Tag Arquivo para Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira

Leituras de Dezembro de 2018

Em dezembro eu sentei para ler, e o resultado foi muita ficção científica brasileira e estrangeira, poesia, história em quadrinhos e alguma não-ficção.

 

Darwin’s Blind Spot: Evolution Beyond Natural Selection, de Frank Ryan. Boston/Nova York: Houghton Mifflin Company, 2002, 310 páginas. Hardcover. O darwinismo social é um assunto que me interessa desde que ele cruzou meu caminho em vários momentos em que eu cursava a Faculdade de Letras na USP. Minha posição, bem marcada e contrária a ele está no meu livro Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950 (UFMG, 2003). Sendo leitor de ficção científica desde criança, foi ficando cada vez mais claro para mim o quanto o pensamento darwinista social faz parte da moldura anglo-americana do gênero. Essa é uma questão política e filosófica que fãs e escritores do gênero no Brasil frequentemente deixam passar.

Li partes deste livro justamente para escrever minha conferência “Combatendo Robôs: Drones e Darwinismo Social na Ficção Científica”, no IV Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional. (Muito obrigado ao Prof. Flavio García por me convidar!) Gostei da leitura, fluida e informativa, e resolvi terminá-lo. Trata-se de um livro-reportagem que se dedica a confrontar o neo-darwinismo com ideias em torno da simbiose e da cooperação entre as espécies — com isso indo contra as noções prevalecentes de competição e sobrevivência do mais apto. Esse é um assunto relativamente novo, e a esperança de Ryan (e minha) é de que ele venha a equilibrar a incorporação ideológica do darwinismo social na cultura, na ciência e na economia. Logo na introdução, Ryan aponta:

“Desde o início, a teoria evolucionária tem sido aplicada a muitos campos dos assuntos humanos, como a sociologia, a psicologia e mesmo a política. Tais interpretações, vistas apenas de uma perspectiva darwiniana, levam a uma ênfase excessiva na competição e no conflito. Mais danoso de todos, o darwinismo social da primeira metade do século XX levou diretamente aos horrores da eugenia. O surgimento, mais uma vez, do darwinismo social é portanto uma fonte de preocupação para muitos cientistas e sociólogos.” —Frank Ryan. Darwin’s Blind Spot.

O livro é dividido em duas partes. A primeira, “Controversies: The Struggle for Recognition” (controvérsias: a luta pelo reconhecimento), discute a história do conceito de simbiose e de como ele foi historicamente abafado pelos darwinistas. A segunda, “The Weave of Life” (a tecitura da vida), descreve a sua importância e exemplos e hipóteses que explicitam a importância da simbiose como um forte mecanismo evolucionário. Essa parte é absolutamente fascinante na sua divergência do consenso darwinista corriqueiro. Evoca uma sensação de como a evolução da vida é complexa, parecendo mesmo alienígena à nossa percepção. Há muitas ideias de ficção científica esperando gestação nessa parte do livro. É claro, o que a questão da simbiose como motor evolucionário evoca culturalmente é a ideia da cooperação equilibrando o substrato da competição no darwinismo. Um questão crucial, especialmente num momento em que a política brasileira vem abraçando perversamente as práticas do darwinismo social.

 

Contos Reversos, de Romy Schinzare. São Paulo: Editora Patuá, 2018, 158 páginas. Introdução de Caio Bezarias. Texto de orelha de Gilberto Lopes Teixeira. Ilustrações de Jorge de Souza Coelho. Brochura. Conheci pessoalmente a escritora Romy Schinzare e seu marido Jorge Coelho, um antigo colega da USP, no evento “Ficção Científica Brasileira: 60 Anos de Manifestos”, quando ela me deu um exemplar do seu Contos Reversos. O livro reúne histórias de fantástico literário, absurdismo, e daquela narrativa de FC ou fantasia que costumo chamar de “histórias tipo Além da Imaginação“. Nelas, o absurdo ou o fantástico entram no cotidiano de alguma pessoa ou pessoas, de modo relativamente restrito e mais com um caráter pessoal e humano. Menos “épico”, digamos. Nesse tipo de história há espaço também para a tão necessária franqueza na denúncia e no comentário moral. Assim, em “Ministério da Solidão” tem-se uma fábula sobre uma gente meio mole que nasce em cachos, uma espécie de humanos artificiais, individualistas e consumistas, que, como as salamandras do livro de Karel Capek, vão se multiplicando e ameaçando dominar o mundo: os Bananas. “O Prédio” é uma fábula distópica sobre essa construção que hierarquiza burocraticamente a vida em um mundo de alta tecnologia, como no livro de Ruth Bueno, Asilo nas Torres (1979). Mais longo e desenvolvimento mais pausado, “O Colecionador” é uma história de horror com uma atmosfera bem firmada, sobre uma assustadora coleção de corujas. No curto “Mrs. Liberty”, a Estátua da Liberdade ganha vida em Nova York, antes de fugir, desiludida com o desvirtuamento pelas autoridades americanas. Em “Os Robôs de Marte”, autômatos enviados ao Planeta Vermelho fundam a sua própria sociedade e retornam à Terra para capturar humanos, como nos velhos filmes B, e em Marte esses humanos e descendentes se tornam uma subclasse em revolta contra as máquinas. “Canal 66” é bem Além da Imaginação, menos panorâmico e mais centrado em personagens, tratando de um programa de TV que captura, literalmente, os seus espectadores. “Buraco de Minhoca” é uma FC sobre uma primeira missão espacial a Marte, narrada pelo ponto de vista de um cosmonauta russo que se depara com um portal dimensional no caminho. A tendência internacionalista das histórias de Schinzare é repetida em “Operação Baltimore”, ambientada no Sul dos EUA e tratando da violência racial e de uma sociedade secreta destinada a combater, com ferro e fogo, a Ku Klux Klan. “O Vampiro de Santa Efigênia” é outra história de horror e crime, enquanto “Moça Enluarada” brinca com situações de ufologia mascarando um golpe imobiliário, e “Rede ZZZ” traz outra alegoria da alienação causada pela TV e outros aparelhos que funcionam como muletas emocionais. “Oziris” é FC alegórica sobre alienígenas infiltrados na Terra, e finalmente, “Mutantes” é outra narrativa irônica e alegórica que emprega elementos de ficção científica para tratar dos absurdos do cotidiano. Vale citar o prefácio de Caio Bezarias, autor de Totalidade Pelo Horror: O Mito e a Obra de Howard Phillips Lovecraft:

“Romy Schinzare é um desses poucos autores em língua portuguesa que adotam o gênero fantástico sem se limitar a seus frequentes lugares comuns e clichês, inclusive os usando com inteligencia, vazando seus contos em uma linguagem cuidadosa, simples e desprendida, para mostrar que o impossível, o aterrador e o incrível estão muito mais perto de irromper em nossa realidade do que concebemos.”  —Caio Bezarias.

 

Arte de capa de Vagner Vargas.

Possessão Alienígena, de Ademir Pascale, ed. São Paulo: Devir Brasil, dezembro de 2018, 98 páginas. Capa e ilustrações internas de Vagner Vargas. Brochura. Esta é uma antologia original de ficção científica e horror compilada pelo dinâmico Ademir Pascale e que ficou um tempo na oficina da Devir Brasil, saindo, enfim, em dezembro de 2018. Traz histórias de Tibor Moriz, Estevan Lutz, Marcelo Bighetti, Miguel Carqueija, Jorge Luiz Calife, Mustafá Ali Kanso, Roberto Causo e uma narrativa visual de Vagner Vargas, tudo dentro da premissa original criada por Pascale. A seleção de autores é uma mistura interessante de nomes da Segunda e da Terceira Ondas da FC Brasileira. Um grande atrativo é a deslumbrante arte de capa e as ilustrações internas de Vagner Vargas. Além disso e pela primeira vez em uma antologia de ficção científica nacional, esse destacado artista de FC participa também com uma galeria de imagens que funciona como uma espécie de narrativa visual com clima de horror, que lembra o material da revista Heavy Metal dos bons tempos. O livro também traz a primeira publicação póstuma de Mustafá ibn Ali Kanso, nosso colega desencarnado em 2017. A minha história na antologia é “Os Fantasmas de Lemnos“, vista antes em Shiroma, Matadora Ciborgue (Devir; 2015), mas escrita para Possessão Alienígena e inspirada diretamente na arte de capa feita pelo Vagner, ainda como esboço a lápis. Sobre essa arte, o que dizer? Linda, impactante, sugestiva, inquietante, com um senso estético ao mesmo tempo glamouroso e delicado que define a arte de Vagner Vargas, o melhor artista de ficção científica do Brasil.

Lendo as histórias, parece que a maioria dos escritores esquivou-se da fusão entre ficção científica e horror que o títulos sugere. O conto de Carqueija é uma love story, a de Moricz uma comédia, a minha é uma aventura. A de Bighetti provavelmente está mais próxima do horror, a de Vagner Vargas é de horror explícito, enquanto a de Lutz é uma narrativa apocalíptica. A contribuição de Calife, um dos principais autores da Segunda Onda e pai da FC hard nacional, abre a antologia repetindo a firmeza e a clareza características do seu texto, mantendo um traço de mistério. Calife sempre teve uma afinidade pelo tema, por ser fã do filme Força Sinistra (Lifeforce, 1985), e seu conto, que é a sua publicação mais recente, reflete essa afinidade.

 

The Infinite Future, de Tim Wirkus. Nova York: Penguin Press, 2018, 394 páginas. Hardcover. O Professor Christopher T. Lewis, da Universidade de Utah, me presenteou com este romance mainstream que, curiosamente, tem a ficção científica brasileira como um dos seus assuntos. Tudo indica que Wirkus, assim como Orson Scott Card e M. Shane Bell, foi missionário mórmon no Brasil. Seu primeiro romance, City of Brick and Shadow (2015), explora as favelas de São Paulo. Aparentemente, os dois livros têm em comum a narrativa construída como uma investigação. Neste aqui, trata-se de uma investigação literária. Uma sociedade informal composta por três pessoas (sendo uma delas um acadêmico brasileiro) se dedica a descobrir mais sobre um fugidio escritor americano de ficção científica que desenvolveu a sua carreira no Brasil, um certo Eduard Salgado-MacKenzie que soa como uma mistura do nosso Ivan Carlos Regina com figuras místicas tipo Philip K. Dick ou Cordwainer Smith.

No romance, Jeronymo Monteiro, André Carneiro, Dinah Silveira de Queiroz e Fausto Cunha são mencionados como brasileiros que escreviam para um número de antologias e de revistas que o Brasil nunca possuiu, com títulos como Contos Fantásticos, FC, Argonauto [sic], O Planeta, Contos Astronômicos, Contos Intergalácticos e Contos do Astronauta… Antes fosse assim. A descrição que Wirkus produz de um encontro de autores e fãs brasileiros de FC também soa mais como as convenções americanas, com gente circulando com bebidas nas mãos. De qualquer modo, toda a premissa, a ambientação e a estrutura do romance conduzem a leitura com interesse. Nesse último aspecto, a estrutura, o romance tem várias narrativas em primeira pessoas embricadas uma na outra, com Wirkus afirmando nque o seu romance é um manuscrito que caiu em suas mãos vindo de um amigo chamado Danny Laszlo, e com as narrativas dos outros investigadores literários e de testemunhas da verdade sobre Salgado-MacKenzie vindo logo atrás, até o ponto em que estamos lendo o manuscrito perdido do enigmático autor, ele mesmo uma espécie de ficção. Ao final dessa vasta exploração metaficcional, as coisas ficam mais misteriosas e subjetivas, mas a sugestão de que a obra de Salgado-MacKenzie possuiria uma dimensão mística e filosófica substancial não se cumpre. Além disso, todas as narrativas são moduladas com uma prosa literária competente mas que é, no todo, uma versão daquela prosa literária que parece ser tão default no mainstream quanto a prosa “operária” (workmanlike) da ficção popular. De qualquer modo, há em The Infinite Future muito de engenhoso, além de interessantes discussões mórmons (pelo caráter progressista dessas discussões), momentos genuinamente intrigantes, e essa estranha evocação literária da ficção científica no Brasil.

