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Douglas Quinta Reis (1954-2017)

O desencarne do editor Douglas Quinta Reis, da Devir Brasil, em 13 de outubro de 2017, representou uma aguda perda pessoal, mas também foi uma perda grave para o campo da ficção científica, fantasia e horror no Brasil.

 

Douglas Quinta Reis (1954-2017).

Devo ter conhecido Douglas Quinta Reis em alguma reunião do Clube de Leitores de Ficção Científica em São Paulo, em fins da década de 1980. Só o associei à Devir quando o procurei em 2002, por intermédio do editor Silvio Alexandre, que na época trabalhava na Devir. Meu objetivo era sugerir a publicação dos livros de ficção científica e fantasia de Orson Scott Card — algo que eu já tinha feito junto a outras editoras. Silvio escreveu o seu próprio obituário para o site Publishnews, com muitas informações importantes e a sua própria avaliação pessoal do Douglas.

Para minha surpresa, Douglas era tão fã de Card quanto eu. Ele me disse, inclusive, que tinha o desejo de publicar toda a sua obra. Algumas semanas depois, eu submetia a ele o projeto de publicar a coletânea de histórias A Sombra dos Homens, com as primeiras histórias da Saga de Tajarê, de fantasia heroica, que eu havia iniciado anos antes nas páginas da revista de RPG Dragão Brasil.

Também para minha surpresa, o projeto foi aceito por Douglas sem grandes discussões. A decisão dele me trouxe um grande alento, pois naquela época eu vivia uma daquelas crises periódicas de dúvidas sobre a carreira e o ofício da escrita de FC e fantasia no Brasil, que costumam me acometer.

Escrevi mais duas histórias, além das duas que tinham saído na Dragão Brasil, e o livro apareceu em 2004 com introdução de Braulio Tavares e capa de Lourenço Mutarelli — na época um nome muito associado à Devir como artista de quadrinhos, mas que a editora, com o trabalho do Douglas, já havia revelado como romancista, para o mainstream literário brasileiro. Mais tarde, Douglas também publicaria o meu primeiro romance, A Corrida do Rinoceronte (2008).

Essa atitude leve com respeito à publicação de livros foi uma das características notáveis da atuação editorial de Douglas. Raramente eu o vi rejeitar um projeto — e quando isso ocorreu, foi em razão de alguma rigidez do autor ou autora, em relação às observações dele. Ou em momentos em que a editora estava se reorganizando e certas áreas de publicação estavam momentaneamente suspensas. Essa abertura vinha primeiro da sua qualidade de leitor polivalente, sem preconceitos e familiarizado com vários gêneros. Mas também pelo entendimento de que a escrita, a leitura e a publicação de livros são aventuras de descobrimento — não apenas de talentos literários, mas da receptividade  do leitor. Daí ele dispensar a obsessão de muitas editoras em perseguir tendências visando otimizar vendas, publicando mais do mesmo.

Em 2005, Douglas me convidou para atuar como editor free-lancer, e rapidamente criamos três linhas de livros: a Pulsar (ficção científica), que acolheu os livros de Card; a Quymera (fantasia) e a Pentagrama (horror). Mais tarde, desenvolvemos um projeto favorito dele, a coleção Asas do Vento de livros de bolso dentro de um formato inédito e nunca repetido posteriormente: em 9 x 15,5 centímetros, com capa semirrígida. E também e a Enciclopédia Galáctica, de estudos e referência na área da ficção especulativa.

A Pulsar e a Asas do Vento foram as coleções mais produtivas. A primeira conta hoje com 17 títulos, tendo publicado autores importantes para a FC internacional como Card, Bruce Sterling, Arthur C. Clarke e Ursula K. Le Guin (em uma antologia). Além de completar a Saga de Ender, de Card, a coleção demonstrou muita ousadia ao publicar a maior coletânea de histórias de um autor brasileiro de FC, Confissões do Inexplicável, de André Carneiro; o primeiro “omnibus” da FC brasileira, reunindo os três romances da Trilogia Padrões de Contato, de Jorge Luiz Calife (que teve mais dois livros na coleção); a primeira antologia internacional de FC política montada no Brasil (organizada por Marcello Simão Branco); a primeira coletânea de Ivanir Calado, e a primeira série de antologias retrospectivas dos melhores da FC brasileira. Agora, em 2017, deve sair, fora da coleção, a primeira antologia retrospectiva do melhor do horror nacional, organizada por Branco & Silva. A Pulsar também incorporou os primeiros livros das minhas séries As Lições do Matador e Shiroma, Matadora Ciborgue. A Pulsar empregou muito o artista brasileiro de FC, Vagner Vargas, certamente impulsionando muito a sua carreira.

