Library, 1990 [1989], 362 páginas. Paperback. São raros os casos em que me identifiquei imediatamente com a prosa de um escritor, como aconteceu quando li a noveleta de Stephen Gallagher, “Ribbon of Darkness, Over Me”, em The Magazine of Fantasy & Science Fiction de agosto de 1989. Justamente um excerto deste Down River, em que dois tiras ingleses perseguem um carro roubado por um bando de garotos. Essa história representou também uma das poucas vezes em retornei ao texto de um outro autor para aprender, fixar e empregar alguns dos seus recursos — exatamente a sequência de perseguição, com os movimentos do carro da frente interpretados pelo ponto de vista subjetivado, de um personagem no carro de trás (que usei no meu Mistério de Deus). Gallagher é um escritor e roteirista de talento na cena britânica, tendo trabalhado em Doctor Who e e seriados de ficção de crime. No seu romance, a dupla Johnny Mays e Nick Frazier fazem a perseguição, levada extremos pelo obcecado Mays, um detetive de polícia meio fascistoide, que tem um livro negro no qual anota desafetos como uma garota num carro chique que não lhe deu bola, ou a socióloga que o entrevistou para um projeto sobre a polícia inglesa. A certa altura, Nick não suporta mais e desce do carro. Mays vai em frente e acaba com o carro em uma represa. É dado como morto, mas ressurge, salvo por um fazendeiro solitário que morreu do coração depois de tirá-lo da água. Mays herda dele uma remota base de operações, para ir à desforra mortal contra os marcados no seu caderninho.

O Johnny Mays ressurgido é um serial killer com um pé no horror focado na figura do monstro. Veste-se com as roupas rotas do fazendeiro, dirige a sua caminhonete caindo aos pedaços, abriga-se em uma casa  assombrada pelo cadáver do fazendeiro, ainda sentado em uma poltrona perto da lareira. Ele mesmo se move como um zumbi, atordoado por tudo o que aconteceu (deve ter perdido uns neurônios, no afogamento). Essa esqualidez transborda para o retrato de uma Inglaterra de classe média baixa da Era Thatcher (1979 a 1990), de alienação e decadência social e humana, compondo um clima melancólico e angustiante. É um dos efeitos mais poderosos do livro, mais texturado e vívido do que aquele de O Jardim de Cimento (The Cement Garden; 1978), de Ian McEwan. Demora para que caia a ficha junto a Nick e seus colegas, de que Mays está de volta e num rompante de assassinatos. Quando Nick, o protagonista do romance, vai até a cidade litorânea em que os dois nasceram, os fatos começam a fazer sentido. Nesse ponto, a narrativa reconstrói relacionamentos e aprofunda a caracterização dos dois, ao mesmo tempo em que aumenta o suspense: Nick passa a se interessar por uma ex-namorada de Mays que certamente está na mira dele. O tema do livro passa a ser a infância e a memória, e como a vida nos transforma, frequentemente se não sempre, em algo que nos desaponta ou desagrada. Os diálogos são ótimos mas sem remeter a uma estrutura de roteiro ou drama teatral. Há espaço para uma reflexão mais sociológica sobre o abuso de poder e a violência policial. Os protagonistas são bem desenhados e os coadjuvantes têm solidez, especialmente Alice, a ex de Mays. A prosa é firme e clara e densa, com o tipo de textura que lembra Stephen King mas de personalidade própria. É conduzida com um toque sutil até um desfecho que só não é hollywoodiano no confronto derradeiro entre os amigos de infância em seu terreno natal, porque o sentimento presente na cena soa verdadeiro e humano. Por tudo, Down River é um romance de dark suspense que deixa uma forte impressão, fazendo o leitor habitar o seu mundo pelo tempo da leitura, e que, depois de a encerrar, deixa aquela sensação de termos vivenciado uma experiência dura e inquietante.

 

Arte de capa de Stephen Hickman.

Brother to Dragons, de Charles Sheffield. Nova York: Baen Books, 1992, 262 páginas. Capa de Stephen Hickman. Paperback. O físico e matemático inglês Charles Sheffield teve um bom momento no Brasil, no início da década de 1990. Ronaldo Sérgio de Biasi, o editor da Isaac Asimov Magazine, então publicada pela Editora Record, era fã dele e não apenas selecionou suas histórias para a revista, como propôs a publicação de seus romances pela poderosa editora carioca. Na década de 1990, portanto, saíram aqui os dois primeiros livros da série O Universo dos Construtores: Maré de Verão e Divergência. Stephen Hickman, um regular da Baen Books, é artista de estilo próprio, adepto de cores fortes e imagens complexas. A arte dele aqui descreve um dos momentos finais do romance, mas pode sugerir erroneamente que se trata de uma FC militar.

