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Game of Thrones: Xeque-Mate

Roberto Causo analisa a criação literária de George R. R. Martin que inspirou a série de TV Game of Thrones como uma “alta fantasia pós-modernista” que assinala as dificuldades do escritor atual em reproduzir as características clássicas da tragédia.

Game of Thrones: Xeque-Mate

 

 

 

A Game of Thrones na edição inglesa em paperback de 1998, pela HarperCollins. De execução soberba, a arte de capa de Jim Burns tem uma composição desajeitada.

Conheci os livros de George Martin quando do lançamento das suas primeiras edições. Mas parei em A Game of Thrones (1996) por me parecer uma criação de fantasia rica e arrojada, mas com um elemento muito forte de “idiot plot” — situação em que, para o enredo avançar, os personagens precisam se comportar como idiotas. Especificamente, Ned Stark e boa parte de sua família, que mergulham na arapuca das intrigas palacianas aparentando não enxergar o óbvio perigo que correm. Até cheguei a escrever uma pequena resenha para o fanzine americano FOSFAX, de Timothy Lane, apontando essa característica decepcionante.

Assistindo as oito temporadas da versão televisiva da obra de Martin, foi ficando cada vez mais evidente que o centro da sua criação está na constante subversão das expectativas do leitor/espectador quanto ao caráter de heróis e vilões, e a punições e recompensas. Da sua narrativa emerge um forte senso de arbitrariedade dos fatos, e de violenta eventualidade da vida. Isso é estendido para além da sina dos personagens, para alcançar a dimensão dos deuses e cultos que existem em Westeros e nos continentes vizinhos do mundo secundário criado por Martin. O tempo todo, nossa interpretação de quem um personagem é e nossa análise do seu caráter são solapadas pela narrativa. Levamos uma “rasteira” atrás da outra.

Sempre que penso nessa questão, me lembro de uma declaração de Raymond Chandler que respeito muito. Ele fala de estilo e de intelectualismo autoconsciente atrapalhando o resultado final de um livro. Mas acredito que também trata do fato de que o autor necessita do entendimento do leitor para alcançar os seus efeitos. Nisso, o escritor deseja ter o leitor como parceiro na construção dos sentidos da narrativa:

“Os escritores sortudos são aqueles que conseguem superar seus leitores em escrita, sem os superar em pensamento.” —Raymond Chandler.

Em Martin, a repetição das “rasteiras” no leitor é constante. Às vezes, ressaltada pela sugestão de que a sobrevivência e a ressurreição de certos personagens igualmente obedecem a um sentido de arbitrariedade e possível falta de sentido. A minha intuição é de que parte das rasteiras se baseia na subversão de alguns aspectos da tragédia como forma narrativa clássica: a “falha trágica” (hamartia, em grego) e o “castigo catártico do vilão” (katharsis).

No primeiro caso, o herói apresenta uma falha de atitude ou um erro de decisão que, ao final da narrativa, o leitor ou espectador identifica como atrelado à sua derrocada, que a tragédia reserva. Assim, Ned Stark, amparado por um sentimento de dever e honra estrito demais, é burocrático ao cortar a cabeça de um homem que vem de além da Muralha do Norte com notícias do surgimento dos white walkers, sem se dar ao trabalho de interrogá-lo e se inteirar do que se passa. E no final do livro, tem a própria cabeça cortada, tendo falhado em enxergar corretamente a proporção do seu isolamento na estrutura de poder na corte. Mais adiante na narrativa, Robb Stark, em sua campanha contra o reizinho Joffrey Baratheon, escolhe o amor verdadeiro acima de um casamento de aliança, e tem a totalidade dos seus esforços destruída no “Casamento de Sangue”. E ainda, Brienne of Tarth é traída por seus nobres valores de chivalry, ao jurar lealdade a Lady Catelyn Stark, que ordena (nos livros) a sua execução depois de ela defender Jaime Lannister. A falha trágica, mesmo que sinal de caráter e integridade, marca o ponto fraco na armadura do herói que permite que a ironia dos deuses se faça sentir sobre ele.

No segundo, vilões como Joffrey e Tywin Lannister sofrem mortes grotescas e humilhantes, caindo do pedestal de uma maneira que oferece catarse ao leitor/espectador. Ele ou ela sente que o castigo foi merecido ou que, de algum modo, parte do mal realizado pelo vilão é atenuado pela sua “punição” — ou ainda, que as pessoas sobrevivem aos malfeitos. Em certa medida, com a catarse é como se o universo moral da tragédia fosse reequilibrado e renovado. Obviamente, o extremo disso é o excesso hollywoodiano dos filmes de ação, em que os vários sub-antagonistas do herói sofrem mortes cada vez mais grotescas, culminando com o vilão-mór sofrendo o máximo do grotesco que os roteiristas conseguiram imaginar.

O que Martin faz é exagerar tais recursos da tragédia pela repetição e pela arbitrariedade que parece saltar da sua construção narrativa. Isso é consoante com algumas instâncias de atitude modernista e pós-modernista de contornar certos efeitos literários para afirmar outros ou para declarar a ineficácia dos processos antigos, perante um estado de coisas atual, diverso do espírito do tempo que deu origem, neste caso, à tragédia grega ou às tragédias shakespeareanas.

Nesse sentido, um outro exemplo bastante claro da denúncia da catarse pela repetição grotesca está nos filmes de Quentin Tarantino, em que a punição de vários vilões e subvilões é superestendida em demoradas sequências de hiperviolência — como a do final de Django Livre (2012). No seu Bastardos Inglórios (2009), a ironia feroz está na plateia nazista que celebra um franco-atirador alemão em um documentário, e que acaba metralhada pelos anti-heróis dessa história alternativa (que logra matar Hitler antes do fim da guerra). Simbolicamente, a audiência metralhada explicita o desprezo do realizador/roteirista pelo desejo dos espectadores pela punição catártica. Em Game of Thrones, no último episódio da última temporada Tyrion Lannister nos lembra do engano que foi torcer (os personagens e os espectadores, certamente) por Daenerys Targaryen.

A certa altura destas minhas reflexões, me recordei da leitura do romance A Mulher do Tenente Francês (The French Lieutenent’s Woman; 1969), do inglês John Fowles, um clássico da metaficção pós-modernista, e da minha reação a ela ainda enquanto cursava a Faculdade de Letras. Nesse livro, situações sociais e amorosas da Era Vitoriana são expostas e discutidas pelo narrador, de maneira explícita e ensaística. O objetivo é deixar claro a impossibilidade do romancista contemporâneo recriar o passado literário e histórico de uma outra época. Para isso, ele aponta as insuficiências daquelas convenções literárias perante o espírito do tempo do século 20. Nos primeiros capítulos, o narrador onisciente dá dicas de que escreve a partir de meados do século 20. Mas no capítulo 13 ele escancara:

“Não sei. Esta história que eu conto é tudo imaginação. Estes personagens que criei nunca existiram fora da minha mente. Se eu fingi até aqui conhecer a mente e os pensamentos mais íntimos dos meus personagens, é porque (assim como algo de seu vocabulário e ‘voz’) escrevo dentro de uma convenção universalmente aceita na época da minha história: a de que o romancista está perto de Deus. Ele pode não saber tudo, todavia finge saber. Mas eu vivo na era de Alain Robbe-Grillet e Roland Barthes; se isto é um romance, não pode ser um romance no sentido moderno da palavra.” —John Fowles.

O problema — pelo menos na minha leitura, e admito que muito provavelmente estou sozinho nela — é que as situações vitorianas do livro, mesmo mantidas em um estado de fragmento ou “rascunho” pelos comentários do narrador, são tão mais interessantes e engajantes em termos humanos, que a sua combinação com os comentários firmam uma qualidade esquizofrênica. Essa qualidade enfraquece as pretensões de ruptura e distanciamento intelectual necessárias para a metaficção que Fowles busca. Compromete o objetivo de declarar a insuficiência das convenções literárias do romance de meados do século 19, porque elas operam com um certo fulgor na mente de quem lê, exatamente por força de aspectos como identificação e afeto pelos personagens.

A solução possível para esse descompasso é extra-textual e deve partir de uma formulação de competência de leitura, na qual a leitura vicária (em que o leitor se aproxima do que os personagens sentem e vive suas experiências e sentimentos) é apontada como ingênua, e a leitura distanciada, intelectualizada e crítica, é elevada como sofisticada e superior. Mais que isso, ela passa a definir a leitura possível e desejável de acordo com o zeitgeist contemporâneo, pelas cartilhas pós-modernistas: “hypocrite lecteur” é como o narrador de Fowles chama o leitor que insiste que personagens são ou reais ou imaginários. É preciso lembrar que é o primeiro tipo de leitura que mantém viva a literatura imaginativa da fantasia, do horror e da ficção científica — sem falar do romance histórico romântico?

A comparação que eu faço é, portanto, entre a postura que declara a impossibilidade de um romance histórico vitoriano sem a explicitação metaficcional da sua própria insuficiência, e a hipótese de que Martin declare uma impossibilidade semelhante para a alta fantasia. Ele afirmaria, pela repetição dos recursos da tragédia, a insuficiência desses mesmos recursos perante o espírito do tempo de fins do século 20 e início do 21. Mais do que isso, a insuficiência da alta fantasia moral de J. R. R. Tolkien, para o leitor de alta fantasia deste nosso período.

