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Leituras de Julho de 2019

Ficção científica brasileira e traduzida foram a tônica em um mês de leituras não muito numerosas. Mas o horror e a não ficção também tiveram o seu espaço, assim como as histórias em quadrinhos de fantasia e de Star Wars, com destaque para o álbum francês Aurora.

 

Arte de capa de Jim Burns.

Armor, de John Steakley. Nova York: DAW Books, 1984, 426 páginas. Arte de capa de Jim Burns. Paperback. Tropas Estelares (Starship Troopers; 1959), de Robert A. Heinlein, é um marco da ficção científica militar que influenciou outros romances de peso que vieram dialogar com ele. Disponíveis no Brasil estão, por exemplo: A Guerra Eterna (The Forever War; 1974), de Joe Haldeman, e O Jogo do Exterminador (Ender’s Game; 1985), de Orson Scott Card. Armor, do texano Steakley, é outro exemplo, inédito aqui. Seu autor parece ter rejeitado o lado filosófico e político de Tropas Estelares, buscando os seus opostos: o lado visceral, naturalizado e aleatório do combate.

A narrativa acompanha o soldado Felix, que, misteriosamente e sem explicações, sobrevive vez após vez aos combates contra alienígenas insetoides, em um planeta de geografia e atmosfera hostis. Felix tem um comportamento quase psicótico, nutrindo um estado mental que chama de “o motor” — mecanismo que o isola emocionalmente dos companheiros em torno, das mortes e mutilações, e o faz reagir prontamente às exigências do combate. O comportamento bate com crônicas de guerra em que soldados sobreviventes de ações muito intensas reportam terem se comportado com grande eficiência ao sentirem que não havia saída e que já estavam praticamente mortos. Aos poucos, porém, a sombra da “culpa do sobrevivente” vai se instalando dentro de Felix.

A certa altura, Felix sai de cena e entra uma narrativa em primeira pessoa que segue as ações de Jack Crow, famoso pirata espacial e assassino por conveniência. Ele foge de uma prisão de trabalhos forçados, mata o tripulante de uma nave pirata e o substitui, ganha as graças do cruel capitão — que o seleciona para a tarefa de conseguir combustível em um planeta privado, onde está instalada uma base científica. Ele se mete entre os cientistas e ganha a confiança do genial cientista-chefe. Para isso, leva com ele a armadura (daí o título) negra de combate propulsado (conceito apresentado no romance de Heinlein) que era usada como enfeite pelo capitão da nave pirata. Quando o cientista imagina um método para reaver os registros da armadura, ele e Crow descobrem que ela pertencera a Felix, e revivem as suas experiências de combate emocionalmente excruciantes. Com isso, o leitor também descobre que o soldado fizera parte da elite da guarda palaciana de uma rica monarquia, e que havia se alistado no impulso suicida de livrar-se do tormento de um amor proibido: um toque de space opera exótica — e de Beau Geste (1924), o famoso romance de ficção militar de P. C. Wren sobre a Legião Estrangeira, que trata dos horrores do combate de maneira semelhante: a guerra contra um inimigo indistinto, e uma escalada de mortes até o afunilamento final levando ao drama dos sobreviventes.

Quando os piratas enfim descem para realizar o seu ataque e, mais do que obterem combustível, conquistarem o planeta, Crow já havia conhecido o criminoso chefe local, o bêbado “dono” do planeta, e a mulher que se tornaria a sua amante. Quando ele escolhe apoiar os habitantes locais, há algo do faroeste Shane (1949), de Jack Schaefer. Outros momentos também são situações de western adaptadas para o gênero, algo que às vezes a FC americana exagera. Um exemplo está em Santiago: A Myth of the Far Future (1986), de Mike Resnick, e quando Felix ressurte no final do romance de Steakley com proporções mitológicas para salvar o dia, fica claro que o autor também forçou a mão em tais referências. Outro ponto que me incomodou especialmente na linha narrativa de Crow foram os seus encontros com mulheres dispostas a ter sexo com ele depois de espancadas. Se Tropas Estelares é um romance juvenil e idealizado, Armor quer ser adulto, perverso e cínico, mas perde o equilíbrio e às vezes soa forçado. Apesar disso, a intensidade da narrativa e a disposição do autor em firmar seus efeitos não importando o quê, tornam a leitura memorável. A bela arte de capa do inglês Jim Burns investe na textura e no protagonismo da armadura, alcançando com poucos elementos composicionais, a sugestão mítica.

 

Fractais Tropicais: O Melhor da Ficção Científica Brasileira, de Nelson de Oliveira, ed. São Paulo: Editora SESI-SP, 2018, 496 páginas. Brochura. Ganhadora de três prêmios (até o momento em que escrevo estas anotações), Fractais Tropicais é uma realização de Nelson de Oliveira no nível de suas antologias da Geração 90. É a mais importante antologia retrospectiva da ficção científica brasileira. Fez mais pela ideia, muitas vezes rejeitada por fãs e pesquisadores, da divisão dos períodos da nossa FC em “ondas”, do que anos de discussões e polêmicas. Nelson dá a sua inclinação pessoal na organização e estruturação do livro de várias maneiras, a começar pela contagem regressiva em termos das ondas: a primeira seção do livro apresenta autores da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira (2004 ao presente), e a Primeira é a que encerra o livro. Só por aí, a antologia garante fechar em grande estilo. Ficaram de fora outros períodos da nossa história: o Período Pioneiro (1857 a 1957) e o Ciclo de Utopias e Distopias (1972 a 1982). A seleção priorizou histórias com efeitos surrealistas, experimentais e irônicos, e de estilos pouco convencionais, dentro das preferências estéticas do organizador. No conto de abertura, “Além do Invisível”, de Cristina Lasaitis, os protagonistas transitam pela paisagem abstrata da realidade virtual, enquanto “O Templo do Amor”, de Ana Cristina Rodrigues, um assassino contratado avança pelo cenário indefinido do lugar do título, para matar a sacerdotisa. “Cão 1 Está Desaparecido”, de Lady Sybylla, é uma movimentada FC militar com imagens que lembram videogames e animes, e que partilha com Rodrigues o mergulho na ação.

A história seguinte, “Menina Bonita Bordada de Entropia”, de Cirilo Lemos, muda o tom e leva o leitor ao terreno da inquietação, da violência explosiva e do bizarro, talvez dentro do foco do New Weird. Já “Metanfetaedro”, de Alliah, trata de um experimento de arte e geometria que leva o leitor a uma paisagem surrealista. Me fez lembrar a engenhosidade conceitual de Ted Chiang. “Da Astúcia dos Amigos Improváveis”, de Santiago Santos, é uma space opera desenvolvida em segmentos curtos, em narrativa ao mesmo tempo exótica e introspectiva. Assim como o texto de Santos, “O Apanhador do Tempo”, de Márcia Olivieri, é um longo depoimento — aqui, prestado em tribunal por um homem que descobriu um processo de retardo de envelhecimento. “Aníbal”, de Andréa del Fuego, é narrado por um alienígena que recebe um humano para desenvolver no interior do seu corpo. No conto, muitas ideias de FC como consumo de informações e nanotecnologia são encadeadas pelo seu poder sugestivo, em uma prosa quase poética, levemente irônica. “A Última Árvore”, de Luiz Bras, dá título a um livro de contos do autor, e se desenvolve como linhas de diálogo, apresenta crime e favelas com muita ironia e índices claros de tupinipunk (cyberpunk tupiniquim). Nisso, lembra o admirável romance do autor, Distrito Federal (2014), um dos marcos da Terceira Onda. Segue-se “Quinze Minutos”, de Ademir Assunção, num texto fragmentado, enigmático e com parágrafos de prosa poética. Outro conto com uma aura surrealista é “Cibermetarrealidade”, de Tibor Moricz, originalmente publicado na minha antologia Contos Imediatos (Terracota Editorial, 2009), e que mergulha, com um estilo inventivo, no ponto de vista da máquina e de uma hipertrofia da sua presença em uma monstruosa megalópole. “Los Cibermonos de Locombia”, de Ronaldo Bressane, reproduz um sarcástico depoimento em espanhol (e em primeira pessoa) sobre cibermacacos criados para a indústria pornô. É o último texto da seção dedicada à Terceira Onda.

Braulio Tavares, um dos melhores autores da Segunda Onda (1982 a 2015), abre a nova seção com a noveleta “O Molusco e o Transatlântico”, que começa com um pique de thriller de FC e se torna mais uma história de um prisioneiro narrando por experiências estranhas. “Paradoxo de Narciso”, de Ivanir Calado, é um conto de viagem no tempo em que o viajante se dedica ao sexo com ele próprio — interessantemente, escrito em terceira pessoa. A noveleta “Visitante”, de Carlos Orsi, retorna à primeira pessoa e racionaliza elementos espirituais em termos tecnocientíficos. Outra história longa, “Ostraniene”, de Lucio Manfredi, em primeira pessoa, traz ação tensa numa versão do ciberespaço. “Galimatar”, de Fábio Fernandes, é uma noveleta que abre com uma espécie de ensaio sobre uma linguagem bioquímica na forma de alimentos, antes de seguir para a ação. Ataíde Tartari contribui com “A Máquina do Saudosismo”, conto em terceira pessoa incluído no seu livro 17 Histórias, sobre um homem que viaja por meios criogênicos ao mundo do século 23. Logo depois, Finisia Fideli contribui com dois contos curtos, o poético “Estrela Marinha no Céu” e o fluído e surreal “As Múltiplas Existências de Áries”. “A Coleira do Amor”, de Gerson Lodi-Ribeiro, é uma narrativa longa, em primeira pessoa, sobre um homem implantado com um “chip de amor eterno” que o leva a confundir a cunhada com sua esposa morta, com consequências trágicas. Jorge Luiz Calife, o Pai da FC Hard Brasileira, está no livro com “As Sereias do Espaço”, space opera que integra o seu famoso Universo da Tríade. A space opera também comparece com o meu “Tempestade Solar”, parte da série Shiroma, Matadora Ciborgue. Ivan Carlos Regina está na antologia com dois textos curtos marcados por gráficos e tabelas: “Acúmulo de Skinnot em Megamerc”, uma crítica ao consumismo, e “Quando Murgau A.M.A. Murgau”, alegórica defesa do amor livre. De Octávio Aragão, “O Dia em que Vesúvia Descobriu o Amor” narra em terceira pessoa o encontro amoroso de duas cidades imaginárias — uma heterotopia (termo do crítico Brian McHale) exuberante em estilo e com imagens e neologismos que homenageiam o colega Braulio Tavares. A torrente verbal tupinipunk em parágrafo único de Fausto Fawcett, “Caro Senhor Armageddon”, fecha a seção.

Fractais Tropicais é um ambicioso monumento à FC brasileira, contendo vários livros em um. O último, dedicado à Primeira Onda (1957 a 1972), abre com “O Grande Mistério”, de André Carneiro, parte da sua enigmática série Anarquia Sexual (com os romances Piscina Livre e Amorquia) mas de uma fase tardia (reunida no livro A Máquina de Hyerónimus e Outras Histórias, de 1997) que merece ser lembrada. A metaficcional noveleta “A Ficcionista”, de Dinah Silveira de Queiroz, é uma seleção importante — uma das primeiras narrativas metaficcionais da FC nacional que sustenta relação com a New Wave britânica (assim como vários contos de Carneiro). “Chamavam-me de Monstro”, de Fausto Cunha, saiu das páginas da sua sempre lembrada coletânea As Noites Marcianas (1960); narrativa de visita de um E.T. à Terra (obviamente, em primeira pessoa). “O Elo Perdido”, do pioneiro Jeronymo Monteiro, é noveleta que acompanha uma criança nascida com morfologia e comportamento recessivos, um mutante que responde por momentos cômicos e trágicos. A seção e a antologia fecham com o introspectivo “Morte no Palco”, de Rubens Teixeira Scavone, conto que deu título à terceira coletânea do autor (1979), um mestre da FC literária, psicológica e humanista.

Não há como enfatizar mais a importância da realização de Nelson de Oliveira com Fractais Tropicais, em como esse volume dá testemunho da diversidade, vigor e expressividade da nossa ficção científica, em sua jornada evolutiva desde a década de 1960. Imagino que a fama da antologia só fará crescer com os anos. Talvez daqui a cinco ou dez, ela reapareça, quem sabe dividida em três volumes com novas apresentações, para sublinhar ainda mais a sua importância. Fica a sugestão.

 

Prime Evil, de Douglas E. Winter, ed. Nova York: Signet Books, 1988, 382 páginas. Paperback. Não sei se os jovens fãs de Stranger Things se deram conta, mas a ficção de horror da década de 1980 foi especial. Basta atentar para os nomes presentes nesta antologia original montada por Douglas E. Winter só com gente graúda: Stephen King, Clive Barker, Peter Straub, Whitley Strieber, David Morrell, Ramsey Campbell, Thomas Tessier, M. John Harrison, Jack Cady, Charles L. Grant, Paul Hazel, Dennis Etchison e Thomas Ligotti. O livro é dividido em seções, com direito a epígrafes específicas, que agrupam histórias com algo em comum. A primeira é “In the Court of the Crimson King”, e é uma noveleta de Stephen King que a abre: “The Night Flyer”, que de algum modo e no ápice surpreendente, parece capturar algo da lustfulness do horror como gênero literário e cinematográfico naquela década. Foi visto aqui na coletânea Pesadelos e Paisagens Noturnas. “Having a Woman at Lunch”, de Hazel, é conto sobre um grupo de funcionários blasé de uma empresa de implementos domésticos envolvidos com uma jovem funcionária recém-contratada, que pode ou não ter sido devorada por eles, no final ambíguo. Em “The Blood Kiss”, Etchison emprega sua experiência como roteirista para criar uma intriga em torno de um roteiro sobre zumbis, prestes a ser roubado por um produtor de série de TV, e o esforço confuso de sua jovem assistente, de impedir essa injustiça. Metaficcional, combina a narrativa com trechos do script — em fusão mal diagramada mas sugestiva. O horror aqui é por associação, com a jovem se metendo em uma situação inesperada, perto do fim.