Na verdade, Brother to Dragons é um intenso romance de futuro próximo, mais sociológico do que qualquer outra coisa, que dramatiza uma América extremamente degradada. Nela, em um contexto de superpopulação, os ricos vivem encastelados e os pobres desassistidos, com a polícia dedicada a oprimir. Pra piorar, o herói nasceu de uma  viciada em drogas, e só sobreviveu às primeiras semanas de vida pela dedicação de uma enfermeira que, de algum modo, apostou nele apesar de suas deformidades faciais. Por sorte, o menino, batizado de Job (o Jó, da Bíblia) pela enfermeira, foi agraciado por uma inteligência superior, que o ajuda a sobreviver primeiro ao orfanato administrado por mafiosos que desviavam até a comida dos garotos; e depois, à vida nas ruas, onde passa a trabalhar como aviãozinho de prostitutas e traficantes. É uma espécie de Oliver Twist futurista, até esse ponto da narrativa. Quando se dá conta do risco que corre, muda de ramo, fazendo algum sucesso como vendedor ambulante. É nesse ponto que entra em sua vida uma garota rica que foi cair no gueto, enganada por um cafetão. Ela é sinônimo de encrenca, e ele acaba nas mãos das autoridades. Um espertalhão da polícia política percebe o quanto ele é inteligente e pleno de recursos, e o recruta para espionar uma espécie de lixão tóxico/nuclear para onde são enviados os mais indesejados. Mais grave para os poderosos: os cientistas foram banidos pelos fundamentalistas religiosos e luditas que puseram neles a culpa da degradação do meio ambiente. Essa prisão ao ar livre congrega o maior número de cientistas de peso, que, paradoxalmente, conseguem trabalhar ali sem intervenção dos poderosos. Eles estão tramando alguma coisa, e o herói deve sair de lá com essa informação. Por felicidade do autor, Brother to Dragons é mais do que um drama darwiniano sobre um herói que se firma como self-made man na adversidade. Tem boa textura e um andamento preciso, com situações que soam coerentes, e num sentido talvez cristão (o título saiu do Livro de Jó, na Bíblia), é retrato da sobrevivência de um caráter sólido e bondoso, em um ambiente pouco propício ao seu surgimento. Desse modo, Job emerge da sua provação na terra de ninguém de lixo tóxico com uma solução que vira a mesa da elite corrupta e dá uma chance ao cansado planeta Terra.

Brother to Dragons agradou os jurados do John W. Campbell Memorial Award, que o escolheu Melhor Romance em 1993. Provavelmente pelo seu retrato de uma América em que as forças conservadoras e retrógradas colocaram o país e o mundo contra a parede. As tendências políticas que levaram à presidência de Donald Trump parecem ter sido denunciadas nesse romance. Eu tive o privilégio de incluir a novela premiada de Sheffield, “Georgia on my Mind” (1993), na minha antologia Estranhos Contatos: Um Panorama da Ufologia em 15 Narrativas Extraordinárias (Caioá Editora, 1998). Sheffield morreu em 2002, de um tumor cerebral.

 

Arte de capa de James Warhola.

Tales from the Spaceport Bar, de George H. Scithers & Darrell Schweitzer, eds. Nova York: Avon Books, 1.ª edição, 1987, 236 páginas. Capa de James Warhola. PaperbackMeu conto de Shiroma, Matadora Ciborgue “Cheiro de Predador”, é o mais perto que cheguei de uma história do tipo “contos da taberna”, passado justamente em um bar frequentado por astronautas. Estava pensando em escrever outro, mesmo que o ambiente de bar não seja exatamente a minha praia (sou abstêmio). A dupla de editores lembra daquela situação popularíssima da Cantina de Mos Eisley, em Guerra nas Estrelas (Stars Wars Episódio IV: Uma Nova Esperança). Apesar dessa evocação e da capa muito sugestiva de James Warhola — o sobrinho mais esperto de Andy Warhol —, a maioria das histórias não é de ficção científica espacial ou ambientada no futuro. As histórias também não se referem exclusivamente a bares, sendo que algumas se passam em clubes. Muitas delas fazem parte de séries escritas por grandes nomes como Arthur C. Clarke, Isaac Asimov, Lord Dunsany, Larry Niven (que tem dois contos no livro). Prova de como esse tipo de narrativa é popular nas revistas americanas.

