Tag Arquivo para Luiz Bras

Na Feira do Livro, Simplesmente

Minha esposa Finisia Fideli e eu desfrutamos de um lindo fim de tarde no último dia (12 de junho de 2022) da Feira do Livro que aconteceu no estacionamento do ex-estádio municipal do Pacaembu. Nosso objetivo principal era o privilégio de conhecer pessoalmente Sandra Abrano, da Editora Bandeirola. O estande partilhado com outra editora estava meio que escondidinho. Precisamos ir à barraca de informações (onde conseguimos a versão do tabloide literário Quatro Cinco Um dedicada ao evento como o seu boletim diário), mas valeu a busca.

Sandra nos recebeu com muito carinho, conquistando a simpatia eterna da Finisia. Adquirimos o romance da Sandra, Vestígios: Mortes nem um pouco Naturais (2018), um finalista do Prêmio SESC — e de cuja existência eu nem sabia —, e ganhamos de brinde um dos cadernos inspiracionais da editora, Eu e Fernando Pessoa. Essa linha já havia chamado a minha atenção, em uma visita ao seu site.

Havia uma atividade na frente do estande, e Sandra nos contou que no dia anterior a colega Ana Rüsche estivera ali, falando do seu futuro lançamento, Filamentos: Ecologia e Ficção Científica no Antropoceno, com ensaios sobre um assunto extremamente importante para o futuro da humanidade e do planeta.

Cumprida a missão principal, Finisia e eu demos um giro e nos deparamos com o cantinho da Editora Cartola em outro estande partilhado. Chamou a atenção uma linha de antologias originais em capa dura, e eu adquiri O Mundo onde o Tempo Parou (2021), editada por Alec Silva (que eu conhecia da simpática antologia Estranha Bahia), e que pode ser a primeira antologia brasileira de histórias de mundo perdido (pendendo um exame mais detalhado). Eu conhecia a editora pela internet, especialmente a sua edição do pioneiro romance de ficção científica O Doutor Benignus (1875), de Augusto Emílio Zaluar, mas foi ótimo saber de suas outras publicações.

Nossa última parada foi o estande da Editora Patuá, pela qual publiquei em 2020 meu segundo livro de contos, Brasa 2000 e Mais Ficção Científica, parte da coleção Futuro Infinito, de Luiz Bras, o seu curador. Eu já havia observado, a essa altura, no Facebook que só me faltava a coletânea de Michel PeresHiperhelix, para completar a coleção, mas havia me esquecido da antologia original Violetas, Unicórnios & Rinocerontes (2020), editada por Claudia Dugim, que pude então adquirir, finalmente. O livro traz histórias de Alexandra Cardoso, Alexey Dodsworth, Camila Fernandes, Celso Duvecchi, Claudia Dugim, Cristina Lasaitis, G. G. Diniz, Naná DeLuca, Puri Matsumoto, Saren Camargo, Saskia Sá, Sol Coelho, Thiago Ambrósio Lage, Tiago Toy e Ton Borges. Note-se aí alguns nomes de grande relevo, no nosso campo.

A Feira do Livro nos pareceu bem organizada e com um clima legal, familiar e diverso. Nos estandes, um predomínio de literatura adulta e não ficção de cunho cultural, acadêmico ou para-acadêmico, e político. Ao que parece, o desastroso governo da extrema direita tem motivado avaliações apocalípticas (muito provavelmente não suficientemente apocalípticas quanto a realidade exige) e no calor do momento, além de uma ressurgência de estudos marxistas, feministas e identitários. Foi bom verificar que a cultura resiste, em uma tarde agradável, de céu crepuscular radioso, com direito a uma poética lua vaporosa no dia dos namorados.

—Roberto Causo

Sem comentários até agora, comente aqui!

Leituras de Setembro de 2020

Em setembro, eu me vejo ainda buscando a essência da space opera, mas com espaço para a leitura de um notável romance da brasileira Claudia Dugim, e quadrinhos instigantes e divertidos, de J. Michael Straczynski e Meg Cabot.

 

Arte de capa de Alan Gutierrez.