É evidente o incômodo de muitos escritores de fantasia (seja ela alta fantasia, fantasia heroica ou fantasia científica) com a religiosidade, a moralidade e o suposto conservadorismo de Tolkien em O Hobbit e em O Senhor dos Anéis, obras que definiram o formato da alta fantasia. Um dos primeiros a condená-lo, Michael Moorcock foi definido como um “anti-Tolkien” por Peter Bebergal para revista The New Yorker. Sem dúvida, as aventuras amorais de Elric de Melniboné, o protagonista albino de Moorcock, formam um contraste gritante com o universo literário de Tolkien.

Moorcock escreveu contra Tolkien, C. S. Lewis e Richard Adams (autor de Shardik) no ensaio “Epic Pooh (1978), que basicamente enxerga as suas obras como textos reconfortantes para crianças, e não explorações sérias das questões do mundo real. Antes dele nesse ensaio, outro escritor da New Wave Britânica, M. John Harrison, já havia dito o mesmo em um ensaio de 1971 na revista New Worlds. Autores mais modernos como China Miéville engrossaram (ao menos inicialmente) o coro contra Tolkien, proclamando os mundos secundários do New Weird como contrários a um alegado espírito condescendente e reconfortante do autor de O Senhor dos Anéis. Tanto um como o outro, condenam a catarse em Tolkien, com Harrison enxergando na sua obra um traço consumado de conformismo:

“Estabilidade, conforto e a segura catarse” —M. John Harrison.

Por sua vez, Miéville condenou Tolkien no seguintes termos:

“[…] Sua crença em moralidade absoluta que borra a complexidade moral e política. […] Ele escreveu que a função da fantasia era ‘consolar’, portanto transformando em norma de procedimento que um escritor de fantasia deva mimar o leitor.” —China Miéville.

Basta, aqui, deixar claro a existência de uma atitude anti-Tolkien bem antiga em vários setores da fantasia, sem entrar no mérito da questão (se é que ele existe). Na década de 1980, imitadores de Tolkien fizeram muito sucesso, e as estruturas da narrativa do pioneiro inglês foram parar no cinema e nos role playing games (com Dungeons & Dragons). Em paralelo, a demanda por uma fantasia não-“tolkienesca” ganhou nova força. Na década seguinte, já existia uma fantasia escrita por gente como Guy Gavriel Kay, Robin Hobb, Barbara Hambly, Harry Harrison, R. A. MacAvoy, Orson Scott Card e o próprio George R. R. Martin que desromantizavam a Idade Média e eram muito duros em termos morais e humanos. Eles também tornaram a fantasia mais mundana, com magia menos ostensiva ou mesmo ausente. É claro, outros matizes sempre existiram, ao longo da evolução do gênero. Retornamos a Martin citando Peter Bebergal, que aponta uma influência de Moorcock sobre o autor das Crônicas de Gelo e Fogo:

“Com maior frequência sua presença [de Moorcock] é vista na forma de saudações amorosas como, na série de televisão Game of Thrones, alguém grita ‘Stormbringer’ [a espada de Elric] quando o Rei Joffrey pede nomes possíveis para a sua espada.” —Peter Bebergal.

Para muitos leitores, as “rasteiras” dadas por George R. R. Martin no leitor desavisado são “um retrato da vida”. “A vida é assim“, dizem. Ao mesmo tempo, imagina-se, a vida não é como na alta fantasia de Tolkien ou de outros escritores com uma posição moral clara ou com um apreço pela estrutura da tragédia clássica. A vida é caótica, como diria M. John Harrison. Mas o argumento é problemático porque há algum tempo (desde a década de 1960) a literatura mainstream se debate com a chamada “crise da representação“, em que as cabeças pensantes deixam de admitir a possibilidade de uma representação de algum modo fiel à realidade ou à vida. Toda construção ficcional passa a ser vista como exatamente isso: uma construção, um artefato, e não uma representação fiel.

O interessante sobre essa perspectiva é que ela não trouxe uma isonomia entre artefatos literários que se pautam por contar uma história dentro de estratégias realistas, e aqueles que explicitam a sua qualidade de construção, de artificialidade. Se assim fosse, nem a fantasia de Tolkien nem a de Martin ou de Miéville ou de Kafka jamais seriam tratadas em termos de “a vida é assim” ou como celebradoras do “caos da vida” — todas seriam apenas artefatos ficcionais. Mas aqui também se acena com as bandeirolas que separam o leitor supostamente sofisticado do hypocrite lecteur de Fowler: o leitor que conta é aquele interessado em obras metaficcionais que explicitam essa condição.

Onde estão esses leitores ou espectadores sofisticados, quando tratamos das Crônicas de Gelo e Fogo e da série de Game of Thrones? Eu não vou levantar bandeirolas, mas as reações à conclusão da série criada por David Benioff & D. B. Weiss para a HBO raramente tocaram na sua qualidade subversiva de expectativas, e muita gente exigiu justamente o oposto: não houve a antecipada “batalha das rainhas”, os espectadores reclamaram; Cersei Lannister não sofreu uma vingança dura e exemplar; Arya Stark é que deveria ter matado Cersei; os arcos de desenvolvimento dos personagens Jamie Lannister e Daenerys Targaryen foram jogados fora…

Aqui é bom lembrar que Martin foi deixado para trás pelo avanço das temporadas de Game of Thrones. Quer dizer, ele ainda não finalizou a sua planejada série de sete romances, ficando no quinto volume. Ao mesmo tempo, não ficou parado. Escreveu novelas e outras histórias no universo ficcional de Westeros, mas ambientadas muito antes das Crônicas de Gelo e Fogo. E tornou a investir no mundo partilhado das Cartas Selvagens, que já rolava quando eu era garoto. De qualquer modo, na temporada anterior, firmou-se este dilema: Martin é um dos produtores executivos da série, cargo que pode ser apenas simbólico, mas que sugere que ele acompanhava as inovações dos roteiristas sobre a obra baseada em sua criação. Talvez até os orientasse. Se ele retomar os dois romances faltantes, vai seguir o que eles elaboraram? Caso o fizer, cria-se um imbróglio de transcodificação — uma produção de audiovisual que adapta livros e livros que adaptam a mesma produção audiovisual.

O documentário sobre a última temporada, Game of Thrones: The Last Watch (2019), exibido na HBO, plantou atrás da minha orelha uma pulga em particular: Martin teria sido pago para não terminar a sua heptalogia. O objetivo seria evidenciado pela imagem no documentário, dos scripts sendo destruídos numa shredding machine, logo depois da primeira sessão de leitura com os atores principais: era preciso guardar segredo absoluto quanto às várias situações climáticas explorados na temporada. Extras e figurantes chegavam às filmagens sem saber o que deveriam fazer, sendo instruídos na hora e no local. De modo tão semelhante que devia estar integrado às preocupações de Benioff & Weiss, também seria preciso eliminar qualquer descontentamento que os espectadores pudessem nutrir, se confrontados com desenvolvimentos e finais diferentes, que existissem na página literária.

No artigo “Why Spoilers Are Ruining Storytelling”, seu autor, identificado apenas como J.B., deixa claro que é a obsessão de evitar spoilers que está arruinando a narrativa no cinema e na televisão. No artigo para a revista The Economist, ele lembra que nos primeiros anos do cinema, o frequentador podia entrar numa sala em qualquer ponto da exibição — até do meio para a frente — e ficar na sessão seguinte para ver as partes que havia perdido. Isso começa a mudar com Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, e ganha ênfase especial com o advento dos filmes de M. Night Shyamalan e produções como Seven: Os Sete Pecados Capitais (1995) e Clube da Luta (1999), com suas viradas no final. A importância dos coelhos saltando da cartola tornou-se ainda maior com o advento da Internet, das redes sociais e das viralizações. A comunicação instantânea pode criar tanto uma forte predisposição para se ver um filme, quanto uma grande predisposição para não vê-lo. O singelo boca a boca de outros tempos se torna o objetivo máximo do marketing em torno do segredo e da garantia do choque e da surpresa.

Eu mesmo já disse em outros lugares que “não acredito em spoilers“, especialmente quando se trata de uma discussão crítica. Como se pode ter correção e profundidade ao se examinar uma obra de arte, mantendo segredos e se desviando de pontos centrais do enredo ou das ações dos personagens? Postagens com aviso de “contém” ou “não contém spoilers” só me fazem torcer o nariz e hesitar em ler. No mesmo sentido, o artigo em questão aponta:

“Essa atitude sufoca a discussão apropriada de histórias pelos críticos tanto quanto pelos espectadores, e inflige danos à narrativa como ofício. Ao promoverem uma técnica, a virada, e um efeito, a surpresa, as histórias são distorcidas. Elas tentam demais ir contra a expectativa e resistir à predizibilidade. O Senhor dos Anéis é totalmente previsível do começo ao fim, mas a série não sofre com isso. William Shakespeare antecipava o final das suas tragédias ao anunciá-las como tal, e ninguém parecia se importar (Romeu e Julieta até contava a história para a audiência, num prólogo). Columbo, uma série clássica de crime, revelava quem cometeu o assassinato no começo de cada episódio, e conseguia tornar a investigação interessante de assistir.” —The Economist.