Algo que parece ser exigência desse formato é a história contada a partir da dinâmica dos frequentadores do bar, mas as melhores do livro são aquelas que escapam disso. É claro, os diálogos também são determinantes. “Hands of the Man”, de R. A. Lafferty, é uma história curiosa porque o comentário do autor, embutido no texto que se segue ao conto, é mais intrigante e divertido do que a própria história. “A Pestilence of Psychoanaysts” é uma divertida história sobre alienígenas infiltrados, linguagem e psicanálise, é claro, pela analista Janet O. Jeppson — a viúva de Asimov. “The Regulars”, de Robert Silverberg, é um conto bem bacana, estilo Além da Imaginação e podendo se passar em uma espécie de dimensão além da vida. A melhor história do livro deve ser, porém, a premiada noveleta “Unicorn Variation”, de Roger Zelazny, em que um sujeito tem que lidar com um unicórnio e suas demandas (o bicho é beberrão) no saloom de uma cidade fantasma. Hilariante. Histórias de Darreel Schweitzer, Gardner Dozois, L. Sprague de Camp & Fletcher Pratt, Grendel Briarton, Steven Barnes, John Gregory Betancourt, Spider Robinson, Margaret St. Clair, Avram Davidson, Algis Budrys, Randall Garrett, Barry B. Longyear, John M. Ford & George H. Scithers completam essa antologia tão irregular que acabou sendo uma leitura meio morna. Ou talvez seja apenas eu, o abstêmio, e minha aversão ao botequim. Ainda sobre James Warhola, consta que o tio Andy Warhol ficou triste, tadinho, quando ele escolheu se tornar um artista de ficção científica. Aquelas coisas…

 

Oscar Niemeyer, de Guilherme Wisnik. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Folha Grandes Arquitetos Vol. 2, 2011, 80. Páginas. Capa dura. A convivência com Taira Yuji, fundador do Estúdio Desire e arquiteto de formação, aliada à necessidade de aprofundar as descrições das histórias do Universo GalAxis, me levaram a um esforço de conhecer alguns nomes da arquitetura de cunho futurista. Sendo brasileiro, o primeiro arquiteto futurista de que tomei conhecimento, ainda criança, foi o nosso Oscar Niemeyer. Nada mais justo que eu começasse esse esforço lendo o volume dedicado a ele, na Coleção Folha Grandes Arquitetos, distribuída nas bancas.

Os livros da coleção trazem sempre uma apresentação do arquiteto, uma cronologia de biografia e obra, a discussão das suas principais construções, uma seção com seus desenhos, e, fechando, algo do seu pensamento. A introdução faz um apanhado da sua importância, depois trata dos seus primeiros passos na formação e seu trabalho com Lúcio Costa, e o contato com o arquiteto franco-suíço Le Corbusier em 1936. Ainda, a primeira obra de destaque na Pampulha; o projeto de Brasília; a questão política e a perseguição sofrida durante o regime ditatorial militar; e o lugar da beleza na sua concepção arquitetônica, com ênfase na leveza das formas. A discussão das obras começa com o Conjunto Arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte, e termina com o Centro Cultural Internacional Niemeyer, em Avilés, na Espanha. O Edifício Copan, em São Paulo, ficou de fora — talvez por ser uma obra que acabou descaracterizada pela construtora. Também está lá o Museu de Arte Contemporânea de Niterói (na capa do livro), um favorito meu, por razões óbvias. A seção com os projetos é divertida porque deixa claro que o desenho de Niemeyer sempre teve aquele traço incerto tipo delirium tremens. A seção com o pensamento do arquiteto reproduz um trecho do seu livro Meu Sósia e Eu, de 1992. Niemeyer deixa claro que Pampulha é a obra que o definiu como arquiteto, e reforça o seu compromisso com os valores que sua arquitetura incorpora, de beleza, harmonia, leveza e monumentalidade. A partir daí ele abandonou a arquitetura racionalista para abraçar a versatilidade plástica do concreto. O texto tem um tom de crônica mas adota aqui e algo de defensivo, ao responder às críticas que o arquiteto recebeu ao longo dos anos.

“Poucos projetos de caráter social realizei, e confesso que ao fazê-lo sempre me senti como que conivente com o objetivo demagógico e paternalista que representam: enganar a classe operária, que reclama melhores salários e as mesmas oportunidades. […] Por outro lado, a monumentalidade nunca e atemorizou. Afinal, o que ficou da arquitetura foram as obras monumentais, as que marcam o tempo e a evolução técnica. As que, justas ou não sob o ponto de vista social, ainda nos comovem. É a beleza a se impor na sensibilidade do homem.” —Oscar Niemeyer.

 

Arte de capa de Vicente Abreu.

