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Leituras de Julho de 2020

Em julho, prossigo com minha investigação da space opera, relendo romances de Jack Vance, mas também examinando a antologia brasileira Space Opera II, de Hugo Vera & Larissa Caruso.

 

Arte de capa de Raul Rangel e Milton Silva.

Star King: A Saga dos Príncipes-Demônios (Star King), de Jack Vance. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1980 [1964], 208 páginas. Tradução de Marina Leão Teixeira Viriato de Medeiros. Arte de capa de Raul Rangel e Milton Silva. Brochura. Cá estou, relendo mais uma space opera das antigas, publicada no Brasil em 1980 e parte de uma série que ainda chama a atenção, misturando FC e ficção de crime pela verve singular de Jack Vance (que escreveu os dois gêneros). De uma série de cinco romances publicados, a importante coleção Mundos da Ficção Científica lançou dois: este Star King (1964) e A Máquina de Matar (1964). O autor da Geração GRD Fausto Cunha foi o coordenador da coleção. Anos depois, na década de 1990, a coleção — agora Novos Mundos da Ficção Científica e com Sylvio Gonçalves como coordenador — publicou um terceiro: O Palácio do Amor (1967). Dentro da primeira coleção, Antonio Jeremias foi o capista mais prolífico e competente. A capa de Raul Rangel & Milton Silva certamente está aquém.

A série acompanha o jovem Kirth Gersen, treinado por seu avô para ser o vingador da destruição da sua colônia planetária por cinco alienígenas capazes de se passar por humanos, e que, a partir dali, criaram os seus respectivos impérios criminais pela galáxia de Vance, o universo do Oikumene. Os cinco são os “Príncipes Demônios”. Cinco bandidos, cinco romances, com Gersen dando cabo de um após o outro. Por alguma razão, Vance terminou a série com a publicação de The Book of Dreams apenas em 1981. (Atualmente, o escritor canadense Matthew Hughes trabalha em um sexto volume, autorizado pelos herdeiros.) Pseudo-excertos de publicações, depoimentos, relatórios do futuro distante imaginado por Vance expandem o sentido da narrativa do romance, somando à textura elogiada e influente que caracterizou a obra desse autor. A intriga do primeiro livro apresenta Gersen na cola de Attel Malagate, que, aos poucos, ele descobre estar disfarçado de dirigente do principal instituto de exploração planetária do Oikumene. O próprio Gersen emprega o disfarce de explorador. A intriga tem como principal premissa propulsora (“MacGuffin”) um planeta singular, muito rico e edênico, descoberto por um explorador de fato, assassinado no início do romance. A questão é apropriar-se do sensor com as coordenadas desse mundo, interessar o conselho coordenador do instituto, e criar um mise-en-scène que facultasse ao herói identificar Malagate, entre o grupo de suspeitos.

No processo, que inclui vários movimentos e truques da ficção de detetive hard-boiled, Gersen coopta uma das várias mulheres que cruzam o seu caminho na série, a bela, vivaz e inocente Pallis Atrode, a quem Vance reserva um destino de abuso nas mãos de um perverso associado de Malagate. O herói Kirth Gersen não tem a personalidade mais vibrante nem a caracterização mais aprofundada, mas as mulheres de Vance na série possuem invariavelmente um encanto misterioso, já que também não são objeto de uma grande dedicação do autor. Já o planeta edênico tem uma ecologia em que espécies diferentes se “metamorfoseiam” em outras, antecipando algo do planeta Lusitânia no meu favorito Orador dos Mortos (1986), de Orson Scott Card. Enfim, como chefões do crime, os príncipes-demônios ou “reis das estrelas” são seres guiados não apenas pela emulação não apenas da forma humana, mas das suas realizações, e a oportunidade de direcionar uma nova raça deve ser irresistível a Malagate. Nesse detalhe, os príncipes-demônios parecem ser uma representação do arrivismo que impulsiona tantos criminosos — e políticos, como vemos no atual governo de arrivistas que está no poder no Brasil. A mistura de ficção de crime, ficção científica e evocação mítica de Vance neste primeiro volume soa inquietante, traz cores vivas e estimula o pensamento.

 

Drive (Drive), de James Sallis. São Paulo: Editora LeYa, 2012 [2005], 160 páginas. Tradução de Amanda Orlando. Brochura. Com quantos livros se faz um subgênero de ficção de crime? No caso em questão, talvez apenas três: The Getaway Man, de Andrew Vachss, que eu li em 2008; este Drive, de James Sallis; e O Motorista (The Wheelman), de Duane Swierczynski, que está na fila. O trio já rendeu um artigo de Eric Beetner, e compõe o subgênero “piloto de fuga”. Apenas o livro de Vachss não foi traduzido no Brasil. James Sallis escreve fantasia contemporânea e frequenta as páginas da The Magazine of Fantasy & Science Fiction. Este seu Drive virou um filme muito bom, estrelado por Ryan Gosling (aí na capa) e Carey Mulligan, dirigido por Nicolas Winding Refn.

O livro é um romance curto de texto minimalista e capítulos breves. O protagonista é chamado apenas de “Piloto”. É um especialista em livrar assaltantes armados da perseguição da polícia. Sua história abre com um momento crucial, também visto no filme, em que ele é emboscado, junto com a cúmplice Blanche, em um motel. A narrativa, porém, logo mergulha em um longo flashback que conta, capítulo a capítulo, as suas origens e como ele chegou até ali, usado pelo pai em arrombamentos ainda quando criança, como fugiu de casa e foi para Los Angeles e se tornou piloto de façanhas em filmes. A recuperação das trajetória do protagonista se reencontra com aquela cena central no capítulo 9, mas a estratégia dos flashbacks retorna imediatamente após, agora centrada em como ele entrou no mundo do crime.

Um toque de Sallis que não está no filme é o relacionamento do Piloto com Manny, um escritor de roteiros que fornece alguns comentários sobre o mundo literário e suas desilusões. (Manny também é responsável pela ironia final.) Fora dos flashbacks, a situação central é do Piloto, baleado, fazendo uso dos serviços de um médico de bandido, especialista em remover projéteis e costurar buracos de bala. E então como o herói se recupera da emboscada, sai da cidade, se reorganiza e dá a volta por cima contra os operadores locais da máfia italiana, usando suas habilidades específicas atrás do volante — no que se assemelha um pouco com o romance de Vachss. Também na caracterização do Piloto, que, como o herói de Vachss, tem algum déficit de inteligência ou de empatia, possível neurodivergência que sugere ser por isso que ele é um savant na mecânica e na pilotagem. O texto minimalista e emocionalmente apartado reforça essa impressão, ao mesmo tempo em que insere o livro dentro da ficção de crime pós-modernista.

 

Arte de capa de Raul Rangel.

A Máquina de Matar (The Killing Machine), de Jack Vance. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1980 [1964], 192 páginas. Tradução de Luís Corção. Arte de capa de Raul Rangel. Brochura. O segundo livro da série Saga dos Príncipes Demônios vê o herói Kirth Gersen à caça de Kokkor Hekkun, o príncipe-demônio conhecido como “Máquina de Matar”, cuja trilha leva a um mundo de fantasia científica, Thamber, um planeta oculto das autoridades do Oikumene. A única pista de Thamber é uma cantiga folclórica. Raul Rangel retorna como capista em arte de cores aguadas e uma representação da máquina de matar que parece um esboço inacabado. Ilustradores estrangeiros também preferiram representar a estranha centopeia blindada, encomendada por Hekkun a uma empresa de engenharia — mimetizando uma criatura do tal planeta —, e não os personagens.

Gersen descobre que Hekkun busca levantar uma grana para resgatar uma mulher, Alusz Iphigenia, que se refugiou na matriz de um esquema quase industrial de sequestros e cobrança de resgate, colocando-se voluntariamente em cativeiro sob um resgate bilionário, para proteger-se do vilão. O herói então consegue o patrocínio de uma autoridade do instituto cujos filhos foram sequestrados, e infiltra o cativeiro para ter contato com ela, dona da única pista do paradeiro de Hekkun. Como Gersen obtém a soma absurda para resgatá-la é muito anacrônico para o leitor do século 21: ele forja dinheiro usando uma oficina de arte e laborterapia para os cativos… Chegar a Hekkun depende derradeiramente não apenas da ajuda de Alusz Iphigenia, mas do herói assumindo o controle do projeto da tal máquina assassina encomendada pelo príncipe-demônio.

Alusz Iphigenia é outra das mulheres estranhamente atraentes de Vance, mas quando ela e Gersen chegam a Thamber ela perde algo do interesse, conforme o enredo envereda para situações de fantasia heroica, com a cooptação de grupos tribais pela dupla e o conflito entre esses grupos até que a dupla chegue ao castelo de Hekkun — que nesse mundo cunhou para si uma persona heroica, como se o planeta fosse o seu parque temático privado. Novamente, o príncipe-demônio busca para si mais do que uma distinção como criminoso. E novamente, o herói precisa aparecer com um truque para tirá-lo do seu disfarce humano, aqui, em uma revelação particularmente tétrica. Para além de grotesco, Hekkun assume uma face trágica que nos parece singularmente romântica (talvez mesmo aristocrática) e humana:

“— Ele era um homem em que a imaginação era um dom e uma maldição. Uma única vida não lhe bastava. Ele sentia a necessidade de beber em todas as fontes, de conhecer todas as experiências e viver em todos os extremos. Em Thamber ele encontrou um mundo bem a seu gosto e temperamento. Nas suas diferentes entidades ele criava suas próprias epopéias.” —Jack Vance. A Máquina de Matar.

 

Arte de capa de Hugo Vera.