A Asas do Vento foi uma linha internacional que publicou Sterling, Card e o francês Jean-Pierre Laigle, além dos brasileiros Christopher Kastensmidt, Simone Saueressig, João Batista Melo e Carlos Orsi. Muitas vezes, combinava autores estrangeiros e nacionais num mesmo volume. Não foi adiante porque as questões de distribuição e exibição de livro de bolso são muito complicadas. A Enciclopédia Galáctica, por sua vez, publicou estudiosos importantes como M. Elizabeth “Libby” Ginway (a brasilianista que é a maior especialista mundial em FC brasileira) e Alfredo Suppia (o especialista mundial em cinema brasileiro de FC), além de abrigar a última fase do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, de Cesar Silva & Marcello Simão Branco.

 

Douglas com o escritor e game designer Christopher Kastensmidt (à esquerda), com que estabeleceu uma relação muito produtiva em anos recentes.

Quando Douglas, Mauro Martinez dos PrazeresWalder Mitsiharu Yano, e Deborah Fink, esposa do Mauro, fundaram a Devir Livraria em 1987 (há trinta anos), criando uma importadora de histórias em quadrinhos e de jogos de cartas, eles provavelmente não tinham ideia do impacto que sua empresa iria ter. Aos poucos, a empresa cresceu e se internacionalizou, transformou-se também em editora. Com muita boa vontade e criando o próprio trajeto na sua viagem de descobertas, ela foi fundamental para o boom do RPG na década de 1990, para os quadrinhos nacionais e para a entrada dos livros de HQs nas livrarias, e para o mercado local moderno de jogos de tabuleiro. Poucas empresas foram tão importantes para a face brasileira da cultura nerd/geek da atualidade. A ambição de Douglas para a ficção científica era semelhante — sedimentar sua presença nas livrarias e fomentar o autor brasileiro.

Por diversas questões comerciais, financeiras e conjunturais (as diversas crises políticas e econômicas que o país enfrentou e enfrenta), o impacto da atividade da Devir Brasil na área não foi tão grande quando poderia ter sido. Isso, porém, não diminui a importância, a originalidade e a ousadia do esforço que Douglas capitaneou nessa área.

Conviver com ele sempre foi um prazer que ia além da produção de livros. Douglas era um homem vivido e de cabeça aberta, gregário e conversador, que buscava conduzir o pensamento da gente com exemplos, metáforas e casos, em direções diferentes e incomuns. Sem afetações de intelectual ou de executivo, era sempre acessível e próximo no tratamento com autores ou leitores. Vai deixar saudades e fazer muita falta.

—Roberto Causo

 

Roberto Causo e Douglas Quinta Reis.

 

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Traduzindo o Futuro

Roberto de Sousa Causo

 

Arte de capa: Henrique Alvim Corrêa

Uma queixa frequente dos literatos com respeito à ficção científica é a de que histórias ambientadas no futuro, próximo ou distante, não costumam apresentar grande variação linguística em relação às práticas contemporâneas. Isso soa a eles como uma grande incoerência, e algumas exceções são geralmente saudadas — como o romance A Laranja Mecânica (1962), de Anthony Burgess. Mas essa questão para mim sempre foi menor.

Para mim, a imaginação do futuro é mais semelhante a uma tradução. Afinal (e não importando o que digam futuristas como Bruce Sterling e seus colegas cyberpunks), o futuro de, digamos, daqui a cinquenta anos ou além, está provavelmente mais distante para nós do que as outras culturas de língua estrangeira do nosso próprio tempo — e elas são tornadas acessíveis a nós apenas pela tradução.

Esse meu entendimento se tornou mais claro depois da leitura do livro de Jack McDevitt, Seeker (2005), ganhador de um Prêmio Nebula de melhor romance. Nele, a dupla de antiquários-investigadores Alex Benedict e Chase Kolpath procura, dez mil anos no futuro, pistas de uma espaçonave perdida chamada Seeker (“buscador”, em inglês).