A seção seguinte se chama “Turn to Earth” e abre com “Coming to Grief”, do autor best-seller Clive Barker, que nos apresenta outra heroína, uma jovem que retorna à sua cidade natal para o funeral da mãe, e projeta suas inquietações psicológicas sobre uma trilha escura em uma pedreira abandonada, onde ela, quando criança, imaginava a presença do Bicho-Papão. Uma das joias do livro, a noveleta tem ótima cadência e imersão psicológico, brincando com a possibilidade de um terror estritamente subjetivo alcançando uma concretude arrepiante no final. Com um tom mais irônico, “Food”, de Tessier, acompanha um homem solitário e metódico que acompanha a sua amizade com uma jovem encantadora a seu modo, mas muito obesa. Ele aos poucos se dá conta de que a ama, e fantasia mudar seus hábitos pelo amor. O final, contudo, reserva a ela uma metamorfose em criatura quase lovecraftiana, sublinhando as tensões entre o seu conteúdo humano, irônico e politicamente incorreto. Certamente, o horror deve ser a última resistência ao politicamente correto, já que o gênero costuma crescer com essa tensão. “The Great God Pan”, de Harrison, um nome associado tanto à New Wave quando ao New Weird, faz o narrador se reencontrar com uma amiga peripatética, aparentemente porque ela é acompanhada de um casal de amantes homúnculos, vívida alucinação que é apenas uma de várias que acompanham um grupo de amigos que convergem para uma figura cínica que teria conduzido um experimento misterioso com eles, no passado.

“Orange is for Anguish, Blue for Insanity” abre a seção “Secrets”. O autor é David Morrell, um astro do dark suspense da época. Narrada em primeira pessoa, essa noveleta explora a história da arte: dois amigos discutem o trabalho de um obscuro pintor holandês do século 19, espécie de versão terrorífica de Van Gogh e cuja obra poderia contaminar os seus admiradores com a loucura que acometera o pintor. Narrativa densa, sólida e muito efetiva. A ela sucede “The Juniper Tree”, de Straub, novela que, à moda de um Harlan Ellison, enfoca a magia do cinema para apresentar o horror do flagelo da pedofilia. A figura do monstro aí é a do abusador. Uma narrativa ao mesmo tempo envolvente e incômoda, realista e assustadora, de boa lembrança no campo da ficção do horror, finalista do Prêmio Bram Stoker. Por si só, vale a leitura da antologia. “Spinning Tales” é a nova seção, iniciada com “Spinning Tales with the Dead”, de Grant: pai e filho se sentam à beira de um lago para contar lorotas e parodiar situações da cultura popular, enquanto uma mulher misteriosa, obviamente morta, faz movimentos na água, pontuando a narrativa. Uma discreta aura absurdista sublinha a sugestão de culpa e luto, pelo crime praticado pelo pai. O cultuado Thomas Ligotti, um autor sofisticado e marcante, comparece com “Alice’s Last Adventure” — a narradora, uma escritora de livros infantis sombrios, que recorda (a memória é uma das tônicas da antologia) seus pais, família, livros e estranhas aparições que a importunam ao longo da vida. O título e alguns pontos do enredo remetem a Alice no País das Maravilhas. Outra história sobre escrita e escritores é “Next Time You’ll Know Me”, de Ramsey Campbell, autor inglês que, assim como Ligotti, tem uma conexão com a aura da escrita de H. P. Lovecraft. Aqui, porém, apresenta texto humorístico sobre um pretensioso jovem aspirante a escritor, um tanto alienado, que vê partes de suas histórias inéditas aparecendo nas obras de outros autores. Ele sempre exige satisfações, em um crescendo que o coloca numa bela encrenca. “By Reason of Darkness” é a seção final, iniciada com o perturbador “The Pool”, do polêmico ficcionista e ufólogo “contactado” Whitley Strieber. A história mais curta da antologia, narra a angústia de um pai cujo filho pequeno assume um comportamento muito mais maduro do que a sua idade — e a disposição inamovível de terminar a própria existência. Fecha o livro a novela “By Reason of Darkness”, de Jack Cady (1932-2004), autor de boa reputação nos EUA, cuja narrativa trilha a linha tênue entre o realismo e o absurdismo, na tentativa de representar o absurdo da guerra do Vietnã. É o mesmo terreno de um Thomas Pynchon ou, mais especificamente, de Tim O’Brien e o seu premiado romance do Vietnã Going after Cacciatto (1978). Não obstante, a narrativa patina bastante e parece desconjuntada e sem foco. É pena que esta robusta antologia termine assim, mas sua leitura conserva muitos momentos especiais.

 

Arte de capa de Julio Zartos.

Nightflyers (Nightflyers), de George R. R. Martin. Rio de Janeiro: Suma, 2019 [1981, 2018], 140 páginas. Tradução de Alexandre Martins. Arte de capa de Julio Zartos. Ilustrações internas de David Palumbo. Capa dura. George Martin foi parar no colo da Suma, que, além de relançar os livros das Crônicas de Gelo e Fogo, publicou esta novela de ficção científica, ganhadora do Prêmio Locus 1981 de Melhor Novela, e transformada em filme em 1987. Ao ler, notei que a história não me era estranha, e me pergunto se não vi o filme em VHS ou algo assim. Mas pode ser a semelhança com Alien: O Oitavo Passageiro, que é de 1979 e pode ter inspirado Martin a escrever esta novela de suspense sobre um bando de cientistas sendo mortos um a um dentro de uma nave interestelar. Martin foi para Hollywood circa 1985 (ainda me lembro com afeto da série A Bela e a Fera, de 1989), mas a leitura de Nightflyers sugere que ele cortejava a Fábrica de Sonhos antes disso. Mais recentemente, a novela virou minissérie no SyFy.

O objetivo da expedição é localizar uma espécie alienígena mitológica, que existe apenas em naves espaciais subluz transitando cegamente no espaço interestelar. A espaçonave que os persegue tem apenas um tripulante, o capitão, que telecomanda tudo de algum lugar onde permanece incógnito. A heroína, presente na capa, é uma mulher negra, trans-humana e hiper-sexualizada, mas inteligente e capaz. Entre os cientistas há dois telepatas, e a telecinesia também possui uma participação importante. Não foi difícil prever quem é o vilão — e nisso Alien também dá uma pista ao leitor. Apesar da previsibilidade e dos personagens antipáticos e inconsistentes como cientistas, o suspense me fisgou e li a novela com prazer. Esta edição da Suma vai no rastro de uma edição de 2018 da Bantam Books, com ilustrações internas de David Palumbo, coloridas, realistas mas com uma mancha muito artística. A arte de capa do brasileiro Julio Zartos puxa um pouco para o juvenil, mas está dentro da história e apresenta um traje espacial de look mais moderno.

 

The Revenge of Gaia: Why the Earth Is Fighting Back – And How We Still Can Save Humanity, de James Lovelock. Londres: Penguin Books, 2007 [2006], 222 páginas. Prefácio de Sir Crispin Tickell. Fotos e gráficos. Paperback. O aquecimento global e o consequente agravamento do clima é uma realidade cientificamente irrefutável, que está aí há algum tempo, sendo denunciada por cientistas e ficcionistas (como Bruce Sterling, com Tempo Fechado, de 1994, publicado aqui pela Devir Brasil). Este livro de não ficção, com uma capa que lembra cartaz de filme de catástrofe, fez a denúncia em 2006, quando foi best-seller no Reino Unido. Seu autor é conhecido pelo conceito de Gaia (batizado assim pelo romancista inglês William Golding, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura e autor do clássico da FC, O Senhor das Moscas), metáfora de uma “Terra viva”, usada para tratar do planeta como um sistema auto-sustentado, do qual a vida faz parte e dá caráter a fenômenos antes considerados independentes dela, como a atmosfera e a geografia.

O conceito é antigo (1979), e cruzei com ele ainda criança pelos jornais e revistas da época. Este livro bem posterior fornece uma infinidade de insights e dados sobre Gaia e o aquecimento global e suas consequências desastrosas. O capítulo “What Is Gaia?” descreve o conceito e como Lovelock chegou a ele, sua relação com teoria relativamente recente da emergência (de “emergir”) ou complexidade (e de como o entrelaçamento quântico pode fundamentá-la), assim como as reações do mundo científico a Gaia, além da importância da temperatura e da química necessária à vida, no sistema autorregulatório da Terra como sistema auto-sustentado. “The Life History of Gaia” fornece mais substância à teoria, a partir da evolução da vida e da geologia do planeta. A evidência mais recente estaria no ciclo de eras do gelo, que leva o autor a supor que a própria biodiversidade seria uma resposta da Terra aos desafios representados por essa ciclo. “Forescasts for the Twenty-First Century” argumenta contra a posição infame de Michael Crichton e outros questionadores dos modelos da mudança climática, e parece ter previsto o agravamento acelerado que temos visto nos últimos anos, no que já vem sendo chamado de crise climática. Já “Sources of Energy” faz uma polêmica defesa da energia nuclear para evitar as emissões a partir do carvão, petróleo e destruição de vegetação com as hidroelétricas. Para isso, Lovelock minimiza os efeitos danosos de acidentes nucleares como os de Chernobyl. Ele não confia em fontes alternativas nem na mudança de hábitos de consumo como solução. Só o que posso dizer sobre isso é que de lá (2007) para cá, as fontes eólica e solar aumentaram em muito a sua eficiência e difusão — como atesta o caso da Escócia. A partir daí e dos capítulos seguintes — “Chemicals, Food and Raw Materials” e “Technology for a Sustainable Energy” —, Lovelock deriva para uma crítica do ambientalismo, que para ele mais atrapalhava do que ajudava, ao interferir, com sua condenação da energia nuclear e da poluição de alimentos, com medidas de otimização que ajudariam a diminuir a derrubada de florestas e a emissão de gases de efeito estufa. A bronca dele culmina em “A Personal View of Environmentalism”.

Para um socialista verde como eu, os argumentos contra o ambientalismo parecem uma ação contra quem está próximo — ambientalistas e proponentes da alimentação orgânica — e portanto acessível, já que o verdadeiro problema se mostra inacessível ao autor: o negacionismo climático, a atividade industrial e agropecuária sem regulação, a ganância do sistema financeiro internacional. Ele não vê qualquer sinergia entre esses movimentos e a luta contra o aquecimento global, ao mesmo tempo em que não explora a sinergia presente e danosa, dos fatores adversários. É também culpado de dirigir-se em demasia ao público precípuo do seu livro, o leitor inglês, quando o problema exige uma visão bem mais global. Ainda assim, The Revenge of Gaia funciona  bem como advertência contra o terrível caminho suicida que tomamos como espécie.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Ken Kelly.

Star Wars: Boba Fett: Inimigo do Império (Star Wars: Boba Fett: Enemy of the Empire), de John Wagner (texto) e Ian Gibson & John Nadeau (arte), e Cam Kennedy (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2015, 146 páginas. Arte de capa de Ken Kelly. Brochura. Este livro reúne uma minissérie de quatro fascículos e uma história solo do caça-prêmios Boba Fett, sendo que na minissérie ele se confronta com Darth Vader. São dois dos maiores vilões de Star Wars, e Fett, que apareceu primeiro no desenho animado embutido no The Star Wars Holyday Special (1978). Depois vimos, no filme Star Wars Edição Especial (t.c.c. Star Wars Episode IV: A New Hope), que ele estivera em uma cena cortada do filme que inaugurou a franquia, em 1977.

Um relacionamento entre Vader e Fett certamente seria algo sombrio, e o escritor John Wagner o pinta mergulhando em situações que estariam bem situadas na revista Kripta ou na EC Comics. Wagner é um dos criadores do Juiz Dredd na saudosa revista 2000 A. D., e trouxe a Star Wars aquela inclinação para a violência mais explícita e para efeitos de humor negro. Na minissérie em questão, Vader procura Fett pessoalmente para que ele capture um oficial desertor do Império. Ao mesmo tempo, o vilão coloca um quarteto de assassinos na cola do caça-prêmios. A trilha leva a uma espécie de monastério localizado em um planeta remoto, ocupado por uma ordem de monges pessimistas, cruelmente explorados com fins humorísticos por Wagner. Diz respeito a um “artefato” capaz de prever o futuro. Vader quer esse objeto, e nesse local ele se defronta com Fett. Algo que ele descobre é que precisará do caça-prêmios no futuro (de O Império Contra-Ataca, certamente). A arte da dupla Ian Gibson & John Nadeau tenta encostar na de Cam Kennedy (que havia trabalhado com Wagner desenhando o Juiz Dredd), mas é caricata. Kennedy, que eu conhecia pela minissérie A Guerra de Luz e Trevas (1988) e por uma outra HQ de Star Wars, Dark Empire (1992 e 1994), comparece ele mesmo na última história, “Caça a Bar-Kooda”. Nela, Fett persegue, a mando dos Hutts, um criminoso espacial conhecido por devorar os artistas de entretenimento de cuja apresentação ele não gostou. A chave para chegar a Bar-Kooda é um mágico baixote e resignado. Também escrita por Wagner, a história é igualmente sombria e irônica, mas melhor desenhada e com uma virada “canibal”. O capista Ken Kelly deve ser familiar aos leitores de A Espada Selvagem de Conan.