 

Cronista de um Tempo Ruim, de Ferréz. São Paulo: Selo Povo Editora, 2.ª edição, setembro de 2018, 124 páginas. Capa dura. Já falei nas minhas leituras de abril de 2017 da primeira edição deste livro de crônicas, que incluí na minha lista da literatura brasileira pós-mensalão. Está é uma segunda edição ampliada, num bonito formato capa dura, que adquiri do próprio Ferréz na minha visita à Comic Con Experience de 2018. Ferréz começou como fanzineiro na mesma época que eu, e se tornou um nome do hip hop e do movimento Literatura Marginal. Hoje também cronista e youtuber, é uma das figuras literárias nacionais mais interessantes e instigantes. Esta segunda edição do seu Cronista de um Tempo Ruim mostra que, além de tudo, ele deve amar o livro como objeto, já que produziu um volume bonito e gostoso de manusear. Quando tratei da primeira edição, apontei Ferréz como “uma voz fora da curva, na denúncia das hipocrisias costumeiras da sociedade brasileira quanto aos pobres e os moradores da favela e da periferia. Sua denúncia chega às autoridades, que não enfrentam a violência policial e mantêm, pela corrupção, a situação violenta que ceifa as vidas dos jovens e limita suas possibilidades de avanço. Alguns dos textos do livro repercutem os ataques do PCC em 2006, e a reação violenta da polícia e de esquadrões da morte. Outros, condenam o consumismo ou apontam o preconceito com que o morador da periferia é apresentado pela imprensa. Muitos têm a cadência e a dicção do hip hop brasuca. O retrato que Ferréz faz do estrago social produzido pela corrupção e descaso das autoridades é visceral.” Agora, além de repetir o elogio, eu me concentro no conteúdo inédito presente na segunda edição, totalizando cinco crônicas. Considerando que muita água rolou por baixo da ponte entre 2009 e 2018, politicamente falando, é apropriado que ele abra a seção com as adições anunciando a crônica “Sobre o Sorriso dos Políticos”, a respeito das suas desilusões e de uma tomada de posição humana e pessoal:

“Faz um Tempo que não me identifico com nenhum partido, a coisa parou de ser que nem time, está todo mundo no mesmo saco, literalmente.” —Ferréz, Cronista de um Tempo Ruim.

Por sua vez, “Paraíba, Literatura e Crack” descreve algo do mundo cultural que ele frequenta, feiras e eventos literários país afora. Ele trata de uma feira em especial na Paraíba, das palestras que ouviu com interesse, mas a questão de um grupo de meninos viciados em crack e jogados na rua é o centro emocional da crônica, orbitado o mundo elevado da arte literária. Em “O Aniversário de uma Favela”, ele trata de um evento de rua na periferia de São Paulo, num bairro que comemora seu aniversário e nas figuras sociais e culturais que transitam por ali, construindo um clima utópico passageiro mas que preenche o ar de esperança. “Malditos Flanelinhas” é contundente ao comentar medidas do governador de São Paulo de reprimir a atividade dos guardadores de carro; quer dizer, pisar no pescoço de quem já está desesperado, enquanto práticas cotidianas capitalistas legais são até mais extorsivas do que alguém pedir ou cobrar uns trocados para vigiar o seu automóvel. O último texto é “Tentativas”, provavelmente o mais poético, transitando em referências culturais populares que esquentaram o meu coração de fanzineiro e fã de quadrinhos e cultura popular, com tanta citação de artistas brasileiros e estrangeiros. Ferréz mantém o seu toque especial.

 

Arte de capa de Bryn Barnard.

Farewell Horizontal, de K. W. Jeter. Nova York: St Martin’s Press, 1989, 250 páginas. Capa de Bryn Barnard. Hardcover. Não me lembro onde comprei esta edição de clube de livro. Provavelmente pelo sebo virtual Alibris. De Jeter eu já tinha lido o seu romance proto-cyberpunk Dr. Adder (198 ) para a minha tese Ondas nas Praias de um Mundo Sombrio: New Wave e Cyberpunk no Brasil, e mais tarde, li o seu debut steampunk, Morlock Night (1978). Farewell Horizontal é cyberpunk de um jeito meio japonês, por se centrar em um cenário complexo, sugestivo mas sem que o autor se dê ao trabalho de mostrar como chegamos a esse futuro. Isso meio que contradiz, inclusive, os princípios extrapolativos dos cyberpunks de primeira geração.

O cenário em questão é uma gigantesca torre que se ergue num mundo que nem sabemos se é a Terra ou não. O protagonista é um cinegrafista que se pendura a face externa da torre e vende imagens para canais especializados — uma delas, de misteriosos seres alados chamados “anjos”, transando no céu em torno da torre. Esse freelancer tem até agente. Seu trabalho do coração, porém, é decorar armaduras de combate para que as diversas gangues do lugar possam se matar com estilo. As coisas entortam pra ele quando é usado como bode-expiatório em um esquema pra humilhar os líderes de uma dessas gangues. Só lhe resta fugir para regiões esquecidas, misteriosas da gigantesca torre. Caçado implacavelmente, ele conhece e trava contato com tipos ainda mais estranhos, todos apropriadamente cruéis e cínicos. Em sua jornada, ele descobre ações ainda mais cruéis do governo local. Nesse mundo, conflitos e informações são comercializados e transformados em entretenimento, e a fuga e as escapadas do herói — um individualista tipicamente cyberpunk e redimível apenas por estar circunstancialmente lutando contra o sistema — são acompanhados pelos espectadores dos vários níveis. Apesar do cenário interessante, falta pegada à narrativa e ao que ela tem a dizer. É um pouco como a competente ilustração de capa de Bryn Barnard, sugestiva e bem executada, mas com um personagem de expressão sem personalidade.

 

Mindscan, de Robert J. Sawyer. Nova York: Tor Books, 2011 [2005], 302 páginas. Capa de Stephan Martiniere. Trade paperback. Este livro, um romance de ficção científica, foi presente da minha colega de pós-graduação Cláudia Corrêa e veio autografado. O tema é o upload da consciência humana em corpos robóticos, conceito que, a partir da década de 1990, cresceu muito no rastro das ideias da singularidade tecnológica e do pós-humanismo. O protagonista é um canadense mediano, herdeiro de uma cervejaria, que resolve fazer o upload antecipando uma doença neurológica hereditária. Há um lado literário no livro, em como ele foge do formato do thriller e se concentra na caracterização do protagonista e seus relacionamentos. As coisas se encaminham para o personagem assumir um retiro na Lua, enquanto o seu duplo robótico segue com a vida na Terra. As questões em torno disso são desenvolvidas com habilidade, narrando a adaptação da consciência duplicada e transplantada ao corpo robótico, e a da consciência antiga ao ambiente artificial lunar. Na Terra, o robô enfrenta a alienação da namorada e o questionamento legal da família de uma amiga, uma nonagenária que implantou sua consciência em um corpo jovem, envolvida agora em uma disputa por controle de direitos autorais (a mulher é autora best-seller de livros para jovens). Na Lua, o protagonista descobre que um novo procedimento médico é capaz de resolver a sua doença degenerativa facilmente, e passa a desejar o retorno à Terra e para junto do seu interesse romântico. Por um lado, portanto, o romance assume as cores de um drama jurídico em torno da definição da vida e dos direitos do ser humano; e de outro, as de um drama pessoal, do homem em conflito com as disposições comerciais e legais da empresa que assumiu o controle da sua vida. Ao mesmo tempo, há um argumento interessante sobre entrelaçamento quântico entre várias iterações do upload.

Este é o primeiro romance do veterano e premiado autor canadense Robert J. Sawyer que leio. Mindscan alterna momentos intrigantes, com uma espécie de carência de empatia emocional que a gente às vezes se depara numa ficção científica que quer suprir com grandes ideias uma incapacidade de lidar com aspectos emocionais e humanos. É um problema, inclusive, do assunto upload de consciência humana a algum meio digital, virtual ou robótico. Soma-se a isso o fato de que o protagonista é outro personagem pálido, insosso. Nesse sentido, o romance de Sawyer, apesar da sua construção engenhosa e complexa, fica devendo — e muito.

 

A Arte do Cinema: Star Wars (The Art of Film: Star Wars), Anônimo, ed. São Paulo: Editora Europa, 2015, 178 páginas. Tradução de Gustavo Vicola, Maurício Muniz e Paulo Ferreira. Formato grande. Bacana saber que a ascensão da cultura nerd/geek tem permitido a publicação de um livro de arte como este, sobre a arte de Star Wars. Foi produzido originalmente pelos editores da revista inglesa ImagineFX, dedicada à arte digital. É basicamente um catálogo de artistas, trazendo muita arte de fã, mas bastante coisa comissionada oficialmente, inclusive material de Greg Hildebrandt, David Dorman, Dave Seeley, Terry Dodson, Jon Foster e outros artistas fabulosos. Foi muito sensível abrir o livro com o trabalho de Ralph McQuarrie, o desenhista de produção da primeira trilogia da franquia (1977-1983). Incluir esse conteúdo clássico, feito com rapidez com guache ou outra técnica semelhante, mas que conserva uma qualidade épica e a atmosfera de maravilhamento dos primeiros filmes, faz a gente pensar o quanto o look de Star Wars persiste com a sua coesão e coerência estética até interpenetrar a sofisticação da arte digital — representada no livro pela arte fluida de Mark Molnar, Josh Viers, Daryl Mandryk, Simon Goinard e outros. De fato, muita coisa mudou na arte de ficção científica, na transição da tinta e do pincel (ou do aerógrafo) para a mesa digitalizadora. Mas a arte de Star Wars permanece distinta para além do rótulo do retrô, justamente por sua coerência ao longo dos anos. Confesso que sou fascinado pela arte de Star Wars não só por ser  fã da franquia desde a infância, mas exatamente por essa razão relacionada à sua riqueza e à sua permanência. É claro, este e outros livros dão conta da quantidade de talentos que já produziram imagens para Star Wars, e de uma infinidade de abordagens aplicadas por eles.

Há no livro o trabalho do criador de dioramas Stephen Hayford, por exemplo, e o do modelista Ansel Hsiao, que turbinou as naves da franquia em plastimodelismo. Ou de Brandon Kenney, que pintou telas com os personagens da primeira trilogia, em óleo, carvão e acrílica, enquanto Cat Staggs absorveu a iconografia da franquia em arte de poster de propaganda política. Gostei especialmente das ilustrações de Chris Trevas, que criou interpretações visuais intensas, bem-humoradas ou dramáticas de momentos elipsados nas narrativas canônicas dos filmes, materializando aquilo que certamente pertence à imaginação dos fãs.

 

Outros Jeitos de Usar a Boca (Milk and Honey), de Rupi Kaur. São Paulo: Editora Planeta, 20.ª edição, 2018 [2017], 208 páginas. Capa e ilustrações internas de Rupi Kaur. Brochura. Tradução de Ana Guadalupe. Cá estou, tentando ler mais poesia, contemporânea desta vez, e por tabela tentando entender algo da subjetividade feminina. A poeta Rupi Kaur é uma jovem canadense que fez um baita sucesso com este livro, que ela ilustra com os seus próprios desenhos. Chegou ao primeiro lugar na lista do New York Times.

Um aspecto do livro é a exploração muito franca de questões sexuais de étnicas de alguém da sua geração que está fora, em termos físicos e subjetivos, do “padrão”. Filha de mãe indiana, Kaur fala muito de pelos corporais e da vulnerabilidade feminina, tratando de abuso e supressão da voz e do desejo. Na mesma moeda estão a violência masculina, passividade materna e opressão paterna. Ela divide o seu livro em partes com os títulos “A Dor”, “O Amor”, “A Ruptura” e “A Cura”, e é interessante como uma expressão do eu feminino em partes posteriores se contrapõem àquela presente na primeira. “O Amor” começa tratando do amor entre mãe e filha e da maternidade, mas logo entra no amor erótico. O eu lírico assume uma personalidade mais assertiva e prospectiva, mais segura de si em seus desejos e na afirmação das suas várias faces. Essa perspectiva, que não se atrela a situação da mulher vítima nem à da mulher altiva contribui para dar ao livro uma representatividade maior, mesmo que o leitor tenha a impressão de haver um caminho de libertação ou de impulso utópico aí. A terceira parte trata de saudade e separação, e a quarta de solidariedade e autodeterminação. Kaur também se sente livre para escrever poemas curtos de linhas também curtas, ou outros longos e quase de prosa poética. O título original reproduz a imagem do leito e do mel — do corpo feminino que nutre e deleita — muito repetida nos poemas. Não conheço o suficiente dos millennials canadenses e americanos para dizer se Rupi Kaur define ou não dilemas e virtudes da sua geração, mas o seu livro tem caráter e a impressão de juventude salta de suas páginas.