Space Opera: Jornadas Inimagináveis em uma Galáxia Não Muito Distante, de Hugo Vera & Larissa Caruso, eds. São Paulo: Editora Draco, 1.ª edição, 2012, 380 páginas. Introdução de Gerson Lodi-Ribeiro. Arte de capa de Hugo Vera. Brochura. Romantismo epopeico, épico, exótico e sempre maior que a vida é a província da space opera. Minha noveleta das Lições do Matador, “A Alma de um Mundo”, apareceu nesta antologia de Vera & Caruso, a segunda da sua vitoriosa série de três, as primeiras antologias nacionais dedicadas à space opera. A lista de participantes é grande: Vera e Caruso, Octavio Aragão, Fábio Fernandes, Marcelo Augusto Galvão, Lidia Zuin, Tibor Moricz e Carlos Orsi. Todas as histórias são relativamente longas e sempre movimentadas, e a capa de Hugo Vera é provavelmente a melhor que ele fez para a sua série de antologias originais.

“Obliterati”, de Fernandes, começa in media res, em uma alternância de situações aceleradas, amparadas pela narrativa no tempo presente e em primeira pessoa, mais tarde sucedidas por reflexões descritivas do contexto ficcional, e toques de perda pessoal e de grandes conceitos científicos que apontam para a new space opera. “Tudo por Causa dela”, de Caruso, também é muito movimentado e também inclui um relacionamento passional em seu núcleo (olha o título!), mas com um twist envolvendo um implante cerebral. “Jowjow, Jungermaid e a Deusa de Luz”, de Tibor Moricz, talvez inadvertidamente nos lembra que a expressão “space opera” surgiu para designar uma “faroeste no espaço” — o componente de western (também presente no romance de Moricz, O Peregrino, de 2011) é bastante evidente na aventura de planetary romance do caça-prêmio Jowjow e seu cavalo-robô, acompanhados de uma heroína local na busca por uma importante joia mitológica, a Deusa da Luz. “Rainha das Estrelas — Dias de Sangue na Área Vermelha”, de Octavio Aragão, imagina, em narrativa com muitos movimentos, um império galáctico em futuro distante, repleto de intrigas palacianas e crueldades absolutistas que sugerem a influência de Duna (1965), de Frank Herbert. “Viva Muito, Morra Jovem”, de Lidia Zuin, é relativamente curto, se comparado com a maioria das demais histórias da antologia, e nele a autora mais conhecida por seus contos cyberpunks empresta a sua pena para substanciar a série criada por Hugo Vera, representada no livro pela novela “As Filhas de Cassiopeia — A Ofensiva Draconiana”, outra space opera exóticaA história de Zuin é circunscrita a um único lugar e envolve uma devoradora de homens, parte de uma espécie assexuada mas que se apresenta como fêmea e cujos feromônios ela usa para atrair suas vítimas. De Marcelo Augusto Galvão, “Inferno de Dantes” é uma ágil space opera militar sobre fuzileiros espaciais em um sítio xenoarqueológico no qual procuram um artefato supertecnológico, e lutam contra monstros cheios de tentáculos e um traidor entre eles. Galvão revela familiaridade com o subgênero, com um estilo consistente, ideias de FC formando uma boa textura e alguma ironia e tuckerismos (menções a colegas do mundo da FC brasuca). A já mencionada novela de Hugo Vera rivaliza com a de Aragão como narrativa mais longa do livro, em um universo de space opera exótica que sugere a influência de Duna e de séries de TV como Babylon 5, e de videogames como Mass Effect. Quase um romance, implora expansão para esse formato, para colocar mais substância em suas situações de guerra galáctica e piratas espaciais, agentes secretos e guerreiras determinadas. Mais curto, “No Vácuo Você Pode Ouvir o Espaço Gritar”, de Carlos Orsi, tem ideias científicas mais ricas e também explora o tema de artefatos deixados à deriva por supercivilizações anteriores, além de descreve hábitos culturais do futuro distante, e uma trepidante colaboração entre humanos e uma outra potência espacial, na investigação de um desses objetos. É um dos textos brasileiros que mais se aproxima da new space opera, em tom e em tema, e recebeu o Prêmio Argos, do Clube de Leitores de Ficção Científica, em 2013.

 

Arte de capa de Bruce Jensen.

Divergência: Livro Dois de O Universo dos Construtores (Divergence: Book Two of The Heritage Universe), de Charles Sheffield. Rio de Janeiro: Editora Record, 1994 [1991], 286 páginas. Tradução de Ronaldo Sérgio de Biasi. Arte de capa de Bruce Jensen. Brochura. A bela arte de capa de Jensen revela novos artefatos xenoarqueológicos abandonados pelos Construtores na galáxia humana, e caçados pela especialista Darya Lang, uma erudita de tais objetos, e seu companheiro mais rústico, Hans Rebka. O romance abre introduzindo um novo e excêntrico personagem, C. Indigo Tally, um androide com um supercomputador no lugar de cérebro, e que é ativado e colocado em movimento com a missão de investigar o ocorrido uma semana antes, no planeta binário que foi palco das situações de Maré de Verão (1990), o primeiro da série. Tally está a par com outros personagens talvez britanicamente excêntricos, criados por Sheffield para esta série. Onde vai, ele enche a paciência das pessoas e, depois de cortado, insiste: “Posso falar?” A investigação do propósito dos Construtores leva os vários curiosos até as imediações do gigante gasoso Gargântua (presente aí na colorida capa de Bruce Jensen), onde a equipe de heróis se depara com objetos que se pensava serem asteroides, mas que de fato são novas construções xenoarqueológicas.

A praia de Sheffield (desencarnado em 2002 de um tumor cerebral) era a ficção científica hard desenvolvida quase sempre com uma qualidade de estilo áspero mas plena de ideias de superciência e, às vezes, um toque pulp explícito de filme B. Em Divergência, esse toque está no cenário de labirinto de testes de inteligência armado por um representante cibernético dos Construtores, para avaliar as qualidades das civilizações que acabam chegando até ele, numa variação complexa do leitmotif da arena, na ficção científica. O teste para os heróis humanos e seus parceiros alienígenas inclui uma grupo de belicosos alienígenas com a forma de polvos ou medusas gigantes e que produzem, aos montes, bebês carnívoros insaciáveis. Todas essas qualidades da composição do romance exigem, digamos, um gosto adquirido por parte de um leitor que deve se esbaldar com aquilo que a FC realiza e que poucos ou nenhum outro gênero teria o interesse em reproduzir. Composta de cinco livros (Maré de Verão, Divergência, Transcendence, Convergence e Ressurgence), todos apresentado o mesmo grupo de exploradores idiossincráticos, no Brasil a série parou por aí, talvez por questão de gosto do público leitor, mais provavelmente vítima da crise econômica (hiperinflação, início do Plano Real). A própria Isaac Asimov Magazine, editada por de Biasi, havia terminado em 1993.

 

Quadrinhos

Arte de capa de J. Scott Campbell.

Marvel Saga: Espetacular Homem-Aranha Volume 1, de J. Michael Straczynski & John Romita, Jr. Barueri-SP: Panini Comics, 2020, 210 páginas. Apresentação de Fernando Lopes. Tradução de Mário Luiz C. Barroso. Arte de capa de J. Scott Campbell. Capa dura. Ainda estou perseguindo a escrita de quadrinhos de J. Michael Straczynski, o renomado roteirista de televisão e cinema, conhecido criador da série de space opera Babylon 5. A Panini resolveu facilitar minha vida colocando nas bancas uma coleção dedicada apenas aos roteiros dele, para as aventuras do meu super-herói favorito, o Homem-Aranha. Esse mesmo volume já havia saído antes como parte da coleção Marvel Graphic Novels, da Salvat do Brasil (nome oficial: “Ultimate Marvel Graphic Novel Collection”), edição 21, O Espetacular Homem-Aranha: De volta ao Lar (2013).

Na apresentação, o editor Fernando Lopes fala de como a vida do Aranha foi bagunçada nas páginas dos gibis de 1990, e de como o chefão da Marvel, Joe Quesada, chamou o editor Alex Alonso (ex-DC Comics) para pôr ordem nessa zona aracnídea. Straczynski vinha de uma experiência bem-sucedida com a sua criação Rising Stars para a Top Cow Publications. A mão sempre discreta e humana do escritor mostra um Peter Parker quebrando o galho com professor de ensino médio na mesma escola em que entrou em cena como adolescente supernerd, em 1962. Está envolvido com a comunidade, interessado no futuro dos seus alunos de baixa renda — o que eu acho muito importante nos super-heróis novaiorquinos, como o Demolidor e Luke Cage. Também está separado de Mary Jane Watson, que deu um tempo no casamento para perseguir sua carreira em Hollywood.

Como Aranha, ele é abordado por um tal de Ezekiel Sims, megaempresário que tem habilidades semelhantes às suas. O herói é alertado de que vem aí um caçador de superpoderes, e que é melhor fugir. Ezekiel também dá à origem do Aranha (e dos seus semelhantes, como Ezekil) um fundo místico animista que diverge da mitologia original do personagem, embora não proponha uma revisão total. Além disso, o confronto com o sombrio supervilão Morlun leva a uma das sovas mais duras já sofridas pelo herói — e, com isso, Tia May descobrindo o que o sobrinho apronta nas horas vagas: outra ousadia de Straczynski. Eu sempre demoro a entrar no espírito da arte estilizada de John Romita Jr., mas de qualquer modo, é a escrita de Straczynski o ponto forte do livro, seu modo de trabalhar as características conhecidas do personagem, e a narrativa propriamente. O máximo, para mim, é como — tendo ao fundo e com oposição conceitual o misticismo de Ezekiel e de Morlun — a ciência é que derradeiramente salva a vida do herói. (Especialmente depois de como o lado nerd dele foi tão diminuído nos filmes.)

 

Arte de capa de Lorenzo de Felici.