 

Arte de capa de Kerascoët.

Aurora nas Sombras (Jolies ténêbres), de Fabien Vehlmann & Kerascoët (Marie Rommepuy & Sébastien Cosset). Rio de Janeiro: DarkSide, 2019 [2009], 96 páginas. Tradução de Maria Clara Carneiro. Arte de capa de Kerascoët. Álbum capa dura. Uma menina morre na floresta, a caminho da escola ou de um passeio solitário. Nesse instante, criaturas do seu mundo imaginário deixam o cadáver, para viverem uma existência liliputiana e esquálida nas vizinhanças do corpo em decomposição. São seres simplificados como bonecas e crianças, meninos e meninas, princesas e bailarinas de ilustração de livros infantis. Assim como os contos de fadas na origem, a fome e o choque das ilusões infantis com a essência bruta e implacável do mundo natural assombram as suas andanças e festejos pueris. Aurora, a protagonista, é a mocinha loira e de vestido de bolinhas que aparece na capa. Lembra tanto Alice quando Poliana, na sua solidariedade e positividade inicial. Esse espírito não sobrevive à dureza da vida no bosque e às mesquinharias que aparecem cada vez mais no comportamento dos seres imaginários. O que emerge é a crueldade, o egoísmo e o lado autocentrado da criança, que muitas vezes as brincadeiras e a fantasia infantis mascaram. Assustada e magoada com tudo, Aurora se refugia na cabana (como o povo pequeno das lendas sobre hobgoblins e lucharacháin) de um homem solitário, e na qual a presença de uma boneca quebrada parece sugerir que ele pode ter algo a ver com a morte da menina. A nêmesis de Aurora é a arrogante princesa Zélia, que, a certa altura, afirma que o problema de Aurora é que “ela nunca foi muito maligna… todo o problema está aí”. Mas Aurora já completou o seu processo de brutalização e resolve a rivalidade de um modo que faz o leitor recordar o fantasma das atrocidades nazistas na Europa. Só isso já bastaria como um final aterrorizante, mas a conclusão do livro escrito pelo francês Fabien Vehlmann e desenhado pelo casal Marie Rommepuy & Sébastien Cosset (que assinam “Kerascoët”) guarda para Aurora um traço de inocência e idealização que, no contexto, é ainda mais assustador.

O livro andou aqui em casa trazido por meu filho, Roberto Fideli, que o tomou emprestado de sua amiga Isabella Lubrano. (Mais tarde, adquirimos um exemplar.) Agradeço aos dois pela chance de ler o livro lançado pela DarkSide este ano, com um acabamento luxuoso. Meu filho me entregou o livro com o alerta de que era de causar pesadelos. E de fato, escrevo estas notas depois de despertar de um desses pesadelos. Fique avisado.

—Roberto Causo

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Leituras de Abril de 2019

As leituras de abril incluíram tipos bem diferentes de ficção científica, e também suspense, fantasia contemporânea e horror, além de space opera em quadrinhos.

 

O Veterano e Outros Contos de Suspense (The Veteran), de Frederick Forstyth. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009 [2001], 278 páginas. Tradução de Ruy Jungmann. Livro de bolso. Do inglês Forsyth eu li O Pastor (1971), uma novela com tema natalino, envolvendo um caça a jato que, perdido e sem instrumentos, encontra um avião-fantasma da II Guerra Mundial que o ajuda a encontrar o caminho de casa. É um favorito meu — assim como o thriller O Dossiê Odessa, cujo herói é um jornalista às voltas com nazistas que fugiram para a América do Sul. O próprio Forsyth foi tanto piloto de caça na RAF quanto jornalista. Este livrinho, da investida da Record ao campo do livro de bolso, reúne quatro noveletas de suspense e ficção de crime. A história-título abre o livro. Nela, o mistério se estabelece em torno de um homem de meia-idade violentamente atacado por dois assaltantes na rua, e cuja identidade se mostra difícil de determinar. A história segue investigação dos culpados e da identidade da vítima, e quando parece que os investigadores estão fechando as duas questões, a história se complica com a entrada de um grande advogado que resolve defender os criminosos — levando a história a um final insuspeito. Em “O Veterano”, o drama de identificar a vítima prepara o suspense do desfecho. Usando de um narrador onisciente, ficamos sabendo que o homem agredido era um veterano de combates no Iêmen porque o narrador de Forsyth mergulha em sua mente em coma, revivendo as situações de combate. Na sequência, vem a segunda melhor história do livro, “A Arte do Essencial”, sobre a malandragem no mundo da arte — tema que explorei em minha noveleta “Phoenix Terra”, parte da série Shiroma, Matadora Ciborgue. É pena que esta história não feche o livro. A terceira, “O Milagre”, é uma feroz brincadeira com religião e as expectativas do leitor. A história final, “O Cidadão”, ambientada em um avião de carreira vindo de Bangcoc (portanto, é a história representada na capa), funciona muito bem como suspense mas não tem a força de textura e de enredo dessas duas que eu aponto como favoritas. Ruy Jungmann é um autor da Geração GRD que se tornou um prolífico tradutor profissional. Infelizmente, a preparação de texto de O Veterano deixa a desejar.

 

Arte de capa de Anna Maeda.

Interferências (Crosstalk), de Connie Willis. Rio de Janeiro: Suma, 2018 [2016], 464 páginas. tradução de Viviane Diniz Lopes. Arte de capa de Anna Maeda. Brochura. A Suma já tinha investido em Willis, a escritora número 1 do movimento humanista na ficção científica pós-modernista americana, com o admirável O Livro do Juízo Final (Doomsday Book), que anotei aqui em julho de 2017. Desta vez, a editora traz o romance mais recente da autora, primeiro publicado em 2016. Nele, a autora exercita a sua verve humorística e o seu talento para os diálogos e a comédia de erros, em uma narrativa de futuro próximo envolvendo telepatia, dispositivos móveis e redes sociais.

No futuro próximo, a heroína Briddey (“noivinha”) trabalha em uma empresa de aparelhos celulares em busca de um novo super-aplicativo, e está para realizar um procedimento cirúrgico que promete criar uma ligação empática entre ela e seu namorado, o ambicioso zé bonitinho Trent Worth. A notícia vira a fofoca número 1 da empresa, atraindo a atenção do supernerd C. B. Schwartz, a mente criativa da empresa. C. B. sai da sua toca nos porões da firma para alertar a moça a não fazer o procedimento, mas não tem jeito. Ela vai em frente e desenvolve a telepatia como efeito colateral. A partir daí, surge uma quantidade de situações cômicas e grotescas, enquanto ela é treinada por C. B., também ele um telepata, a administrar o “dom” sem enlouquecer no processo, e se esquiva de Trent, que a jogou na fogueira e está de butuca na esperança de utilizar comercialmente a telepatia. Aí está o centro intelectual, por assim dizer, do romance: a sugestão do quão insana é a busca insana por conexão que está por trás dos celulares e redes sociais, com suas implicações desastrosas sobre a privacidade. Para sublinhar esse sentido, Willis convoca uma série de delirantes personagens secundários, a maioria pertencente à família de Briddey, como a irmã neurótica e a sua aventurosa filha, ma garotinha que tem um papel central reservado a ela. O tempo todo, Briddey é afligida por telefonemas dos familiares, desviando-a da tarefa de sobreviver. Há ainda uma brincadeira étnica, na sugestão de que a telepatia seria um recessivo genético dos irlandeses, lastreada no folclore celta e a sua coisa de outro mundo, fadas e espíritos. É claro, no final ou no meio do caminho, Briddey descobre o seu verdadeiro amor e aprende algo sobre si mesma, já que o romance também possui um fundo feminista discreto. Apesar do tom leve e da capa de Anna Maeda que indicam que a história pode agradar ao público feminino jovem, Interferências é um romance completo, com ótimos diálogos, tensão e suspense, dramaticidade e uma inteligência brilhante que transparece em quase todas as páginas. Um dos bons lançamentos de 2018.

 

Arte de capa de Alex CF/Adrian Wood.

Extraordinary Engines: The Definitive Steampunk Anthology, de Nick Gevers, ed. Nothingham: Solaris, 2008, 444 páginas. Arte de capa de Alex CF/Adrian Wood. Paperback. É hora de eu voltar a encarar a leitura de histórias steampunk, já que um dos objetivos para o ano que vem é terminar o primeiro ciclo das Aventuras de Ulisses Brasileiro, o personagem que estreou na minha noveleta “O Plano de Robida: un voyage extraordinaire” (2009). O editor desta antologia, o sul-africano Nick Gevers, foi um resenhador muito ativo na revista Locus, antes de se graduar a compilador de antologias. O steampunk é um subgênero da FC ou da fantasia que remete aos caminhos já tomados pelo gênero na segunda metade do século 19 e no início do século 20, e reimagina uma tecnologia de FC semelhante ao que se pensava então. Extraordinary Engines é uma antologia original, quer dizer, todas as histórias reunidas foram escritas para o livro, e não captadas de outros veículos. Os autores são James Lovegrove, Marly Youmans, Kage Baker, Ian R. MacLeod, Margo Lanagan, James Morrow, Adam Roberts, Jeff VanderMeer, Jay Lake e Jeffrey Ford.

É interessante que quase todos os autores obedeceram a uma regra não explicitada: não criar uma textura steampunk com muitos elementos icônicos do subgênero, como balões dirigíveis, sociedades secretas, autômatos elétricos, a vapor ou de dar corda… Ao invés, trabalharam com um número restrito de elementos. A história que mais comunica o clima cômico-satírico da fase do subgênero dominada pelos pioneiros K. W. Jeter, James P. Blaylock e Tim Powers na década de 1980 é “Steampunch”, de James Lovegrove. A outras parecem calculadas para expressar a distância que o steampunk teria percorrido de lá pra cá. Os demais participantes são Marly Youmans, Kage Baker, Ian R. MacLeod, Margo Lanagan, James Morrow, Keith Brooke, Adam Roberts, Robert Reed, Jeff VanderMeer, Jay Lake e Jeffrey Ford. Autores que estão aí e que têm claramente um compromisso com o steampunk são MacLeod, VanderMeer e Lake. O primeiro, sempre com um texto elegante e enigmático, está lá com “Elementals”; o segundo, com o melancólico “Fixing Hanover”; e o último com “The Lollygang Save the World on Accident”. O Adam Roberts listado é o acadêmico que escreveu o recente A Verdadeira História da Ficção Científica (2016), e conhecido dos brasileiros pelo seu mui citado livro introdutório Science Fiction (2000).

Admito que a única história do livro que me impressionou, e muito, foi “Machine Maid”, da elogiada Margo Lanagan. Ambientado na Austrália, a história narra as explorações da pudica e reprimida esposa de um senhor de terras, que descobre a utilização sexual que seu marido faz de uma empregada doméstica robótica. É uma história complexa, na qual pulsam de maneira ora velada, ora explícita, elementos de fetiche, autodescoberta sexual, crítica ao patriarcalismo rural e ao autocerceamento feminino, e comunica um erotismo palpável e perturbador. É também uma história de vingança, com a esposa armando uma armadilha castradora no autômato. A capa apresenta um dispositivo criado pelo artista inglês Alex CF, fotografado por Adrian Wood, lembrando que o steampunk também é um movimento estético que envolve design de roupas, adereços e outros objetos.

 

The Man Who Folded Himself, de David Gerrold. New York: Random House, 1973, 148 páginas. Hardcover. O primeiro livro de Gerrold que li, ainda na adolescência, foi O Diabólico Cérebro Eletrônico (When Harlie Was One), romance sobre inteligência artificial indicado aos principais prêmios da FC e publicado na saudosa coleção de FC da Editora Hemus. Mais tarde, ele voltou ao Brasil pelo menos mais uma vez, com a “novelização” de Star Trek A Nova Geração: Encontro em Farpoint. Sua ligação com Star Trek é bem antiga, inclusive. Ele foi o autor do famoso episódio com os “pingos”.

Este é um romance de ficção científica sobre viagem no tempo. Seu centro é o dilema existencial do viajante, um adolescente americano criado como órfão e elevado a herói de FC por seu tio, que ao morrer deixa a ele um cinto que faculta a viagem temporal. O dilema é interessante em si, mas se realiza na forma de uma espécie de delírio narcisista em que o jovem envelhece apaixonado por si mesmo e realiza mil alterações no passado (particularmente dos EUA) por, basicamente, diversão e correção da sua própria personalidade, criando inúmeras variações de si mesmo. A narrativa é em primeira pessoa, é claro, em muitos momentos fazendo a mímica das anotações, às vezes altamente emotivas, das diversas variações do personagem. Algumas dessas variações são do sexo feminino, e ele chega a ter um filho com uma delas. O centro do romance, porém, está na paixão homossexual do herói pelas variações dele mesmo. Incomoda não apenas o gritante narcisismo, que tem um aspecto estrutural importante, já que ele se esquiva completamente da viagem no tempo como um encontro com uma alteridade disposta no tempo, ficando só na vida boêmia de festança e orgias, restritas a um único participante multiplicado. Mas também os comentários sobre a relação heterossexual como complicada demais para o homem, que tem que se colocar como dominante para satisfazer as expectativas da mulher. Gerrold é um autor abertamente gay, mas mesmo dando um desconto para o quanto o pensamento queer avançou da década de 1970 pra cá, não dá para deixar de sentir que ele se enroscou muito neste romance, reafirmando o clichê psicanalítico da relação entre homossexualismo e narcisismo. Uma das armadilhas do freudismo, eu imagino, é justamente dar uma legitimidade intelectual que às vezes mascara categorias de pensamento que já foram confrontadas ou relativizadas.

 

Arte de capa de Carolina Mylius.