 

Bandeira Sobrinho: Uma Vida e Alguns Versos, de Braulio Tavares. Fortaleza: Editora IMEPH, 2017, 256 palavras. Brochura. Comprei este romance curto praticamente da mão do próprio Braulio Tavares, a quem eu e minha esposa Finisia Fideli encontramos por acaso no estande da Editora Draco, na Bienal do Livro em São Paulo. Ele nos levou ao maravilhoso estande da IMEPH e nos apresentou a este que é o seu segundo romance (depois de A Máquina Voadora, de 1994), tratando-o como um exercício de autoficção. Isso porque há um “Braulio Tavares” personagem e narrador do livro, que é centrado na figura de um cantador e repentista da Paraíba, cujo nome está no título e com quem o Braulio-personagem teria convivido. Bandeira Sobrinho, porém, é um personagem ficcional, cujo discreto estudo de personalidade traçado por Braulio (pelos Braulios, na verdade) fornece um mecanismo interessante e eficiente para uma compreensão das características da cena cultural dessa prática artística tão nordestina e tão importante para a cultura brasileira, nos anos de formação de Braulio Tavares, um conhecido letrista, roteirista de cinema e televisão, poeta cordelista e um dos melhores escritores da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira. Braulio, inclusive, já escreveu muito a respeito do cordel e do repente em livros como Contanto Histórias em Versos: Poesia e Romanceiro Popular no Brasil (2005) e Cantoria: Regras e Estilos (2016).

Como sempre e em tudo o que faz, ele conduz o texto de Bandeira Sobrinho com graça, brilho, riqueza de textura e uma erudição despretensiosa. Há um componente metaficcional efetivo e integrado ao projeto do romance, já que os versos reproduzidos — todos escritos por Braulio Tavares — compõem com a narrativa e a caracterização dos personagens e do seu ambiente. Interessantemente, no mesmo ano em que visitamos o IMEPH, o cordel  foi declarado patrimônio imaterial do Brasil.

 

Arte de capa de Cayman.

A Sombra do Corvo, de Rouxinol do Rinaré. Fortaleza: Edição do Autor, novembro de 2017, 8 páginas. Capa de Cayman. Folheto. Por falar em cordel, este é um dos que Braulio Tavares me indicou no estande do IMEPH. Uma das coisas maravilhosas que a editora cearense fez foi trazer cantadores e cordelistas para a Bienal do Livro, de modo que pegamos o autógrafo de Rouxinol do Rinaré ali mesmo. Braulio indicou este cordel em particular porque ele se inspira no famosíssimo poema de Edgar Allan Poe, “O Corvo” (1845). Trata-se então de um diálogo intertextual e homenagem bem específicos, e seria interessante sondar como o poema de Poe veio a impressionar o poeta brasileiro. De qualquer modo, o cordel sempre fez um malabarismo de erudição entre fontes clássicas e populares.

É claro, o poema narrativo de Rouxinol do Rinaré é mais extenso e num tom diferente daquele de Edgar Allan Poe, mas há pedras de toque o suficiente entre um e outro para garantir um jogo intertextual evocativo. Poe é incrivelmente produtivo e plástico, nesse sentido. A sua obra se presta ao diálogo em polos tão diferentes quanto o mainstream literário, a ficção de gênero e, como vemos aqui, formatos populares como o cordel.

 

Arte de capa de Eduardo Azevedo.

Jorge e Carolina, de Rouxinol do Rinaré. Fortaleza: Edição do Autor, novembro de 2015, 32 páginas. Capa de Eduardo Azevedo. Folheto. Neste Jorge e Carolina, Rouxinol do Rinaré adapta uma obra brasileira, A Viuvinha (1857), o segundo romance publicado por José de Alencar. Eu me pergunto se haveria ou haverá no futuro um mercado para adaptações de cordel de grandes obras do cânone literário nacional, como aconteceu com as histórias em quadrinhos que adaptam esses livros, funcionando como um facilitador para quem quer ter esse capital cultural em particular — ou que precisa enfrentar perguntas de literatura no vestibular… Acho que não.

A Viuvinha é um romance de costumes, tônica da época, e o poema narrativo descreve o casal de protagonistas citados no seu título, e a situação emocional e social dos dois. Narra como o moço superou o passado perdulário e irresponsável, para conquistar a moça. O tom é mais sóbrio, é claro, do que A Sombra do Corvo. Rouxinol do Rinaré recebeu prêmios e venceu concursos, foi citado em revistas culturais francesas como Quadrant, Latitudes e Infos Brésil, e sua arte poética é assunto de muitos trabalhos acadêmicos. Um tesouro regional e nacional.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Juan Giménez.

Apocalypse: The Eyes of Doom, de Juan Giménez & Roberto Dal Prá. Northampton, Massachusetts: Heavy Metal/Kitchen Sink, 1993 [1991], 58 páginas. Arte de capa de Juan Giménez. Tradução de Michela Noris. Álbum capa dura. Sendo fã do quadrinista argentino Juan Giménez, eu não poderia deixar este álbum colorido dando sopa por muito tempo, na loja Omniverse de Luis Mauro. A história começa em 1972 na guerra do Vietnã, quando o sargento Dan Curry (chamado de “Dick” em um momento, talvez por engano da tradutora) vê uma criança deter, aparentemente pela força do pensamento, um par de helicópteros americanos durante o ataque a uma aldeia vietnamita. Anos depois, vivendo em Nova York, Curry é um bem-sucedido escritor de ficção de detetive — uma instância do interesse europeu pela coisa toda do cinema noir. Obcecado pelo que viu no Vietnã, o atormentado Curry claramente mantém um interesse pela cultura indochinesa. Ele acaba se deparando com casos estranhos de mortes entre a cúpula do crime organizado no Chinatown novaiorquino, e passa a investigá-los de modo independente. A narrativa vai então a um jovem confinado a uma cadeira de rodas, e sua mãe, a responsável pelos ataques e pela campanha de tomada de poder do crime organizado em Chinatown. Obviamente, o rapaz é aquele menino vietnamita com poderes mentais.

Uma critica que se pode fazer ao enredo é que Curry no fim não descobre nada, apenas testemunhando o destino final do seu objeto de interesse. A dinâmica entre mãe e filho explica sozinha que ela não é de fato a mãe dele, mas uma mulher que apenas viu o que ele era capaz de fazer ainda em criança, e que passou a utilizá-lo para os seus fins. Mesmo sabendo que, a cada vez que o jovem usa seus poderes, paga um preço caro em saúde física — daí a cadeira de rodas. O álbum apresenta então uma história que é uma espécie de Scanners (1981) em formato de film noir, mas é o virtuosismo de Giménez que o eleva para algo mais do que o nível de um telefilme da época. O apartamento de Curry, por exemplo, é um desbunde, atulhado com objetos de arte oriental ajuntados pelo obcecado escritor. Para esse álbum, o artista empregou um ângulo especial de iluminação, aplicado ao rosto dos personagens a fim de lhes dar maior expressividade. E as cenas de paranormalidade são genuinamente assustadoras.

 

Superman Crônicas Volume Um, de Jerry Siegal & Joe Shuster. Barueri-SP: Panini Brasil, agosto de 2007, 194 páginas. Capa dura. Depois de ler mês passado a biografia em quadrinhos de Joe Shuster, fui atrás desta compilação das primeiras histórias do Super-Homem criadas por ele e Siegal, nas páginas da revista Action Comics. É maravilhoso que a Panini tenha nos franqueado esse material histórico.

De imediato, fica claro que o personagem que se consagrou nas HQs e nas telonas e telinhas era, em sua origem, bastante diferente. Faltam todas aqueles superpoderes cuja dinâmica foram a tônica do personagem em um momento posterior. Também falta o enfrentamento de supervilões exóticos que parecem possuir o seu próprio complexo militar-industrial (como Lex Luthor), ser um supercrânio vindo do futuro, um duende vindo de uma outra dimensão, ou incontáveis ameaças alienígenas. (Parece que essas coisas foram definidas posteriormente não por Siegal & Shuster, mas por Julius Schwartz.) Na sua primeira fase, o Super-Homem enfrenta os problemas sociais do seu tempo e lugar, os Estados Unidos de fins da década de 1930.

Na primeira história, o herói impede uma mulher injustamente condenada à morte de ser executada, brutaliza um marido abusivo, salva Lois Lane de um machão, e aterroriza um lobista corruptor. Esse último caso o leva, na segunda história, a uma situação de fomento de guerra em um país estrangeiro fictício, para incrementar a venda de armas. Clark Kent e Lois Lane vão para lá cobrir o conflito, e o herói tem a chance de salvar Lois de um fuzilamento, despacha um torturador militar, e obriga os generais das duas partes no conflito a lutar até a morte ou a fazer as pazes. Outras histórias envolvem um empresário do setor de mineração que não investe o que devia na segurança dos trabalhadores, trapaça em um campeonato de futebol americano, um impostor do Superman a serviço da imprensa marrom, delinquência juvenil e favelização, corrupção policial e penitenciária, especuladores do petróleo, e leis de trânsito frouxas levando a um número elevado de acidentes.

É fabuloso que Superman tenha surgido como um guerreiro da justiça social, mas os seus criadores temperaram a sua bondade com a atitude das ruas, emprestando a aspereza da ficção de detetive (incluindo truques como disfarces) que o faz empregar espancamentos, intimidações, destruição de propriedade na escala de arma de destruição de massa — como quando resolve sozinho revitalizar uma zona de cortiços, expulsando as pessoas de suas casas e as destruindo do teto ao chão. Suponho que o seu código de honra, tão de aço quanto ele, tenha surgido mais tarde. Depois de ler este material, eu me pergunto se a disposição do herói de obedecer às leis dos homens não veio só para temperar o uso desinibido do seu poder super-humano, mas também para afastá-lo desse seu lado social por razões políticas e ideológicas. Mesmo neste primeiro volume com 14 histórias, a gente vê o herói sendo aperfeiçoado na sua origem: a primeira história fala do menino recolhido de um foguete entregue a um orfanato por um motorista anônimo; quando o personagem ganha sua própria revista, a história de origem menciona o casal Kent como tendo encontrado a nave, recolhendo o bebê e o entregando ao orfanato, mas retornando logo depois com a proposta de adotá-lo. O livro reúne também as capas da Action Comics de 1 a 13, da primeira Superman, e da histórica edição New York World’s Fair Comics.

 

Arte de capa de Cliff Chiang.

Paper Girls Volume 1, de Brian K. Vaughan (texto) & Cliff Chiang (arte). São Paulo: Devir Brasil, 2016, . Arte de capa de Cliff Chiang. Tradução de Kleber Ricardo de Sousa. Brochura. OK: anos 80. Eu estava lá. Li livros de Stephen King, vi filmes como Os Goonies e Carrie, a Estranha, joguei Asteroids e Space Invaders, e li muito gibi de horror e ficção científica. Releituras como Super-8, Stranger Things e produções ambiciosas como a de It são mais que bem-vindas — mesmo porque as estratégias narrativas e os temas daquela época ainda guardam a sua eficiência. Os meus romances Anjo de DorMistério de Deus, ambientados em 1990 e 1991, têm tudo a ver com essas estratégias e temas.

Este Paper Girl combina muita coisa de tais estratégias narrativas: um grupo de crianças imaginativas enfiadas em situações fantásticas, um fenômeno sobrenatural ou alienígena ameaçando uma pequena comunidade, narrativas pessoais de desajuste caracterizando os personagens, ideias de ficção científica e horror informadas por uma tradição de filmes e livros populares, referências culturais por toda parte, e um aceno ao cósmico. É claro, há uma qualidade áspera, irônica, e subversiva no roteiro de Brian Vaughan, embora, felizmente, não tanto quanto no seu megassucesso, a space opera nonsense Saga. No primeiro episódio, as meninas entregadoras de jornal se metem, no meio da madrugada, com uns valentões vestidos para o Halloween — e essa é a coisa mais normal com que se deparam. Depois disso temos viagem no tempo, uma polícia temporal montada em pterossauros, e um conflito de gerações no futuro. As quatro meninas forma um conjunto de dinâmica divertida, de origens diversas (uma delas fuma, anda armada, é bocuda e politicamente incorreta; uma outra é mulata, outra é meiga e ingênua, e por aí vai). Muita coisa fica no ar, esperando definição maior no volume dois. Este aqui fecha com o gancho mais perfeito.