Oblivion Song Volume Dois: Entre Dois Mundos (Oblivion Song Volume Two), de Robert Kirkman (texto) & Lorenzo de Felici (arte). Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2020 [2019], 136 páginas. Tradução de Fernando Scheibe. Arte de capa de Lorenzo de Felici. Brochura. O primeiro desta série, discuti aqui em abril de 2019. Eu já dizia que a criação de Kirkman parecia ajustada para despertar o interesse de produtores de séries audiovisuais que ainda estivessem à procura do novo Lost (2004-2010), mesmo depois de The 4400 (2004-2007), Les Revenants (2012-2015), The Leftovers (2014-2017) e, mais recentemente, Manifest (2018-2021) e a norueguesa Beforeigners (2019- ). O determinante é o tema de FC e fantasia que poderíamos chamar de “transferência” (chamado exatamente assim, na história) — de uma dimensão a outra, de um mundo a outro, de uma ecologia a outra; ou de lugares estranhos para o nosso mundo. No pacote, estão a figura do cientista atormentado pelo experimento que levou à tragédia, o tema muito americano dos irmãos estranhados, e também paranoia governamental e monstros lovecraftianos. Tudo isso, amparado pela “estética do feio” presente no desenho de Lorenzo de Felici.

O ponto focal deste episódio é o retorno de Ed, irmão do cientista atormentado, Nathan Cole. Antes de ser transferido para o mundo paralelo, ele era um perdidão viciado em drogas — mas lá ele é o líder de uma comunidade que se firma em uma nova fronteira. Tem-se aí outro tema muito americano: o espírito pioneiro, a expansão territorial contra as uma natureza e a noção adjacente de que os obstáculos e a luta forjam o caráter e determinam a essência de um povo. Obviamente, seja neste ou no outro mundo, há um marcante conflito de interesses entre os irmãos. Um ponto forte deste volume são as cores de Annalisa Leoni.

Roberto Causo

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Leituras de Junho de 2020

Neste mês, mais um mergulho na space opera, na literatura de ficção científica e nos quadrinhos, mas com espaço para uma FC ufológica brasileira muito especial.

 

Arte de capa de Teo Adorno.

Brasa 2000 e Mais Ficção Científica, de Roberto de Sousa Causo. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, junho de 2020, 204 páginas. Texto de orelha de Marcello Simão Branco. Arte de capa de Teo Adorno. Brochura. Graças ao empenho de Luiz Bras, coordenador da Coleção Futuro Infinito, e de Eduardo Lacerda, editor da Editora Patuá de São Paulo, foram distribuídos os primeiros exemplares daquilo que é estritamente o meu segundo livro de contos, àqueles que fizeram a compra antecipada na loja da editora. Faço esse agradecimento porque a publicação do livro acabou acontecendo em meio à pandemia da covid-19, que trouxe os problemas e distrações que todos podemos imaginar. Digo que é meu segundo livro de contos porque o primeiro foi A Dança das Sombras (1999), publicado em Portugal na saudosa coleção Caminho Ficção Científica, apresentando onze histórias e prefácio do escritor português de FC e fantástico António de Macedo. Meus outros livros de contos — A Sombra dos Homens (2004) e Shiroma, Matadora Ciborgue (2015) — reúnem histórias interligadas e podem ser lidos como romances fix-up, embora eu não faça questão.

O novo livro traz onze histórias e é dividido em quatro seções: “Aqui, Agora e Futuro Próximo”, “Tupinipunk”, “Steampunk” e “Space Opera”. A primeira tem 5 histórias, a segunda 3, a terceira 2 e a última, apenas uma — a noveleta das Lições do Matador, “Tengu e os Assassinos”. A seção de tupinipunk contém toda a minha produção de “cyberpunk tupiniquim”: “Vale-Tudo”, “Para Viver na Barriga do Monstro” e “O Cangaceiro Jedi”. Na primeira seção estão algumas histórias bastante republicadas: “A Mulher Mais Bela do Mundo” e “Brasa 2000”, este segundo uma história de guerra futura às vezes também associada ao cyberpunk, que já apareceu em duas antologias internacionais representativas da ficção científica latino-americana — daí também estar no título da minha coletânea.

 

Dune, de Frank Herbert. Norwalk, Connecticut: The Easton Press, The Masterpieces of Science Fiction, 1987 [1964], 520 páginas. Ilustrações internas de John Schoenherr. Encadernação especial. Existem duas edições recentes deste livro pela Editora Aleph, a segunda em capa dura com arte de Marc Simonetti e ambas com elogiada tradução de Maria do Carmo Zanini. Reli o romance porque desejava ter contato com esta obra-prima da ficção científica no original em inglês. A edição da Easton também traz parte das fabulosas ilustrações, coloridas e em preto e branco, feitas por John Schoenherr (1935-2010) para a The Illustrated Dune (1978), com um caráter ao mesmo tempo monumental, exótico e sombrio. Schoenherr ainda deve ser o artista mais associado a esse romance de Herbert.

Primeiro serializado nas páginas da revista Analog em 1964, Duna é uma mistura singular de space opera e planetary romance. É ambientado em um futuro distante em que a humanidade se espalhou pela galáxia, e, depois de uma revolta das máquinas, adquiriu cores medievais. A estrutura de poder imperial é dividida entre o imperador e os seus duques, que controlam planetas e suas populações e economias. O elemento de coesão entre essas forças é o voo mais rápido que a luz controlado por uma liga de pilotos, que se apoia no consumo da “especiaria”. Esta é uma droga que também possui o poder de atrasar o envelhecimento, minerada diretamente das areias do planeta desértico Arrakis. Quem controlar o fluxo da especiaria, controla efetivamente a base de poder do império galáctico. Uma manobra arquitetada pelo Imperador e pelo Barão Harkonnen tenta enredar o Duque Leto Atreides, famoso por ser um homem justo e popular entre as outras Casas. A aventura da Casa Atreides em Arrakis é marcada pelo choque cultural e pela descrição do exótico ambiente do planeta desértico. O herói de fato é o filho bastardo do duque, Paul Atreides, que, após uma série de peripécias de capa e espada, traições e fugas, se vê sozinho com a mãe Jessica, fundo nos sertões desse mundo. Ali, travam contato com os fremen, os duros e independentes nativos do lugar.

Paul é o ápice de um processo de seleção artificial secreto, procedente de uma ordem místico-científico-religiosa aderida à aristocracia imperial: a ordem das Bene Gesserit. O objetivo é produzir um ser capaz de conter em sua mente uma consciência racial de passado, presente e futuro — ou seja, alguém capaz de prever o futuro e conter um largo conhecimento e experiência acumulados. Por uma espécie de acidente sentimental de Jessica, Paul se torna essa criatura, o Kwisatz Haderach. Está fora das manipulações das Bene Gesserit, embora se apoie em uma mitologia semeada entre os fremen gerações antes. Ele mesmo é, portanto, um grande manipulador, conduzindo as coisas de modo a triunfar sobre forças que não possuem todas as informações e perspectivas que ele controla. Em tudo, há a grande sombra de um determinismo racial. Ao reler o romance, também me pareceu sentir nele a sombra da série Fundação (1942-1950), já que o banimento de computadores e robôs, instaurado depois da Guerra das Máquinas, funciona como uma autolimitação estruturante, como o esquecimento da energia atômica na série de Isaac Asimov.

Para desenvolver a narrativa, Herbert apoiou-se brilhantemente em análise (um personagem imaginando o que outros, aliados e antagonistas, farão ou pensarão) e cálculo (o personagem imaginando o que ele mesmo deve ou precisa fazer), o seu narrador onisciente saltando de personagem e personagem em um efeito que amplia a sensação de complexidade e profundidade do romance. Epígrafes ficcionais de textos de história do império galáctico ajudam a passar a impressão de “universo expandido”, vasto entroncamento de fatores sincréticos arraigados — algo que o glossário no final do volume também faz. Em tudo, a textura e a fluência, o suspense e a caracterização dos personagens são conduzido com enorme desenvoltura e habilidade, produzindo uma textura marcante para a space opera. Ao invés de uma introdução por um especialista, como costumam ser as edições da série The Masterpieces of Science Fiction, esta traz uma série de depoimentos de grandes nomes da FC, por ocasião da morte de Herbert em 1986. São eles: Poul Anderson, Isaac Asimov, Ben Bova, Ray Bradbury, Charles N. Brown (o fundador da revista Locus), F. M. Busby, Harlan Ellison, Philip José Farmer, James Gunn, Joe Haldeman, David G. Hartwell (editor e pesquisador), Peter Israel, Willis E. McNelly, Frederik Pohl e Jack Vance.

 

Arte de capa de Chris McGrath.

The Battle for Commitment Planet: Helfort’s War: Book IV, de Graham Sharp Paul. Nova York: Del Rey, 2010, 374 páginas. Arte de capa de Chris McGrath. Paperback. Admito sem qualquer problema ter comprado este romance de space opera militar pela capa, com arte do ilustrador hiper-realista Chris McGrath. Começando a leitura, achei o texto meio travado e enrijecido, e o pus de lado. É curioso que, retomando agora, a impressão negativa inicial não foi tão forte. Talvez ela tenha surgido mais do fato de este ser o quarto livro de uma série, sem muita informação sobre o que veio antes.

O herói é o Tenente Michael Helfort, protagonista da série Helfort’s War. O livro o encontra em uma tremenda sinuca: sua namorada, a também militar Anna Cheung, foi capturada pela tirânica ditadura teocrática (muito em voga na space opera militar depois dos ataques de 11 de Setembro de 2001) dos Mundos Hammer. Se Helfort não se entregar, ela será estuprada por um bando de soldados e assassinada. Daí se vê que, nos volumes anteriores, o herói deve ter incomodado muito o inimigo. A sua solução é incomum: ele convence seus companheiros a se amotinarem e a levar um par de veículos de assalto de tecnologia superior ao planeta Commitment, sede dos Mundos Hammer. O plano é entregar os veículos aos guerrilheiros que tentam derrubar o governo, e alistar as suas tropas na mesma luta. O autor é convincente na descrição do planejamento e execução do plano. É claro, as verdadeiras complicações estão nas ações em Commitment, e quando o livro as aborda, ele passa a apresentar pouco além de ação tática contínua, dentro de uma guerrilha high tech — o que não deixa de cativar e estimular, certamente.