Viagem Interplanetária, de Soares de Faria. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1956, 174 páginas. Capa de Vicente Abreu. Brochura. Apesar do título e da ilustração de capa, este é basicamente um romance brasileiro de ficção científica de mundo perdido, escrito originalmente em 1938 mas só publicado em 1956. Eu me pergunto se há algum fenômeno embutido nisso, já que A Destruição do Mundo, de Vero de Lima, visto nas minhas leituras de janeiro, também foi escrito na década de 1930 e só publicado na de 1950. Coincidência? Razões econômicas? Razões políticas? O fato é que os dois livros trazem marcas bastante acentuadas da FC brasileira da década de 1930, e ambos partilham de um pensamento católico que colore a sua escrita.

O romance acompanha um imigrante alemão que, depois de uma desilusão amorosa, vem ao Brasil e acaba se dando conta de que continua desconfiando das mulheres em geral. Talvez por isso mesmo ele desenvolve um fascínio pela lenda das Amazonas. Sua pesquisa a respeito, nos corredores da Biblioteca Nacional, lembra o ótimo conto de Gastão Cruls, “Meu Sósia” (1938), que incluí na minha antologia Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica (2007). Também há um duplo no romance de Soares de Faria, uma espécie de manifestação do demônio, que deixa o herói espantado e angustiado. O fascínio pela lenda das mulheres guerreiras leva o protagonista Karl (ou Carlos) à selva amazônica. Lá, ele prontamente encontra um inglês enfurnado na selva. Aqui, a literatura de costumes cede à aventura, e esse segundo personagem, parceiro na aventura, conhece tanto as amazonas quanto os índios que as servem, e a dupla, acompanhada de um curumim extremamente inteligente e despachado, acabam chegando até uma cidade perdida. A narrativa de como os três expedicionários penetram num chapadão, seguindo um rio subterrâneo, é muito boa e tem o tipo de imagética exótica e fascinante que a gente encontra no ótimo O Rei do Mundo Perdido (1944), de Hamilcar de Garcia. A cidade, Salóndia, foi erigida em tempos idos a mando do Rei Salomão. Os salondianos são cristãos, porém, e quando os heróis observam com os seus cientistas, a superfície de Marte, também encontram lá igrejas cristãs:

“Cristo não veio salvar apenas a terra. Na verdade, aqui lhe foi pior a tarefa, porque nêste planeta, de baixa civilização, devia morrer, para redimir os demais. Nos outros mundos não encontraria Judas. Tinha que ser mesmo aqui. Outras terras, nos espaços, já adiantadíssimas, tiveram notícia dessa morte — viram mesmo o desenrolar do drama no Calvário. E bastou-lhes saber que assim foi, para abominarem os grandes pecados. […] Continua, só a Terra, num cáos de sofrimento, porque é insensível ao bem e adóra o mal. Ainda agora, ceifa o canhão insaciável, as vidas que o Cristo deseja para o amôr e a glória.” —Soares de Faria, Viagem Interplanetária.

Bem se vê que Soares de Faria não é C. S. Lewis, pela falta de uma sofisticação argumentativa ou alegória, apesar da coincidência temática. Também não é H. Rider Haggard, pois a mulher que reina na sua cidade perdida, a venerável Salandina, mulher imortal que vive ali desde os tempos das expedições do Rei Salomão, não é a sensual e tirânica Ayesha, mas uma versão cristianizada, pura e distante. (O próprio leitmotif de Salomão lembra Haggard, não esqueçamos.) Assim como em A Filha do Inca ou A República 3000, de Menotti Del Picchia, os salondianos estão cansados da ignorância e da violência humana, e se preparam para empregar seu avanço tecnológico ímpar para abandonar a Terra e se instalarem em Marte (daí o título do romance). Não apenas o romance de Soares de Faria repete recursos de obras precedentes, como o discurso cristão, o mito das amazonas e a figura do duplo maligno não se costuram com o fraco exotismo do mundo perdido carola que os heróis encontram. Como outras obras brasileiras desse subgênero da FC e fantasia, o autor abre mão da aventura em favor do discurso moralizante e pacifista.

Uma Lista de Obras de Mundo Perdido, no Período Pioneiro:

A Amazônia Misteriosa, de Gastão Cruls. 1925.

A República 3000 ou A Filha do Inca, de Menotti Del Picchia. 1927.

Kalum, o Mistério do Sertão, de Menotti Del Picchia. 1936.

O Irmão do Diabo, de Jeronymo Monteiro. 1937. Farsa atribuída a “Walter Baron”, republicada em 1970 como O Ouro de Manoa.

A Serpente de Bronze, de Ronnie Wells (Jeronymo Monteiro). 1938?

O Rei do Mundo Perdido, de Hamilcar de Garcia. 1944.