 

Arte de capa Owen Freeman.

Lazarus Volume 2: Ascensão (Lazarus Number 2), de Greg Rucka (texto) & Michael Lark (arte). São Paulo: Devir Brasil, dezembro de 2018, 128 páginas. Arte de capa Owen Freeman. Brochura. Este é o segundo volume de um série de ficção científica que tenho acompanhado com muito interesse por ser uma bem realizada FC cyberpunk rural — algo visto antes nos romances Tempo Fechado (Heavy Weather, 1994), de Bruce Sterling, e em partes de The Peripheral (2014), de William Gibson, do qual já tratei aqui em janeiro. Se no cyberpunk usual, urbano, frequentemente aparece uma monstruosa aristocracia financeiro-industrial, em Lazarus tem-se uma violenta aristocracia rural quase feudalista, que controla o trabalho com poderes absolutos e alicia os talentos de técnicos e cientistas à sua “família”, num vínculo vitalício. O patriarcalismo é total em um futuro americano decadente e distópico, de carências agudas e grandes desigualdades sociais.

A protagonista da série é Forever Carlyle, uma pós-humana criada desde criança para ser uma espécie de tenente e carrasco da família Carlyle. Ela é capaz de se regenerar rapidamente de ferimentos infligidos a ela — daí o título da série. Incidentes narrados no volume 1 deixaram Forever com a pulga atrás da orelha em relação aos negócios da família e o quanto a sua lealdade absoluta é correspondida pelo patriarca e por seus “irmãos”. Aqui, conhecemos mais do treinamento de Forever na infância, com direito a espadas japonesas bem cyberpunks, e à descarada chantagem emocional do patriarca. O habilidoso romancista Greg Rucka desenvolve a narrativa como o roteiro de um filme, introduzindo neste volume um enredo paralelo envolvendo uma família de “refugos” (os trabalhadores sem adesão a uma “família”) que abandona a propriedade degradada em que tinham se abrigado e partem como retirantes rumo a um posto de recrutamento de trabalhadores organizado pelos Carlyles. Tanto essa linha quando o momento climático da sua fusão com a linha de Forever tem uma crueza digna de um filme como Logan (2017). O desenho realista de Michael Lark, que conserva algo de autocontraste por baixo da cor esmaecida de Santi Arcas, enfatiza a dureza da narrativa e coloca o leitor nesse mundo tão semelhante ao nosso mas com elementos futuristas suficientes para sublinhar o lado cyberpunk de Lazarus. Uma das HQs de ficção científica mais bacanas sendo publicadas atualmente.

—Roberto Causo

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O Prefácio de Roberto Causo ao eBook “Sobre a Imortalidade de Rui de Leão”

Roberto Causo foi abordado pelo editor André Caniato, da Plutão Livros, para escrever o prefácio do e-book Sobre a Imortalidade de Rui de Leão (Pontes Gestal, SP: Plutão Livros, 1.ª edição eletrônica, 2018, 2784KB. Capa e ilustrações internas de Paula Cruz), que você pode conferir abaixo, na versão do autor.

 

O Imortal e o Imortal

Machado de Assis e a Ficção Científica

 

Arte de capa de Paula Cruz.

A ficção científica brasileira existe desde meados do século XIX. Essa é uma afirmativa que, ao mesmo tempo que é incontestável, exige explicações e qualificativos. Especialmente porque essa ocorrência de FC no país é bastante esporádica. Esse quadro de inconstância se dá, curiosamente, entre os anos de 1857 a 1957. Um lapso de 100 anos que formam o que chamei de Período Pioneiro da Ficção Científica Brasileira — e de saída admito que 100 anos são de fato muito tempo para se agrupar uma determinada circunstância literária.

Esse período, é claro, possui momentos e situações bastante variadas, mas é justo levantar dois pontos que circunscrevem muito da sua identidade: primeiro, a maior parte daquela produção ficcional aderia aos modelos narrativos e convenções literárias do século XIX, especialmente o romance de aventura e de capa e espada, o conto de subjetividade romântica, a narrativa de mundo perdido, a sátira social e o panfleto utópico; segundo, a falta do entendimento, crítico ou popular, de tal produção como parte de um gênero literário específico.

O segundo aspecto citado começa a se alterar muito rapidamente a partir de 1957, ano em que os cientistas soviéticos colocaram o Sputnik em órbita, e em que a ameaça de conflito nuclear entre as superpotências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, e o advento de inovações tecnológicas como o computador, o aparelho de televisão, o voo supersônico e o míssil teleguiado entram na consciência popular. São fatores que aproximam a realidade imediata, das ideias da ficção científica. A FC é então redescoberta como um gênero literário com algo a dizer de concreto, profundo e urgente sobre o mundo. Nos Estados Unidos, a grande produção antes dirigida às revistas populares (chamadas de pulp magazines) já havia se decantado em um número de romances e antologias publicadas em livro — edições em capa dura destinadas ao mercado de bibliotecas públicas e clubes de livro; e edições em brochura e formato de bolso, em grandes tiragens, na assim chamada “revolução dos paperbacks” surgida durante a guerra.

No Brasil, dois livros lançados em 1958 marcam a “chegada” da FC como gênero no país: a antologia Maravilhas da Ficção Científica, editada por Fernando Correia da Silva & Wilma Pupo Nogueira Brito; e O Homem que Viu o Disco-Voador, um hábil romance de Rubens Teixeira Scavone ambientado em São Paulo e na Ilha da Trindade. A antologia não trouxe nenhuma história brasileira, mas apresentou uma brilhante e erudita introdução do crítico Mário da Silva Brito, que, por si só, disparou um debate envolvendo a intelectualidade de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, sobre a relevância ou irrelevância da FC para a literatura e a modernidade. O gongo soou e no ringue dessa questão literária subiram figuras de peso como Otto Maria Carpeaux, Wilson Martins, Antonio Olinto, Maria de Lourdes Teixeira, João Camilo de Oliveira Tôrres, Clóvis Garcia, Alcântara Machado, Frederico Branco, Willy Lewin, Fausto Cunha, Laís Corrêa de Araújo, André Carneiro, e o editor Gumercindo Rocha Dorea. Algo semelhante só viria a acontecer com os esforços de Luiz Bras (pseudônimo de Nelson de Oliveira), seguidos ao seu ensaio-manifesto “Convite ao Mainstream” (2009), de aproximar a ficção científica da ficção literária brasileira — mas em menor escala e com menor polêmica.

Quase nesse mesmo instante, Gumercindo Rocha Dorea publica a coletânea de histórias de Dinah Silveira de Queiroz, Eles Herdarão a Terra (1960), e Antologia Brasileira de Ficção Científica (1961), editada por ele — a primeira antologia de FC brasileira da história da literatura. Os livros saíram na Coleção Ficção Científica GRD, que a partir daí abrigou diversos outros autores nacionais: Olinto, Carneiro, Cunha, Zora Seljan, Levy Menezes, Guido Wilmar Sassi, Álvaro Malheiros e o veterano Jeronymo Monteiro — que fundou a Associação Brasileira de Ficção Científica (o primeiro fã clube de FC do país) e foi o editor do Magazine de Ficção Científica (1970-1972), a nossa versão da importante revista americana The Magazine of Fantasy & Science Fiction.

Seguindo as Edições GRD, de Dorea, vieram a EdArt, publicando Carneiro, Nilson D. Martello, Walter Martins, Domingos Carvalho da Silva e vários outros. O Clube do Livro também participou desse momento, publicando Scavone e Luiz Armando Braga. A atuação de Dorea foi impactante o suficiente para que Fausto Cunha, então um dos críticos mais relevantes do Brasil, chamasse de “Geração GRD” o elenco de escritores brasileiros que escreveram FC naquela década.

Surge aí, entre 1957 e 1972, a Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira. Sem dúvida, a ditadura militar (1964 a 1985) teve um papel tanto na descontinuidade da Primeira Onda, quanto na reorientação do que seria a tônica da FC nacional na década de 1970. Esse momento seguinte — que pode ser chamado de Ciclo ou Onda de Utopias e Distopias (1972 a 1982) — empurrou os autores da Primeira Onda para o fundo do palco, como as figuras que tiveram uma sobrevida nessa década, Carneiro, Cunha, Queiroz e Scavone. Para a frente veio uma FC que, muitas vezes de maneira alegórica e absurdista, fazia a crítica ao regime militar, à tecnocracia e à impertinência do Estado tentando gerenciar a sexualidade e os costumes. Foram autores como Ruth Bueno, Mauro Chaves, Chico Buarque, Maria Alice Barroso, Herberto Sales, Márcio Souza e, especialmente, Ignácio e Loyola Brandão, cujo romance Não Verás País Nenhum (1981) se tornou o marco daquele momento. Essa tendência, porém, dissipou-se com a Abertura e a posterior redemocratização, sublimando-se na literatura pop brasileira e, mais tarde, na ficção auto-reflexiva ou metaficcional brasileira.

O que veio na década de 1980 foi a Segunda Onda (1982 a 2015), marcada pelos fanzines e por um número de autores que, ao contrário dos momentos anteriores, eram majoritariamente leitores de FC, cientes das suas convenções e características como gênero literário. Por isso mesmo, desenvolveram tendências mais variadas, incluindo a FC hard, a história alternativa, a FC feminista, a sociológica e a experimental. Braulio Tavares, Jorge Luiz Calife, Ivan Carlos Regina, Finisia Fideli, Roberto Schima, Simone Saueressig, Ivanir Calado, Guilherme Kujawski, Gerson Lodi-Ribeiro, Fábio Fernandes, Daniel Fresnot, Marien Calixte, João Batista Melo, Miguel Carqueija, Cesar Silva e Carlos Orsi são alguns dos autores do período, que também viu surgir o primeiro movimento literário da FC nacional, em torno do “Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira” (1988) de Regina, que propunha mais brasilidade e antropofagia cultural.

Um núcleo desses autores — Lodi-Ribeiro, Orsi, Silva, Octávio Aragão e o pesquisador Marcello Simão Branco — uniram-se em uma editora cooperativada, a Ano-Luz, e mais tarde formou (com Fernandes, Max Mallmann e outros) o que chamei de Grupo da Renovação. O grupo se tornou influente junto à Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira (2004 ao presente), momento em a FC se aproxima da fantasia e do público jovem e passa por um esforço editorial de atualização de tendências — o cyberpunk e o steampunk, o New Weird e a FC queer, por exemplo. Seus autores propagam a importância da internet em suas posições literárias e se apresentam pela primeira vez como uma novidade no campo, própria do século XXI. Eles assumiram blogs, videologs e revistas eletrônicas, e advogam a popularização da literatura fantástica, levantando a ficção pulp e a busca direta do público leitor como bandeiras. Entre seus nomes de maior relevo e importância estão Jacques Barcia, Cirilo S. Lemos, Ana Cristina Rodrigues, Tibor Moricz, Flávio Medeiros Jr., Cristina Lasaitis, Enéias Tavares, Christopher Kastensmidt, Mustafá ibn Ali Kanso, Felipe Castilho, Aline Valek e Samir Machado de Machado. Um destaque importante é Luiz Bras — pseudônimo de Nelson de Oliveira, que se volta à FC brasileira nesse momento, impondo uma perspectiva mais literária e experimental.

Os dois textos de Machado de Assis reunidos aqui fazem parte, evidentemente, do Período Pioneiro da FC Brasileira. “Rui de Leão” foi publicado originalmente em 1872 no Jornal das Famílias, e “O Imortal” dez anos depois, em partes na revista A Estação.