Graham Sharp Paul nasceu no Sri Lanka e serviu na Marinha Real Britânica como oficial e mergulhador de combate, chegando a tenente comandante (o equivalente a capitão de fragata ou tenente coronel), transferindo-se depois para a marinha da Austrália. Estudou em Cambridge. Certamente, sabe do que fala, em termos militares e tecnológicos, e sua escolha de personagens expressa algo do ambiente multicultural em que cresceu.

 

Arte de capa de Marc Simonetti.

Messias de Duna (Dune Messiah), de Frank Herbert. São Paulo: Editora Aleph, 2017 [1969], 270 páginas. Tradução de Maria do Carmo Zanini. Arte de capa de Marc Simonetti. Capa dura. A primeira sequência de Duna se afasta mais da ficção científica da Golden Age e mergulha na New Wave com uma narrativa de maior imersão psicológica e análise e reflexão sobre os processos formadores de mitologias — característica central para a New Wave americana —, já que o protagonista Paul Atreides é agora uma figura de poder tanto político quanto religioso. Este é o outro livro da série Duna que eu havia lido antes, em tradução de Jorge Luiz Calife (edição da Nova Fronteira).

No romance, Paul é o imperador da galáxia, posição conquistada no desfecho dramático de Duna. Doze anos se passaram entre um livro e o outro, e uma jihad espacial se deu, com Paul assumindo o papel de um tirano absoluto, que se compara favoravelmente a Adolf Hitler. Tudo é válido, diante da sua visão profética, darwinista social, de que suas atrocidades combatem a estagnação da humanidade. Essa visão do destino da humanidade, o “Caminho Dourado”, é a versão que Herbert dá do determinismo histórico embutido no conceito da psico-história (ainda buscando a semelhança com Fundação, de Asimov), mas expresso como determinismo biológico ou racial. Paul, o imperador, admite o esmagamento da oposição e a destruição de vários planetas — um exagero típico de space opera que meio que desfaz o discurso ecológico tão presente no primeiro romance —, embora com um traço de amargura e auto-ironia:

“— Muito bem, Stil. — Paul olhou para os rolos nas mãos de Korba, que os segurava como se quisesse deixá-los cair e sair correndo. — Números: fazendo uma estimativa conservadora, matei sessenta e um bilhões, esterilizei noventa planetas, desmoralizei completamente outros quinhentos. Eliminei os seguidores de quarenta religiões que existiam havia…” —Frank Herbert. Messias de Duna.

Muito do romance diz respeito a um presente recebido por ele da casta de engenharia genética tleilaxu: uma espécie de clone (um ghola, na lingo da série Duna) do seu amigo, Duncan Idaho, um dos homens mais leais ao seu pai, o Duque Leto Atreides, e um dos seus maiores guerreiros. Agora, retorna como um sofista zen, e as reflexões desse personagem são um dos pontos altos do romance.

O Duncan Idaho que é um ghola é um sujeito que sofre um grave isolamento moral e que passeia por uma estranha paisagem, uma interzona entre o que existia antes e que era sólido e conhecido (o planeta desértico Arrakis e a estoica sociedade fremen) e o que poderá existir no futuro (um Arrakis transformado em jardim e os fremen transformados em corte imperial). Essa interzona talvez funcione como expressão física de uma paisagem mental estranha, como na New Wave britânica. Mas é a premissa de que uma versão atualizada do tarô estaria criando um ruído que interfere com a capacidade do imperador de prever o futuro que é a ideia mais New Wave do livro.

O novo Idaho pode ou não ser um assassino colocado ao lado de Paul pelos seus criadores. Mas o que não faltam são opositores velados ao imperador, entre eles os membros da Guilda dos Pilotos e as Bene Gesserit, talvez até mesmo sua irmã, a moralmente lesada Alia. Um assassino certamente implantado em Arrakis é Scytale, um dançarino facial capaz de alterar a própria fisionomia — outra criação dos tleilaxu. As ameaças são muitas, mas o que parece mais ominoso é a degradação do herói como messias transformado em tirano. O terror é a norma, após qualquer revolução. Uma com bases religiosas parece ser a mais cruel, na concepção de Herbert. No contexto do império interestelar, o poder galáctico leva a uma corrupção de proporções galácticas. A edição da Aleph tem deslumbrante ilustração de capa de Marc Simonetti e tradução fluida e segura de Maria do Carmo Zanini.

 

Arte de capa de Fernando Pacheco.

A Luz Paralela, de Branca Maria de Paula. Belo Horizonte: Caravana Grupo Editorial, 2020 [2017], 146 páginas. Introdução de João Batista Melo. Texto de orelha de Cristina Agostinho. Arte de capa de Fernando Pacheco. Brochura. A ficção científica de tema ufológico atesta o quanto a cultura brasileira é distante da ciência formal. Nem por isso deve ser encarada como algo menor ou de possibilidades diminuídas. Ela representa bem essa realidade, o que por si só um papel válido da literatura — e com um corpus de alto nível que inclui o “Eles Herdarão a Terra” (1960), conto de Dinah Silveira de Queiroz; “O Começo do Fim” (1960), conto de André Carneiro; o inquietante “Um Moço Muito Branco” (1962), conto de João Guimarães Rosa; e “Dea Mayor Sperientiae” (1965), de Nilson D. Martello, conto curto sobre alienígenas no passado da Terra. Todos estes só na Primeira Onda da FC Brasileira (1957 a 1972). Em especial, lembramos do romance de estreia de Rubens Teixeira Scavone, O Homem que Viu o Disco Voador (1958), e várias narrativas desse autor tão literário, como “Número Transcendental” (1965), e a sua obra-prima, a noveleta O 31.º Peregrino (1993). Há ainda o delicado “O Visitante” (1977), de Marien Calixte, com sua ousadia de tratar com ternura de um tema tabu; o áspero e claustrofóbico “Engaiolado” (1998), de Cid Fernandez; e uma série de contos e noveletas de Renato A. Azevedo, iniciada em 2008 com De Roswell a Varginha.

Publicada primeiro como e-book em 2017, a novela A Luz Paralela, da escritora e fotógrafa mineira Branca Maria de Paula, vem se juntar a essa ilustre companhia. Acompanha a também fotógrafa Clarice de Assis Magon, personagem que vive em Belo Horizonte mas que vai com o companheiro Matheus, um engenheiro, passar as férias na reserva ecológica da Serra do Cipó. Esse é o locus de aparições, avistamentos, mutilação de animais e abduções que vão se infiltrando na vida de Clarice. A autora, porém, foge de um trilho único e rijo, ao longo da narrativa em tempo presente e desenvolvida em capítulos curtos. Nos capítulos iniciais, por exemplo, empresta recursos da crônica, com um narrador onisciente mencionando fatos fantásticos, distantes do nosso conhecimento e ocorridos universo afora (como as “gigantescas tempestades de água e gelo que assolaram Marte no último mês de maio”), apontando-os para o caminho da sua protagonista. Logo adiante, os capítulos regulares são pontuados por outros, em primeira pessoa e em itálico, narrando episódios do passado, do presente e do futuro, possivelmente de versões alternativas ou paralelas (hipótese reforçada pelo título)…

Ao mesmo tempo, a ufologia se infiltra na vida de Clarice também pelo rádio, pela TV, pelas conversas dos locais da Serra do Cipó (especialmente o veterinário Thiago, por quem ela sente uma estranha atração). Em BH, ela chega a frequentar a sessão pública de um místico “contatado”, possível charlatão. São os nuances da cultura ufológica, que expressa a tendência de muitos autores que buscaram a FC ufológica (Scavone, Azevedo, e mesmo o americano Martin Caidin, no seu romance Encounter Three, de1969). Mesmo aí, porém, Branca Maria de Paula evita soar didática ou indutiva — as situações e imagens da sua admirável novela são embaçadas, desfocadas, distorcidas e recompostas na sua composição, de modo a subordinar tudo à subjetividade de Clarice, personagem de rara vivacidade e encanto. O efeito derradeiro é o de um turbilhão psicológico de uma condição feminina encurralada, sitiada pela hipótese da abdução e da inseminação artificial pelos ufonautas, e pelo distanciamento do companheiro, medo da gravidez, temor do próprio desejo. Com a influência de Ray Bradbury registrada por Cristina Agostinho na orelha e por João Batista Melo na introdução, Branca Maria de Paula vai além dessa importante influência para a FC brasileira desde a década de 1960. Ela posiciona A Luz Paralela no ponto focal da FC ufológica nacional. Nela estão a feminilidade aterrorizada de O 31.° Peregrino, de Scavone; a angústia claustrofóbica de “Encurralado”, de Cid Fernandez; a ambientação de colônia de férias rural de Brasil: Aventura Interior (2016), de Eliana Machado — e em tudo, especialmente na força da sua protagonista, foi além. Uma das melhores novelas do período atual (as Terceira Onda da FC Brasileira), a par com a premiada A Telepatia São os Outros (2019), de Ana Rüsche.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Terry & Rachel Dodson.

Star Wars: Princesa Leia (Star Wars: Princess Leia), de Frank Waid (texto) e Terry & Rachel Dodson (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2017, 112 páginas. Arte de capa de Terry & Rachel Dodson. Brochura. Em mais esta investida nas lacunas existentes entre os filmes Uma Nova Esperança e O Império Contra-Ataca, recriando o universo expandido da franquia, Leia Organa é a principal personagem. A história começa com o fim da cerimônia da vitória no final do primeiro filme, com Leia tendo de lidar com sentimentos contraditórios que incluem o luto pela perda de sua família e do seu planeta, Alderaan. Ao invés de ficar em segurança com os rebeldes e curtir o luto, como recomendam os seus superiores, ela se evade para reunir seus compatriotas sobreviventes e encontrar um lar para eles. Vai acompanhada de RD-D2 e Evaan, uma piloto rebelde, alderaaniana loura e alta como uma top model.