Encruzilhada, de Ademir Pascale. Praia Grande: Literata, 2011, 104 páginas. Texto de orelha de Álvaro Domingues. Arte de capa de Carolina Mylius. Brochura. Algo que fica claro sobre o dinâmico agitador e escritor Ademir Pascale, pela leitura desta novela (e antes, do romance O Desejo de Lilith, de 2010), é a representação de um ethos de classe média baixa e a ambientação paulistana como o seu palco. Encruzilhada é uma história de pacto(s) com o Diabo, como a bonita ilustração de capa de Carolina Mylius deixa claro (assim como o título). Ambientada no Centro Velho e suas galerias, e também nas ruas dos bairros de Pinheiros e Vila Madalena, acompanha por um lado o jovem Allan, que está numa pior em termos profissionais e românticos. As outras linhas seguem um padre com um passado safado e misterioso, e um lutador brasileiro campeão mundial de boxe. A esses dois personagens faltam elementos de contextualização mais sólidos, mas nem por isso a narrativa deixa de se conduzir com textura e suspense, até o clímax revelador.

É interessante que o infame O Livro Negro de São Cipriano, criação do decano dos escritores pulp brasileiros, R. F. Lucchetti, tenha um papel no ritual de invocação demoníaca descrito por Pascale.

 

Arte de capa de Matt Stawicki.

Margaret Weis’ Testament of the Dragon, de Margaret Weis & David Baldwin, eds. Nova York: HarperPrism, 1997, 106 páginas. Arte de capa de Matt Stawicki. Hardcover. Em fins da década de 1990, a HarperCollins, via selo HarperPrism, investiu no que chamou de “illustrated novel” (romance ilustrado), embora fosse, claramente uma antologias curtas de textos ilustrados, em cima de um novo universo criado por um grande nome da fantasia — dentro da lógica do “universo de aluguel” — aqui, Margaret Weis (com David Baldwin). Tenho em casa, dentro dessa linha de livros, Anne McCaffrey’s The Unicorn Girl (1997), Tad Williams’ Mirror World (1998), e este Margaret Weis’ Testament of the Dragon — adquirido em uma das minhas garimpagens na loja Terramédia, hoje Omniverse.

O livro é composto de uma curta introdução, seguida da primeira história, mais longa: “Brother to Dragons”, de Jeff Grubb com ilustrações de Steve Lieber. A história é escrita com muito charme, e desenvolve a premissa do livro, a história do assistente humano de um wyrm, um tipo de dragão, em guerra contra uma sociedade secreta que, supostamente, quer destruir o mundo. A história é violenta e cabe bem na definição de horror, e abre com o anti-herói humano, Justin, atacando um grupo de universitários reunidos em um celeiro, para sacrificar um gato e invocar um dragão. Há muitos detalhes sobre as mutilações e mortes, antes que a história se estabilize para contar o background de Justin, um lorde escocês do século 14, cooptado e tornado imortal pelo monstro. Hoje, ele tem uma loja de fanzines em uma metrópole americana. Como erudito medievalista, torna-se consultor da polícia — após a morte de um professor universitário, a mando do dragão. A bela policial que investiga o caso traz a tensão sexual para a história, e acaba sendo reencarnação da esposa de Sir Justinian, e com isso, leva o protagonista a confrontar seu compromisso com o dragão. Algo da composição da história lembra séries da década de 1990 que empregavam o horror no formato de ficção de crime, como Brimstone (1998-1999). A conclusão da noveleta, após uma violenta confrontação, mostra que Justin havia sido enganado pelo monstro, desde o início. A narrativa é assentada e detalhista, com bom uso do ponto de vista narrativo, fazendo o leitor curtir a história e os personagens. Os desenhos de Lieber, a bico de pena, são ótimos, e suas pinturas não ficam atrás. A segunda e última história é de Janet Pack, com arte de Rag Morales, narra como Justin foi arregimentado pelo wyrm, e portanto se passa nas margens do Lago Ness, no século 14. Interessantemente, ela reserva uma terrível ironia dirigida a um menino camponês que se meteu no caminho do dragão. O modelo dos “romances ilustrados” incluía um texto sobre detalhes iconográficos da história, colocado entre as histórias, e um texto final que imita um diário.

O que fica claro, examinando o livro em questão, é o quanto ele deve a um estado editorial e cultural de coisas que vem da difusão do role playing game como um espaço de narrativa e de arte. O livro ilustrado acaba sendo mesmo uma forma ideal para essa evocação, mas ela também está em detalhes como a loja de zines do herói. Weis, a popular criadora (com Tracy Hickman) do RPG Dragonlance, tem uma grande importância na promoção desse contexto. Matt Stawicki é um ilustrador que trabalhou com ela em Dragonlance (e portanto conhecido do leitor e jogador brasileiro), e aqui produziu uma arte de capa que representa com perfeição a invasão do ambiente urbano pela fantasia e pelo horror.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Olivier Coipel.

Star Wars: Han Solo, de Marjorie Liu (texto) & Mark Brooks (arte). Nova York: Marvel Worldwide, 2017, 114 páginas. Arte de capa de Olivier Coipel. Brochura. A Panini lançou este livro com uma minissérie protagonizada pelo contrabandista mais famoso da Galáxia Distante, mas eu encontrei a edição original em promoção da Livraria Cultura do Bourbon Shopping em São Paulo, e não resisti. Dei sorte, porque traduções e legendagem são fatos incertos, e lendo em inglês pude apreciar como a escritora Marjorie Liu captou a dicção do personagem e os seus trejeitos. Liu certamente sabe escrever, e o brilho dos diálogos é só um lado dos talentos exibidos aqui. A história traz Han Solo e Chewbacca entre os eventos narrados em Star Wars Episódio IV: Uma Nova Esperança (1977) e Star Wars Episódio V: O Império Contra-Ataca (1980). Han tem dúvidas sobre continuar ou não no contrabando, ou unir-se à nobre causa da Aliança Rebelde. No ínterim, recusa vários trabalhos, obviamente dividido num plano pessoal. As coisas se precipitam quando aparece um dupla querendo emprestar o Millennium Falcon para cumprir uma missão em nome da Aliança. É claro que Han, impulsionado por Chewbacca e por Leia, lá longe nos bastidores, aceita ele mesmo cumprir a missão de resgatar três informantes das garras do Império. Cada informante está convenientemente aguardando em cada uma das três paradas de uma perigosa corrida interestelar, na qual Han inscreve o seu cargueiro coreliano transformado no hot rod mais rápido da galáxia. É como ter um Dodge Charger envenenado correndo contra Porches e Ferraris.

Na corrida, o herói convive com uma malta diferente dos criminosos comuns das suas relações: os aristocráticos pilotos esportivos. O mais interessante deles é uma alienígena muito alta, supostamente a última de sua espécie e lendária entre os pilotos, e que tem acesso a estranhas criaturas luminosas que a rodeiam. Aos poucos, as habilidades e o caráter do herói vão conquistando a admiração e a solidariedade, dos seus rivais esportivos. O Império Interfere, é claro, e há peripécias como a presença de uma alienígena de outros carnavais de Chewie, e de um traidor entre os espiões resgatados. A arte e a quadrinização têm um grande dinamismo e exotismo combinados, tornando Han Solo um grande exemplo do charme próprio da space opera. Mais importante, assim como na trilogia original, a aventura combina muito bem a luta contra o Império e aspectos mais pessoais dos heróis, resolvendo coisas que pouco tem a ver com o Império e a Aliança Rebelde, mas que não parem ser menos importantes. O casamento entre a escrita de Liu e a arte de Mark Brooks parece ser perfeita. O artista é talhado para lidar com Star Wars, sendo um bom fisionomista e lidando bem com o hardware, igualmente (a colorização de Sonia Oback & Matt Milla contribuem com muitos efeitos visuais). Juntos, os dois deram a Han Solo um caráter não apenas cínico, cômico, determinado e aventureiro, mas também melancólico e filosófico, muito enriquecedor, e humanizador também. Ótimo que Marjorie Liu o tenha idealizado de uma maneira romântica sem a presença explícita do fator amoroso (já que Leia está longe dele). Uma das melhores HQs de Star Wars que já li. Teria dado, de longe, uma “História Star Wars” muito superior ao tosco e descerebrado filme de origem do herói, dirigido por Ron Howard.

 

Arte de capa de Lorenzo de Felici.

Oblivion Song Volume Um: Canção do Silêncio (Oblivion Song: Volume One), de Robert Kirkman (texto) & Lorenzo de Felici (arte). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019, 144 páginas. Tradução de Fernando Scheibe. Arte de capa de Lorenzo de Felici. Brochura. Este livro chegou aqui em casa enviado pela editora a Gabriela Colicigno, namorada do meu filho, mas eu fui mais rápido (estou aprendendo). Em Oblivion Song, o filme O Nevoeiro (The Mist, 2007), de Frank Darabont, se encontra com a situação básica de várias séries recentes como Taken, Les Revenants e The Leftovers — um fenômeno desconhecido causou o desaparecimento de um certo número de pessoas, deixando famílias desorientadas e governos apalermados. Neste caso, há dez anos, 300 mil moradores da cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos, desapareceram. Foram para o selvático planeta Oblivion, onde existe uma cidade semelhante, mas tomada por uma ecologia alienígena. Envolvido desde o início com a investigação do fenômeno, o cientista Nathan Cole se dedica a visitar sozinho o mundo paralelo e resgatar os desaparecidos, atirando neles com uma espécie de ampola com substância capaz de ajustar a “vibração celular” da pessoa ao padrão do nosso mundo, trazendo-a de volta. Ele mesmo usa um cinturão que produz esse efeito. A narrativa conta como Cole não possui a simpatia dos seus superiores, nem de sua mulher; como antes ele contava com toda uma equipe de aventureiros treinados para acompanhá-lo no outro mundo; e finalmente, que as pessoas do outro lado podem muito bem não estarem convencidas de que voltar para o nosso é a melhor pedida. Há ecos de Eu Sou a Lenda (I Am Legend), de Richard Matheson, na imagem desse agente solitário que, na visão dos habitantes de Oblivion, apenas leva embora as pessoas. É claro que se formou em Oblivion uma comunidade independente e orgulhosa, marcada pela sugestão de que as dificuldades moldam o caráter dos colonos — tema que a ficção científica americana incorporou há muito tempo, a partir da história revolucionária dos EUA. A tônica do volume um, para além da apresentação das circunstância do seu mundo ficcional, é o fundo muito pessoal e atormentado, por trás da dedicação de Cole. Embora não faça tanto mistério sobre o que aconteceu com os seus 300 mil desaparecidos, quanto as séries citadas acima, Oblivion Song evoca os sentimentos de perda, culpa e desassossego que marcam essas produções.

A arte de Lorenzo de Felici atrapalha um pouco essas preocupações, porém. Seus personagens têm quase todos a mesma aparência esquálida e olhar faminto, perdendo a sugestão de profundidade ou variedade de sentimentos. Ele dá a impressão o tempo todo de que preferia estar desenhando uma HQ de zumbis. Mas, em conjunto com a colorista Annalisa Leoni, faz um trabalho muito bom de luz e sombra.

 

Arte de capa de Marco Checchetto.

Star Wars: Obi-Wan & Anakin, de Charles Soule (texto) & Marco Checchetto (arte). Barueri-SP: Panini Books, 2019, 120 páginas. Arte de capa de Marco Checchetto. Brochura. Esta aventura se passa entre os episódios I e II de Star Wars, com Anakin Skywalker aparentando ter uns 12 ou 13 anos de idade. A dupla mestre jedi e padawan aparecem em um planeta que, desprezado pela Velha República e vitimado pela guerra total, regrediu a uma tecnologia meio steampunk com armas de pólvora, dirigíveis e ornitópteros. Desse planeta partiu um pedido de socorro dirigido aos jedi. Assim que chegam, os heróis são atacados por ambas as partes em conflito, os abertos e os fechados. Acabam náufragos, acompanhados de mãe e filha (de um lado) e um guerreiros solitário (do outro), vagando por um mundo povoado por feras de aparência demoníaca ou draconiana. Fica claro que as pessoas do lugar estão trancadas em uma visão de mundo marcada pela guerra. Só o que enxergam como objetivo é a destruição do inimigo. O grupo é forçado momentaneamente a cooperar pela força superior dos jedi, mas Obi-Wan Kenobi e Anakin erram ao confiarem nessas pessoas. Acabam separados, com o menino aprisionado pelas duas mulheres que descobriram que ele é capaz de consertar o pouco de equipamento high-tech a que têm acesso (habilidade que os episódios II e III esqueceram).

Obi-Wan chega até a pessoa que pediu socorro aos jedi — uma mulher idosa auto-intitulada Coletora, que de algum modo não especificado amealhou um tesouro de arte e tecnologia antiga, que fazia cair sobre os grupos em guerra como “presentes dos céu” lançados de pipas. Essa mulher tem esperança de que a juventude do planeta esteja cansada da guerra, e que os jedi consigam terminar o conflito. Mas a imagem que ela faz dos jedi como guerreiros invencíveis está mais próxima dos sith, e é uma reviravolta interessante que o objetivo maior dela seja fazer os jedi exterminarem os agressores, permitindo que ela domine o mundo, com as crianças. Claramente, este é um mundo que apenas engendra violência e desejo de extermínio. Por outro lado, a interação de Anakin com os garotos que o têm como refém parece ser mais ingênua. No fundo da aventura da dupla de heróis está um momento da vida do pequeno Anakin em que ele hesita em continuar seu treinamento jedi. Essa situação é explorada mais fortemente em flashbacks que envolvem um passeio pelos intestinos de Coruscant, tendo o Senador Palpatine como guia. Yoda também faz uma aparição.