O fato de Machado ter escrito alguma forma de ficção científica — e essa é outra ressalva que se deve fazer sobre o Período Pioneiro — não deve causar estranhamento. Os dois contos em questão, por exemplo, foram precedidos por “O Fim do Mundo em 1857” (1857), de Joaquim Manuel de Macedo, autor daquele que é considerado o primeiro romance brasileiro, A Moreninha (1844). O próprio Macedo mesmo retornaria ao fantástico posteriormente com A Luneta Mágica (1869). A historiografia da FC brasileira também registra Páginas da História do Brasil, Escrita no Ano de 2000 (1868-1872), de Joaquim Felício dos Santos. E, entre os dois textos de Machado, têm-se o marco da publicação de O Doutor Benignus (1875), de Augusto Emilio Zaluar, o melhor candidato, até o momento, a primeiro romance brasileiro de ficção científica. Vinte e poucos anos depois, Emília Freitas publicaria o seu também pioneiro romance feminista de aventura e espiritualismo, A Rainha do Ignoto (1899). Enfim, o próprio Machado também é autor da fantasia orientalista “As Academias de Sião”, que propõe a troca temporária de corpos entre o monarca da antiga Tailândia e uma de suas concubinas.

A partir desse primeiro momento, muitos grandes nomes da literatura nacional escreveram algum tipo de FC: Lima Barreto, Monteiro Lobato, Menotti Del Picchia, Erico Verissimo, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa. No caso de Machado, seu posicionamento na linha evolutiva dos movimentos literários é complicada pela sua produção variada e prolífica, sinal da disposição de ocupar os espaços literários disponíveis na sua época. José Luiz Passos, autor de Romance com Pessoas: A Imaginação em Machado de Assis (2007), reconhece: “Há grande ambição num escritor que, na sequência dos primeiros livros, tenta todos os [formatos] que a literatura do seu tempo lhe punha à disposição.”

A relação aqui é menos ideária — isto é, obedecendo a um receituário como o do Realismo, por exemplo — e mais uma relação de aproveitamento pessoal de práticas literárias em circulação na época, coloridas com a personalidade do escritor. Neste caso, aquilo que viria a compor a nossa imagem do que é a FC como gênero estava, no século XIX, difuso na narrativa de aventura a terras estranhas, ou no conto gótico, ou na sátira social e política. Machado pescou esses e outros elementos, e incidentalmente fez aquilo que nosso olhar retrospectivo identifica como FC. Cabe lembrar que Machado demonstrou em vários contos da década de 1880, o seu interesse por Edgar Allan Poe, autor de gótico americano, pioneiro da literatura de horror e de ficção científica.

“Rui de Leão” (ou “Ruy de Leão”) abre com o personagem título, um fidalgo português, vivendo entre os tamoios. A história narra com ironia a sua aculturação entre os nativos, com direito a nudez e antropofagia, guiada pelo mui filosófico pajé da aldeia, seu sogro. Moribundo, o pajé lega ao genro um frasco contendo uma poção que traz a imortalidade. Rui hesita em beber, e mais tarde conhece um padre em missão na área, e nega-se a batizar seu filho com a filha do pajé. Como que reagindo à praga do padre, ele adoece na sequência e recorre à poção.

Depois disso ele tem seu vigor redobrado, não envelhece mais e não perece de agressões de outro modo fatais. Vai parar na Europa, onde apavora alguns com sua situação inédita. Aos poucos, é a condição de imortal e menos as peripécias advindas dela que assume o centro da narrativa.

A versão que Machado realizou com “O Imortal” tem estrutura mais sofisticada, com as aventuras de Rui de Leão narradas entre uma espécie de “parênteses”, já que a abertura e a conclusão estão a cargo de um filho do personagem, médico homeopata vivendo no século XIX, narrando os fatos a um grupo de amigos em uma noite chuvosa. É um detalhe que sublinha inspiração do conto gótico sobre a história machadiana.

A ironia tem uma presença mais discreta, assim como o percurso do personagem pela história brasileira e europeia ganha sofisticação e interesse. Mais do que isso, para a perspectiva da FC, o escritor nos dá um argumento de grande interesse, dada a sua raridade dentro do gênero, na época: “A ciência de um século não sabia tudo; outro século vem e passa adiante. Quem sabe se os homens não descobrirão um dia a imortalidade, e se o elixir científico não será esta mesma droga selvática?” Surge aí uma hipótese científica para fundamentar a premissa, mesmo que não problematizada. Além disso, Machado foi presciente ao antever uma iniciativa que se fixa em fins do século XX até o presente, da busca científica na floresta tropical e ao conhecimento dos povos nativos e tradicionais, por novos medicamentos e terapêuticas.

O tema da imortalidade igualmente integra-se à ficção científica por via da tradição gótica, levando o crítico inglês Brian Stableford a afirmar: “A imortalidade é um dos leitmotifs básicos do pensamento especulativo; o elixir da vida e a fonte da juventude são objetivos hipotéticos das buscas intelectuais e exploratórias clássicas.” Stableford também observa: “Uma coisa imediatamente perceptível sobre essa rica tradição literária é que a imortalidade é frequentemente tratada como um falso objetivo, algo como uma maldição” — bem dentro das aflições de Rui de Leão, nos dois textos reproduzidos aqui. Por outro lado, a biografia do próprio Machado de Assis nos sugere um outro nível de ironia, já que ele alcançou um tipo de imortalidade, talvez menos vão, ao ser eleito para a Academia Brasileira de Letras — que ele ajudou a fundar — em 1897.

As peripécias de Rui de Leão, por sua vez, estão dentro do leque de aventuras físicas e sentimentais da literatura da época, e em uma análise bastante sofisticada de “O Imortal”, o Prof. João Adolfo Hansen, da Universidade de São Paulo, observa que enredo de Machado incorpora os clichês do Romantismo sobre o homem que ascende socialmente e conquista a mulher aristocrática, ou que se envolve em revoltas libertárias, e combate invasores ou indígenas, de modo que o seu agrupamento em uma única narrativa — e vividos por um único personagem, como um Forrest Gump do século XVII[1] — formaria uma crítica irônica dos excessos daquele movimento. Algo, inclusive, que Machado fez em vários outros momentos, como nos contos “Aurora sem Dia” e “A Chinela Turca”.

Não obstante essa hipótese de uma postura satírica, os contos não deixam de pertencer à ficção científica. Assim como o autor da sátira política não deixa de pertencer à sociedade ou ao país que ele ou ela satirizam.

A Plutão Livros presta um grande serviço ao pesquisador e ao leitor de FC, ao disponibilizar esta edição com as duas histórias lado a lado. Certamente, a ficção científica no Brasil é um gênero importante e rico demais, para que suas obras de interesse caiam no esquecimento.

 

Roberto de Sousa Causo

São Paulo, maio de 2018.

 

[1] Algo que Erico Verissimo também fez com a sua novela juvenil As Aventuras de Tibiquera (1937), eu tem como personagem título um indígena imortal que assiste aos eventos do Brasil desde o Descobrimento até a década de 1930. Verissimo escreveu também o romance Viagem à Aurora do Mundo (1939), em que há um visor temporal que guia o leitor por uma excursão pela origem da vida na Terra.

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Leia o Posfácio de Roberto Causo para o Livro “Fantástico Brasileiro”

De autoria de Bruno Anselmi Matangrano & Enéias Tavares, Fantástico Brasileiro: O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo (Arte & Letra Editora, 2018) traz um raro levantamento e uma ousada defesa dessa literatura no Brasil. Roberto Causo teve o privilégio de escrever o prefácio do livro, que você pode conferir abaixo.

 

 

Arte de capa de Karl Felippe.

Uma Questão Literária para o Século 21

 

O principal produto da cultura brasileira é o esquecimento.

Costumamos nos esconder desse fato atrás de justificativas muito repetidas, mas que nunca fizeram muito sentido. A principal delas é a de que o tempo — ele mesmo uma abstração sem senso crítico ou noção de justiça — faz a seleção do que deve ou não permanecer para a posteridade. Uma falácia que esconde, ao mesmo tempo, a preguiça em emitir opiniões e o jogo de forças por trás da seleção efetiva realizada pelos atores do sistema literário — no caso específico da literatura, que é o interesse deste notável livro que você tem em mãos.

Alguém sempre escolhe, e esse alguém, que muitas vezes se apresenta como autoridade em razão de formação, bom gosto ou posição de destaque nos meios de comunicação ou aparelhos culturais, não está distante de empregar no campo da política literária, os mesmos recursos baixos utilizados na política partidária ou ideológica, como o Dr. Martim Vasques da Cunha apontou no seu importante embora desastrado ensaio A Poeira da Glória (2015). Recursos que incluem a difamação, a desonestidade intelectual no momento da crítica, e o empenho em colocar inimigos literários no ostracismo acionando aliados em círculos intelectuais e artísticos — e atualmente, fomentando consensos fabricados nas redes sociais.

Outro argumento, muito ouvido há alguns anos no ambiente da literatura especulativa (ficção científica, fantasia e horror) brasileira, é o de que a internet e os recursos de comunicação e socialização advindos dela representam uma mudança radical de paradigmas. E essa mudança tornaria irrelevante o que veio antes, já que a maior necessidade seria o fomento e a criação de espaços para a geração de autores (no que chamei de Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira) surgida dentro desses novos paradigmas.

O que se expressava então era, antes de qualquer outra coisa, a ansiedade de jovens escritores em serem publicados, comentados e integrados a um mercado editorial de literatura especulativa que, na época, crescia de maneira sem precedentes. Trata-se, de qualquer modo, de outra instância de política literária, uma que ignora a importância do diálogo intertextual como mecanismo de evolução literária — e que nega a possibilidade de um diálogo específico com textos brasileiros, e não apenas com as influências internacionais contemporâneas. Essa postura tem uma resposta óbvia: quem não está disposto a lembrar, dificilmente será lembrado. Porque com essa negação solapamos a formação de um futuro quadro institucional disposto e apto a lembrar.

Finalmente, existe ainda a questão do lugar destinado, dentro das letras brasileiras e do atual sistema literário, tanto à literatura especulativa propriamente, quanto aos outros ramos agrupados dentro do útil conceito do Prof. Flavio García, o insólito. O que subjaz aqui é que essa produção ou esse aspecto da literatura brasileira, dentro do sistema literário, não mereceria ser lembrado. Seria “secundário”, “minoritário”, “irrelevante”, “subliterário”, “impertinente”, “espúrio”, “ideológico”… Dependendo, é claro, do alvo da avaliação. Secundário, quando ocorrendo na obra de grandes nomes como Machado de Assis, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Monteiro Lobato, Erico Verissimo, Jorge Amado, João Guimarães Rosa, Dinah Silveira de Queiroz, Antonio Olinto, Lygia Fagundes Telles, Ignácio de Loyola Brandão, Conceição Evaristo, Rubem Fonseca, João Ubaldo Ribeiro, Flávio Carneiro, Rubens Figueiredo e Nelson de Oliveira. Subliterário, quando configurado como um gênero popular como a ficção científica, a fantasia e o horror — vistos pela intelligentsia como parte da “indústria cultural” ou “mera literatura de entretenimento”.

Diante desse estado de coisas, é preciso um tipo especial de generosidade para contextualizar historicamente uma produção como a literatura especulativa, no contexto das letras brasileiras. Escrito pelos Profs. Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares, Fantástico Brasileiro: O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo, vem se juntar a uma pequena produção de livros que se incumbiu de — muitas vezes para além da muleta intelectual do recorte de pesquisa — levantar, interpretar e nos lembrar da existência e da importância dessa produção no Brasil. Entre eles estão Viagem às Letras do Futuro: Extratos de Bordo da Ficção Científica Brasileira: 1947-1975 (2002), de Francisco Alberto Skorupa; Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (2004), de M. Elizabeth Ginway; a iniciativa em vários volumes do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica (2004 a 2013), de Cesar Silva & Marcello Simão Branco; e Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro (2013), de Alfredo Suppia.

Essa generosidade é em si mesma uma ousadia, que Matangrano & Tavares multiplicam ao colocarem sob a mesma chave grandes autores do romance e do conto brasileiro, ao lado dos menos conhecidos, desconhecidos ou iniciantes — como conterrâneos de um mesmo território literário. Tamanho ecletismo e destemor tem precedente no singular Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog preparado por Braulio Tavares para a Fundação Biblioteca Nacional, em 1991. O insólito abraça a todos, e essa postura não hierarquizante também é algo a ser reconhecido e aplaudido, no trabalho dos autores de Fantástico Brasileiro.