Depois de escaparem de caças asa-X enviados para interceptá-las (com Luke Skywalker e Wedge Antilles entre os pilotos), elas conseguem uma nave maior com um contrabandista, e rumam para Sullust, onde os alderaanianos tiveram um povoamento. Leia tem a cabeça colocada a prêmio pelo império, mas algumas das dificuldades maiores da heroína são lidar com uma aristocrática líder local e com a traição inadvertida de uma jovem cuja irmã mais velha está nas fileiras imperiais. Nos episódios finais (o livro reúne o conteúdo da série Princesa Leia, números 1 ao 5), a tentativa de engrossar as fileiras dos refugiados com os colonos do planeta Espirion esbarra em preconceito racial, já que eles haviam se misturado com os locais.

Há muita ação em que Leia e Evaan têm de resolver as coisas na porrada, mas Leia ainda é uma diplomata habilidosa que fornece um contraponto moral e ético ao naturalismo que fundamenta a franquia, e que muitas vezes fica só no plano do cinismo e da violência naturalizadas — como nas aventuras de Boba Fett, por exemplo. O roteiro de Waid, sem contar com os coprotagonistas Luke, Han, C3P0 e Chewie, é habilidoso ao empregar bem os vários personagens secundários que nos são apresentados, dando a impressão de que ninguém está ali apenas como engrenagem fria para o funcionamento do enredo. Já a arte do casal Dodson tem personalidade própria, charme, graça e elegância, mas às vezes parece juvenil e cômica, e o hardware divergente do look de Star Wars. Isso não acontece nas ilustrações de capa, por isso vale um olhar mais demorado sobre elas, reproduzidas antes de cada episódio ou capítulo.

 

Arte de capa de Terry & Rachel Dodson.

Star Wars: Prisão Rebelde, de Jason Aaron & Kieron Gillen (texto) e Leinil Francis Yu (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2018 [2016], 144 páginas. Arte de capa de Terry & Rachel Dodson. Brochura. Esta aventura começa com um de prólogo protagonizado por Eneb Rey, um espião rebelde metido no planeta Coruscant, a metrópole do império já regido por Palpatine. É desenhada por Angel Unzueta, artista hábil tanto com figura humana quanto com o hardware. Pena que, como costuma acontecer com frequência, a cor digital (de Paul Mounts) meio que matou a expressividade da arte.

A sequência principal tem Leia Organa se aliando à Dra. Aphra, uma das personagens mais destacadas desse re-take do universo expandido. Aphra é uma agente do império, forçada a colaborar, relutantemente, com os rebeldes. Usando a nave de Sana, outra mulher forte, contrabandista velha conhecida de Han Solo, elas vão até Mancha Solar, uma prisão espacial em que os rebeldes encerram criminosos de guerra. Lá, elas se deparam com um ressentido e meio insano Eneb Rey, em missão de extermínio. Enquanto as garotas enfrentam situações realmente cabeludas, Luke e Han vivem situações cômicas: Han perdeu uma grana da Aliança no jogo, e precisa aceitar uma carga de nerfs (daí a fala de Leia em O Império Contra-Ataca, chamando Han de “arrebanhador de nerfs”) para recuperar uma parte e salvar colonos da fome.

A estrela aqui é o artista filipino Leinil Francis Yu, desenhista de estilo próprio, traço fino e realista e que se dá muito bem com o hardware. Assim como outro mestre hábil no design, o também filipino Jerome Opeña, ele abafa algo daquela expressividade explosiva tão própria do passado da Marvel, em favor de uma estaticidade mais característica da ilustração. O livro fecha com uma história em que, em Tatooine, um ainda jovem Obi-Wan acompanha e protege um Luke ainda garotinho e sorridente, com arte hiper-realista de Mike Mayhew.

Roberto Causo

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Leituras de Maio de 2020

Maio foi um mês de menos leituras do que eu gostaria, mas com ficção científica de boa qualidade.

 

The Counselor, de Cormac McCarthy. Londres: Picador, 2013, 184 páginas. Hardcover. Descobri Cormac McCarthy nas páginas da revista Esquire na década de 1990 (um excerto do romance A Travessia) e desde então adquiri quase todos os seus livros, faltando ler, da sua primeira fase, o romance Sutree (1979), e da última, o romance Onde os Velhos Não Têm Vez (No Country for Old Man; 2005). Este The Counselor é um script para cinema, filmado por Ridley Scott e exibido em 2013. Certamente não o primeiro roteiro de audiovisual escrito por McCarthy. Antes dele eu li The Gardener Son (1996), que foi um telefilme exibido em 1977.

O roteiro acompanha um advogado (counselor) que, para bancar um alto estilo de vida com a mulher por quem parece nutrir um amor genuíno, se envolve com o tráfico internacional de drogas. A história começa com o idílio amoroso/erótico do sujeito com sua amada, momento bem pouco característico de McCarthy. Depois disso, porém, o enredo retoma o seu normal violento e degradante. Parte da ação é tomada por uma mulher, a vilã argentina Malkina, filha da geração que viveu a violenta ditadura militar, amante do traficante Reiner. É uma femme fatale hiper-sexualizada de um jeito bizarro e que anda por aí acompanhada de dois guepardos como pets — algo que eu veria logo mais em The Peripheral (2014), de William Gibson.

Aos poucos, monta-se a intriga em que Malkina prepara um grande golpe contra o cartel das drogas, jogando a culpa nas costas do advogado. Os passos do golpe são narrados com a secura característica do autor, nos momentos de notação teatral, já que, como script, os diálogos dominam o formato. A crueldade moral aplicada ao advogado que vendeu a alma ao dinheiro das drogas parece desproporcional, também algo característico de McCarthy. Crueldade que é ancorada na realidade possível do nosso mundo que não parece ter limites para a violência e o terror que infligimos uns aos outros. Mas com a aura metafísica de uma moralidade cristã punitiva que costuma elevar os escritos de McCarthy ao terreno do quase metafísico. A linha acrescentada na capa expressa a “moral” e a tônica do projeto, ao afirmar que “a ganância é muito valorizada… mas o medo não”. O terror e a culpa, então, é o que se abate sobre o personagem. Ao mesmo tempo, é o darwinismo social brutal e amoral — igualmente, marca da postura crítica o autor — que move Malkina contra os desavisados e contra as hipocrisias do mundo civilizado, neste texto que parece estar na mesma chave temática e genérica (o formato do thriller) de Onde os Velhos Não Têm Vez:

“MALKINA      […] O caçador tem uma pureza de coração que não existe em nenhum outro lugar. Acho que ele não é definido tanto pelo que ele veio a ser quanto por tudo o que escapou de ser. Você não faz distinção do entre o que ele é e o que ele faz. E o que ele faz é matar. Nós é claro somos outra questão. Eu suspeito que somos mal ajustados ao caminho que escolhemos. Mal ajustados e mal preparados. Gostaríamos de estender um véu sobre todo esse sangue e terror. É isso o que nos trouxe a este lugar. É a nossa fraqueza de coração que fecharia os nossos olhos a tudo, mas fazendo isso o transformamos no nosso destino. Talvez você não concorde. Não sei. Mas nada é mais cruel do que um covarde, e a matança que está para vir provavelmente será além da nossa imaginação. […]” —Cormac McCarthy. The Counselor.

 

Arte de capa de Eddie Jones.

Nova, de Samuel R. Delany. Nova York: Bantam Books, 7.ª edição, junho de 1975 [agosto de 1968], 216 páginas. Arte de capa de Eddie Jones. Paperback. O afro-americano Samuel R. Delany foi um dos nomes mais vinculados ao movimento New Wave, iniciado na Inglaterra com a revista New Worlds, sob a editoria de Michael Moorcock. Recentemente foi publicado no Brasil pela Morro Branco: o seu clássico Babel 17 (1966). A space opera foi praticada por ele de modo destacado, mas numa época em que certo exotismo brincalhão e eivado de misticismo era indicado como parte do subgênero — e que vemos, com outra tônica, em Duna (1965), de Frank Herbert.

A premissa é a formação de uma tripulação de aventureiros que deve partir para um local secreto no universo, onde a explosão de uma nova teve lugar. Lá, Lorq Von Ray, o capitão da nave, aspira encontrar um material raro e de importância singular para a viagem espacial: o metal superpesado “illirion”. É um McGuffin pouco aprofundado, mas com um toque de FC hard, já que elementos superpesados fora da tabela periódica podem existir em condições especiais (a revista Scientific American Brasil publicou um artigo a respeito, na edição de maio de 2018). No caso do romance, essas condições são as de temperatura e pressão de uma estrela que explode. Todos os candidatos a tripulantes são estranhos: o músico cigano Pontichos “Camundongo” Provechi; o aspirante a romancista (uma arte extinta no do ano 3172) Katin Crawford, que funciona como uma versão do Ishmael de Moby Dick; um casal que inclui uma leitora de tarô; e os gêmeos africanos Lynceos & Idas, um deles albino — o que aponta, simbolicamente, para um futuro com um outro quadro de política racial. O motivo do tarô também aparece com relevo em outras space operas, como o romance de Herbert Messias de Duna (1969), e a série de quadrinhos de Alexandro Jodorowsky, O Incal (1980-2014). A leitura do tarô antes da grande missão de Von Ray tem tons ominosos, e reforça a aura mitológica de vários momentos. Isso é algo muito próprio da New Wave americana, à qual Delany se vincula (ele também é uns dos inspiradores do cyberpunk).