O artigo termina citando um estudo científico da área de psicologia, feito por Jonathan Leavitt e Nicholas Christenfeld, que conclui que conhecer o final da história não diminui a sua apreciação. Ao contrário, aumenta — o que me faz lembrar o seguinte comentário de Orson Scott Card:

“A maioria dos escritores novatos imagina que é assim que o suspense é criado — retendo informação-chave do leitor. Mas não é assim. O suspense vem de se possuir quase toda a informação — informação suficiente para que o público esteja emocionalmente envolvido e se importe muito com cada bocadinho de informação que permaneça não-revelada.” —Orson Scott Card.

O fato é que muitos fãs decepcionados com a última temporada de Game of Thrones parecem exigir menos rasteiras e mais realização do que a série vinha construindo. Na temporada anterior, os roteiristas já pareciam aliviados com a ausência dos trilhos fixados por George Martin. De repente, um certo núcleo de personagens começa a durar mais, e até formam uma irmandade como as de Tolkien — para conquistar, além da Muralha do Norte, a prova da existência do Exército dos Mortos. Personagens começam a acenar com uma redenção verdadeira, das suas canalhices anteriores, como Sandor Clegane, Jorah Mormont e Theon Greyjoy.

Não obstante, a última temporada, mesmo com um decréscimo às vezes embaraçoso na qualidade da escrita e arcos narrativos reduzidos, parece ter feito um esforço genuíno de retomar o uso do tipo de rasteiras que Martin firmou. Expectativas são violadas, situações imprevisíveis são firmadas, personagens são vitimados pelo arbítrio dos deuses roteiristas, e surpresas retumbantes surgem para tirar o fôlego do espectador. E mesmo assim, uma parcela significativa dos fãs rejeitou os elementos de arbitrariedade e retrocesso no desenvolvimento dos personagens. O que isso significa?

Não vou negar que o leitor/espectador ingênuo existe. E também aquele que enxerga livros e filmes de ficção popular como nada além de divertimento. Existe um leitor/espectador que só quer clichês e recursos repetitivos. Mas ao mesmo tempo, me pergunto se o que está por trás da rejeição aos elementos de arbitrariedade e retrocesso no desenvolvimento dos personagens seria uma adesão perfeitamente legítima à efetividade dos elementos clássicos da tragédia.

A arte de capa de Marc Simonetti exibe os dois protagonistas da série de três novelas ambientadas no universo de Westeros.

Afinal, por quanto tempo um escritor pode manter um esquema narrativo fundamentado em rasteiras e surpresas e negação de expectativas? Que tipo de encerramento satisfatório ou enriquecedor pode surgir desse esquema? Nas três novelas de universo de Westeros — que não são tragédias — do livro O Cavaleiro dos Sete Reinos (2015), o próprio Martin não se apóia tanto nas rasteiras, e se dá ao luxo de ser leve e natural na sua narrativa.

Imagino que exista aí uma tensão semelhante à do romance pós-modernista de John Fowles, entre o projeto do autor (o ponto em que ele deve desejar que penduremos a medalha de realização literária) e o componente de identificação e afeto que seus personagens despertam no leitor, mesmo que inadvertidamente.

Não sei se George R. R. Martin irá em algum momento retomar as Crônicas de Gelo e Fogo e tentar levá-las ao final. Agora, como está, a sua criação já é uma property valiosa — especialmente quando se fala da produção de uma prequência de Game of Thrones pela mesma HBO. Mas se ele o fizer, seria quase obrigatório desviar-se da conclusão da série de TV. Mas a sua fantasia pós-modernista vai conseguir desviar-se também da catarse e das outras características da tragédia? E valerá a pena?

—Roberto Causo

 

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Leituras de Agosto de 2018

 

Em agosto, dobradinhas de livros de Braulio Tavares e Nelson de Oliveira, mas de leitura variada entre eles. Gostei especialmente da biografia de Raymond Chandler, por Tom Williams.

 

Histórias para Lembrar Dormindo, de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 1.ª edição, 2013, 176 páginas. Ilustrações internas de Christiano Menezes. Brochura. Na minha modesta opinião, o miniconto ou flash fiction desfruta de um interesse injustificado no Brasil. A prática se comunica com a crônica, formato de produção de ficção ou não-ficção que também tem aqui prestígio desmedido, chegando a exportar o seu tom, em geral subjetivo, para o conto e até o romance. Além disso, muita gente que vai trás do miniconto carece da habilidade necessária para o acúmulo de efeitos que ele precisa ter pra valer a pena. Sua escrita é mais afinada com a precisão cuidadosa que o poema precisa, do que com os recursos de ambientação, caracterização, narração e diálogos, do conto. Mas aí temos Braulio Tavares, um escritor que possui exatamente essas habilidades. 

Todos os textos deste Histórias para Lembrar Dormindo foram publicados na coluna diária que ele mantém no Jornal da Paraíba e vão de 2.900 a 3.000 toques. São 40 deles distribuídos em duas partes, todos com duas páginas de ilustração feitas por Christiano Menezes, remetendo à ilustração científica. Em quase todos, a prosa precisa requerida, num estilo brilhante e finais surpreendentes sempre bem casados com o curto desenvolvimento. A ponto de o leitor ficar antecipando a rasteira elegante, brutal, inquietante ou irônica que, muitas vezes, revela o fantástico dentro do fantástico. Muitas das histórias possuem um tom mitológico próprio do Nordeste, formando um conjunto particularmente saboroso, enquanto outras são ambientadas em diferentes países. Algumas nos levam a outros universos — e as letras intercaladas na capa sugerem esse elemento dominante, filosófico, da interpenetração do real com o irreal. No limite de três mil toques, Braulio Tavares muitas vezes cria heterotopias que exploram, de modo sugestivo, as incertezas pós-modernistas. Já falei de um outro livro de Braulio Tavares aqui, Sete Monstros Brasileiros, e enxergo esse autor como um dos principais nomes da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira, e um dos melhores escritores em atividade que temos. Eu pessoalmente gostaria de vê-lo escrevendo novelas e romances, mas em Histórias para Lembrar Dormindo você e eu temos 40 exemplos do seu talento inigualável no quadro nacional da ficção especulativa.

 

Arte de capa de Maercio Siqueira.

Peleja de Braulio Tavares com Marco Haurélio, de Braulio Tavares & Marco Haurélio. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2017, 32 páginas. Capa de Maercio Siqueira. Brochura. A vida é muito estranha. Um dia depois de acabar a leitura de Histórias para Lembrar Dormindo, minha esposa Finisia Fideli e eu encontramos Braulio “Brown Leo” Tavares diante do estande da Editora Draco, na 25.º Bienal do Livro de São Paulo. Por pura coincidência. Ele nos levou ao maravilhoso estande da Editora IMEPH e da Câmara Cearense do Livro, dominado por um enorme caminhão que transporta o seu acervo e, no local, transformou-se em um palco para cantadores e artesãos. Braulio, um dos melhores autores brasileiros de ficção científica de todos os tempos, foi nosso guia nesse mundo paralelo que ele habita — o da poesia de cordel e do repente. Conhecemos o novo livro do Braulio, o romance Bandeira Sobrinho: Uma Vida e Alguns Versos (IMEPH, 2017). Fomos apresentados por ele aos poetas Evaristo Geraldo, Rouxinol do Rinaré e Marco Haurélio — este último, seu parceiro num duelo de repentista feito no Facebook e compilado neste livro. “Você que apanhou do Braulio, então?” brinquei com ele. É claro, a prática é menos de disputa e mais de colaboração, e dependendo do intervalo das respostas em verso, feitas nos comentários do Facebook, pode ter sido mais como um round-robin, em que um escritor se compromete a levar adiante um trecho escrito pelo anterior, respeitando suas soluções, antes de repassá-lo a outro ou ao mesmo para uma nova rodada.

A “peleja” começa com os poetas saudando um ao outro e Marco Haurélio perguntando a Braulio o que é o cordel. Segue-se, em sextilhas, definições e elogios à poesia de cordel. Há, nesse ponto, um elemento de saudosismo rural que me agradou, tendo crescido no interior de São Paulo. Segue-se uma alternância de formatos. Na seção em “martelo galopado” (dez versos por estrofe), Ésio Rafael forneceu o mote repetido nos dois versos finais. Em “gemedeira”, as sextilhas têm mote de Rouxinol do Rinaré e se desenvolvem em torno do gemer como padecer ou reclamar, e o conteúdo foi mais de crítica política e social (sobre o Brasil, claro). Em “galope à beira-mar”, os poetas expressam maior erudição e inventividade nas imagens, em dez versos de mais fôlego. No “mote de sete sílabas” também são dez versos, e num mote que celebra o sertanejo. Em “oito pés a quadrão”, oito versos discutem a arte — e aí também evoca-se o clássico e o contemporâneo, tendência de muito cordel por aí. No “martelo alagoano”, os poetas reafirmam a tradição e suas influências individuais. Não há como não admirar essa dupla de artistas da palavra. Na xilogravura de Maercio Siqueira, Braulio é o da esquerda e Marco o da direita.