Infelizmente, toda a coisa do Conselho Jedi é para mim um desenvolvimento catastrófico da mística dos jedi. A partir do momento em que seus membros deixaram de ser chamados de “cavaleiros” para serem chamados de “mestres” e fizeram um conselho marcado pela miopia e pelo espírito burocrático, perderam a autonomia que vem com o termo “cavaleiro”. Mas a HQ escrita por Soule conserva uma interessante dimensão irônica, já que conhecemos a trajetória derradeira de Anakin Skywalker e podemos apreciar como as lições desta aventura em um mundo dividido pelo desejo genocida não calaram nele. A arte de Checchetto, sempre sensível e melancólica, sublinha esse efeito.

—Roberto Causo

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Leituras de Fevereiro de 2019

Só livros de brasileiros lidos em fevereiro, quando resolvi atacar a pilha de títulos aguardando leitura, alguns há um bom tempo. Inclui ficção científica, fantasia, horror e poesia de cordel. Há também um brasileiro na minha leitura de quadrinhos nesse mês.

 

Sob o Trópico de Capricórnio, de Pedro Carcereri. Belo Horizonte: Letreramento, 2018, 98 páginas. Brochura. Nelson de Oliveira me passou este romance curto do roteirista e cineasta Pedro Carcereri. É uma ficção científica dentro do subgênero distopia, muito em voga na literatura dos millennials e muito significativo hoje em dia, diante do quadro político atual. Mas aqui temos, rascunhado em traços rápidos e num estilo mais introspectivo, fusão de preocupações atuais e o tom das distopias brasileiras da década de 1970 — o Ciclo de Utopias e Distopias, dentro da ficção científica nacional. Isso provavelmente é mais resultante das escolhas pessoais de Carcereri, do que de uma pesquisa ou leitura prévia de trabalhos de autores como Ignácio de Loyola Brandão, Ruth Bueno, Silveira Júnior ou Mauro Chaves.

Também é interessante que o autor empregue temas bastante recentes e relevantes, nestes tempos de globalização: alimentos transgênicos por toda parte e a proibição estrita do plantio de qualquer coisa que o governo centralizado desaprove; o cultivo de plantas e a criação de animais não-transgênicos, como meio de resistência político-econômica. O premiadíssimo The Windup Girl (2009), de Paolo Bacigalupi, aborda tema nessa linha, projetado para um futuro de construção mais rica. A ideia de “vales” em que comunidades agrícolas guardam um princípio utópico está em Sob o Trópico de Capricórnio e também no romance tupinipunk do político verde Alfredo Sirkis, Silicone XXI (1985). A novela de Carcereri começa na Zona Oeste de São Paulo (exatamente a região em que eu moro), com o protagonista Daniel sendo sequestrado por um desses grupos de resistência. Ele acaba cooptado por eles para realizar uma ação em particular, e o grupo se move pelas ruas de Sampa para realizá-la, mas com o aparelho repressor em cima deles. A história tem muito movimento, com os personagens viajando por São Paulo Capital e Interior, como na novela pós-apocalíptica A Terceira Expedição (1987) de Daniel Fresnot. Mas o final é abrupto, como se o livro fosse a primeira instância de um trabalho maior ou de uma série a ser desenvolvida.

 

Quatro Soldados, de Samir Machado de Machado. Porto Alegre: Não Editora, 2013, 320 páginas. Brochura. O escritor gaúcho Samir Machado de Machado me enviou este seu romance um ou dois anos depois do seu lançamento. Com três leitores compulsivos na casa, o livro acabou passando de mão em mão e desapareu. Ano passado, Christopher Kastensmidt me recomendou o livro om muita ênfase, e passei várias semanas procurando-o sempre que surgia um momento livre. Como acontece invariavelmente nesses casos, achei o livro quando não o procurava. Valeu muito a leitura, de qualquer modo. De fato, este é um romance que, com vênia para o fato de ele poder ser lido como uma apropriação histórica ficcional muito própria da ficção pós-modernista, pode ser visto com um marco da fantasia brasileira. Fantasia histórica, é claro, por ser ambientado no Sul do Brasil do século 18.

Há três coisas meio que obrigatórias, na ficção pós-modernista que se estabelece na segunda metade do século 20, e que a gente encontra no romance de Machado de Machado: metaficção (a ficção que comenta a ficção), um espírito brincalhão ou iconoclasta, em torno da forma ou do assunto, e a fragmentação da narrativa. O romance é divido em quatro livros ou partes. Longas epígrafes precedem cada uma dessas partes. Em outros trechos, há uma reprodução da dicção e da grafia arcaica do português de então. O primeiro soldado foi abandonado pelo pai e acabou recrutado. A caminho de uma missão jesuíta, são perseguidos por uma criatura monstruosa até um labirinto. Desaparecidos, são seguidos pelo seu comandante, que tem melhor sorte contra o monstro. A narrativa corta então para contar o que houve com o jovem sobrevivente, que foi abrigado por um inventor e erudito que apresenta a ele a obra de Shakespeare — e um discurso literário elitista. O segmento termina com a chegada do oficial pronto para o resgate. Na segunda parte, o soldado resgatado encontra-se com mais um erudito, mas livre-pensador, irônico, boêmio e com a característica incomum de enxergar melhor no escuro do que a maioria das pessoas. O elemento fantástico surge como um novo monstro, que os dois enfrentam em subterrâneos lovecraftianos de clima pesado e descrições arrepiantes. Na terceira parte, o oficial que aparece na primeira é tratado com mais profundidade, na narrativa que investiga a sua infância e juventude, enquanto ele se coloca no caminho de um assassino psicopata em missão secreta dos poderes coloniais, num episódio com direito à aparição da versão gaúcha do anhangá. Na parte final, ficamos sabendo mais sobre o psicopata, e retornam o homem dos olhos especiais e um enredo de mistério criminal. A força da criação de Samir Machado de Machado está na textura e na evocação, no toque transformador do estranho e do sobrenatural, e na estrutura narrativa engenhosa. Mesmo tendo em mente que esta edição do seu romance se beneficiaria de mais um polimento, Quatro Soldados vai para a mesma prateleira com O Caçador de Apóstolos (2010), de Leonel Caldela, e A Bandeira do Elefante e da Arara (2016), de Christopher Kastensmidt, dos romances brasileiros de fantasia mais destacados dos últimos anos.

 

Arte de capa de Mozart Couto.

As Horripilantes Narrativas Alimentares do Clube Canibal, de Júlio Emílio Braz. São Paulo: Devir Brasil, 2018, 96 páginas. Arte de capa de Mozart Couto. Brochura. O autor mineiro Júlio Emílio Braz começou escrevendo roteiro de quadrinhos para revistas e fanzines na década de 1980. (Mozart Couto, o artista da capa, é um dos mais experientes e respeitados desenhistas de quadrinhos do Brasil.) Eu tava lá, eu vi. Ele teve uma experiência escrevendo westerns de bolso, sob pseudônimo, para a Cedibra, depois fez o salto para a literatura infanto-juvenil, onde encontrou fama e sucesso como um autor afro-brasileiro respeitado nacional e internacionalmente, ganhando um Jabuti com o seu livro de estreia em 1988. Mesmo nos seus livros para jovens, ele costuma ser bastante duro. Este livro sobre canibalismo certamente não passaria como literatura juvenil.

O título e os textos de abertura dão a entender que as histórias reunidas no livro formam um conjunto coeso em torno do tema do clube canibal. Como as histórias são ambientadas em Porto Alegre, é possível que Júlio Emílio tenha se inspirado no caso dos “Crimes da Rua do Arvoredo” naquela capital, ocorridos entre 1863 e 1864 e envolvendo um trio de assassinos e o açougue de um deles. Meu pai costumava citar esse caso para embasar a sua pouca fé no ser humano…

A falta de um índice com os contos reforça a ideia de que o livro deveria ser lido como uma espécie de novela fix-up. Na minha leitura, porém, não é o que acontece e os seis textos ficcionais acabam tendo uma individualidade maior do que o necessário para isso, mesmo com todos eles narrados na primeira pessoa. Em uma das histórias, por exemplo, uma mulher traída serve ao marido a amante dele — mas nada do clube. Na história seguinte, sim; um serial killer é contratado para abastecer a associação. No próximo conto, o narrador cínico cede ao narrador horrorizado ao descobrir que seu noivado com uma aristocrata rural de origem germânica vai ser celebrado com um terrível ritual, mas aí não se trata do mesmo clube. O mesmo acontece na última história, narrada por um agente funerário que se envolve com uma família de canibais, mas não germânica e sim espanhola. De qualquer modo, o livro é efetivo tanto em criar um clima pesado apropriado ao gênero, quanto em evocar o horror do canibalismo. Há também uma atmosfera de sordidez urbana brasileira que casa muito bem com o projeto. Júlio Emílio Braz teve um conto incluído ano passado na antologia As Melhores Histórias Brasileiras de Horror (Devir Brasil), editada por Marcello Simão Branco & Cesar Silva.

 

A Eva Mecânica e Outras Histórias de Ginoides, de Daniel I. Dutra. Praia Grande-SP: Editora Literata, 2013, 126 páginas. Prefácio de Gerson Lodi-Ribeiro. Brochura. Conheci Daniel Dutra na Odisseia de Literatura Fantástica de 2013, onde adquiri seu livro de contos com o tema da fembot ou ginoide (o feminino de “androide”). As histórias dialogam com os contos do pioneiro da FC brasileira Berilo Neves (1899-1974), best-seller no seu tempo com contos e crônicas publicadas em revistas e jornais e reunidas em livro. Neves frequentemente brincava com o que a tecnologia faria em termos de alteração do comportamento sexual e social humano, se, por exemplo, homens e mulheres artificiais fossem inventados, ou uma encubadora que permitisse a reprodução fora do útero.

Com mais sofisticação, Dutra tenta examinar que transformações a introdução das ginoides trariam à sociedade humana. No prefácio, Gerson Lodi-Ribeiro conta que tudo começou com a publicação de “A Mulher Imperfeita” na antologia de histórias originais organizada por ele, Erótica Fantástica 2 (Editora Draco, 2012). Mas obviamente Dutra já visava um livro com o tema, pois submeteu ao todo quatro histórias para a antologia. As quatro estão no livro, junto com outras quatro. “A Eva Mecânica” é relativamente curto, narrado em primeira pessoa, e conta como o narrador recorreu a um contrabandista para garantir a sua ginoide, já que não se qualificava para possuir uma. No fim, descobre que depositara o seu afeto em um produto falsificado. Há uma certa ironia aí, de que a valorização da mulher mecânica não passa de projeção do macho da espécie. O conto parece estar aí mais para apresentar o histórico da inovação tecnológica sobre o qual o livro especula. Vem então “A Substituta”, também em primeira pessoa: o narrador mata a esposa em uma briga de casal, confessa a um amigo que revela ter substituído sua mulher por uma ginoide, e oferece a ele essa possibilidade, com resultados trágicos. Há aí ecos do romance de Ira Levin, As Possuídas (The Stepford Wives, 1972), segundo Lodi-Ribeiro assinala no prefácio. A terceira história, “Ela, a Ginoide”, abre com as Leis da Robótica de Isaac Asimov, e narra como uma ginoide-babá foge dessas leis — “enlouquecida”, mata a todos os que lhe parecem ameaçar sua protegida. “A Mulher Imperfeita” é mais filosófico e explora os sentimentos que levariam um homem comum a priorizar a mulher artificial sobre a natural, e também outras situações de relacionamentos poliamorosos por causa do excedente de humanas disponíveis, agora que elas têm de concorrer com as máquinas. “Veronica Lake Fake” satiriza um movimento pelo “amor cibernético”, contrário à proibição das ginoides; “A Casa da Dor” se apresenta como um depoimento colhido no julgamento de um homem que descarrega secretamente seus impulsos sádicos nas mulheres artificiais; e em “Sabine”, uma mulher idosa usa um aparato de realidade virtual para experimentar uma vida mais jovem como uma ginoide. A noveleta “A Última Mulher da Terra” dialoga diretamente com o conto de Berilo Neves, “A Última Eva”, que Braulio Tavares incluiu na sua antologia Páginas de Sombra: Contos Fantásticos Brasileiros (Casa da Palavra, 2003).

Imagino que exista uma variedade de modos em que se pode assumir uma postura crítica feminista na literatura, para além da representação positiva ou idealizada da mulher. Histórias que expõem as ilusões ou vícios do comportamento masculino, por exemplo — como “A Mulher Imperfeita” e outros momentos em que os homens não estão bem na foto, nos contos de Dutra. E também histórias que expõem as ilusões ou vícios do comportamento feminino — como “A Última Mulher da Terra”, em que a última mulher, salva de uma cápsula criogênica secreta na Amazônia, é uma bisonhona cheia de ilusões sobre seu apelo perante homens que vivem há séculos só com ginoides. Lendo suas histórias depois das histórias de Angry Candy, do qual tratei mês passado, me ocorreu que Harlan Ellison também usa dispositivos semelhantes para revelar os azares dos relacionamentos humanos. Falta a Dutra, porém, menos adesão às fôrmas alegóricas das suas especulações, e justamente mais ironia para temperar as narrativas. Parte da produção contística de Berilo Neves cabia no tema da “guerra dos sexos”, que também apareceu na noveleta “Éden 4” (2001), de Alexandre Raposo, na qual um astronauta é revivido milhares de anos no futuro, quando não existem mais homens na Terra.