O centro do livro é um grande flashback que retorna à infância de Von Ray, também ele afro-descendente e mestiço, membro de uma aristocracia comercial importante em determinado setor da galáxia humana. Quando era garoto, um incidente determinou que ele seria alvo do ódio mortal e meio insano do cruel e mimado Prince Red, herdeiro de uma outra família de aristocratas e detentor de um braço biônico que não pode ser impunemente mencionado. O ódio se transforma em implacável rivalidade comercial quando ambos se tornam adultos. O terceiro ato reserva o confronto entre eles, perante a nova e o terrível preço que a obtenção pode cobrar: uma luz que cega e enlouquece. A crítica às obsessões mercantilistas do capitalismo é difusa, e o desfecho é genuinamente impactante. Aquele flashback e outros, envolvendo o Camundongo e outros personagens, são um esforço não apenas de caracterização, mas de evitar um arco narrativo convencional. O estilo de Delany, que escreveu o livro quando tinha 25 anos, adota muitas interrupções de falas e reticências, porém possui certa cintilância que fica na memória como efeito estético vívido e adequado ao romance. A arte do inglês Eddie Jones na capa não tem nada a ver com o romance, mas as suas evocações surrealistas combinam bem o bastante.

 

Arte de capa de Bruce Jensen.

Maré de Verão (Summertide), de Charles Sheffield. Rio de Janeiro: Editora Record, 1993 [1990], 270 páginas. Tradução de Ronaldo Sérgio de Biasi. Arte de capa de Bruce Jensen. Brochura. O escritor inglês Charles Sheffield foi um dos autores favoritos do tradutor e editor Ronaldo Sérgio de Biasi, que, no início da década de 1990, editou a Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Científica (1990-1993). Além de publicar histórias de Sheffield na saudosa revista, de Biasi deve ter participado da seleção deste romance da série Heritage (“Universo dos Construtores”, no Brasil) e sua sequência imediata, Convergência.

Nesse universo ficcional, a Via Láctea do século 31 é marcada pela presença de artefatos hipertecnológicos de uma civilização desaparecida. A heroína Lang é uma especialista nesses artefatos, autora de um catálogo que integra o texto do romance sob a forma de excertos. Suas medições a levaram a concluir que um ponto específico da galáxia, envolvendo um desses artefatos, será palco de um evento extraordinário envolvendo a tecnologia dos tais Construtores. O artefato é considerado de pequena monta, e não atraiu a atenção das autoridades graúdas. Mas Lang não é a única a compreender isso, e para lá convergem um aventureiro humano e uma cientista alienígena, ambos assassinos em massa, e uma dupla de garotas suspeitas de genocídio — além de dois burocratas locais, e de dois alienígenas que funcionam como alívio cômico. O romance tem alguns elementos singulares, como a esqualidez da colônia local, em contraste com a hipertecnologia dos Construtores. O principal, porém, é a coleção de personagens caracterizados principalmente pela excentricidade de cada um, algo que me soou bem britânico.

O enredo envolve o grupo indo a um mundo vizinho à colônia, conectado a ele por um cabo gigantesco, acompanhado de um veículo que vai de um mundo a outro por esse cabo — obra dos Construtores. Lá, os heróis enfrentam uma grande catástrofe natural, traições e descobertas, até o ponto em que o evento antecipado de fato acontece. Sheffield é um escritor de estilo meio áspero; apesar disso manipula tudo isso com habilidade, gerando suspense e sense of wonder. A bonita aerografia de Bruce Jensen coroa a capa deste romance de FC hard, representado bem o ápice do romance, e num tipo de composição um pouco diferente daquele que é sua marca registrada, sempre com algo de trompe-l’oeil, e que o tornou um artista bastante vinculado à FC cyberpunk.

 

Arte de capa de Stephanie Marino.

A Bicicleta, de Roberto Fideli. São Paulo: Agência Magh, abril de 2020, 964 KB. Arte de capa de Stephanie Marino. EBook Kindle. Este e-book é o primeiro livro de ficção científica do meu filho Roberto Fideli, que este ano também apareceu nas antologias Histórias (Mais ou Menos) Assustadoras (2019), Vislumbres de um Futuro Amargo (2020) e Multiverso Pulp Volume 1: Espada & Feitiçaria (2020).

A história acompanha Daniel, um piloto de caça estelar. Abatido no espaço durante uma batalha, é ejetado para fora e sobrevive ao combate contra forças alienígenas. Nesse ponto, a narrativa migra para outro personagem, Bruno, um menino que ganha uma bicicleta no seu aniversário de 12 anos. Ele sofre um acidente grave com a tal bicicleta, e depois de um desmaio, desperta no corpo de Daniel, o guerreiro das estrelas. Numa transição sutil, a narrativa adota o ponto de vista de Daniel, e em seguida, mistura as lembranças dos dois personagens. Aurora, uma terceira personagem, é apresentada. Também é uma criança, e sofre um acidente quando tentava recuperar uma pipa presa no telhado de casa. Neste ponto, a história introduz uma nova situação básica: Daniel é prisioneiro dos alienígenas Allakianos. Ele acredita que uma máquina dos seus captores o induz a sonhar que é Bruno e Aurora, mas o inimigo afirma, telepaticamente, que a máquina na verdade desperta memórias. Lembranças de ter sido ainda outras pessoas se sucedem, até que vem a maior surpresa de todas.

Há algo de Star Trek e de Babylon 5 (que Roberto reconhece no posfácio e assume homenagear no conto) em A Bicicleta, mas vale também lembrar de histórias nacionais recentes, de humanos vivendo e revivendo experiências estranhas, após serem capturados por inimigos alienígenas. Há duas delas na antologia Fractais Tropicais (2018), editada por Nelson de Oliveira: “Da Astúcia dos Amigos Improváveis”, de Santiago Santos; e “O Molusco e o Transatlântico”, do veterano Braulio Tavares (em Fanfic). O abordagem de A Bicicleta é formalmente engenhosa, desenvolvida com segurança (certamente superior à minha, quando comecei) até a conclusão comovente e com uma surpresa real e orgânica. Na sua exploração das eventualidades trágicas da vida, traduz o desejo de abraçar plenamente a experiência humana de morte, vida e superação.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Phil Noto.

Star Wars: Chewbacca, de Gerry Duggan (texto) & Phil Noto (arte). Barueri-SP: Panini Brasil, 2019, 112 páginas. Arte de capa de Phil Noto. Brochura. Muitas vezes, parece que Star Wars precisa espremer ao máximo a criação de George Lucas. Aquela situação doméstica da família de Chewbacca no às vezes infame Star Wars Holiday Special (1978) parece fornecer um irônico ponto de partida para esta HQ de Duggan & Noto.

Chewie é náufrago em um planeta dominado pelo Império, logo após a Batalha de Yavin (em Uma Nova Esperança). Uma garota sapeca, humana, de uns 10 ou 11 anos com cara de latina, o ajuda a evitar as tropas imperiais e encontrar transporte para fora do planeta. A garota se chama Zarro e tem Arrax, seu pai, endividado com agiotas locais. Para protegê-la, ele a manda embora. As autoridades não lhe dão bola e tudo parece que vai de mal a pior, até que ela encontra Chewie em um bar jogando sabbac. Zarro o convence a ajudá-la, falando muito enquanto ele grunhe de vez em quando. A ideia é invadir as instalações subterrâneas em que o pai dela trabalha como prisioneiro, coletando substâncias químicas de valor comercial, excretadas por larvas luminescentes. Para libertá-lo, Chewie enfrenta bandidos, droids militares e stormtroopers. A narrativa divertida e cheia de ação busca nos lembrar que o alienígena peludo é um herói por direito próprio, e não apenas por acompanhar Han Solo, Leia Organa e Luke Skywalker. Um toque especial da parte de Duggan está em também nos lembrar do que o cachorrão perde, ao ser o sidekick dessa gente toda. Heróis não descansam… A arte de Noto tem uma cor digital quente mas de manchas suaves, combinada com linhas de contorno bem delineadas e às vezes de valor elevado (são grossas), e que nem sempre me agrada. Mas ele é versátil e expressivo, e a sua interpretação de Zarro a torna uma pentelha cativante.

 

Arte de capa de Juan Giménez.

The Fourth Power (Le Quatrième Pouvoir), de Juan Giménez. Nova York/Hollywood: Humanoids/DC Comics, 2005, 136 páginas. Tradução de Justin Kelly & Jonathan Tanner. Arte de capa de Juan Giménez. Trade paperbackMês passado eu li The True Tales of Leo Roa, space opera autoral do admirável artista argentino Juan Giménez (1943-2020). Este The Fourth Power está na mesma categoria, embora com uma narrativa de menor teor cômico. Na verdade, são duas histórias interligadas — e de conexão faltosa, tanto em termos de estilo, quanto de lógica narrativa.

Na primeira, várias garotas em um distante futuro high-tech são sequestradas. Uma delas é uma piloto de caça em um conflito bélico futuro, e logo fica-se sabendo que os militares e políticos de uma das partes em conflito buscam criar uma super-arma humana, dotada de poderes quase divinos, que permita a eles alcançar o poder absoluto. Esse segmento é dos mais dinâmicos e estimulantes. É onde a garota conhece alguém que pode ser um interesse amoroso no futuro. Na segunda, ela ressurge em um habitat gigantesco como uma performer que realiza grandes feitos de “prestidigitação”. Na verdade, são atos paranormais de fato. A paranormalidade ou o sobrenatural são parte da space opera exótica, e Giménez investe nesse elemento. Ao invés da guerra, tem-se uma situação criminal de thriller de FC, com um terrorista realizando atentados contra o império de uma cafetina do lugar. Se a primeira história apresentava diversos ambientes, culminando em uma ação submarina, a segunda explora o mesmo espaço, com uma perseguição mais concentrada, e muita surpresas quanto à identidade verdadeira do terrorista. Nessa narrativa, a mais característica da revista Heavy Metal, no álbum, a arte de Giménez fica mais grosseira e as implicações da história descem um tom. Ainda assim, sempre uma arte e uma criação de mundo deslumbrantes.