 

Arte de capa de Maercio Siqueira.

Os Curumins e as Estrelas, de Evaristo Geraldo. Alto Santo, CE: Edição do autor, abril de 2018, 8 páginas. Capa de Maercio Siqueira. Folheto. Braulio nos recomendou os folhetos de Os Domínios do Rei Peste (2015), de Evaristo Geraldo, e A Sombra do Corvo (2017), de Rouxinol do Rinaré, por adaptarem para o estilo poético do cordel dois contos de Edgar Allan Poe. Mas também adquiri A Árvore de Todos os Frutos (Lenda Indígena), de Geraldo, e este Os Curumins e as Estrelas, de Rouxinol, pelo meu interesse pelo tema indígena brasileiro. Há um cruzamento temático aí, não, um que também cheira a colaboração entre dois poetas diferentes? Afinal, quais são as chances?…

O texto é bem curto e declaradamente adapta uma lenda indígena, em que um bando de curumins roubam o fubá que as índias tinham preparado pra receber seus maridos de volta da pesca. Na hora de enfrentar o castigo, eles fogem e são perseguidos por homens e mulheres, até que um bando de tuiuiús fica com dó dos safados e os leva para o céu, onde se instalam em bases permanentes. Lá, eles só têm olhos para a Terra, talvez de saudade… Os olhos brilhantes se transformam, com o tempo, no céu estrelado, de modo que se trata de um mito de criação. A narrativa versificada de Evaristo é a tradicional sextilha e ela se realiza de modo muito objetivo e escorreito, com um padrão de três rimas por estrofe, bem marcado em cima de uma mesma sílaba.

 

Raymond Chandler: Uma Vida (A Mysterious Something in the Light: The Life of Raymond Chandler), de Tom Williams. São Paulo: Editora Benvirá, 2014 (2012), 456 páginas. Tradução de Fabio Storino. Brochura. Eu não leio muitas biografias literárias, embora tenha adquirido há anos uma de John Steinbeck e outra de Joyce Carol Oates. A exceção são biografias ou livros de memórias que abordam dois autores em particular: Ernest Hemingway e Raymond Chandler. Quanto a Chandler, já li aquela escrita por Tom Hiney, Raymond Chandler: A Biography, e todos os volumes de cartas e anotações que consegui adquirir: Raymond Chandler Speaking, editado por Dorothy Gardiner & Kathrine Sorley Walker, e The Raymond Chandler Papers: Selected Letters and Nonfiction, 1909-1959, editado por Tom Hiney & Frank McShane.

Para mim, Chandler é uma fonte muito arguta, divertida e incisiva, especialmente em suas cartas, de comentários sobre a relação entre a ficção de gênero e o mainstream literário. Seu credo literário é único, ao combinar com muita personalidade o ethos do escritor pulp e do escritor mainstream. É claro, antes de mais nada sou um fã dos seus romances e contos de ficção de detetive, que descobri durante a adolescência.

Pouca gente sabe ou lembra que Chandler escreveu histórias de fantasia, uma delas publicada na revista Unknown do editor John W. Campbell, Jr. Uma das coisas que este livro sedimenta é que o escritor considerou se voltar para o gênero com mais constância. Além disso, a ansiedade em obter reconhecimento literário teria sido mais forte na vida do escritor, do que as outras biografias deram a entender. A outra contribuição do inglês Williams é se focar mais na relação dele com a Inglaterra (Chandler nasceu nos EUA mas migrou com a mãe para a Inglaterra ainda criança, antes de retornar definitivamente aos EUA para trabalhar). A situação do escritor nos Estados Unidos também é muito bem tratada por ele, incluindo alguns pontos que Hiney aborda pouco, como o background familiar e pessoal da esposa de Chandler, Cissy. E se a memória não falha, ele também discorre mais sobre os anos de velhice e viuvez de Chandler, com o ápice do alcoolismo e do comportamento presunçoso e patético. Também se a memória não falha, em Hiney Chandler emerge como alguém que tentava elevar a ficção de crime e que, se por um lado tem preocupações de estilo e ansiedades que o aproximam do modernismo, por outro faz uma crítica do modernismo literário e do seu intelectualismo. Já em Williams, Chandler surge, em traços trágicos, como presa do desejo de reconhecimento literário. Adivinha com qual versão eu me identifico mais.

 

Conjurações & Terra Seca, de Paola Siviero. São Paulo: Edição de autor, 1.ª edição, 2015, 20 páginas. Folheto. Ainda investigando a relação entre a fantasia e a matéria sertaneja expressa também na poesia de cordel, eu retornei a este conto publicado como um folheto, escrito por Paola Siviero. Mesmo porque a autora encontrou um novo lar na jovem editora Dame Blanche, de São Paulo, de modo que, felizmente, o seu projeto Agreste Fantástico terá continuidade — com o livro O Auto da Maga Josefa. Este primeiro episódio é uma fantasia heroica com uma ambientação historicamente indeterminada, com uma dupla de heróis: a feiticeira Josefa, filha do Dito Cujo, e o esgrimista da peixeira, Toninho. O texto é em prosa e a autora habilmente combina um bom conhecimento dos leitmotifs da fantasia, com um humor centrado na adaptação deles aos tipos, ambientes e modos de expressão sertanejos. Certamente, o cordel deve ter um papel de intermediação desses aspectos regionais, e no final do livreto Toninho ensaia um repente.

É bom lembrar (tudo tem história!), que esse veio de fusões de conteúdos e tradições literárias tem precedente nas novelas A Tisana (1989) e O Pão de Cará (1995), de Roberto de Mello e Souza, que levam as narrativas arturianas de Tristão e Isolda e Percival para o sertão, e no conto “O Lugar do Mundo” (1984), de Daniel Fresnot, em que um duelo de repentistas se transmuta em duelo de magos. Paola Siviero tem nos seus heróis uma dupla de matadores de monstros e demônios, assim como Gerard van Oost & Oludara, da série A Bandeira do Elefante e da Arara, de Christopher Kastensmidt, ou da dupla Adoulla Makhslood & Raseed, de Saladin Ahmed no romance Throne of Crescent Moon (2012). Mas quem Josefa & Toninho perseguem é um cigano (o feiticeiro da história) que invocara um chupa-cabras, e depois

“um zumbi cangaceiro, um demônio d’água no São Francisco e uma assombração de corno — dos fantasmas, os mais ferozes — que castrou dois Don Juans logo na saída do forró.” —Paola Siviero, Conjurações & Terra Seca.

Daí se vê que o humor é uma das delícias da narrativa, escrita com precisão e simultânea desenvoltura. Além disso, há uma certa tensão entre a dupla de heróis, com ele a fim dela, mas sem achar brecha na casca grossa de perigo e independência, da filha do demo. Eu não sei como O Auto da Maga Josefa vai sair (por enquanto, só vi o folhetinho com um excerto), mas vou atrás. É muito bom saber que Paola Siviero continua mantendo a essa vereda aberta dentro da fantasia brasileira.

 


Sabixões & Sabixinhos: Philosophus Brasilis
, de Sofia Soft & Teo Adorno. São Paulo: Alink Editora, outono de 2018, 104 páginas. Livro de bolso.
Nelson de Oliveira faz dois dos seus heteronômios dançarem um tango neste livro. “Sofia Soft” cuida dos textos aforísticos e irônicos, enquanto “Teo Adorno” faz os desenhos muito estilizados de animais humanizados e outras figuras como as flechas que aparecem na capa. Esse mesmo material tem aparecido há alguns anos no perfil “Paisagem Personas” no Facebook, e é reunido aqui pela primeira vez numa bonita edição, pra você colocar ao lado de livros das criações do Henfil, de Quino ou de Charles Schultz. Tá nesse nível. Há muitos aforismos e opiniões jocosas sobre o brasileiro, o amor, a política, a justiça, a ciência e a ignorância — ainda que não de um modo específico ou contextualizado. Jogos de palavras iluminam sentidos presentes e ausentes, em lugares-comuns bem brasileiros. Os meus favoritos são os momentos mais filosóficos, em que os sentidos surgem de interações surpreendentes. Algumas falas e figuras aparecem de ponta cabeça na página, reforçando o caráter inquietante, heterodoxo e divertido do livro. Embora a ironia impere, há espaço para algum lirismo, como no exemplo abaixo:

Olhai os delírios do campo:

a vertigem da vida

— o amor —

é uma estrela maciça

incrustada

no breve intervalo

entre a genialidade

e a loucura dos olhos

de um bem-te-vi.

—Sofia Soft & Teo Adorno. Sabixões & Sabixinhos.

 

Às Moscas, Armas! de Nelson de Oliveira. São Paulo: Alink Editora, 2.ª edição, 2018 [2000], 118 páginas. Livro de bolso. Comecei com contos curtos, e termino com contos curtos… Se bem que algumas das histórias deste livro de Nelson de Oliveira têm uma extensão maior. De qualquer modo, este é a segunda leitura do mês que agride minha prevenção contra o miniconto ou a flash fiction.