 

Os Domínios do Rei Peste, de Evaristo Geraldo. Fortaleza: Edição do Autor, junho de 2015, 16 páginas. Folheto. Evaristo Geraldo foi outro cordelista a quem Braulio Tavares me apresentou no maravilhoso estande do IMEPH na Bienal do Livro de São Paulo, em 2018. Assim como Rouxinol do Rinaré fez com o seu A Sombra do Corvo, Evaristo Geraldo se inspira em um texto de Edgar Allan Poe, desta vez um conto de horror, “O Rei Peste” (“King Pest: A Tale Containing an Alegory, 1835). Na história, que não é uma das mais famosas do celebrado escritor americano, dois marinheiros malandros vão parar em um bairro de Londres que concentrava os doentes da peste. Inadvertidamente, a dupla, descrita como um cara muito alto e o outro um anão, deparam-se com uma bizarra cena que se desenrola em uma funerária. O poeta brasileiro desenvolve um certo humor, até que o clima de horror se fixa nessa cena em especial, muito bem expressa no poema.

O cordel é completado por um segundo poema narrativo de Evaristo Geraldo, “O Camponês Ganancioso”.

 

 

Arte de capa de Maércio Siqueira.

A Árvore de Todos os Frutos (Lenda Indígena), de Evaristo Geraldo. Alto Santo-CE: Edição do Autor, setembro de 2017, 12 páginas. Arte de capa de Maércio Siqueira. Folheto. Evaristo Geraldo retorna aqui usando uma lenda indígena como inspiração para o seu cordel, representada na xilogravura de Máercio Siqueira. Um elogio à cultura indígena abre o poema narrativo, que conta do amor da Lua pelo Sol. Um eclipse possibilitou a união amorosa dos dois corpos celestes. Um curumim foi o fruto desse encontro, Macunaíma, incumbido de proteger uma árvore que dava todos os frutos encontrados na floresta. O herói mágico distribuía os frutos aos homens e mulheres dos Macuxis, de acordo com sua sabedoria — registro lendário daquilo que os antropólogos chamam de “chiefdom“, o domínio do chefe que exerce esse direito a partir de um capital simbólico que o autoriza a organizar a sociedade. Mas o povo ganancioso passa por Macunaíma e ataca a árvore pensando em plantar um pomar a partir dos seus ramos. Mas ela morre, privando o povo da sua magia e fazendo o herói reagir com uma fúria que incendeia a mata e transforma trechos da floresta em rochedos estéreis. O tom do poema é mais solene e captura bem a lógica lendária dos mitos.

 

Quadrinhos

 

Arte de capa de Marini.

Arte de capa de Marini.

Batman: O Príncipe Encantado das Trevas, Volume 2 (Batman: The Dark Prince Charming Volume 2), de Marini. Barueri-SP: Panini Books, 2018. Arte de capa de Marini. Álbum capa dura. A investida do artista francês Enrico Marini na mitologia de Batman, criado por Bob Kane & Bill Finger, termina com este segundo volume. A qualidade da arte e da narrativa se mantém, enquanto a luta de Bruce Wayne para resgatar a menina Alina, que pode ser sua filha, das garras do Coringa engata a terceira marcha. Como Batman, Wayne patrulha as ruas, ataca uma gangue de motoqueiros tietes do Coringa. Mas é o supervilão, descrito como um psicopata que mata em rompantes, quem precipita as ações, e enquanto não assassina seus colaboradores como alívio de tensão. Ele aborda o multibilionário Wayne para que ele adquira um colar de diamantes — sonho de consumo da sua namorada Arlequina (Harley Queen). No meio do caminho, a joia vai parar nas mãos da ladrona Mulher-Gato, que mais tarde segue Batman até o local do desenlace da história. O interessante dessa sequência final é como, feito um malabarista habilidoso, Marini faz com que todos os personagens participem da ação: Batman, Coringa, o mordomo Alfred, a Mulher-Gato, Arlequina, o palhaço anão e suicida Archie, e a própria Alina. A menina, em particular, demonstra ser cheia de recursos. Isso não só traz maior interesse para o desfecho da minissérie, como também funciona como prenúncio do final surpresa — que sugere que ela pode não ser de fato filha de Bruce Wayne. O desenho e o uso de cor e tonalidade por Marini continua deslumbrante, mesmo que neste segundo volume ele não tenha realizado painéis duplos de tirar o fôlego, como no primeiro. Em sua aventura dentro da mitologia de Batman, Marini levou algo da dualidade da sua série Gypsy, cujo herói hiperviolento faz o que for necessário para proteger uma menina inocente — irmã menor, em Gypsy; suposta filha, aqui.

 

Arte de capa de Darrick Robertson.

Astronauts in Trouble: Live From the Moon, de Larry Young (texto), Charlie Adlard e Matt Smith (arte). San Francisco, CA: AIT/Planet Lar, 2.ª edição, 2001 [1999], 144 páginas. Introdução de Warren Ellis. Arte de capa de Darrick Robertson. Trade paperback. Folheei este livro de quadrinhos várias vezes na loja Terramédia (hoje Omniverse), e o desenho que empresta recursos do autocontraste nunca me passou muita confiança. Me convenci a comprá-lo por causa da recomendação de Warren Ellis, no seu livro de não-ficção Come in Alone. Ellis assina a introdução do livro, onde reafirma a sua paixão pela astronáutica, algo também presente na sua ótima HQ Ministério do Espaço (Devir Brasil).

A história criada por Larry Young, primeiro publicada em 1999, é ambientada em 2019, quando o pouso da Apollo 11 na Lua faz cinquenta anos. Nela, uma equipe de telejornalismo é envolvida na fuga de um megaempresário para o satélite natural da Terra, depois que as suas indústrias são atacadas por supostos ecoterroristas. Aos poucos, o empresário se mostra uma espécie de supervilão como um Dr. No, de 007, pronto para chantagear o mundo depois de conquistar o derradeiro terreno elevado — a Lua. Ele até patrocinara a suposta organização terrorista contra si mesmo, para lhe dar a desculpa para fugir para o satélite, sem supervisão governamental. Embora apareçam senadores corruptos na história, o executivo do governo americano nunca é acionado. Num truque narrativo estranho e bizarro, é uma espécie de máfia que lança uma trinca de misseis contra a Lua. O ápice da de Astronauts in Trouble divide-se entre o empresário e a equipe televisiva, tentando escapar do ataque. A narrativa é irônica e divertida, com muitas referências à cultura popular em diálogos extensos, mas é às vezes confusa e eclíptica. O fato do artista Matt Smith ter abandonado o trabalho nas páginas finais, assumidas por Adlard, não ajudou. De qualquer modo, passado o estranhamento inicial, a arte acaba sendo envolvendo o bastante. Fecha o livro uma história independente da narrativa principal, em que macacos tripulando cápsulas em voos-teste dão espaço para o humor sarcástico de Larry Young. O livro reitera a importância da iniciativa privada nas histórias de FC de viagem interplanetária, algo firmado pelo escritor Robert A. Heinlein e pelo editor John W. Campbell, Jr. O ano de 2019 com o cinquentenário da Apollo 11 está aí, e o megaempresário Elon Musk já anunciou seu desejo de chegar à Lua “o mais cedo possível”.

 

Ate de capa de Danilo Beirut.

Astronauta: Entropia, de Danilo Beyruth. Barueri, SP: Panini Books, 2018, 98 páginas. Arte de capa de Danilo Beiruth. Álbum. Mais astronautas pra nóis, no quarto álbum da série criada por Danilo Beiruth para a Maurício de Sousa Produções, em sua linha de “graphic novels“. O terceiro, eu discuti aqui em junho de 2017. Nele, o Astronauta foi apresentado à uma versão dele mesmo e de sua família, formada em um universo paralelo, e acaba ficando com a filha adolescente, Isabel.

Os dois estão perdidos em uma região inexplorada da galáxia, sem contato com a agência espacial do Astronauta, a BRASA. Isabel sugere que eles busquem sinais de civilizações alienígenas que possam lhes dizer onde estão. Encontram um sinal e chegam a um aglomerado de naves espaciais, o Sargaço, habitado por náufragos e piratas em conflito. Os dois são pegos nessa guerra e acabam separados. Astronauta faz um trato com a liderança dos piratas, e vai com a bela alien Shie’r — que mais tarde se revela como protótipo beyruthiano da personagem Cabeleira Negra, vista em histórias anteriores do personagem. A ideia de uma estação espacial habitada por uma subclasse de desclassificados também pode ter surgido da pena de Heinlein, para se tornar um clichê absurdo que chegou a alcançar até as séries Babylon 5. Mas Beyruth lida bem com essa parte da trama, e o caótico desenho de Sargaço faz homenagem a várias naves da FC, incluindo aquelas de Star Trek. A HQ investe nas qualidades da cooperação e da luta contra a tirania, e seu final deixa um gancho para complicações futuras, num quinto volume. Já neste ponto, Astronauta é uma série de álbuns vitoriosa dentro do campo dos quadrinhos nacionais de ficção científica. Algo que o próprio Mauricio de Sousa celebra no introdução.

—Roberto Causo

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Leituras de Janeiro de 2019

O ano começou com uma boa dose de ficção científica… e outra de Harlan Ellison. Foi um mês de dobradinhas com Ellison e Charles Sheffield.

 

Arte de capa de Larry Price.

Odyssey, de Jack McDevitt. Nova York: Ace Books, 2006, 410 páginas. Arte de capa de Larry Price. Hardcover. Ano passado eu li Omega (2003), de McDevitt. Este Odyssey é a sequência na série The Academy — ou Romances de Priscilla Hutchins. Aqui, o experiente autor americano parte de uma premissa rara e instigante: avistamentos de OVNIs no espaço. Quem mais pensou nisso? No seu livro In Search of Wonder Essays on Modern Science Fiction (1956), Damon Knight menciona um romance com essa premissa. Em Odyssey, os OVNIs são chamados de moonriders e são vistos ao longo de uma rota turística que cobre vários sistemas solares.

Nesse momento, a Academia está sob ataque de políticos atrás do seu orçamento. O esforço de colonização de outros mundos não trouxe os resultados esperados, e a humanidade não fez contato com nenhuma civilização alienígena com presença espacial. Além disso, o aquecimento global tornou-se uma questão urgente, e muitos defendem o uso de recursos no combate às suas consequências, e não na viagem interestelar. Isso acontece lá por 2230, com aquilo que se projeta acontecer, em termos de mudança climática catastrófica, por volta de 2050. A perspectiva derrotista começa a mudar com o acúmulo de avistamentos e com a revelação de que tais objetos não-identificados conseguiriam mover asteroides — primeiro contra um dos poucos planetas com vida animal complexa, conhecido da humanidade, e depois contra um hotel espacial. Uma nave fora enviada para investigar os avistamentos. Na tripulação, um jornalista cético e contrário aos gastos com as viagens interestelares, uma competente pilota grega, um executivo de RP que resolve se meter na ação, e a filha adolescente de um senador americano. MacAllister, o jornalista, teve sua vida salva por Priscilla “Hutch” Hutchins no romance Deepsix (2001), que eu não li. Amy, a adolescente, quer ser piloto e tem um contato imediato de “quarto grau”, em que um alienígena personificando Hutch manda um recado à humanidade por meio dela. Na Terra, MacAllister e Hutch independentemente descobrem que a maior parte dos avistamentos são farsas organizadas por grupos de interesse, para marcar a importância do voo interestelar e da militarização da viagem espacial. Mas de tudo, o contato imediato de Amy permanece sem explicação. Por isso Hutch reage a ele enviando naves de resgate à uma gigantesca estação espacial europeia construída como um acelerador de partículas. Esse acelerador busca sondar os mistérios mais profundos do universo, criando microburacos negros. Existe a perspectiva de uma ruptura no tecido do espaço-tempo que levaria ao fim do universo — premissa semelhante à de Forever Peace (1997), premiado romance de Joe Haldeman. Todos os cientistas com que os Hutch e MacAllister falam se apressam em afirmar que a possibilidade disso acontecer é muito pequena. Mas obviamente os alienígenas, que surgem de fato nos momentos finais do romance, discordam. A arte digital de Larry Price na capa captura com dinamismo a forma esférica com que suas naves são descritas, e deu um jeito de colocar uma nave em forma de disco na arte. No texto, a ironia em torno dos OVNIs é divertida e bem realizada, ainda que com discrição. A crítica à política, à burocracia e às obsessões da ciência é bem estabelecida e de ironia mais marcada, já que mesmo diante da morte e da destruição, as pessoas se agarram às suas perspectivas limitadas e mesquinhas. McDevitt tem em Odyssey mais um exemplo da sua capacidade de criar um suspense natural a partir de reflexões sobre as faltas da sociedade e de sua fé nas qualidades individuais humanas como a coragem e o auto-sacrifício.

“Certos tipos de decisão pode ser ignorado com segurança. Algumas questões irão embora com a passagem do tempo, outras vão se desenvolver tão lentamente, que os tomadores de decisão terão partido antes que os resultados da sua negligência se tornem manifestos. O que nos traz ao meio ambiente.” —Jack McDevitt, Odyssey.

 

Arte de capa de Bob Eggleton.

Between the Strokes of Night, de Charles Sheffield. Nova York: Baen Books, 1985, 346 páginas. Arte de capa de Bob Eggleton. Paperback. Este romance de Charles Sheffield também menciona as consequências catastróficas do aquecimento global, e em 1985! Mas enquanto McDevitt parece ter errado para mais quanto a incidência dessas consequências, Sheffield, projetando-as para 2010, errou para menos. Em cima das tensões causadas pela mudança climática e superpopulação, Sheffield colocou uma guerra termonuclear total e um inverno nuclear. Por sorte da espécie humana, um trilionário investiu sua fortuna (outra antecipação brilhante de Sheffield: o cara fez sua fortuna em ações de empresas de computação) em habitats espaciais. A primeira parte do livro, de fato, é dedicada a descrever como esse visionário recrutou um instituto de pesquisas sobre o sono, vinculado a ONU, para se instalar em seu principal habitat.