Roberto Causo

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35 Anos do Universo da Tríade, de Jorge Luiz Calife

Em janeiro de 1985, a Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, lançou o romance de ficção científica Padrões de Contato: Trilogia Padrões de Contato 1, de Jorge Luiz Calife — a mais longeva série de space opera e FC hard do Brasil, existindo há 35 anos.

 

Arte de capa de Ingrid Von Steurer & Gilberto Zavarezzi.

Romance ágil e desenvolvido com elegância, pleno de sense of wonder, explorando o tema do primeiro contato com uma super-inteligência alienígena, com conhecimento científico e tecnológico sólido e uma rica história do futuro como pano de fundo, Padrões de Contato teve um grande impacto na jovem comunidade brasileira de ficção científica. Influenciada por figuras de peso da ficção científica hard como Arthur C. Clarke e Larry Niven, a obra de Calife parecia moderna, otimista e visionária ao leitor brasileiro. Com esse romance tratando da integração da humanidade à Comunidade Galáctica e das intervenções da superinteligência conhecida como Tríade, ele meio que atualizou agudamente a FC brasileira, quanto ao idioma próprio do gênero. Ao mesmo tempo, o formato episódico do romance (um fix-up de narrativas inéditas selecionadas por Calife ao longo dos anos), com grandes lapsos temporais e alternâncias no elenco de personagens. soava ousado e dinâmico.

A qualidade da especulação científica e tecnológica, e a elegância da narrativa, transformou Calife em um colaborador privilegiado de revistas masculinas como EleEla e Playboy, levando repetidamente a FC nacional às suas páginas de papel brilhante.

Arte de capa de Nelson Lopes.

Logo depois, em 1986, a Nova Fronteira lançou Horizonte de Eventos: Trilogia Padrões de Contato 2, uma aventura de foco mais estrito e com mais suspense e ação, retratando como a Comunidade Galáctica se vê ameaçada por alienígenas belicosos que põem em cheque a sua utopia hipertecnológica. Das obras de Calife, é a mais integrada à space opera, e a que mais questiona a viabilidade da sua sociedade cósmica bem resolvida, democrática e hedonista — talvez seguindo a deixa de histórias de Larry Niven como “The Warriors” (1966), parte do seu universo Tales of Known Space.

Ao contrário de Padrões de Contato, possui um arco narrativo mais uniforme e tenso. Horizonte de Eventos, mais bojudo que o primeiro livro, também oferece pela primeira vez uma alegoria satírica do Brasil dos anos da ditadura militar, ainda tão vívidos na memória em 1986, com a nave de gerações B.R.A.S.I.L., vagando perdida há séculos no espaço e vítima de um golpe paramilitar — um anacronismo tão grotesco na Comunidade Galáctica, quanto os alienígenas invasores nictianos.

Publicado apenas em 1991, Linha Terminal: Padrões de Contato III saiu pelas Edições GRD de Gumercindo Rocha Dorea, fechando a trilogia com o retorno a um formato mais breve, repleto de homenagens a filmes e livros da FC internacional, e agregando viagens no tempo que conduzem o leitor ao reencontro de uma personagem desaparecida no primeiro livro, Michelle Darrieux, e à revelação das inteligências por trás da Tríade, os djestares.

No mesmo ano, Calife também publicou o conto “A Sereia do Espaço” na Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Científica N.º 20, levando, com ele, o Universo da Tríade aos leitores da revista. Outros contos desse universo ficcional chegaram ao século 21 aparecendo na primeira coletânea do autor, As Sereias do Espaço (2001), pela Record, e, no mesmo ano, na revista Quark, fundada por Marcelo Baldini, e em antologias como Como Era Gostosa a Minha Alienígena! Contos Fantásticos Eróticos (2002), editada por Gerson Lodi-Ribeiro. Em 2012, a Devir Brasil incluiu uma cronologia do Universo da Tríade na segunda coletânea de Calife, Trilhas do Tempo, com introdução do escritor Clinton Davisson.

Arte de capa de Vagner Vargas.

Graças ao interesse do editor Douglas Quinta Reis (1954-2017) a Devir também reuniu os três romances previamente publicados, no primeiro volume “omnibus” da ficção científica brasileira, Trilogia Padrões de Contato (2008), com introdução de Marcello Simão Branco, outro admirador da obra de Calife, e capa e ilustrações internas de Vagner Vargas.

Em 2010 a Devir Brasil publicou o romance Angela entre dois Mundos, também com capa de Vargas, e quarto romance do Universo da Tríade. Ambientado antes da protagonista central do universo, Angela Duncan, ter se tornado imortal por graça da Tríade, envolve a busca da heroína por sua mãe, desaparecida no espaço, juntamente com a tripulação e os outros passageiros de uma luxuosa astronave de cruzeiro.

A ficção científica hard é aquela mais adepta de temas científico-tecnológicos, e embora ela tenha existido na década de 1970 e começo da de 1980 no Brasil — em obras de José Maria Doménech T., Gerald C. Izaguirre, Fausto Cunha e Fabrizio Pugno —, o Universo da Tríade de Calife se destaca — a ponto de Gerson Lodi-Ribeiro chamá-lo de “Pai da FC Hard Brasileira”.

Jornalista científico com longa passagem, na década de 1980, pelo Jornal do Brasil, Calife também foi autor do livro de não ficção Espaçonaves Tripuladas: Uma História da Conquista do Espaço (2000), escrito com Cláudio Oliveira Egalon e Reginaldo Miranda Júnior.

Antes que se falasse em empoderamento feminino e representatividade de gênero na ficção científica brasileira, a literatura de Jorge Luiz Calife no Universo da Tríade priorizava protagonistas femininas. Além de Angela Duncan, outras personagens importantes imortalizadas pela Tríade são Luciana Villares e Dafne Duncan, neta de Angela e dona de um destino trágico. Charmosas e distantes, juntas elas meio que expressam não apenas o poder e o mistério femininos, mas algo dos mistérios do próprio universo.

—Roberto Causo

 

Arte de capa de Vagner Vargas.

 

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Nostalgia Perry Rhodan: Nos Arquivos da Ediouro

Por solicitação do leitor Dioberto Souza, um dos grandes fãs brasileiros da série alemã de space opera Perry Rhodan, procurei e encontrei em um velho computador o texto “Nos Arquivos da Ediouro”, que, aparentemente, tem chamado a atenção de outros fãs brasileiros da série. Foi publicado em outubro de 2009 no Terra Magazine, a revista eletrônica criada pelo jornalista Bob Fernandes para o Portal Terra, e mais tarde no volume 800 da edição brasileira de Perry Rhodan. Não está mais disponível online, já que o Terra Magazine foi cancelado, mas encontra-se disponível na edição da SSPG Editora. Considerando que a edição da Ediouro foi a primeira edição da série Perry Rhodan no Brasil, e que a SSPG Editora anunciou recentemente que irá republicá-la a partir do seu primeiro ciclo (começando pelo número 1), imagino que seja apropriado trazer o artigo de volta.

 

Nostalgia Perry Rhodan

NOS ARQUIVOS DA EDIOURO

 

A edição da Ediouro seguia um padrão de capa da edição americana da Ace Books. Arte de capa de Gray Morrow.

Nos dias 9 e 10 de setembro de 2004 estive no Rio de Janeiro para o 2.º Simpósio “Ciência, Arte e Cidadania”, promovido pela Fundação Oswaldo Cruz e pelo Instituto Oswaldo Cruz. Fui convidado para o simpósio por Lucia La Rocque, da FioCruz-IOC, em meados de abril. Eu deveria dar a oficina “Ficção e Ciência: Extrapolação Científica e Prática de Escrita” na sexta-feira, dia 10, mas a organização do evento que ia de 9 a 12, presidida por Tania Araújo-Jorge, da FioCruz, franqueou-me a possibilidade de estar presente em outros dias, com estadia paga em um hotel da cidade. Hesitei, porque sempre penso no custo/benefício para quem está organizando um evento desses, mas aceitei a oferta de ir para lá no dia 9 pensando justamente em fazer uma visita aos arquivos da Ediouro, a editora que, como Tecnoprint/Edições de Ouro, primeiro publicou sistematicamente a série Perry Rhodan no Brasil.

Antes de confirmar com a FioCruz, falei de São Paulo com Lucina Ferreira Matos, a arquivista da Ediouro. Estando no Rio, recém-chegado ao hotel, liguei novamente para ela e combinamos que eu iria para as instalações da editora às 15h00. Peguei um táxi e fui para o bairro do Bonsucesso, que eu já conhecia de uma visita ao escritor Jorge Luiz Calife, anos antes.

As instalações da Ediouro localizam-se “desde sempre” na Rua Nova Jerusalém 245. Na portaria, fui recebido pelo estagiário-arquivista Carlos Eduardo Rodrigues da Silva, que me levou por cinco lances de escadas até os arquivos. Dentro do grande salão, fui conduzido até um espaço isolado por divisórias e mantido sob ar-condicionado. Tanto Carlos quanto Lucina foram atenciosos e tolerantes com a minha presença em seu local de trabalho. Expliquei que buscava especificamente por informações editoriais — dados sobre tiragem e circulação, normas contratuais e procedimentos de produção dos livros.

Como já haviam me informado previamente por telefone, eram poucas as chances de encontrar alguma coisa. A editora teve o seu quadro de funcionários mudado seguidamente ao longo dos anos, e ninguém do presente staff se lembra da época em que os livros foram publicados. Em uma rápida visita ao departamento editorial, confirmei esse estado de coisas por meio de uma conversa com Cristiane Marinho: pouco se sabe a respeito da editora nessa época que foi a “era de ouro” da literatura popular no Brasil, com a Tecnoprint sendo uma das casas dominantes, por publicar séries como Matt Helm, Shell Scott, Irving Le Roy, Sherlock Holmes, Perry Rhodan e Espaçonave Orion, entre outras. Também não consegui nenhum contato com os tradutores que trabalharam com Perry Rhodan: Richard Paul Neto, S. Pereira Magalhães e Ayres Carlos de Souza.