Mais do que a perspectiva cronológica, o livro tem uma divisão engenhosa cujos tópicos sublinham a mais interessante perspectiva da Terceira Onda — a problemática da diversidade e da representatividade. A ênfase na fantasia — que sentimos no conceito do fantasismo — e na literatura para jovens, são outros pontos constantes da Terceira Onda, aqui também representados com a mesma preocupação de abrangência. Assim como a recorrência à tradição da escrita pulp, nem sempre bem manipulada pela Terceira Onda, mas estabelecida como símbolo de desejo de se engajar o leitor e renunciar ao elitismo literário e à mesmice da alta literatura brasileira, demanda que também caracteriza a situação da leitura e da literatura no século 21.

Ao expressar esses tópicos de retórica literária e das estratégias de ação da Terceira Onda, Fantástico Brasileiro se une ao também recente livro de Kátia Regina Souza, A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil (2017), como um texto que traduz o caráter desse momento tão intenso e inédito dentro da trajetória nacional seja da literatura especulativa, seja do insólito — este, incorporado sob a forma do absurdismo metaficcional (ou fabulation, na expressão do acadêmico americano Robert Scholes) à ficção pós-modernista brasileira desde a década de 1970, e sublinhado pelos autores da Geração 90.

Diversidade e representatividade parecem compor o ponto mais relevante deste momento da Terceira Onda. O “Manifesto Irradiativo” (2015), dos escritores Alliah & Jim Anotsu, e o consequente Encontro Irradiativo (realizado também em 2015) certamente serviram para marcar a eclosão dessa tendência. Nela temos, muito bem expresso no livro de Matangrano & Tavares o fantástico brasileiro como uma alternativa ao infeliz estado de coisas que trouxe perplexidade à Dr.ª Regina Dalcastagnè, quando o segundo round da sua pesquisa sobre o perfil demográfico dos narradores e personagens de ficção na literatura brasileira revelou que pouco havia mudado desde a sua denúncia inicial, há mais de uma década (2005), de que as letras nacionais são ocupadas pela figura do homem branco, heterossexual e de classe média, com valores estagnados e focado majoritariamente na metalinguística da escrita literária. O fato da Dr.ª Dalcastagnè ter se concentrado em três editoras que representaria o núcleo duro (engessado?) da literatura brasileira contemporânea, e de ter excluído deliberadamente qualquer forma de ficção de gênero, é uma daquelas instâncias em que a impertinente instituição do recorte de pesquisa escusa a pesquisadora de buscar remédios para o mal que denuncia. Sem esse olhar para fora, a própria voz que exige mudanças acaba sendo uma daquelas que condena a todos, sem salvar ninguém.

Devo dizer que os resultados levantados pela Dr.ª Dalcastagnè não são e nunca foram surpresa para mim. Já por volta de 1993 eu pedia, implorava e exigia uma variação temática, uma busca maior por representatividade, por enfoques literários diversos dentro da literatura especulativa brasileira. O país que possui a maior biodiversidade do mundo não pode ser o país da monocultura, eu disse mais tarde, numa metáfora ecológica. Se a lit spec brasuca deseja não apenas existir e não só vender bem, mas ser relevante, ela precisa compor um ecossistema forte e diversificado. Não só para crescer e frutificar em si mesma, mas para constituir ela mesma uma variação que se posicione em simultânea articulação e divergência perante o mainstream literário. Um bioma distinto, dentro do ecossistema maior da literatura brasileira.

A proposta de que esse bioma — uma corrente, prática ou conjunto de possibilidades — teria o potencial para contestar, redirecionar ou reposicionar pontos como os levantados pela Dr.ª Dalcastagnè, é uma questão literária significativa para as letras nacionais no século 21. E ela está implícita, eu creio, no anúncio do fantasismo como um movimento literário, feito nas páginas deste livro.

Vale lembrar que antes, no ensaio “Convite ao Mainstream” (de 2009), o escritor Luiz Bras (Nelson de Oliveira) havia apontado o esgotamento dos modelos de protagonista na ficção brasileira contemporânea, e levantado a ficção científica como um possível antídoto. Nisso — assim como Matangrano & Tavares no plano maior da literatura especulativa —, ele enxerga em um gênero literário popular uma força que, em diálogo com o mainstream, poderia conduzir a literatura brasileira a direções diferentes e produtivas. Quem sabe até, sacudi-lo em suas certezas.

Tudo isso faz com que o livro de Bruno Anselmi Matangrano & Enéias Tavares não seja exclusivamente um estudo que encara o passado remoto ou recente dessa produção literária esquecida. Lembrar o passado é importante porque todos aqueles que vieram antes no insólito e na literatura especulativa formam um contingente considerável — e você precisa de um exército atrás de si, se quiser fincar sua bandeira em território ocupado. Eu suspeito que Fantástico Brasileiro encara com mais intensamente ainda, o futuro da literatura que ele investiga.

—Roberto de Sousa Causo

São Paulo, 15 de março de 2018.

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Leituras de Novembro de 2017

Em antecipação ao lançamento de Star Wars Episódio VIII: Os Últimos Jedi no fim do ano, em novembro resolvi atacar alguns livros de quadrinhos dentro da franquia. Mas o mês não deixou de trazer a leitura de algumas obras significativas de ficção científica nacional e estrangeira.

 

O Homem que Caiu na Terra (The Man Who Fell To Earth), de Walter Tevis. São Paulo: DarkSide Books, 2016 [1963], 220 páginas. Capa dura. Tradução de Taissa Reis. Falecido este ano aos 92 anos, o escritor e crítico inglês Brian W. Aldiss afirmou em 1984 que a década de 1950 foi “um ápice” da ficção científica. A afirmativa fazia contraponto à ideia da Era de Ouro como sendo o período entre 1938 e 1948. A FC que Aldiss saudava era madura, capaz de explorar a psicologia dos personagens e discutir problemas contemporâneos com seriedade e controle de narrativa e estilo. Este romance de Walter Tevis, adaptado para o cinema por Nicolas Roeg em 1976, é de 1963 e portanto posterior, mas está dentro da prática da década anterior e lembra obras significativas como Flowers for Algernon (1959), de Daniel Keyes e que também virou filme, e Eu Sou a Lenda (1954) e O Incrível Homem que Encolheu (1956), de Richard Matheson — todos eles sobre a solidão do sujeito em um mundo de circunstâncias sociais em rápida transformação.

O Homem que Caiu na Terra é um substancial romance de ficção científica sobre um alienígena oriundo de um planeta moribundo situado no Sistema Solar. Ele vem à Terra com um plano de influir positivamente na política humana durante a guerra fria. O objetivo é salvar nosso planeta da guerra nuclear e preparar o terreno para a vinda do restante da população do seu mundo para cá. Para isso, começa oferecendo a um capitalista uma série de desenvolvimentos tecnológicos da área do entretenimento. Enriquece rapidamente, a ponto de reunir os recursos para a construção de uma nave espacial privada, em uma propriedade do Kentucky. No meio do caminho, porém, ele conhece uma mulher que se torna sua enfermeira e companheira platônica, e um engenheiro químico tão curioso sobre suas invenções, que dá um jeito de ir trabalhar para ele e de se aproximar o suficiente para descobrir seu segredo. No caminho dos planos do alienígena, está menos a atenção do FBI e da CIA — que certamente lhe trazem graves problemas —, e mais o envolvimento de mesmo com a trivialidade da vida humana. Existencialista. Assim como no romance O Novo Adão (1939), de Stanley G. Weinbaum (1902-1935), o ET de Walter Tevis é um super-homem intelectual forçado a viver num drástico isolamento moral entre criaturas inferiores que ele de algum modo ama, mas com as quais não consegue se relacionar. Assim como em Eu Sou a Lenda, a solidão e o alcoolismo marcam os passos do protagonista. A novidade está na ambientação que é ou rural ou entre as altas rodas de cidades como Nova York e Chicago, mas de uma maneira pouco caracterizada. Bastante diferente do cenário desértico que o filme de Roeg, com David Bowie como o alienígena, escolheu explorar. A maior realização da prosa de Tevis está no tom melancólico e interiorizado, que sublinha esse aspecto existencial. Isso faz deste livro um romance sofisticado, mas que de certo modo fica na superfície das suas indagações.

 

Animais Fantásticos e Onde Habitam: Os Animais: Guia Cinematográfico (Fantastic Beasts and Where to Find Them Cinematic Guide: The Beasts), de Felicity Baker. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2017, 64 páginas. Tradução de Regiani Winarski. Capa dura. O filme de se tornou o favorito de 2016 entre minha mulher, Finisia Fideli, e eu. Parte do universo iniciado com a série Harry Potter, de J. K. Rowling, parece se dirigir a um público mais adulto. Ambientado na Nova York de 1926, tem um ótimo elenco e situações divertidas, um herói incomum e personagens secundários valorizados. Quem curtia os velhos filmes de Frank Capra, como eu, tem nele uma viagem de lembranças e referências. Mais importante, é um filme que celebra a imaginação e a atitude liberal, solidária e agregadora.

O desenho de produção de Animais Fantásticos é excepcional e resultou em uma profusão de elementos de design gráfico que expandem o conteúdo do filme e estão no centro dos dois outros livros do filme que temos aqui: Mergulhe na Magia, o Bastidores de Animais Fantásticos e Onde Habitam, de Ian Nathan; e o maravilhoso A Maleta de Criaturas: Explore a Magia do Filme Animais Fantásticos e Onde Habitam, de Mark Salisbury, que imita a mala de Newt Scamander (com direito a fecho magnético e imitação de costura nas bordas) e tem dentro uma infinidade de coisas como folhetos, mapas e panfletos que você pode desdobrar ou puxar de um envelope. Este guia também tem fotos muito bonitas dos ambientes e objetos, conta resumidamente a história, mas se concentra nos bichos fantásticos um esquema de fotos e fichas. Comete um engano, porém — a autora Felicity Baker confunde o gira-gira com a fada mordente! E só por aí já dá pra sentir com virei um nerd de Animais Fantásticos…

 

Stories of Your Life and Others, de Ted Chiang. Nova York: Vintage Books, s.d. [2016? 2002], 284 páginas. Trade paperback. Este é um livro que comecei a ler na edição de 2016 pela Intrínseca, com tradução de Edmundo Barreiros, mas terminei com esta edição da Vintage. É que em 6 de novembro estive na Universidade Federal de São Paulo, campus de Guarulhos, para uma atividade com alunos e colegas da Prof.ª Suzanna Mizan — com quem partilhei há alguns anos a orientação do Prof. Lynn Mário Trindade Menezes de Souza — para discutir justamente o filme A Chegada (Arrival, 2016), de Denis Villeneuve, e a história de Ted Chiang em que ele se baseou, “História da sua Vida” (“Story of your Life”). Suzanna me presenteou com esta edição em inglês. Chiang tem sido um grande nome da ficção científica americana desde sua estreia em 1991, e a feliz adaptação da sua história deu a chance que os leitores brasileiros esperavam para conhecer o seu trabalho.

“História da sua Vida” (1999) é uma narrativa madura e sofisticada, que incorpora muitos procedimentos da ficção pós-modernista americana, com uma forte qualidade emocional. Essa premiada noveleta é a melhor do livro, mas ele traz outros textos importantes, como a premiadíssima história de 2002, “O Inferno É a Ausência de Deus” (“Hell Is the Absence of God”). Outro seria “Torre da Babilônia” (“Tower of Babel”, 1991), seu texto de estreia, ganhador do Prêmio Nebula de Melhor Noveleta. Estes dois, juntamente com o divertido e engenhoso “Setenta e duas Letras” (“Seventy-two Letters”), que eu já conhecia da antologia Steampunk (2008), de Ann & Jeff VanderMeer, são fabulations — narrativas que questionam o realismo ou a mímese na literatura, mas com a lógica sólida e a caracterização minuciosa que são as marcas de Chiang. Outra marca, presente na coletânea, é o ethos universitário expresso, por exemplo, nas histórias “Divisão por Zero” (“Division by Zero”), “A Evolução da Ciência Humana” (“The Evolution of Human Science”) e “Gostando do que Vê: Um Documentário” (“Liking What you See: A Documentary”). Neste último, há uma sátira aos movimentos de justiça social, aqui num ataque às vantagens que a beleza física traz — uma história que entrou na The James Tiptree Award Anthology 3 (2007). O melhor texto desta bem-vinda coletânea de um dos nomes fundamentais da FC contemporânea, continua sendo “História da sua Vida”.