O romance dá um salto de dezenas de milhares de anos, para um contexto de muitas colônias humanas em outros planetas. Um grupo de jovens é selecionado, a partir de uma grande competição, para visitar um outro mundo. De um modo bem próprio da FC hard americana, um deles sofre um acidente potencialmente fatal. O único modo de salvá-lo é um de seus colegas colocá-lo em uma espécie de hibernação química. Quando desperta, ele e seus amigos estão em uma nave espacial desconhecida. Aos poucos é revelado a eles que parte da civilização humana na galáxia é composta de pessoas que vivem no “espaço-S” — uma percepção do passar do tempo milhares de vezes mais lenta do que a do espaço normal. Isso é fruto dos experimentos do instituto apresentado na primeira parte, e o recurso funciona como um modo de driblar a velocidade da luz como lei universal, sem rompê-la. Em alguns momentos, ele também lembra a história de H. G. Wells, “The New Accelerator” (1901), e o episódio da invasão dos Druufs, na série alemã Perry Rhodan. A outra coisa que o espaço-S faz é permitir o contato com estranhas criaturas que vivem flutuando no espaço, sendo que algumas podem ser inteligentes.

O pessoal do instituto e dos primeiros habitats ainda está vivo e atuando como dirigentes invisíveis da humanidade. A competição planetária que selecionou o grupo de protagonistas da segunda parte do romance é um modo desses dirigentes renovarem os seus quadros com pessoas competitivas e intelectualmente aptas. Mesmo porque um efeito colateral do espaço-S é a impossibilidade da reprodução humana. O grupo visita a Terra do pós-apocalipse, ainda não recuperada de uma era glacial, e então descobre onde fica realmente o centro das decisões. Ao chegarem, descobrem que são esperados. O grande segredo é contado a eles: experimentos para uma ampliação ainda maior da percepção são realizados, para que o voluntário possa observar eventos de milhões e bilhões de anos. A necessidade dessa perspectiva vem do fato de que um daqueles seres espaciais ter comunicado a visão de um futuro em que alguma força desconhecida iria converter todos os sóis do nosso braço da Via Láctea em anãs-vermelhas, tornando impossível a vida humana. Uma parte do grupo de aventureiros decide abrir mão desse novo “espaço” — e do espaço-S — ao se mudarem para um segundo centro de pesquisa. É como a Segunda Fundação, de Isaac Asimov, e lá, gerações dos seus descendentes, vivendo um tempo de vida normal, poderão se dedicar à solução dessa ameaça com maiores chances de sucesso. Como acontece com muita FC hard, o romance não oferece protagonistas simpáticos, interessantes ou mesmo bem realizados. Sheffield também tem a tendência de expor o assunto mais por meio de monólogos do que diálogos. Por conta disso tudo e das especulações que ele apresenta, há uma face muito estéril para esse estranho futuro. Um toque interessante e que mostra a sua autoconsciência como autor, está no fato de seus protagonistas terem escolhido a opção mais humana para enfrentarem o problema que enfrentam. É uma luz particularmente brilhante, nesse romance estranho. Mas o maior fator mesmo é o senso do maravilhoso que ele comunica e a dimensão “stapledoniana”, como dizem os anglo-americanos, das suas especulações.

 

Sight of Proteus, de Charles Sheffield. Nova York: Del Rey, 1988 [1977; 1978], 248 páginas. Paperback. Neste romance de Sheffield, o mundo está novamente na beira do precipício, por causa da superpopulação. Inclusive, Sight of Proteus faz par com a sequência Proteus Unbound (1989) mas menciona situações e tecnologias vistas na série Crônicas de Arthur Morton McAndrew. A impressão geral é bem diferente daquela do livro One Man’s Universe, porém. Isso porque a principal novidade tecnológica presente em Sight of Proteus é a modificação da morfologia humana, permitindo a customização do corpo e até que ele adquira a aparência de animais. Uma dupla de investigadores está na cola de um supergênio da área, que teria usado cobaias humanas, crianças, em seus experimentos. Capman, esse cientista, some do mapa mas deixa pistas que levam os investigadores a uma jornada que os leva à galeria do grotesco que é o Palácio dos Prazeres; ao acesso à genética de alienígenas que viveram milhões de anos atrás no planeta Loge, um gigante gasosos que, ao ser destruído, gerou no cinturão de asteroides do Sistema Solar; a uma equação para o equilíbrio econômico-populacional da humanidade; e a um asteroide em forma de bola de gude oca, transformado em nave espacial interestelar. No fim das contas, Capman é encontrado mas a questão em torno dele já havia se dissipado há algum tempo. Inclusive, o experimento com crianças era na verdade uma tentativa de rejuvenescimento. A imagem final é menos positiva do que assustadora, pelo número de pessoas que, sorridentes, abandonam uma humanidade conhecida em favor de uma visão alternativa, ainda desconhecida, de humanidade. O leve tom farsesco, presente inclusive na quantidade de ideias de FC empilhadas e pouco problematizadas, reforça os percalços de uma leitura que não conduz o leitor a um futuro que parece coerente e interessante de se conhecer. Não obstante, vale refletir sobre a hipótese de Sheffield ter refletido ou expressado ainda na década de 1970 (uma versão do romance apareceu primeiro na revista Galaxy em 1977) ansiedades sobre o controle e a radicalização do corpo — que na década seguinte estariam no cyberpunk, e que hoje estão na política de identidade.

 

Arte de capa de Glen Orbik.

Web of the City, de Harlan Ellison. Londres: Titan Books/Hard Case Crime, 2013 [1958; 1957; 1959; 1956], 284 páginas. Arte de capa de Glen Orbik. Trade paperbackDesencarnado no ano passado, Harlan Ellison foi um dos escritores mais inquietantes da FC e do horror americanos, e uma das suas figuras mais polêmicas. Quando estive no Festival Utopiales em Nantes, em 2002, flagrei Brian W. Aldiss perguntando a Norman Spinrad se o “little guy” (o baixinho Ellison) ainda seguia sem ter escrito nenhum romance. De FC, bem entendido, pois Ellison no começo de sua carreira ele publicou este romance de ficção de crime, escrito enquanto ele fazia o treinamento básico no Fort Benning. Mais tarde, quando ele escrevia uma coluna de resenhas de paperbacks para o jornal do Fort Knox, onde servia, encontrou, em uma caixa de livrinhos enviados pela Pyramid Books pra serem resenhados, o seu romance — que ele havia submetido à Lion Books como Web of the City (a teia da cidade). A Lion fechou e o seu inventário foi comprado pela Pyramids, que lançou o livro como Rumble.

Web of the City é centrado no delinquente juvenil Rusty Santoro, e contam as lendas que como pesquisa para o livro Ellison teria se enfiado em uma gangue de verdade. Rusty é o líder da sua gangue, mas alguma coisa das admoestações do professor Carl Pancost cala nele. Ao tentar se afastar da violência, ele passa a ser acossado pelos seus ex-amigos. Poupa o seu

A edição original do romance de estreia de Harlan Ellison, pela Pyramid Books.

adversário em uma briga ritual de canivete, pela liderança do bando. Quando as coisas parecem estar se assentando para ele, sua irmã, que entrou na gangue influenciada por ele, é assassinada brutalmente, e a mãe o responsabiliza. Atormentado, Rusty se lança em uma fiada de atos de violência no território de gangues rivais, enquanto caça o assassino. Na introdução, Ellison reconhece que o livro tem os seus problemas. Mas a leitura revela o pendor precoce do autor pelo over the top e pela linguagem vigorosa, expressiva, e o seu interesse pelos tipos estranhos que se encontra nas ruas. O clima é forte e as situações são tensas, a textura dos bairros pobres e dos seus espaços violentos é muito presente. O romance alcança um senso trágico genuíno.

Ao pessoal que descuidadamente define “ficção de gênero” como sendo apenas ficção científica, fantasia e horror, é bom lembrar que ficção de crime também é gênero literário, e a ficção sobre delinquência juvenil foi um subgênero popular na década de 1950, nos Estados Unidos. A informação está na mui útil Encyclopedia of Pulp Fiction Writers (2002), de Lee Server. O mesmo livro menciona Wenzell Brown como um dos “três mais” do subgênero, e pode ser que o romance de Ellison tenha sido rebatizado como Rumble para entrar no rastro de um livro de Brown, The Big Rumble (1955). Eu vi muitos filmes na madrugada, pertencentes ao subgênero — e que não eram Amor Sublime Amor. Três histórias curtas de Ellison, “No Game for Children” (1959), “Stand Still and Die!” (1956), e “No Way Out” (1957), noveleta que fornece o primeiro material empregado em The Web of the City. “No Game for Children” combina a violência juvenil com a cultura dos hot rods (carros envenenados), em uma história em que um acadêmico sossegadão se mostra mais implacável do que os bandidinhos das ruas, quando provocado por um deles. O selo Hard Case Crime tem feito um trabalho maravilhoso com a ficção de crime hard-boiled, resgatando obras antigas e publicando material novo, mantendo um amor saudosista pelo formato do paperback e pela arte pulp que invariavelmente colore as suas capas. Esse material pulp e o projeto gráfico já rendeu até matéria e capa da revista de arte alternativa Juxtapoz. Algumas edições especiais aparecem em trade paperback, de dimensões semelhantes àquelas dos livros em brochura que temos aqui no Brasil. Confesso que se tivesse grana, enchia uma estante com todos os livrinhos da Hard Case Crime (já tenho uns oito). Glen Orbik, que assina esta capa e várias outras do selo, é um mestre da arte pulp oriundo dos quadrinhos.

 

Angry Candy, de Harlan Ellison. Nova York: Plume, 1989, 334 páginas. Trade paperback. Nesta coletânea de histórias, caí direto no centro da produção de Ellison, em termos de ficção científica, fantasia e horror. Já tinha lido outras coletâneas, mais antigas, mas nesta encontrei uma grande concentração de histórias premiadas, instigantes, sugestivas, nostálgicas e incômodas. Na um paia introdução, Ellison (famoso pelos comentários e introduções) comenta que, depois de montada a coletânea, ele se deu conta de que a tônica das histórias era a morte. Alguns páginas registram nas margens quem partiu entre 1985 e 1987, incluindo gente como Theodore Sturgeon e Frank Herbert. A primeira história, “Paladin of the Lost Hour”, acompanha um jovem que salva um idoso do ataque de uma dupla de assaltantes num cemitério, abriga o velho, aprende a tratá-lo como a um pai, aí descobre que era tudo um teste para que o homem lhe passe o bastão na tarefa de impedir o fim do universo. O bastão na verdade é um relógio que não pode tiquetaquear. Ao mesmo tempo, o objeto mágico confere desejos, mas ao custo de um tempo com o relógio funcionando. O teste final é negar ao velho a graça, em troca de um minuto, de rever sua esposa falecida. Uma bonita alegoria da responsabilidade, próxima daquela que Stephen King e Richard Chizmar fazem com A Pequena Caixa de Gwendy, que discuto mais abaixo. A noveleta de Ellison ganhou o Prêmio Hugo 1986. “Footsteps” é uma história de horror sobre uma vampira que seduz suas vítimas, até que encontra um semelhante. Mais curta (dua páginas), “Escapegoat” tem três viajantes temporais no Titanic, com o propósito da missão deles oferecendo um final surpresa. “When Auld’s Acquaintance Is Forgot” é um conto de FC quase-cyberpunk sobre um homem que recorre a um serviço clandestino de remoção de lembranças, por causa de uma lembrança ruim. “Broken Glass” é outra FC, mas sobre telepatia e com o toque perverso de Ellison, que narra como uma garota que sofre um estupro mental devolve a agressão com fantasias sexuais violentas ao atacante, levando-o à loucura. “On the Slab” é uma história meio lovecraftiana, com o toque ellisoniano de evocação da cultura popular cotidiana (também como Ray Bradbury fazia): um empresário do showbiz desencava o que parece ser a múmia de um ser imemorial, que ele põe em exposição — até que testemunha um inimigo igualmente imemorial surgir para vingar-se da sua descoberta, em um final intenso. “Laugh Track”, que eu conhecia da Asimov’s Science Fiction, evoca igualmente a cultura popular americana, ao tratar com leveza de uma risada gravada e empregada em diversos sitcoms e de um dispositivo tecnológico que, a partir dessa gravação, acessa a alma da tia do protagonista, a dona da risada. Também em primeira pessoa, “Prine Myshkin, and Hold the Relish” mostra que Ellison também consegue dialogar com a alta cultura literária, mas com o seu próprio twist: o narrador visita uma lanchonete onde sempre se encontra com um amigo pra discutir Dostoievsky; um terceiro ouve os dois debatendo a violência do autor russo contra as mulheres, e resolve contar uma fiada dos seus casos com o sexo feminino, todos resultando em algum tipo de acidente/incidente trágico, fatal ou aleijante — um tremendo pé frio para as mulheres.