Às Moscas, Armas! já havia aparecido no ano 2000 como e-book, mas com uma tiragem de 50 exemplares em papel — que hoje deve ser item de colecionador. Em 118 páginas, apresenta 24 textos diferentes, de modo que aí já se tem uma ideia de como predominam as narrativas breves. Assim como Braulio Tavares, Nelson de Oliveira encontra espaço para expressar a sua erudição e inteligência. A maioria dos textos, porém, afasta-se do tom da crônica e fazem da perspectiva, da reiteração e do diálogo ríspido as ferramentas de um texto mais cortante e incisivo. Nem todos são exatamente curtos. “Ah!” usa oito páginas e diálogos não marcados para narrar uma bizarra “contaminação” que transforma pessoas em bolhas luminosas flutuantes, um recurso típico do realismo mágico. A maior parte dos contos de fato pertence ao realismo mágico ou ao conto fantástico, tendências que marcam o autor, e até mesmo a sua persona voltada para a FC e a literatura juvenil, “Luis Bras”. Com três páginas, “Jacqueline in the Box” oferece uma metáfora da alienação da mulher causada pela violência sexual masculina, em torno da figura banal da caixa de papelão. Do mesmo tamanho, “Górgona” ousadamente se realiza pela linguagem chula masculina. “Ninfas”, uma narrativa de parágrafo único, centra-se nas impressões confusas de um casal em fuga, num cenário urbano e de motivações desconhecidas. “Inveja”, um dos meus favoritos, é um vertiginoso exposé dos bastidores da vida literária, entre o Escritor Que Tinha ou Que Não Tinha Boas Ideias (tudo assim, em iniciais maiúsculas), o Crítico Literário do Jornal do Momento, e outras figuras orbitantes dessa dinâmica. Já “O Homem Só”, de nove páginas, belisca os homens da minha faixa etária e formação, na sua sexualidade. Desenvolvido só com diálogos, “Quinze Minutos” brinca com o ir e vir das pessoas nos seus trabalhos de escritório. Na maioria das situações, tem-se no livro o desejo modernista de expor os azares da modernidade — presentes também na obra dos contistas experimentais Braulio Tavares e Ivan Carlos Regina. Ainda sobre Às Moscas, Armas!, Nelson aponta o conto “Lua, 1969”, como o momento em que a persona de Luis Bras começa a emergir. Com dez páginas e narrado em primeira pessoa no tempo presente, seu tom é mais solene e a situação enigmática é surpreendentemente rica: o narrador faz parte de uma dupla de seres invisíveis que assiste a certo grupo de pessoas velando uma menina moribunda em uma mansão decaída. Da TV que, supostamente, exibe a chegada da Apollo 11 à Lua, uma luz estranha, primal e mítica surge como um raio transportador que permite a visita de uma segunda categoria de seres não humanos, associados à Lua. Aqui, há uma espécie de caminho inverso, muito trilhado pela FC e pela fantasia contemporânea, de iluminar o cotidiano com uma luz fantástica, maravilhosa. Há até mesmo um traço de New Wave, em que eventos subjetivos ou culturais transformam-se em fatos concretos. Sob o livro e esse conto em particular, Nelson me escreveu:

“São contos do final do século passado, mas em pelo menos um deles, ‘Lua, 1969’, hoje eu já consigo notar a iminência de minha guinada pra FC. Esse continho de realismo mágico tem algo de FC esotérica, na linha do Shikasta [de Doris Lessing], por exemplo.” —Nelson de Oliveira.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Daryl Mandryk.

Mass Effect Omnibus Volume 1, de Mac Walters, Patrick Weekes, John Dombrow & Sylvia Feketekuty. Milwalkie, OR: Dark Horse Books, novembro de 2016, 400 páginas. Arte de capa de Daryl Mandryk. Trade paperback. Omnibus” é uma reunião de vários livros em um único volume — no Brasil, Turno da Noite, de André Vianco, e Trilogia Padrões de Contato, de Jorge Luiz Calife, são exemplos. Este aqui eu comprei num bota-fora da Saraiva do Shopping Eldorado, em São Paulo. Nele, estão quatro minisséries do universo expandido, em quadrinhos, do videogame Mass Effect, produzido pela empresa canadense BioWare. Tanta gente trabalhou nessas minisséries, que só mencionei aí em cima os caras que bolaram as histórias. Mesmo porque, na hora de montarem o omnibus, a Dark Horse deixou alguns créditos de fora. As HQs são: Redemption, Evolution, Invasion e Homeworlds.

Não jogo videogames de console (atualmente, só jogo o Tadaroids, criado por Vagner Vargas aqui no GalAxis!) mas tento acompanhar alguma coisa desses que são space operas: Mass Effect, Halo, Destiny. Deste game em particular, há alguns anos li um paperback chamado Mass Effect: Ascension, de Drew Karpyshyn. Este compêndio de HQs da franquia estão sob a premissa de que o Comandante Shepard, o principal protagonista do game, está morto e diversos grupos lutam para se apoderar do seu corpo. A telecineta Liara T’Soni, a alienígena mais atraente da franquia (na bela capa de Mandryk, ao lado), chega ao asteroide/habitat espacial Omega para impedir que o Colecionador fique com os restos do herói. O sidekick de Liara é o malandro E.T. Feron, de outra espécie. Aria, a implacável comandante de Omega, é da mesma espécie de Liara, e não quer saber de encrenca na sua estação. O núcleo da história é a tensão entre Liara e Feron, de qualquer modo. A segunda história é interessante não apenas por apresentar uma arte superior, mas por oferecer uma narrativa de origem do “Illusive Man”, um chauvinista humano e um dos principais antagonistas do universo de Mass Effect. É narrativa mais dramática e moralmente ambígua, mas na qual não falta o impertinente clichê da space opera atual, a figura do zumbi. Aria e Omega retornam na história seguinte, quando o asteroide/estação espacial é invadida por uma força militar ou para-, comandada pelo erudito Oleg Petrovsky e enviada pela Cerberus, a organização secreta do Illusive Man, sob pretexto de defendê-la de um contingente de reapers, a ameaça à galáxia que a franquia apresenta. Centrada na relação entre Aria e Petrovsky, o episódio traz alianças momentâneas, traições, capturas, fugas e até batalhas espaciais. E, no todo, a melhor arte do livro todo. O fuzileiro fisiculturista James Vega é o centro da narrativa seguinte, e a alienígena Tali’Zorah nar Rayya no da próxima. Garrus Vakarian, outro E.T., e Liara T’soni fecham essa galeria presente em Homeworlds. Enfim, o omnibus é fechado por duas histórias relativamente fracas e avulsas, protagonizadas por Aria e o investigador Capitão Bailey. No geral, gostei do mergulho no universo de Mass Effect que o livro faculta. As HQs atendem ao visual determinado pela pré-produção do game, de modo que sua coerência sacrifica algo da variação e inventividade, de uma HQ para a outra. A arte de Daryl Mandryk na capa tem todas as virtudes das artes digitais da atualidade, vinculadas aos videogames, e as capas das minisséries, reproduzidas no interior, via de regra também expressam o encanto e o exotismo da space opera.

—Roberto Causo

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Leituras de Junho de 2017

Não é todo mês, ou ano, que leio um ganhador tanto do National Book Award quanto do Pulitzer Prize de melhor romance.

 

Arte de capa de Teo Adorno.

Anacrônicos, de Luiz Bras. São Paulo: Edição do Autor, 2017, 28 páginas, 2053 KB. Capa de Teo Adorno. E-bookEm maio, Luiz Bras me pediu para dar uma olhada nessa sua noveleta que combina ficção científica e realismo mágico de um modo que me lembrou essa mesma tendência em André Carneiro. A comparação é um elogio explícito, porque me parece que Bras, ao menos em sua ficção curta, vem se mostrando um digno herdeiro desse pioneiro da FC nacional, ele mesmo comparado a grandes nomes internacionais como Franz Kafka e Adolfo Bioy Casares.

Anacrônicos já é um e-book que você pode comprar na Amazon, aqui, ou levar de graça se tiver o Kindle Unlimited. A noveleta segue o ponto de vista de uma jovem que vive os dias de uma estranha invasão: redivivos, feitos de borracha industrial, com a exata aparência e parte da personalidade e comportamento de pessoas falecidas, do conhecimento dela e dos demais habitantes da Terra. A premissa é semelhante à da série francesa Les revenants (2013) e a sua imitação americana, The Returned (2015). Bras coloca a sua própria variação e personalidade no conceito, ao torná-lo global e explicitando a artificialidade dos redivivos. A prosa tem uma qualidade muito intimista, para equilibrar o conteúdo panorâmico, e elegante. Os momentos em que a protagonista e seu amante tentam namorar, cercados do seu “fardo” emborrachado e animado me lembraram Carneiro, especialmente. A ampliação e a multiplicação do fenômeno inexplicado são marca do realismo mágico, mas a sugestão de razões científicas e a ambientação futurista remetem à FC. Bras, porém, sublinha tanto sua independência em termos de gênero, quanto seu compromisso com a metaficção (mencionado mês passado nas minhas notas sobre A Última Árvore), num final que acaba advertindo o leitor para não colocar suas fichas tanto num gênero quanto no outro. Ou em sua adesão às convenções do realismo literário.