A Cidade Perdida, de Jeronymo Monteiro. 1948.

Viagem Interplanetária, de Soares de Faria. 1956.

 

Le Corbusier (Le Corbusier), de Stefania Suma. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Folha Grandes Arquitetos Vol. 5, 2011, 80 páginas. Tradução de Wally Constantino. Capa dura. Le Corbusier foi um dos pais intelectuais e artísticos de Oscar Niemeyer, que estagiou com ele durante uma visita do arquiteto franco-suíço ao Brasil, na década de 1930. Le Corbusier foi um dos primeiros amantes do concreto armado, na arquitetura modernista. Ele foi o homem do “brutalismo” na arquitetura, por conta da sua adoção de materiais sem acabamento (especialmente o concreto bruto), a partir de fins da década de 1920. Sua inovação de erguer prédios sobre pilones, suavizando o peso dos caixotões modernistas, foi refinada por Niemeyer no edifício do Supremo Tribunal Federal em Brasília, por exemplo. Um aspecto interessante sobre ele foi ter começado como artista plástico, antes de ir para a arquitetura. Por conta disso, seus desenhos e projetos têm uma qualidade artística nas linhas e na tonalidade.

Quanto às obras, os especialistas concordam que o seu projeto da Maison Dom-ino ditou a tendência de linhas simples e retas que definiria o modernismo na arquitetura, no que chamam de estética purista. O concreto armado pré-fabricado interessou o arquiteto como possibilidade de viabilizar construções modulares, ampliáveis e a baixo custo como moradia popular (algo que não se realizou na prática). Um de seus projetos mais ousados, com essas características, foi o de uma cidade para três milhões de habitantes, modular, nunca construída. Seu manifesto da poética purista buscava abraçar o modernismo na arquitetura, incorporando nela expressões do espírito científico, da praticidade e da energia da era industrial, traduzidos poeticamente como uma busca pela pureza. Sua construção mais famosa deve ser a Capela de Notre-Dame-du-Haut, em Ronchamp, França (aparece na capa do livro), mostra que sua estética pode ser relativamente complexa e manter o antigo compromisso com a captura de formas básicas mas expressivas, e que, em meados da década de 1950, parece ter prenunciado o pós-modernismo na arquitetura. Avança mais no futurismo, portanto, e é interessante notar que algumas imagens da fachada norte e oeste da capela parecem sugerir o tipo de solução simples mas futurista das construções de Tatooine, de Star Wars.

 

Arte de capa de Edvard Munch.

Expressionismo (Expressionism), de Ashley Bassie. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Folha O Mundo da Arte vol. 8, 2017, 68 páginas. Capa de Edvard Munch. Tradução de Gil Reyes. Capa dura. Meu cérebro não lida bem com oposições binárias, e por isso sempre confundi o Impressionismo e o Expressionismo nas artes. Este livrinho certamente dissolve essa minha confusão. Mesmo assim, Bassie começa lembrando que o Expressionismo não foi um movimento coerente, e sim uma tendência difusa na pintura do início do século 20, primeiro associada a artistas como Gauguin, Van Gogh, Matisse e Cézanne — certamente não identificados com o Expressionismo como ele é conhecido. Acaba sendo que a corrente passa a se identificar mais com a vanguarda alemã, principalmente durante e depois da Primeira Guerra Mundial. Sem apresentar recursos inovadores, é uma arte que emprega o já conhecido para tratar da experiência subjetiva, individual, a partir de distorções de anatomia e perspectiva, simplificação de formas e detalhes, redução de paleta de cores, e interpretação geométrica de formas.

Me interessou em particular a adoção da xilogravura pelo grupo Ponte de Artistas, na Alemanha, porque eu já enxergava uma conexão com as ilustrações de xilogravura de João Mottini (1923-1990) na FC brasileira 3 Meses no Século 81 (1947), de Jeronymo Monteiro, e o Expressionismo. (Mottini também ilustrou, com um estilo completamente diferente, O Rei do Mundo Perdido, de Hamilcar de Garcia.) É uma pena que o livro não explore mais as xilogravuras e litogravuras expressionistas, reproduzindo apenas e en passant um cartaz de Käthe Kollwitz.

Os principais pintores examinados no livro são Max Beckmann, Otto Dix, George Grosz, Wassily Kandinsky, Ernst Ludwig Kirchner, Paul Klee (que incluía elementos gráficos nas suas pinturas), Oskar Kokoshchka, Franz Marc, e Edvard Munch — cujo O Grito,quadro em têmpera e pastel sobre madeira, é a obra mais famosa do Expressionismo.

—Roberto Causo

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