Perry Rhodan foi publicado pela Tecnoprint a partir de 1975, em duas versões de capa branca — a primeira com “Perry Rhodan” figurando nas letras desalinhadas que apareciam na edição original alemã pela Erich Pabel Verlag; a segunda com o nome do herói disposto em “Cinemascope”, como na edição norte-americana da Ace Books. Ambas tinham o selo “Infinitus” aparecendo na capa em uma elipse com o símbolo matemático ∞ (de infinito) ao fundo. Depois que a série foi descontinuada, surgiu uma coleção “capa preta”, ainda seguindo o padrão da Ace e em um formato discretamente maior (11,5 x 18 cm, contra 10,5 x 16 cm). Eventualmente, em 1984 e a partir do seu número 200, a série retorna sob o rótulo “Futurâmica Espacial” — “Futurâmica” era o nome de uma coleção de ficção científica assinada por vários autores, que a Tecnoprint manteve anos antes. Esta última edição vinha em dimensões que, segundo eu viria a descobrir examinando os arquivos, eram chamadas pela editora de formato “superbolso” (12 x 21 cm).

Carlos me levou até os corredores de estantes. Logo encontramos as caixas de papelão com os livros da série, tão numerosas que ocupavam dois corredores. Os números mais antigos tinham de duas a quatro caixas destinadas a cada um deles (os últimos números tinham apenas uma ou duas), contendo coisas como provas heliográficas, fotolitos, correções de impressão, originais e manuscritos de traduções. Mas não pude encontrar nenhum exemplar nem números de tiragens referentes às primeiras coleções “capa branca”. Salvo pela possibilidade remota de estarem em alguma outra parte dos arquivos, pelo jeito a editora não pôde, por alguma razão, salvar para a posteridade essa fase do seu envolvimento com Perry Rhodan. Um dos problemas, supõe-se, de se lidar com a edição de livros populares, considerados “perecíveis”.

Ficou claro para mim, conforme examinava o material, que para o fã da série os arquivos da Ediouro são simultaneamente céu e inferno — há muita informação que se pode analisar, mas os “buracos” inevitáveis são frustrantes.

Estudando um contrato da fase “Futurâmica Espacial”, soube que a Tecnoprint adquiria os direitos de publicação dos episódios da série em lotes de dez títulos, que ela se obrigava a lançar na ordem numérica. Dez exemplares de cada título publicado no Brasil eram enviados à editora alemã.

Examinando a primeira caixa com o material do N.º 1, Missão Stardust, encontrei a ficha de tradução, que ficou a cargo de Richard Paul Neto, com certeza o tradutor mais prolífico da série. Datada de 16 de julho de 1975, a ficha de tradução é uma pista para a altura desse ano em que a Tecnoprint começou a lançar Perry Rhodan no Brasil — provavelmente, no terceiro quadrimestre.

A página de rosto da tradução de Richard Paul Neto revela alguns dados que valem a pena comentar. No alto, escrito a lápis, aparece “Título da série: Perry Rhodan, o herdeiro do universo”, mas com “herdeiro” riscado a caneta e uma seta apontando para a palavra que deveria substituí-la: “pacificador.” Paul Neto estava traduzindo do original alemão, Unternehmen Stardust, e “herdeiro do universo” é uma expressão que aparecesse na edição original (der Erbe des Universums), enquanto que a edição norte-americana da Ace tem “peacelord of the universe” como subtítulo — “senhor da paz”, mais próximo do “pacificador do universo” que a Tecnoprint adotou. Na mesma página, encontramos os nomes dos capitães Reginald Bull e Clark G. Flipper (como no original) alterados a caneta para “Bell” e “Fletcher”, seguindo as mudanças realizadas pela edição da Ace, que parecia pautar as decisões da Tecnoprint. Fica claro que o editor brasileiro tinha em mente aproximar a edição brasileira daquela organizada pelo “Mr. Science Fiction” Forrest J. Ackerman para a Ace entre 1968 e 1977.

Uma última curiosidade a respeito das alterações do anônimo editor sobre a tradução de Paul Neto está no título: originalmente Richard Paul Neto chamou o episódio de “Programa Stardust”, mas o editor escreveu “missão” no alto, a caneta. Curiosamente, o título da edição americana foi Enterprise Stardust. Já A Abóboda Energética, o terceiro episódio da série, quase foi chamado pela Tecnoprint de “A Cúpula Dourada”…

Como os artistas gráficos da Tecnoprint faziam as capas dos livros de Perry Rhodan? Sabemos que davam preferência às ilustrações americanas assinadas por Gray Morrow (até onde o artista as produziu), mas que, como a Ace agrupava dois episódios em um único livro, os artistas da Tecnoprint frequentemente tinham que empregar as artes originais de Johnny Brück.

Um número substancial de publicações alemãs e americanas com as capas faltantes, descobertas nas caixas de arquivamento, sugere que não eram usados cromos ou filmes recebidos da Alemanha ou dos Estados Unidos, mas que essas capas eram aproveitadas diretamente. Encontramos uma evidência ainda mais clara — uma transparência em acetato, com a capa e a quarta capa do N.º 297, A 73.ª Era Glacial, com a “janela” em que se inseria a ilustração aplicada sobre a capa do original alemão da 4.ª edição, arrancada do Heftromane (o formato original alemão, de 15 x 22,5 cm e 64 páginas). O título do livro vem pintado sobre o acetato, sugerindo que essa montagem seria apenas uma indicação de como o artista gráfico deveria proceder. Mas os indícios apontam fortemente para essa prática de emprego direto das imagens originais, sem reduções nem uso de filmes ou cromos importados, de certo com o fim de economizar tempo e dinheiro, dentro de recursos técnicos menos sofisticados do que aqueles que a editora dispõe hoje. É claro, a prática permitia que se aproveitassem apenas um detalhe das artes originais, especialmente as alemãs.

Que dados sobre tiragem pude localizar? Nada a respeito das edições “capa branca”, mas aparentemente a “capa preta” tinha tiragens oscilando entre 3 e 6 mil exemplares, coincidindo com uma fase em que Perry Rhodan não tinha uma presença nas bancas.

Perry Rhodan é relançada nas bancas brasileira em 1984, com o episódio 200 sendo o primeiro da linha Futurâmica Espacial, em formato mais comprido, o “superbolso“. Arte de capa de Johnny Brück.

As informações mais claras e abundantes se referem à edição “Futurâmica Espacial”. A Rota para Andrômeda, o N.º 200, com o qual a editora relançou a série no princípio da década de 1980, teve uma tiragem de lançamento de 80 mil exemplares. Sem dúvida, o bastante para criar uma presença ostensiva nas bancas de todo o país. Já no N.º 203 ela havia caído para 50 mil. Dos N.ºs 205 a 298, foi de 40 mil — o que ainda garantiria uma boa presença nas bancas. Os N.ºs 209 e 210 tiveram 30 mil exemplares de tiragem, e do 211 ao 216, 20 mil. Por sua vez, a segunda edição da Futurâmica Espacial, que trazia a série toda desde o episódio 1, teve em 10 de outubro de 1984 uma tiragem de 15 mil exemplares para o Missão Stardust. Ainda no mesmo ano, em fins de dezembro, ela havia caído para 10 mil.

Analisando os números da tiragem da série, fica claro que Perry Rhodan na Futurâmica Espacial não foi o sucesso esperado pela editora, mesmo que consideremos os 80 mil exemplares iniciais como apenas uma estratégia de lançamento. Do 217 em diante, o número de livros impressos por título se estabilizou em 15 mil, ainda substancial para os padrões brasileiros, e foi assim até o N.º 398, quando a tiragem passou a ser de apenas 9 mil exemplares. A crise econômica da década de 1980 podem ter tido um papel importante nesse declínio, e nós sabemos que toda a publicação de ficção científica no Brasil foi duramente afetada nesse período. A Tecnoprint insistiu com os 9 mil exemplares, de qualquer modo, indo do 398 ao Perry Rhodan de número 536, o último a ser lançado por ela. Esse número 536 teve apenas 5.200 exemplares impressos, o que certamente o torna um item de colecionador.

A ressalva que se pode fazer com relação aos dados aqui expostos é que as informações sobre tiragem e circulação não estariam completas, tendo alguns nuances passados desapercebidos. Algumas fichas de produção informavam que a tiragem era “de banca”, mas isso nos permite supor que haveria uma outra tiragem — para livraria ou para a venda por assinatura, por exemplo? Difícil saber…

Uma “descoberta” que talvez toque os leitores da série, saudosos das edições da Tecnoprint, são os números que deixaram de serem lançados, após o 536. Como a editora adquiria os títulos da Erich Pabel Verlag em lotes de dez e tinha um esquema industrial de produção dos livros, quando a série foi cancelada muitos estavam traduzidos, alguns quase prontos para o lançamento. Aqui estão os onze títulos que encontrei, armazenados em caixas de papelão, para meditarmos sobre o que a editora carioca deixou passar:

 

A Bordo da  Marco Polo 537

Espalhando o Pânico 538

A Experiência dos Cynos 539

O Ataque dos Cynos 540

No Fascínio do Campo de Pânico 541

A Hora do Centauro 542

O Último Recurso da Marco Polo 543

Os Espiões de Gevarri 544

O Portador da Máscara 545

Homens entre Cynos 546

O Sol não Faz Sombra 547

 

Em um gesto de extremo carinho e consideração pelo leitor brasileiro fã de Perry Rhodan, a SSPG Editora traduziu e lançou no Brasil esses episódios, do 537 ao 547, em 2015 e 2016.

—Roberto Causo

 

Arte de capa de Johnny Brück.

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