 

Expulsão do Paraíso, de Nilza Amaral. São Paulo: Arte Paubrasil, 2012, 94 páginas. Brochura. A escritora Nilza Amaral é conhecida do fandom de FC por sua premiada novela distópica de 1984, O Dia das Lobas. Aqui temos outra novela, publicada com a ajuda e a chancela Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo. A narrativa acompanha dois personagens, o retirante descrente Severo Justo, e a crédula ribeirinha Joana Sabina. Os dois vivem em pontos diferentes daquilo que é obviamente o Brasil, mas que é chamado pelos dois de “lugar nenhum” — um espaço de fábula que evoca o Nordeste místico e a Amazônia folclórica. Ambos são personagens confusos que se deparam com eventos maravilhosos. Vagando na tentativa de aplacar a fome, Severo retalha a carcaça de um jegue morto há pouco. Um cão vadio (talvez referência à cadela de Vidas Secas, de Graciliano Ramos) e um trio de velhas chamadas por eles de “bruxas” o acompanham. O ato se transforma imediatamente em um tableau mágico, como num inesperado ritual de invocação. Mais tarde, surge no caminho do ainda faminto Severo, uma vaca vermelha que cava um imenso açude…

Joana, por sua vez, é uma adolescente fascinada por seu despertar sexual, que cede à sedução de um boto, antes de ser perseguida pela Boiúna, serpente gigante descrita aqui como tendo um gosto por jovens que deixaram de ser virgens… No meio das águas do grande rio, ela acompanha em uma ilha fluvial a luta de seu pai, um pescador, para deter a fera. O estilo de Amaral, neste livro, busca sentenças longas e complexas, evocativas e rítmicas, com a interiorização do discurso indireto livre, em tudo sublinhando o clima onírico da sua novela. É tentador afirmar que um personagem flerta com a vida em face da morte, e uma outra que flerta com a morte enquanto persegue a vida. Mais para o fim do livro, aparece Mara Lúcia, moradora de São Paulo que de algum modo indefinido — imaginação ou informação? — toma conhecimento dos outros personagens. Num toque metaficcional, sua reação mundana trivializa o mágico e o fabuloso das experiências dos outros. Como se afirmando a distância entre o nosso cotidiano e esse mundo de mito, sonho e desejo. O assunto muitas vezes me fez pensar no realismo mágico, mas falta realismo na mistura, e por isso a impressão maior de se estar diante de uma fábula.

“O amor entre os dois foi divinal na extensão genérica da palavra, preparado pelos deuses e pelos mitos da região, disposto para o prazer do encontro do desejo, da sedução e da fantasia, pronto para a continuação da prole do boto-homem, para que não morrendo a lenda, não se findasse a encantaria da terra, mesmo que depois do coito, o usurpador do corpo da donzela fosse morte, como sói acontecer aos rapineiros de corpos femininos quer sejam lendários ou não, querendo parecer que tal ação, mesmo sendo em nome do amor, merece o castigo da terra como dos céus.” —Nilza Amaral, Expulsão do Paraíso.

 

O Esplendor, de Alexey Dodsworth. São Paulo: Editora Draco, 2016, 402 páginas. Brochura. Este é o segundo romance do brasileiro Dodsworth, um ganhador do Prêmio Argos do Clube de Leitores de Ficção Científica com seu livro de estreia, Dezoito de Escorpião. Certamente, O Esplendor não existiria se Isaac Asimov não tivesse escrito a sua célebre noveleta “O Cair da Noite” (“Nightfall”, 1944), já que as duas obras imaginam um planeta que tem meia dúzia de sóis na sua abóbada celeste — tantos que a noite é um fenômeno desconhecido, lendário. Dodsworth também se aproxima da FC da Golden Age praticada por Asimov em outros sentidos. A sociedade alienígena que ele imagina para o seu planeta é composta de telepatas que enfrentam disputas ferozes entre religião e ciência, conservadorismo intelectual e a necessidade íntima do se buscar o conhecimento. Assim como na história de Asimov, eles apresentam números associados aos seus nomes próprios.

Ao mesmo tempo, O Esplendor tempera essa tendência com outras bem atuais: diversidade sexual (completa com uma designação de não gênero, com o uso do símbolo “@”) e racial (os alienígenas têm pele negra e sua cultura se inspira na cultura afro, como o próprio nome do planeta indica: Aphriké), prosa jovem, informal, e a aproximação da FC e a fantasia. A trama envolve o surgimento de uma espécie de prometido, mutante cujo corpo parece mais com o nosso, e que mais tarde ganha o nome de Itzak (Isaac?). Ele é o sujeito que, acercado de um pequeno grupo de simpatizantes, enxerga a realidade dos fatos e a catástrofe iminente. Assim como no primeiro livro do autor, há uma conexão entre um mundo alienígena e a Terra, representado por uma outra personagem especial, a albina Lah-Ura. As semelhanças com “O Cair da Noite” são tão presentes, que às vezes o livro vai além de uma homenagem, parecendo mais uma releitura da história de Asimov. Além disso, como a narrativa é em primeira pessoa pela voz de uma historiadora (com acesso à mente dos protagonistas), boa parte da primeira metade do romance se lê mais como dissertação do que narração, com muito de uma abordagem de ficção científica antropológica tipo A Mão Esquerda da Escuridão (1969), de Ursula K. Le Guin. É especialmente interessante que a historiadora Tulla descreva uma civilização livre de muitos dos nossos preconceitos — enquanto mantém os seus próprios, dentro de uma rigidez de penamento conservador muito característica. O final tem muito dinamismo e confrontos em sequência, como os de Brandon Sanderson na alta fantasia. De qualquer modo, este foi um dos romances brasileiros de FC mais conceitualmente ambiciosos de 2016, e dos últimos anos. Certifica Alexey Dodsworth como um autor a se acompanhar. A Draco também republicou Dezoito de Escorpião.

 

A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil, de Kátia Regina Souza. Porto Alegre: Editora Metamorfose, 2017, 174 páginas. Capa e ilustrações internas de Jacira Fagundes. Introdução de Jana Bianchi. Brochura. Há alguns meses, a jornalista Kátia Regina Souza me procurou como um de uma longa lista de escritores e editores brasileiros de ficção científica, fantasia e horror, para uma entrevista sobre a situação desse literatura no Brasil. Em novembro, agora, recebi um exemplar autografado. O livro acaba sendo o primeiro centrado na situação atual da ficção especulativa brasileira — vale dizer, do contexto da “Terceira Onda”, como tenho insistido aqui e em outros lugares. Um pioneirismo extraordinário, que emana do próprio interesse da autora, ela mesma escritora da área.

A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil é pautado pelas entrevistas, é claro, e tenta definir a vocação do escritor no quadro muito ativo mas frequentemente frustrante da escrita de ficção especulativa, com as opções de meio indo do livro tradicional ao e-book e a plataformas como Wattpad. E de ferramentas que vão da autopublicação paga, autônoma (na Amazon, por exemplo) ou coletiva, leitores betas, editores profissionais ou semiprofissionais, e agentes literários. O primeiro nome procurado por Kátia Souza foi Christopher Kastensmidt, autor da fantasia heroica A Bandeira do Elefante e da Arara (Devir Brasil, 2016). Estão lá, além de Christopher, muitos outros autores e editores conhecidos: Ana Cristina Rodrigues, Ana Lúcia Merege, André Vianco, Artur Vecchi, Camila Fernandez, Carlos Orsi, Cesar Silva, Cirilo S. Lemos, Claudia Dugim, Clinton Davisson, Cristina Lasaitis, Duda Falcão, Eduardo Kasse, Eduardo Spohr, Eric Novello, Erick Sama, Felipe Castilho, Gianpaolo Celli, Giulia Moon, Helena Gomes, Jana P. Bianchi, Jim Anotsu, Karen Alvares, Marcelo Amado, Martha Argel,  Nikelen Witter, R. F. Lucchetti, Richard Diegues, Rodrigo van Kampen, Rosana Rios e Simone Saueressig — citando aqueles com quem já tive algum contato. É certamente uma amostragem de peso, trazendo muitos detalhes significativos sobre as carreiras e os dilemas da maioria desses nomes. O texto é leve e se dirige, muitas vezes, ao escritor iniciante que tentar entrar no mercado, talvez alertado pelas ponderações equilibradas que o livro coleciona. Em sua resenha muito positiva do livro, Cesar Silva viu nele, que apesar

“da proposta da autora de produzir um manual para novos autores — confissão expressa na primeira orelha —, o resultado é um valioso instantâneo do estado atual da ficção fantástica brasileira, que pode servir como farol para autores e editores em atividade, sejam eles novos ou veteranos.” —Cesar Silva, no blog Mensagens do Hiperespaço.

Mas uma certa falta de contextualização maior de quem é quem (autores e editores) e de qual é qual (gêneros e editoras) faz o livro parecer um pouco um trabalho de insider para insider. De qualquer modo, é um trabalho interessante, que forma um quadro coerente da problemática viva, atual, do escritor brasileiro desse campo.

“Desejo dar voz aos personagens que compõem a cena da literatura fantástica brasileira e oferecer um espaço seguro no qual escritores possam se ver representados, seja pelas inseguranças ou vitórias pessoais dos entrevistados.” —Kátia Regina Souza. A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil.

Quadrinhos

Arte de capa de Stuart Immonen, Wade von Grawbadger & Justin Ponsor.

Star Wars: Confronto na Lua dos Contrabandistas (Star Wars Volume 2: Showdown on the Smuggler’s Moon), de Jason Aaron, Simone Bianchi e Stuart Immonen. Barueri-SP: Panini Comics, 2017 [2016], 134 páginas. Capa de Stuart Immonen. Brochura. Este livro compilando vários números da revista Star Wars é continuação direta de Star Wars: Skywalker Ataca, que começa a contar as aventuras dos heróis da franquia inicial, depois da destruição da Estrela da Morte — e que eu examinei aqui em junho. A história trata do que os heróis fizeram depois do episódio IV, e pega onde o livro anterior parou: por um lado, Han Solo e Leia Organa estão cercados pelos caças imperiais na superfície de um improvável planeta tempestuoso, às voltas com a cínica “esposa” de Han, Sana; por outro, Luke Skywalker descobre que o diário de Obi-Wan Kenobi não tem muito a lhe trazer em termos de técnicas jedi, e resolve ir até o antigo templo da ordem em nada menos do que Coruscant, a antiga sede da República e atual coração do império. Antes, porém, ele precisa de transporte, que procura em Nar Shaddaa, a tal lua dos contrabandistas, onde, depois de um pega-pra-capar numa cantina de fazer inveja à de Mos Eisley, acaba prisioneiro de um hutt fisiculturista que coleciona justamente itens que pertenceram aos jedi.

De fato, a linha que acompanha Luke começa antes, com um prólogo escrito por Aaron e desenhado pelo talentoso Simone Biachi. Nesse prólogo, que lembra as situações do romance Kenobi (2012), de John Jackson Miller, o mentor de Luke conta como permaneceu incógnito em Tatooine zelando secretamente pelo menino. A ação é bem dividida, especialmente depois que Chewbacca e C3P0 partem para o resgate de Luke, e entra em cena Dengar, um dos caça-prêmios vistos em O Império Contra-Ataca. A essa altura ele já está uma arena como o fosso de Jaba, duelando contra um monstro aparentemente mais terrível do que o Rancor de O Retorno de Jedi. Jason Aaron sempre comparece com roteiros ágeis e enérgicos, de situações interessantes, um pouco mais duras do que nos filmes, e que reaproveitam cenas da trilogia original sem parecer subalterno. Às vezes, as soluções de transição são vagas ou pouco criativas, mas no todo oferece uma aventura vibrante e divertida. A arte de Stuart Immonen chamou minha atenção desde a FC Shockrockets (2000). Ele é um desses artistas extremamente versáteis que lida bem com a figura humana em ângulos incomuns, e com o design de roupas, arquitetura, paisagem, naves e interiores. Sua estilização é sutil, e embora ele não seja um grande fisionomista, dá conta do recado sem forçar a mão. Equilibra a estilização com a naturalidade das poses, parecendo sempre capturar, sem exagero, os personagens o início de um movimento. O livro é um prazer de se folhear.

 

Arte de capa de Mathieu Lauffray.