 

The Underground Railroad, de Colson Whitehead. New York: Doubleday, 1.ª edição, 2016, 308 páginas. Hardcover. Ter visto a primeira temporada da série Luke Cage, da Netflix, me deu vontade de retornar à minha prateleira de literatura afro-americana (Cage aparece o tempo todo lendo e citando grandes nomes desse campo). A prateleira inclui Richard Wright, Walter Mosley, Edwidge Dandicat, Ralph Ellison, W. E. B. Du Bois e Toni Morrison. E entre os brasileiros, Ana Maria Gonçalves, Ferréz e Júlio Emílio Braz, além de A Razão da Chama, de Gumercindo Rocha Dorea, a primeira antologia de poesia afro-brasileira. O romance de Whitehead passou na frente porque foi bem referendado pela Locus — The Magazine of the Science Fiction & Fantasy Field. Ganhou o National Book Award e o Pulitzer Prize deste ano, os dois maiores prêmios literários americanos, e eu encontrei um exemplar em promoção na Livraria Cultura da Av. Paulista. O livro já apareceu no Brasil, pela HarperCollins. 

The Underground Rairoad começa contando a história do sequestro da antepassada da heroína Cora, e de como aquela africana foi trazida aos Estados Unidos como escrava. O romance pertence a Cora, porém e embora faça questão de tratar de outras figuras, africanas ou não. O início e a descrição da vida na plantation sulista é a parte de leitura mais dolorosa. Também sou afro-descendente (embora não pareça), e admito que não é com alma leve que se toma contato com a tortura, a subordinação e a degradação dos nossos antepassados. Mas é a fuga de Cora que põe o romance em movimento. Nisso, o sistema de abrigo e de contrabando de fugitivos das fazendas e cidades do Sul dos EUA para o Norte mais simpático ao abolicionismo, é fundamental. Chamado de “ferrovia subterrânea” como metáfora de um sistema de transporte ilegal, é literalizado por Whitehead como uma estrada de ferro que, no subsolo do país, liga diversos estados. Cora emerge em três deles, enquanto é perseguida por um implacável caçador de escravos, para encontrar diferentes situações de reação branca à presença do negro. É nisso que o componente fantástico emerge com maior força, já que Cora toma contato com situações de esterilização da mulher negra e de pesquisas científicas usando cobaias humanas. A ciência médica parecer estar além daquela do século 19, e os casos citados foram importados direto do século 20 (como o dos negros de Tuskegee recebendo placebo no tratamento de sífilis). Assim, a experiência de Cora se projeta sobre a experiência dos afro-americanos para além do tempo de vida da personagem.

Para o jornalista da Globonews Jorge Pontual (que já se revelou um leitor de FC), Whitehead afirmou que autores como Arthur C. Clarke e Stephen King é que o fizeram se tornar um escritor, e que ele estudou a obra maior do realismo mágico, Cem Anos de Solidão (1967) de Gabriel García Márquez, para guardar as lições que havia ali. Mas é bom lembrar que em 1978 o americano Tim O’Brien publicou Going After Cacciato, ganhador do mesmo National Book Award, no qual uma patrulha americana no Vietnã sai à caça do desertor Cacciato, que planeja marchar da Indochina até Paris — e que no caminho cai em um mundo subterrâneo mais surreal e estranho do que a narrativa de Whitehead. Com traços de Cormac McCarthy na violência e secura, o estilo de Whitehead tem toques minimalistas e uma tendência digressiva que me incomodou um pouco, entrepondo lembranças ou descrições ao que está diante dos personagens. Essa qualidade indireta — talvez melhor realizada por Raymond Chandler, Dashiell Hammett e seus seguidores na ficção de crime — aqui funciona melhor no plano estrutural do que no estilístico: é quando Whitehead abandona o rastro de Cora para tratar de personagens que a orbitam, mesmo depois que o leitor já sabe qual foram os seus destinos. O romance faz do atrito entre a presença africana na América e o “destino manifesto” que afirma o controle do país pelo branco, a marca de uma tensão que se estende até o presente. Seco mas emocionante, distópico mas mantendo o impulso utópico que fez os afro-descendentes chegarem até aqui, The Underground Railroad aparece quando nos perguntamos o que os oito anos de Barack Obama representaram para os negros americanos — e o que os anos de Donald Trump reservam a eles e outras minorias.

 

Arte de capa de Dave Gibbons.

Os Bastidores de Watchmen (Watching the Watchmen), de Dave Gibbons, Chip Kidd & Mike Essl. São Paulo: Editora Aleph, 2009, 280 páginas. Capa de Dave Gibbons. Tradução de Ricardo Giassetti. Capa dura. Sou grande admirador do romance gráfico Watchmen, de Alan Moore & Dave Gibbons, tendo escrito um ensaio que teve partes dele utilizadas como introdução para a edição brasileira da Via Lettera. Este livro sobre os bastidores da obra, escrito por Gibbons com design de Kidd & Essl, eu já vinha namorando desde o seu lançamento em 2009. Na última Feira Intergaláctica da Aleph, tive chance de finalmente adquirir um exemplar ainda no plástico.

Watchmen foi uma das experiências definidoras da década de 1980 para mim, juntamente com o romance gráfico pioneiro de Frank Miller, Batman, Cavaleiro das Trevas, e o Movimento Cyberpunk na FC americana, juntamente com as HQs tupiniquins de Watson Portela e Mozart Couto. Watchmen tem sido especialmente duradouro, e, nos quadrinhos, tem status literário sem precedentes. O escritor de FC Norman Spinrad disse que Watchmen foi uma espécie de Dom Quixote dos quadrinhos — a obra que prova a maturidade de um formato (o romance, no caso de Cervantes, e o romance gráfico no caso de Moore & Gibbons). Neste livro de arte com ilustrações quase que do começo ao fim, Gibbons conta como conheceu Moore, como propôs colaborar com ele junto à DC Comics (editora original de Watchmen), como foi o processo criativo dos dois, e como enfrentou a parada exaustiva de desenhar o bicho durante mais de um ano. Gibbons faz questão de valorizar o trabalho do colorista John Higgins, que assume um dos capítulos do livro com as suas próprias reminiscências. Gibbons também fala das repercussões da crítica e do público, e fornece até uma espécie de guia de merchandising. É incrível como ele guardou os menores esboços e ideias, reunidas aqui numa diagramação que valoriza os desenhos mais casuais, preservando uma certa aura da década de 80. Os Bastidores de Watchmen é um tesouro para o fã dessa obra, e um testemunho do ápice do romance gráfico. Logo na sequência, e infelizmente, o conceito virou sinônimo do que antes chamávamos “álbum de luxo”, e da obra de quadrinhos publicada no formato de livro encadernado (em inglês revista em quadrinhos se chama “comic book“, o que atrapalha as coisas, exigindo um termo diferenciado para HQ em livro). De qualquer modo, perdeu-se — certamente por força do comercialismo que impera na área — um pouco daquela ambição de realizar literatura por via gráfica.

 

Arte de capa de Harriet Scott.

Tasmânia, de Roberto de Sousa Causo. Free Books Editora Virtual, Série Nossos Autores N.º 1, 1.ª edição eletrônica, 2017. Capa de Harriet Scott. E-book. Já fiz essa pequena trapaça antes — incluir um livro de minha autoria nestas anotações. Desta vez, veja que o conto “Tasmânia”, primeiro publicado na revista Pesquisa FAPESP N.º 118, de dezembro de 2005, não existia como livro até que o editor Paulo Soriano, um profundo interessado no conto fantástico, o solicitasse em 9 de maio para entrar na Nossos Autores, coleção que faz parte da sua nova iniciativa, a Free Books Editora Virtual. Eu considerava “Tasmânia” um dos três ou quatro textos mainstream que perpetrei na vida, mas Soriano o define como conto fantástico, o que, refletindo agora, me parece mais adequado. Nessa história bastante curta, um biólogo brasileiro vai à Austrália, onde é cooptado para uma expedição controversa à Ilha da Tasmânia, para investigar a possível presença de tilacinos vivos — o tigre- ou lobo-da-tasmânia, animal considerado extinto desde que o último exemplar conhecido morreu solitário num zoológico, em 1936. O tilacino era um predador marsupial, e o meu cientista brasileiro é um especialista em marsupiais num intercâmbio na terra dos marsupiais. Avistamentos hipotéticos do tilacino continuam ocorrendo em tempos tão recentes quanto 2016. Meu conto especula sobre essa possibilidade, ou a de que os boatos expressem a má-consciência humana, em ter levado o animal à extinção. (Cá entre nós, torço pra que o bicho continue existindo, e pro inferno com o ceticismo científico.)

A empreitada de Paulo Soriano visa a difusão da leitura e não o comércio de e-books, e Tasmânia pode ser baixado gratuitamente no site da Free Books. Eu gostei especialmente da capa com ilustração de Harriet Scott, uma de duas irmãs australianas que se empenharam no ofício geralmente dominado por homens, da arte naturalista.

 

Arte de capa de Stanley Meltzoff.