Seeker

Arte de capa: John Harris

Esse futuro distante lembra nosso próprio presente no modo como as pessoas se relacionam, falam e se comportam. Mas a certa altura o leitor descobre que o sentido da palavra seeker é desconhecido para elas. Ao que parece, a língua inglesa foi substituída, amalgamou-se ou alterou-se tanto que uma palavra simples como esta já não é mais empregada — embora a cultura desses humanos do futuro soe aos leitores como sendo muito bem ancorada nessa língua. Desse modo, McDevitt parece estar sublinhando a noção de que tudo isso é como uma tradução, na qual o tradutor (autor) se esforça para ajustar todo um contexto ficcional à percepção do leitor do presente. Com um tradutor mesmo, ele apanha palavras, conceitos e situações que são desconhecidas ou estranhas ao leitor, e os transforma em palavras e conceitos conhecidos, trazendo as situações para mais perto do leitor.

Compreendendo isso, nas séries As Lições do Matador e Shiroma, Matadora Ciborgue, tenho tentado compor um continuum coeso, que possa sugerir um futuro com personalidade própria e um palco sólido para os dramas narrados. Uma discreta exploração lexical cabia nesse projeto, e desde o início busquei palavras como “Terrahora”, “Terradia”, “Terrassema”, “Terraquinze” e “Terraano” para designar a contagem de tempo da Terra, aplicada a planetas diferentes da Terra. É comum, nesses casos, que o revisor separe, por exemplo, “Terraano” como “Terra-ano”, e lá vou eu explicar que as regras ortográficas do futuro são um pouco diferentes…

Há alguns neologismos que não soam tão bem aos ouvidos de quem foi criado no interior de São Paulo, como eu: “compinerciais”, uma contração de “compensadores inerciais”, é um exemplo. Mas nem sempre as soluções que a língua adota são aquelas que o poeta recomendaria.

Por outro lado, há um prazer especial em integrar palavras criadas por escritores que vieram antes de mim. É o caso de “terraformização” — cuja forma mais correta talvez fosse “terraformar”, já que o verbo indica dar condições de vida mais próximas à da Terra, a um planeta alienígena — e “ansível”, cunhada por Ursula K. Le Guin para designar um aparelho de comunicação mais rápida que a luz. Orson Scott Card (nos romances da Saga de Ender) e outros escritores que vieram depois dela também passaram a usar esse termo.

É por tudo isso que uma das principais fontes de inspiração para as histórias d’As Lições do Matador e de Shiroma, Matadora Ciborgue, é um livro de não ficção chamado Brave New Words: The Oxford Dictionary of Science Fiction (2007), de Jeff Prucher, um lexicógrafo freelancer que chegou a trabalhar como assistente editorial na Locus—The Magazine of the Science Fiction and Fantasy Field. Seu livro, que conta com introdução de Gene Wolfe, um famoso autor de fantasia científica, é absolutamente fascinante, e eu retorno a ele sempre, mesmo que seja apenas para entrar num estado mental propício à criação de neologismos e aglutinações. (Outra coisa especialmente agradável a respeito desse livro é o resgate de uma ilustração de Henrique Alvim-Corrêa, o primeiro ilustrador brasileiro de ficção científica, usada na capa. Essa arte apareceu originalmente em uma edição de 1906 de A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells.)

Alguns dos termos que uso nas duas séries são traduções bem literais de expressões consagradas pela ficção científica de aventura espacial, como “detonador” como tradução de “blaster“, definido por Prucher como “uma arma que dispara um jato de energia destrutiva”. A arma de Han Solo em Guerra nas Estrelas é um blaster (“Hokey religions and ancient weapons are no match for a good blaster at your side, kid“, Han proclama no primeiro filme.) Sua primeira ocorrência na FC, segundo o pesquisador, é de 1925, bem antes do conceito do laser se tornar de uso comum. Outro exemplo é “foramundo”, de “offworlder“, “alguém [ou algo] de um outro planeta”. Este segundo exemplo é de 1957.

Consultar Brave New World é participar de um diálogo que às vezes remonta às origens da ficção científica no século 19. Muitas das palavras incluídas no livro entraram na cultura geral — como “robô” e “ciberespaço” —, mas elas têm sempre esse poder de evocar a longa discussão que é a ficção científica como gênero literário.

Nesse sentido, os neologismos comuns às minhas duas séries de space opera (um termo de 1941) não só ajudam a dar coesão e coerência a esse universo ficcional ou, em alguns casos, sugerem uma modernização do dialeto próprio da FC brasuca, mas permitem um olhar para o passado e para a tradição internacional do gênero, ao longo das décadas. Isso mais ou menos representa algumas das minhas intenções com as duas séries — criar um universo coerente, modernizar ou atualizar certos aspectos da FC brasileira, e participar de uma discussão literária muito antiga mas que, por aqui, está apenas começando.

—Roberto Causo

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