Star Wars: Herdeiro do Império: Trilogia Thrawn Livro Um (Star Wars: The Thrawn Trilogy Volume 1) , de Mike Baron (texto) e Olivier Vatine & Fred Blanchard (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2017, 162 páginas. Capa de Mathieu Lauffray. Tradução de Pedro Catarino & Paulo França. Capa dura. Há alguns anos, tive a chance de entrevistar o escritor americano de FC Timothy Zahn, e de pegar o autógrafo dele no primeiro dos seus romances da Trilogia Thrawn, republicados no Brasil pela Aleph. Como não sei se terei a oportunidade de ler a trilogia toda, esta versão em quadrinhos é a solução imediata para me familiarizar com uma obra que revitalizou o universo expandido de Star Wars (agora diferenciado das variantes atuais pelo selo “Legends”).

Depois que o Imperador Palpatine foi morto por Darth Vader no final de O Retorno de Jedi, e o taque rebelde destruiu a Estrela da Morte 2.0, Coruscant caiu nas mãos da Nova República. Mas o império, na pessoa do Grande-Almirante Thrawn, ainda tem esperança de reconquistar o poder. Ele é um comandante competente e um estrategista astuto, que parece estar sempre um passo adiante de Luke Skywalker, Han Solo e Leia Organa Solo (sim, Leia e Han estão casados, nessa fase do Legends), Chewbacca, Lando Carlrissian, R2D2 e C3P0. Assim como em The Crystal Star (1994), romance de Star Wars escrito por Vonda N. McIntyre que li na década de 1990, o casal Solo busca fortalecer a jovem república, enquanto Skywalker está focado em restabelecer a ordem jedi. Sabendo disso, Thrawn arma as suas armadilhas em busca de um trunfo especial — os gêmeos jedi que Leia gera em seu útero. Há mais intrigas, inclusive alguém dentro da Aliança Rebelde que passa dicas ao almirante, do paradeiro dos heróis; e o velho jedi Jorus ‘Baoth, espécie de anti-Obi Wan que se alia a Thrawn para ter acesso a Luke; e o acesso a um planeta que gerou um pequeno animal capaz de bloquear os poderes jedi. A galeria de novos personagens introduzidos por Zahn é bem interessante: o velho jedi o honrado contrabandista Kaarde; sua assistente Mara Jade — ex-associada de Palpatine, e que por isso odeia Luke com todas as suas forças; e o segundo de Thrawn, o Capitão Pellaeon. Há mais estratégia aqui, uma impressão de inteligência em funcionamento, e não apenas correrias e explosões. E menos ocorrências daquelas às vezes incômodas pedras de toque que nos remetem o tempo todo à primeira trilogia de Lucas. Um toque bem-vindo são ideias de FC hard (Zahn é um escritor de FC hard que se voltou para a space opera) como a visita a um planeta tão próximo do seu sol, que os visitantes contam com uma nave escudo solar, para ajudá-los a alcançar a superfície. Consta que Thrawn ressurgirá numa prequência em quadrinhos. Os artistas europeus que assumiram o roteiro também trazem uma variação interessante, menos técnica, mais romântica. Seu desenho é mais estilizado, menos detalhista, mas sem deixar de ser dinâmico e de compor bonitas imagens, especialmente de paisagens e ambientes. Entre um capítulo e outro, o livro traz bonitas composições de Mathieu Lauffray, usadas nas capas dos episódios da minissérie que deu origem ao volume.

 

Arte de capa de Alex Ross.

Star Wars Legends: À Sombra de Yavin (Star Was: In the Shadow of Yavin), de Brian Wood (texto) e Carlos D’Anda, Ryan Kelly, Facundo Percio, Stéphane Créty e Ryan Odagawa (arte). Barueri-SP: Panini Books, 2017, 480 páginas. Capa de Alex Ross. Tradução de Levi Trindade, Paulo França e Júlio Monteiro. Capa dura. O Herdeiro do Império e Confronto na Lua dos Contrabandistas são livros relativamente pequenos, cuja leitura se compara à da novela ou do romance curto. Perto deles, com suas 480 páginas, À Sombra de Yavin é o que mais perto se pode chegar da leitura de um romance de Star Wars com o tamanho médio dos livros da franquia. Mas assim como os livros anteriores, ele tem a sua própria versão do que acontece entre um filme e outro da primeira trilogia, ou a partir do fim da trilogia. Neste caso, a Estrela da Morte foi destruída, a base rebelde na lua de Yavin foi exposta, e a esquadra rebelde está em movimento constante, enquanto um grupo de caças asa-X comandado por Leia Organa cumpre missões de reconhecimento em várias partes da galáxia, em busca de um planeta que possa abrigá-los. Luke Skywalker e Wedge Antilles estão com ela, enquanto Han Solo e Chewbacca vão até Coruscant em busca de armas e suprimentos para a Aliança Rebelde. Essa divisão de ações é típica de Star Wars, mas mais interessantes aqui é a situação existencial dos personagens. Passando por cima da triunfal cerimônia que encerra o Episódio IV, Wood lembra que Leia, Luke e Wedge perderam muitos amigos na batalha, e no caso dela, seu planeta natal. Sua perspicácia também se dirige ao Império, sugerindo inclusive que Vader teria sido colocado  de escanteio pelo imperador, chegando a sofrer tentativas de assassinato (no N.º 0 da revista Star Wars Legends). Wood também reposiciona a saga mais para perto de uma space opera militar, lidando bem com elementos de equipamento, hierarquia e exigências militares — especialmente na primeira parte. Assim como em O Herdeiro do Império, a cada missão de reconhecimento o esquadrão de Leia é emboscado e perseguido. Obviamente, há um informante dentro da Aliança, mas de quem se trata resulta em uma reviravolta realmente engenhosa e em meio a um clímax mais do que satisfatório. Leia é retratada como uma líder firme e inteligente, boa piloto e combatente capaz. O subenredo em torno do esquadrão acaba fornecendo uma história de origem do Rogue Squadron, que já teve sua própria série de romances e de HQs. A história fica menos militar e mais exótica quando Leia, cansada, decide por um casamento real (ela é uma princesa, lembra?) com o príncipe de um planeta periférico, mas que pode oferecer refúgio à esquadra. Mais traições os aguardam, porém, e a ameaça de que Vader, numa cruel ofensiva para retornar às graças de Palpatine, venha a se aproximar novamente dos heróis. Essa bem trabalhada tensão é temperada pela angústias de Luke e Han quanto ao casamento de Leia. O lado pessoal do trio imortal da space opera de Lucas retorna nessa situação, mas também no capítulo de encerramento, que tem os heróis tentando resgatar uma amiga de infância de Leia, perseguida por um caça-prêmios. Nem tudo são perdas, e em alguns momentos há reencontros e reforço do amor fraterno entre os três, que costura boa parte da intriga da primeira trilogia. Agradeçamos à força pelas pequenas graças. Os artistas mudam muito ao longo da narrativa, mas Carlos D’Anda é o principal artista aqui. Ele não é um bom fisionomista e suas naves e maquinário são duros e indistintos, mas ele é expressivo na figura humana, apesar de algo de estranho com os pescoços que desenha… De qualquer modo, é a narrativa que importa mais, em À Sombra de Yavin, cuja história completa apareceu recentemente por aqui na revista Star Wars Legends. A edição em livro traz muitas artes de capa impressionantes de Alex Ross, Hugh Fleming, Sean Cooke (excelentes, lembrando John Berkey) e outros, entre os capítulos.

 

Arte de capa de Juan Giménez.

Um dos meus artistas de ficção científica favoritos, o quadrinista argentino Juan Giménez, apareceu nas bancas brasileiras em novembro, na capa da revista Star Wars Darth Vader 022 (Panini Comics, Barueri-SP). Justamente o número final da revista, que fecha o ciclo de aventuras do vilão criado por George Lucas em 1977 para a space opera Guerra nas Estrelas. Traz dois episódios, de roteiro assinado por Kieron Gillen e arte de Salvador Larroca, e uma coda assinada também por Gillen — esta última, uma história sem letreramento, ambientada em Tatooine e envolvendo o povo da areia, desenhada por Max Fiumara. Juan Giménez, que nasceu em 1943, é conhecido por “Harry Canyon”, um dos melhores segmentos do filme Heavy Metal: Universo em Fantasia (Heavy Metal; 1981), e pelos desenhos da HQ Saga dos Metabarões, com roteiro de Alejandro Jodorowsky e disponível em vários álbuns de luxo publicados aqui pela Devir Brasil. Recomendo muito, a propósito, essa space opera exótica e violenta, reminiscente do clássico Duna, de Frank Herbert, e que marca a parceria entre Giménez e Jodorowsky. George Lucas, é claro, também bebeu da mesma fonte.

—Roberto Causo

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Shiroma na Antologia “Trasgo Ano 1”

A primeira história de Shiroma, “Rosas Brancas”, está na antologia Trasgo Ano 1, organizada pelo editor e fundador da revista Trasgo, Rodrigo van Kampen.

 

A primeira antologia da revista Trasgo tem arte de capa de Kelly Santos.

Rodrigo van Kampen resolveu lançar em 2016 uma campanha de financiamento coletivo para uma antologia envolvendo as histórias significativas presentes no primeiro ano da revista eletrônica Trasgo, criada em 2014 e publicada a partir de Campinas, SP, dedicada à ficção científica e fantasia. A antologia foi lançada em 25 de novembro de 2017, em um bar na Rua Oscar Freire, diante da Estação Sumaré do Metrô e não longe de onde mora o escritor Roberto Causo — presente na antologia com a história de Shiroma, “Rosas Brancas”, e com o prefácio do volume.

O livro traz ilustração de capa de Kelly Santos e 26 histórias assinadas por Hális Alves, Karen Alvares, Marcelo Porto, Claudia Dugim, Melissa de Sá, Ana Lúcia Merege, Victor Oliveira de Faria, Jim Anotsu, George Amaral, Albarus Andreos, Cristina Lasaitis, Gael Rodrigues, Caroline Policarpo Veloso, Claudio Parreira, Tiago Cordeiro, Liége Báccaro Toledo, Jessica Borges, Fred Oliveira, Mary C. Muller, Ademir Pascale, Érica Bombardi, Gerson Lodi-Ribeiro, Enrico Tuosto, Lucas Ferraz e do próprio van Kampen — sem dúvida, um mostruário muito bom e diversificado, de autores da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira, temperado com alguns veteranos como o próprio Causo e seu contemporâneo, Lodi-Ribeiro.

O prefácio de Causo faz um apanhado da história das revistas de ficção científica no Brasil, e aponta o lugar possível da Trasgo no contexto do formato eletrônico, destacando justamente essa variedade e abertura:

“A revista de van Kampen supera tendências circunstanciais, círculos e cabalas dentro do campo brasileiro da FC e fantasia. Esta antologia é testemunho de tal abertura, ecletismo e generosidade profissional — derradeiramente, a única estratégia possível para representar a variedade do estado dessa literatura no Brasil.” —Roberto Causo.

Arte de capa e Jânio Garcia.

“Rosas Brancas” foi primeiro publicado na revista Portal Solaris (2008), editada por Nelson de Oliveira, e apareceu mais tarde na Trasgo N.º 3, em 2014. Foi a história de abertura do que se tornaria a série Shiroma, Matadora Ciborgue.

O lançamento ocorreu numa tarde calorenta de sábado, com uma feira de empreendedorismo ocorrendo na frente do local, com direito ao show de uma banda de rock. Causo encontrou-se com van Kampen, Claudia Dugim, e alguns escritores conhecidos mas que não estão na antologia: Marcelo Augusto Galvão e Fábio Fernandes. O primeiro livro de Rodrigo van Kampen, a novela fix-up Trabalho Honesto, uma ficção científica do tipo cyberpunk ambientada em Campinas, também estava sendo autografado. O livro tem capa de Jânio Garcia e ilustração de frontispício de Victor Strang. Faz parte de uma série de histórias com o mesmo herói, formando o universo ficcional O Legado dos Portais.

Depois da sessão de autógrafos, houve um debate sobre o estado da ficção científica e fantasia no Brasil, muito elogiado no Facebook.

 

Roberto Causo agradece a Rodrigo van Kampen pela oportunidade de escrever o prefácio da antologia Trasgo Ano 1.

 

Rodrigo van Kampen.

Claudia Dugim (centro) e Karen Alvares.

À esquerda: Marcelo Augusto Galvão e Fábio Fernandes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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