Revolt in 2100, de Robert A. Heinlein. Nova York: Signet Books, 1.ª edição, 1955, 192 páginas. Capa de Stanley Meltzoff. Introdução de Henry Kuttner. Paperback. Como ainda estou às voltas com o assunto religião organizada e ficção científica, minha esposa Finisia Fideli me apontou este livro de Robert A. Heinlein, que existe em português justamente como Revolta em 2100. Contém o romance curto “If This Goes On—” que imagina uma ditadura teocrática nos Estados Unidos do século 22, e as noveletas “Coventry” e “Misfit”. Heinlein antecipa, com toques rápidos, muito do temor que Chris Hedges expressa em American Fascists, que discuti aqui mês passado. Eu suspeito apenas que Hedges seria modernista demais para dar crédito a uma narrativa de ficção popular.

Mas Heinlein não mergulha em questões teológicas, nem elabora como tal ditadura veio a existir. No posfácio extremamente lúcido e presciente, ele faz um perfil mais redondo do seu televangelista, assumidamente a contragosto. O profeta que controla a sociedade é um picareta como muitos pastores evangélicos de então (e de hoje), e é assim que o Heinlein o define. O próprio título da história sugere o potencial fascista de um status quo já implantado. O herói é um jovem cadete pertencente à guarda palaciana do profeta. Começa a questionar as coisas quando descobre que o santo serviço prestado pelas virgens ao profeta é justamente a perda da virgindade (o pastor que monta um harém é um dos pontos centrais do massacre em Waco envolvendo o profeta roqueiro David Koresh). Ele ajuda uma das virgens a se safar, entra para um grupo de resistência, foge de perseguidores, integra o staff da resistência, recebe uma carta do tipo “dear John” (é tão adequado que o herói se chame John) do seu primeiro amor, descobre um segundo em uma mulher mais madura e inteligente, e participa da ação final que derruba o profeta. Heinlein consegue sugerir uma trama vivida pelo mesmo número de mulheres que homens, enquanto menciona carros aéreos, hipnose, fraude genética, imagens geradas por computador — tudo isso em 1955. Heinlein foi um libertariano, de modo que a afirmação da liberdade era central a ele. “If This Goes On—” integra-se a essa perspectiva, e a liberdade com responsabilidade é discutida em “Coventry”. As três narrativas fazem parte da História do Futuro de Heinlein, e “Misfit” se passa na mesma Coventry que sucede à teocracia. Trata de um astronauta caipira que, descobre-se, é um supergênio matemático do tipo Ramanujan.

Este exemplar de Revolt in 2100 eu “herdei” da coleção do escritor Walter Martins, da Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira (1957-1972). Walter também me deixou, além desta primeira edição, uma segunda pela mesma editora. Devia gostar de Heinlein. A capa de Meltzoff — um artista destacado por Vincent Di Fate no excelente Infinite Worlds: The Fantastic Visions of Science Fiction Art (1997) como um dos grandes da época e influência sobre os artistas subsequentes — define em poucos toques futuro, conflagração e revolta, interesse romântico e vigilância totalitária.

 

Moral Man and Immoral Society, de Reinhold Niebuhr. Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1960 [1930], 284 páginas. Trade paperback. Niebuhr foi um importante teólogo americano que abordou questões contemporâneas e políticas. Está na Library of America, O que testemunha sua importância para o pensamento americano. É muito citado por Chris Hedges em War Is a Force that Give Us Meaning (2002)Este livro, primeiro publicado em 1930, é um ensaio de filosofia moral em que Niebuhr afirma que o indivíduo é capaz de uma conduta moral, mas sociedades, classes e países, não. “A moralidade política… é a antítese mais descompromissada, à moralidade religiosa”, escreveu. Vale notar que os ataques de 11 de Setembro de 2001 fizeram virar moda uma crítica constante à religião organizada e ao fanatismo religioso, feita na FC e fantasia brasileiras. A profundidade das discussões de Niebuhr sublinham, por contraste, a superficialidade da maior parte dessa crítica.

Fundado no marxismo e centrado na luta de classes, Niebuhr investiga as questões morais em torno da busca por um socialismo revolucionário versus a busca por um socialismo evolucionário (de avanços paulatinos). Sua crítica ao marxismo é semelhante à de Robert Heinlein, no posfácio citado acima — haveria mais de religião do que de ciência nas ideias de Marx e dos seus seguidores e intérpretes, especialmente no componente apocalíptico do fim da ordem burguesa como pré-requisito para a ascensão do proletariado. Mas ao contrário de Heinlein, Niebuhr vê aí algo necessário para a mobilização da classe trabalhadora. Um fato que ele parece admitir com certo pragmatismo, é a necessidade da violência para a compensação de injustiças sociais (a violência estruturada na sociedade). Parece ser uma escolha incomum para um teólogo, e certamente seus argumentos caminham no fio da navalha por vários capítulos, mas é justamente a reiteração constante deles que trai o quanto o elemento revolucionário é atraente para ele. A republicação sem retoques em 1960 — quando a própria URSS havia denunciado os horrores do stalinismo, e a China havia somado o seu próprio catálogo de terror — também dá esse testemunho. Não são questões fáceis de responder, tanto no período entreguerras, quanto agora em meio à globalização e às crises políticas e sociais que ela ensejou. Em 1930, Niebuhr preocupava-se não só com a miséria proletária, mas com o apartheid racial nos EUA. Sua receita para o equilíbrio moral entre o enfrentamento revolucionário da injustiça social, e a busca por um socialismo evolucionário e mais enraizado, passa pela solução da resistência pacífica que Gandhi já realizava então — e que funcionaria na década de 1960 com Martin Luther King. “Não há problema da vida politica para o qual a imaginação religiosa não possa fazer uma contribuição maior, do que este problema da resistência não violenta”, Niebuhr escreve. “A descoberta dos elementos em comum de fraqueza humana no inimigo e, concomitantemente, a apreciação de toda a vida humana como possuidora de valor transcendente, cria atitudes que transcendem o conflito social e assim vão mitigar suas crueldades.” Aí que estaria a contribuição daquilo que ele chama de “imaginação religiosa”; um sentimento de identificação e amor ao próximo ausente de uma ética não religiosa.

 

Arte de capa de Vicente di Grado.

O Alienista, de Machado de Assis. São Paulo: Clube do Livro, 1964, 136 páginas. Capa de Vicente di Grado. Introdução de Almeida Magalhães. Brochura. Me pediram que escrevesse um artigo sobre o fantástico em Machado de Assis, e por isso estarei lendo e relendo textos do autor, pelas próximas semanas. Esta velha edição do Clube do Livro traz a famosa novela “O Alienista”, acompanhada de dois contos: “A Chinela Turca” (1875) e “O Empréstimo”.

“O Alienista” (1882) trata da chegada à pequena cidade fluminense de Itaguaí, ainda no século 18, de Simão Bacamarte, um alienista — um cuidador de loucos anterior à psicologia moderna. O seu frio propósito científico é descrito como um sacerdócio de dedicação absoluta (visão romântica da ciência que também aparece em O Doutor Benignus, de Augusto Emílio Zaluar, igualmente no século 19). Essa novela é basicamente uma comédia de costumes, na qual Bacamarte recolhe os insanos locais, mas logo expande sua ação para recolher os dotados de pequenas manias e faltas morais próprias da época e do contexto — ostentação financeira, vaidade, superstição… Depois de uma revolta popular, o alienista muda o seu foco e passa a recolher os virtuosos, vistos por ele como improváveis no mesmo contexto e portanto mentalmente desequilibrados. É o mesmo esquema alegórico de A Luneta Mágica (1869), de Joaquim Manuel de Macedo, em que um jovem, incapaz de lidar com a realidade da vida, alterna óculos mágicos que o fazem ver tudo com lentes escuras, com outros que pintam o mundo com cores róseas. É evidente que o problema não está na sociedade, mas no próprio Bacamarte, e aí Machado expressa a desconfiança em relação à ciência que é característica do Período Pioneiro da FC Brasileira (1875 a 1957). Os excessos da ciência podem ser o assunto da novela, mas o seu tema é o moralismo quotidiano, reforçando a inserção na literatura de costumes (ou de observação social). Já “A Chinela Turca” é um dos textos anti-românticos do autor (o herói é forçado a ler uma peça de teatro cheia de aventuras de capa e espada, para se meter numa série de situações semelhantes logo na sequência; mas era tudo um sonho…), e “O Empréstimo” observa os estados mentais de um homem sem grande força de caráter, tentando arrancar certa quantia de um tabelião, tão focado nisso, que a aventura empresarial que fundamenta o empréstimo vai sendo trocada por uma soma que lhe pague a refeição do dia. Em todos os casos, a força do quotidiano precisa triunfar sobre o extraordinário e o aventureiro.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Danilo Beyruth.

Astronauta: Assimetria, de Danilo Beyruth. São Paulo: Panini Comics/Mauricio de Sousa Editora, 2016, 98 páginas. Capa de Danilo Beyruth. Álbum. Ainda estou terminando de ler o material de quadrinhos brasileiros que comprei para a pesquisadora M. Elizabeth “Libby” Ginway. Este álbum de Beyruth é o terceiro produzido por ele para a iniciativa dos “romances gráficos” da Maurício de Sousa, que retrabalha os personagens infantis do criador brasileiro. Seu traço está mais sólido e a cor digital de Cris Peter traz mais nuances e um visual mais bem acabado às imagens. Mês passado, li outro da série, Astronauta: Magnetar.