“The Region Between” se afasta da tendência principal de Ellison, por ser uma FC que acompanha um homem aparentemente comum que assume diversas identidades por vários planetas, e em torno de quem o destino derradeiro do universo passa a orbitar. A história, uma noveleta, é bem New Wave e inclui diagramação especial e ilustrações feitas pelo artista de FC Jack Gaughan, com direito a recursos concretistas, incluindo um texto composto em espiral. (Ellison foi um dos nomes centrais da New Wave americana.) “Eidolons” é outra história em primeira pessoa, narrada por um ser sobrenatural que encontra um outro, disfarçado de proprietário de uma loja de soldadinhos de chumbo. O encontro coloca nas mãos do narrador um pergaminho com o segredo da imortalidade, e boa parte do conto é composto de 13 excertos enigmáticos desse pergaminho. A história ganhou o Prêmio Locus 1989, assim como “With Virgil Oddum at the East Pole” (uma FC sobre um homem misterioso que cria uma obra de arte para alienígenas nativos de um outro planeta, enchendo o narrador de inveja), que o recebeu em 1986, e “The Function of Dream Sleep” (também em 1989, sobre um homem que vê um monstro quando da morte do seu melhor amigo, desenvolve problemas de sono e vai ver um homem misterioso que explica a ele como é o além da vida). A melhor história do livro, porém, deve ser “Soft Monkey”, ficção de crime que ganhou o American Mystery Award 1988 — conto sobre uma moradora de rua que testemunha um crime e passa a ser caçada pela máfia, fugindo pelos becos e no meio das multidões de Nova York. É uma história dura, com muito sangue derramado Mas ela conserva um conteúdo trágico, porque a sem-teto é uma pessoa enlouquecida por alguma perda em seu passado, carregando uma boneca que ela chama de Alan, e que fará tudo para proteger. O que surge como contraponto à toda a dureza do conto é portanto esse ponto de ternura insana, que serve apenas a alguém que sempre esteve sozinho. Angry Candy ganhou o World Fantasy Award. Um testemunho das razões de Ellison ter sido considerado por tanto tempo como um dos melhores contistas do campo, e, por alguns, da literatura americana.

 

Irlanda: Os Lugares e a História (Irlanda: I luoghi e la storia), de Rosalba Graglia. Lisboa: Verbo, 2001 [1996], 136 páginas. Tradução de Rui Pires Cabral. Capa dura, formato grande. E eu que achava que travelogues e guias de viagem deviam ser o máximo da leitura chata… O texto da escritora italiana Rosalba Graglia faz a diferença, neste livro sobre a Irlanda. Espirituoso, informativo e inteligente, ele também se destaca pela sua simpatia pelo povo irlandês. O livro chegou às minhas mãos emprestado por Taira Yuji, que por sua vez o emprestou de Cristiana Vieira. Muito bem organizado, comenta a história, a paisagem, os costumes, as contribuições literárias (W. B. Yates, James Joyce) e artísticas da Irlanda para o mundo. Mas não deixa de fora o lado mais triste do lugar, mencionando a história de abusos promovida pelo Reino Unido sobre a população irlandesa, nem a questão separatista e a violência entre as duas Irlandas — Norte e Sul —, que perdurou por tanto tempo. Lindas fotografias marcam cada página, mas é o texto de Rosalba Graglia que distingue o livro. Li o livro de arte para embasar um segmento ambientado na Irlanda do século 13, do romance multivolume “Archin”, um projeto de Taira Yuji e do seu Desire Studio.

 

Arte de capa de Ben Baldwin.

A Pequena Caixa de Gwendy (Gwendy’s Button Box), de Stephen King & Richard Chizmar. Rio de Janeiro: Suma, 2018 [2017], 168 páginas. Arte de capa de Ben Baldwin e ilustrações internas de Keith Minnion. Tradução de Regiane Winarski. Capa dura. A mais famosa colaboração de Stephen King com outros escritores é o romance O Talismã (1983), com Peter Straub. Mas ele tem outras, inclusive com os filhos Joe Hill e Owen King. Esta, com Richard Chizmar, editor da revista Cemetery Dance, com a qual King chegou a colaborar, veio ao Brasil em 2018 com um belo tratamento editorial que inclui capa dura e ilustrações internas, em preto e branco (grafite) de ótima qualidade de Keith Minnion, com efeitos granulados muito sutis.

A história começa na década de 1970. Acompanha uma garota de Castle Rock — a cidade ficcional em que King ambientou muitas das suas histórias e romances de horror —, que aos 12 anos recebe de um homem de preto (outro leitmotif favorito de King) uma caixa com botões. Apertando um deles, uma gavetinha abre com um chocolate dentro. Apertando um segundo, a gaveta revela uma moeda de alto valor para colecionadores. O terceiro botão, se apertado, pode vir a causar alguma tragédia longe dali. É bem o tipo de dispositivo fascinante que a dark fantasy americana vem imaginando desde Richard Matheson (1926-2013), cuja história “Button, Button” (1970) virou o filme A Caixa (The Box), de 2009. O próprio King já havia empregado premissa semelhante em “Tudo É Eventual” (“Everything’s Eventual”), uma novela de 1997. A Pequena Caixa de Gwendy passa a acompanhar a menina do título, contando como ela enxuga o seu corpo rechonchudo, ganha formas atléticas, torna-se confiante e capaz, arruma um namorado, perde uma amiga… e também como ela apertou o botão do terror pela primeira vez e qual é o fato terrível que ela imagina ter provocado. Com leveza, a novela explora a psicologia da moça, suas dúvidas, ansiedades, e como ela constrói sua força de vontade para evitar o emprego de um poder tão maior do que ela. Sem dúvida, assim como a protagonista de The Girl Who Loved Tom Gordon (1999) e outros livros e histórias de King, Gwendy é uma personagem feminina encantadora pela sua determinação. A sua história sugere o quão poderoso pode ser um ato de imaginação na construção tanto de um caráter sólido, marcado pela autodeterminação, quanto de um desproporcional sentimento de culpa e de responsabilidade por tragédias que estão além do nosso poder individual de controlar.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Shane Davis.

Superman: Terra Um (Superman: Earth One), de J. Michael Straczynski (texto) e Shane Davis & Sandra Hope (arte). Barueri-SP: Panini Books, 2012, 138 páginas. Arte de capa de Shane Davis. Tradução de Rodrigo Oliveira & Paulo França. Capa dura. Sou eu, ainda procurando os quadrinhos de autoria de Straczynski, e estendendo as minhas leituras do Super-Homem. Na verdade, passei um bom tempo refletindo se valia a pena adquirir este livro em que Straczynski recria a origem do personagem. É sempre um risco, e muitos esforços semelhantes derrapam. Felizmente, não é o caso aqui. De fato, valeu muito o investimento. Na verdade, fiquei surpreso com a resposta emocional que essa HQ despertou em mim. Essa atenção para com a “lógica emocional” (nas palavras da escritora de FC Kelly Robson), ou mesmo lógica moral, do que ele narra é uma das características que distinguem o roteirista conhecido pela criação da série Babylon 5. 

A história começa com Clark Kent arriscando a sorte na cidade grande — Metrópolis, onde faz teste para um time profissional de futebol americano, e para uma vaga em uma empresa de materiais. Fisicamente ele excede, e intelectualmente também, o que é um detalhe importante, considerando o quanto gêneros e formas artísticas populares tendem a se esquivar de personagens inteligentes. A caminho de realizar o sonho americano, Clark hesita quando sua mãe lhe diz que ele deve buscar a ocupação que lhe trouxer felicidade e que melhor empregue seus supertalentos. O rapaz então visita a redação do jornaleco Planeta Diário, onde conhece o idealista Jimmy Olsen e a durona Lois Lane. Enquanto ele reflete sobre as suas possibilidades profissionais, a história, que ia muito bem, retrabalhando o material conhecido da mitologia do herói, de modo que as variações do autor caiam com naturalidade e também de modo interessante e sugestivo, nas fendas antecipadas pelo leitor que conhece essa mitologia, se transforma em uma ficção científica de invasão alienígena, completa com naves gigantes e tropas com armaduras robotizadas. Nesse ponto, achei que o enredo iria se perder, mas mesmo durante as sequências de ação os flashbacks vão preenchendo as lacunas da formação do personagem e garantindo o interesse. Os alienígenas estão na Terra atrás do próprio Superman. Buscam terminar o serviço iniciado com a destruição do planeta Kripton. Essa é uma inovação de Straczynski, eu imagino: a destruição do planeta seria resultado de uma guerra de gerações entre Kripton e um outro mundo do mesmo sistema planetário. A briga de Superman contra o líder dos invasores acontece entre os arranha-céus de Metrópolis, e aí há semelhanças com o filme Homem de Aço (Man of Steel; 2013). Há ainda uma linha narrativa coadjuvante, em que uma cientista militar analisa a nave que trouxe o personagem de Kripton. Os personagens dessa linha não interferem muito no enredo, mas a nave é crucial para virar a mesa sobre os invasores. Para sublinhar a sua participação, Straczynski trouxe uma interessante ideia de ficção científica: os próprios átomos da nave apresentam um código ativado quando Superman sonda um fragmento dela, com a sua supervisão.

Lendo essa HQ, me pareceu que Hollywood tem quase que sistematicamente se apropriado das histórias de Straczynski para realizar produções de menor potencial — como em Thor (2011) e Doutor Estranho (2016). No início de Terra Um, Clark Kent é um jovem melancólico e ensimesmado. Está em busca do seu lugar no mundo, e o conflito indica a ele com clareza qual é esse lugar. Por isso, apesar de toda a morte e destruição, ele sorri no final. Shane Davis tem aquele desenho correto anatomicamente e versátil em termos da representação de roupas e arquitetura, que caracteriza a DC Comics. A arte-final cuidadosa de Sandra Hope reforça suas qualidades. O seu jovem Clark se parece com uma versão alta e corpulenta de Tom Cruise em A Guerra dos Mundos, completa com a jaqueta de capuz. Ao mesmo tempo, Davis homenageia alguns desenhos clássicos de Joe Shuster, o co-criador (com Jerry Siegel) de Superman. O livro é muito bem diagramado, a propósito. Por sua vez, Straczynski não perde o seu senso de lógica moral e fornece uma espécie de epílogo (disfarçado como uma entrevista do Superman dada a Kent) em que o herói não deixa de registrar as perdas sofridas durante a invasão, e faz a sua promessa de se dedicar à proteção da humanidade, sem se colocar a serviço do governo americano.

—Roberto Causo

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“Mestre das Marés” É Finalista do Prêmio Odisseia

Aconteceu no dia 25 de agosto a cerimônia de revelação e entrega do Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica 2019, parte do evento que tem o mesmo nome e que acontece desde 2013 na cidade de Porto Alegre. O romance Mestre das Marés foi um dos finalistas da categoria Narrativa Longa Ficção Científica.

 

O encontro de autores e fãs de ficção científica e fantasia Odisseia de Literatura Fantástica foi criado em 2013 pelos escritores Duda Falcão, Christian David, Cesar Alcázar e Christopher Kastensmidt, inspirado no Fantasticon, de São Paulo, fundado pelo editor Silvio Alexandre. Sempre com uma aura democrática e aberta, a Odisseia já teve convidados internacionais e reúne gente do Brasil todo.

Neste ano, os organizadores decidiram criar um prêmio anual para a produção nacional de ficção especulativa, escolhendo o melhor dentre os inscritos, todos publicados originalmente no ano anterior. As categorias são várias e dão o melhor instantâneo possível dessa produção. O prêmio foi entregue no último dia (25 de agosto) da VI Odisseia de Literatura Fantástica.

Fotografia de Daniel Folador Rossi.

Mestre das Marés, o segundo romance da série As Lições do Matador, lançado em 2018 pela Devir Brasil, foi um dos três finalistas na categoria Narrativa Longa Ficção Científica. O autor Roberto Causo foi representado na cerimônia de entrega por sua agente literária, Gabriela Colicigno, da Agência Magh. O livro que ganhou nessa categoria foi o elogiado romance Corrosão, de Ricardo Labuto Gondim. Causo ficou muito feliz, de qualquer modo, com o status de finalista na primeira edição da nascente premiação.

Veja abaixo a lista de ganhadores e de finalistas (fonte: FCBlog).

 

Narrativa LONGA Literatura Juvenil
Ana Lúcia Merege – Orlando e o Escudo da Coragem – Editora Draco.
Juliana Feliz – As Cinzas de Altivez – Midiograf.
Miriam N. Dohrn – Detektis – SGuerra Design.

Narrativa LONGA Horror
Carolina Mancini – Nihil – Editora Estronho.
Danilo Correa – Sob a Escuridão – Cervus Editora.
Pablo Amaral Rebello – Peixeira & Macumba – Independente.

Narrativa CURTA Horror
Isabor Quintiere – Madres – Editora Escaleras.
André Balaio – O Lado de lá – Editora Patuá.
Marcelo Augusto Galvão – Sombras no Coração – Independente.

Narrativa LONGA Ficção Científica
Ricardo Labuto Gondim – Corrosão – Editora Caligari.
Luiz Mauricio Azevedo Silva – Pequeno Espólio do Mal – Editora Figura de Linguagem.
Roberto de Sousa Causo – Mestre das Marés – Editora Devir.

Narrativa CURTA Ficção Científica
Saulo Adami – A Invasão dos Macacos – Editora DTX.
Alexandre Veloso de Abreu – A Necronauta – Editora Scriptum.
Fábio Fernandes e Nelson de Oliveira – Oneironautas – Editora Patuá.

Narrativa LONGA Fantasia
Paola Siviero – O Auto da Maga Josefa – Dame Blanche.
Simone Saueressig – De Ferro e de Sal – Independente.
Yasmim Naif Amin Mahmud Kader – Caçada às Estrelas da Noite: Sob o Céu da Noite Eterna I – Independente.

Narrativa CURTA Fantasia
Gabriel Cianeto – Oceano Sorvete de Uva – Editora Multifoco.
Deise Soares Ferraz de Vargas – A Ponte de Paladinos – Independente.
Marcelo Bighetti – Sacrifício Consumado – Independente.

Roberto Causo agradece a Gabriela Colicigno por representá-lo no evento, e a Daniel Folador Rossi pela autorização para o uso da sua fotografia.

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