Aqui, a aventura é fator mais intenso do que a exploração espacial, com o Astronauta indo parar em Titã depois de investigar um fenômeno interdimensional num dos polos de Saturno. Mas o lado existencial do personagem é central para a trama e para o tom da narrativa: incapaz de reatar com Ritinha, ele se joga no trabalho só para descobrir que um duplo dele mesmo, mais velho e vindo de outro universo, havia se casado com Rita, com quem tem uma filha. A descoberta vem no rastro do encontro com superseres cósmicos gigantes, do tipo Galactus mesmo — tanto que Beyruth homenageia Jack Kirby explicitamente, adotando algo das suas soluções estéticas. A ação aqui é mais turbulenta e as ideias de ficção científica mais profusas. O “nosso” Astronauta é forçado da enfrentar o guarda-costas de um dos superseres para resgatar o seu duplo. A filha adolescente do outro funciona como uma assistente indesejada. No final, um gancho para o próximo álbum, com Astronauta náufrago em um universo desconhecido, acompanhado da infernal aborrescente ninja. Será que ele vai sobreviver a algo para o qual não foi treinado para enfrentar — a dinâmica pai e filha?… A capa me incomodou um pouco, com essa mão gigante de seis dedos… Mas no contexto, ela não deixa de compor com o título e o sentido geral da história.

 

O Coronel, de Osmarco Valladão & Manoel Magalhães. São Paulo: Nemo, 2012, 56 páginas. Álbum. Esta é a última HQ brasileira que comprei para Libby Ginway, em uma feira de livros em Pinheiros. O roteirista Valladão é conhecido do fandom de ficção científica por participar do mundo partilhado da Intempol®, criação do escritor carioca Octavio Aragão. Consta que este álbum apareceu primeiro em 1991, e que o tal Coronel já anda por aí em outras histórias e veículos.

O desenho é muito estilizado, puxando para os quadrinhos europeus, e a cor digital é competente. A narrativa também é, tratando de uma guerra espacial entre impérios, e do coronel — um fuzil com inteligência artificial e autoridade sobre o soldado que o empunha. Na verdade, a história acompanha uma dessas armas e o seu “caráter” impositivo, autoritário e obcecado em cumprir sua missão de extermínio, sem nuances morais ou atenção ao contexto. A HQ ganha interesse quando a arma, recolhida como sucata, vai parar numa nave de recicladores espaciais, caindo nas mãos de um adolescente frustrado. Nesse ponto, a narrativa ganha um palco mais dramático e interessante. Assim como uma história de Moebius ou de Juan Giménez, é uma parábola sobre a persistência das péssimas ideias que constituem a civilização belicista e mercantil que temos aí.

 

Arte de capa de John Cassaday.

Star Wars: Skywalker Ataca (Star Wars: Skywalker Strikes), de Jason Aaron & John Cassaday. São Paulo: Panini Comics, 2017, 160 páginas. Capa de John Cassaday. Tradução de Levi Trindade. Brochura. Bons tempos, e breves, aqueles em que novos produtos de Stars Wars apareciam com o subtítulo “From the Adventures of Luke Skywalker”. Mas George Lucas, como o bom produtor de telenovela que é, foi mudando o foco de Luke para Han Solo, e depois para Darth Vader/Anakin Skywalker, conforme a reação do público. É bom ver, portanto, o herói com destaque na capa de um produto da franquia — mesmo que a saga como um todo tenha deixado as aventuras de Luke apenas como vislumbre daquilo que poderia ter sido. E potencialmente mais interessante do que o produto final.

Os três anos que separam cada episódio da primeira trilogia (1977 a 1983) dão muito espaço para elipses. Em O Império Contra-Ataca, Solo diz a Leia: “Aquele caça-prêmios em que esbarramos em Ord Mantell? Bem, ele me fez mudar de ideia.” Isso claramente ocorre entre um filme e outro — assim como a pane sofrida pelo Millennium Falcon e as novas habilidades jedi de Luke. Em Skywalker Ataca, Jason Aaron cria a sua própria pavimentação do que acontece entre os episódios IV e V (o livro reúne material que saiu na revista Star Wars, lançada no Brasil, de números 001 a 006). A arte de Cassaday é meio dura mas eficiente com naves, estruturas, fisionomias e outros traços da franquia. Seu destaque está na luz e sombra.

O livro abre com a turma toda chegando a Cymoon 1 para sabotar uma fábrica imperial de armas. Mas Darth Vader está lá fazendo uma inspeção, e sua presença bagunça os planos: Luke e Leia querem vingança acima de tudo, mas vão se frustrar. Depois de libertar um contingente de escravos, Luke confronta Vader, enquanto Leia e Han tentam voltar ao Falcon usando um andador do Império para abrir caminho, e Chewbacca tem seu momento de ação solo. Depois do bafafá, um desconsolado Luke entende que não vai se tornar um jedi só querendo, e embarca numa busca por mais informações, visitando Tatooine e a velha toca do eremita Ben Kenobi. Mas há um caça-prêmios de armadura das guerras clônicas atrás dele. Então é interessante que Luke não apenas tenha um primeiro confronto com Vader antes de O Império Contra-Ataca, mas também uma refrega com Boba Fett. No processo, encontra o diário de Ben (que não deve mencionar a sua infeliz paternidade), e Vader descobre que o piloto que destruiu a Estrela da Morte se chama Skywalker (eu achava que o imperador havia empregado poderes mentais sith para descobrir). A linha narrativa envolvendo as primeiras encostadas de Han e Leia tem bons diálogos, com um Han mais sensato e uma Leia mais irriquieta e durona. Mas leva os dois a um planeta muito improvável, com uma Sra. Solo igualmente improvável na cola do contrabandista. O enredo de Aaron é mais adulto e violento que o dos filmes, com reviravoltas e transições inteligentes e interessantes. Vader e Fett são mais adeptos da tortura e da atrocidade, mas com o benefício do conhecimento dos instantes chaves da saga de Anakin, Aaron satisfaz o leitor demonstrando que, mesmo confuso, Luke não desce ao mesmo nível. A história deve ter continuação, até emendar com os heróis outra vez juntos no planeta Hoth.

 

Arte de capa de Enki Bilal.

The Dormant Beast (Le Sommeil du mostre), de Enki Bilal. Hollywood, CA: Humanoids Publishing, 2000 [1998], 70 páginas. Capa de Enki Bilal. Traduzido para o inglês por Taras Otus. Brochura. O artista sérvio-francês Enki Bilal está lá a minha mocidade, nas páginas brilhantes da revista Heavy Metal. Especialmente a HQ Os Imortais (Lea Foire aux immortels), da Trilogia Nikopol, publicada com esse título no Brasil em 1988 pela Martins Fontes. Em 2002, tive a sorte de ver Bilal pintando um painel in loco no Festival Utopiales, em Nantes.

Em geral, suas histórias têm um ar cyberpunk decadentista, muito europeu, irônico e alegórico. The Dormant Beast é bastante cyberpunk, ao tratar de um requisitado “especialista em memória” que se lembra de tudo desde o seu nascimento em Sarajevo, durante a guerra civil na ex-Iugoslávia (década de 1990). Por suas recordações, sabemos que a história acompanha dois outros bebês nascidos juntos: uma menina e um menino. Frequentemente, o protagonista, como uma espécie de narrador em primeira pessoa, retorna aos primeiros dias dos três, na maternidade. Os três acabam gravitando para o centro dos planos da sociedade secreta Obscurantis de fundamentalistas religiosos oriundos das três principais religiões monoteístas, liderados pelo malévolo Dr. Warhole e dedicados a fazer tabula rasa da civilização humana “instrumentalizando” intelectuais e agentes culturais. Soa improvável, mas não deixa de ser uma crítica ao peso político negativo dessas formas de fundamentalismo religioso. A Ordem Obscurantis teme mais que tudo os dados de um telescópio orbital, que podem apontar a existência de uma civilização extraterrestre.

Os momentos de ação e violência da narrativa se alternam com instantes mais reflexivos e ternos, dentro de uma atmosfera surrealista em que pessoas são transformados em androides, corpos humanos se tornam vetores de armas orbitais, e moscas onipresentes podem trazer a morte a qualquer momento. Nesse contexto bizarro, a memória absoluta do herói é o elemento fixador da sua bússola moral, que absorve as ambiguidades da violenta origem do triângulo afetivo a que pertence. É isso o que torna a HQ muito humana. The Dormant Beast tem uma das quadrinizações mais estranhas com que me deparei recentemente. Longos trechos de diálogos ou monólogos aparecem desacompanhados de imagens, aumentando ainda mais a introspecção da narrativa. É claro, se tudo fosse desenvolvido com um equilíbrio maior entre texto e arte, a HQ seria muito mais longa — e ela é apenas o início de uma tetralogia.

—Roberto Causo

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