Hegira, de Greg Bear. Nova York: Tor Books, 1.ª edição, 1989 [1987, 1979], 222 páginas. Arte de capa de Alan Gutierrez. PaperbackDe todas as ilustrações de capa de Alan Gutierrez que andei vendo por aí, esta é a melhor executada e a mais impactante. Perfeitamente adequada ao conceito fundamentador deste romance de estreia de Greg Bear, um dos autores de FC hard mais importantes a surgir no cenário do gênero, na segunda metade do século 20. A ambientação é um gigantesco conjunto articulado de habitats artificiais, onde vivem povos humanos que não se recordam das suas origens, e cujo conhecimento e tecnologia é alterado a partir do acesso que podem adquirir a gigantescos obeliscos de quilômetros de altura — quanto mais alto, mais elevado é o conhecimento científico, de modo que o acesso estaria subordinado à capacidade de organização e de realização tecnológica de cada povo. Certamente, um mecanismo de segurança, ajustado à dinâmica social possível, pensado pelos criadores desse mundo artificial. Mas também metáfora concreta, épica, da busca e da evolução civilizatória que remete ainda ao mitológico — como o voo de Ícaro, a Torre de Babel, e talvez o modelo das esferas celestes na antiguidade: um firmamento alcançável por meios físicos (explorado na noveleta premiada de Ted Chiang, “Tower of Babylon”, de 1990). 

Os personagens têm uma caracterização mundana, que se tornaria típica de Bear — não são heroicos, idealizados, e de saída não são especialmente capazes de refletir sobre o que se passa com eles. O atormentado jovem escriba Kiril é recrutado por um ex-general e seu companheiro, para viajar grandes distâncias nesse mundo (a quarta capa da edição dá erroneamente o general, Bar-Woten, como o protagonista). Às vezes, passam por territórios em que diferentes grupos fundamentalistas religiosos estão em guerra, em uma ocasião alistam-se em um navio, são capturados por um povo mais avançado que usa armas de alta energia para derrubar os obeliscos e acessar livremente o seu conhecimento. O romance é portanto um exemplo de viagem fantástica, o mais antigo formato narrativo associado à FC, temperado por muito estranhamento e exotismo. A busca do trio os leva até os limites do mundo, aos bastidores da grande encenação civilizatória armada pelos seus criadores, onde Kiril encontra algumas respostas sobre a sua amada (motivo do seu exílio inicial), sobre si mesmo e sobre o mundo. O que o fez pôr o pé na estrada foi a lenda de que quem chegasse ao fim do mundo se reencontraria com o seu amor. Ao exotismo da paisagem e das diversas evocações religiosas e de antigas civilizações soma-se o da revelação final: o planeta artificial, maior do que Júpiter, foi construído em torno de um buraco negro que lhe fornece energia perene, para que atravesse os momentos derradeiros da entropia de um universo moribundo. Desse modo, o que fora uma supercivilização foi fragmentado e reduzido em tamanho e retornado a algo semelhante ao que havia sido de início, inclusive em termos civilizatórios. Enquanto o supermundo artificial cruza de um universo moribundo para um por nascer, os diversos povos têm a oportunidade e o tempo de encenar suas buscas evolutivas e adquirir o conhecimento necessário para frutificarem, quando o novo universo estiver ponto para recebê-los. Ou assim se deduz. Grandioso e intrigante, provocante como só a FC pode ser. Mais um livro doado a mim, da coleção de Alfredo Keppler, um ex-presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica, e organizador da antologia Vinte Voltas ao Redor do Sol (2005).

 

Arte de capa de Jim Burns.

Sundiver, de David Brin. Nova York: Bantam Spectra, 1995 [1980], 340 páginas. Paperback. Este é o primeiro livro da série Elevação (Uplift), de David Brin, e que teve cinco títulos publicados em Portugal (segundo informou o tradutor Carlos Angelo), na coleção de FC da Europa-América. Eu já havia lido os dois outros, e agora, graças novamente a Alfredo Keppler, pude completar a leitura da trilogia. Brin, que fez muito sucesso com a série, também escreveu The Postman, romance de 1985 que virou um filme de Kevin Costner em 1997, tornando Brin o primeiro dos grandes da FC americana da década de 1980 a ter um livro adaptado por Hollywood (já no século 21, Orson Scott Card seria outro).

A história começa com Jacob Demwa, um especialista em xenologia, cooptado para participar de uma expedição conduzida por várias espécies alienígenas em companhia dos humanos, até as camadas externas do Sol, onde criaturas vivas foram observadas — batizadas de “espíritos do sol”. Muito é elaborado sobre a tecnologia de resfriamento laser da espaçonave que desce até a cromosfera do astro-rei. Também sobre os diversos alienígenas (um deles é uma planta) metidos na missão. No intrigante universo da Elevação, a “astropolítica” da galáxia é marcada pela prática de se elevar espécies com potencial para a senciência, tornando-as auxiliares da civilização-mestre na colonização da Via Láctea. A relação mestre-auxiliar dura um tempo, até que se conceda a autonomia plena. A Terra está envolvida em elevar golfinhos e nossos primos chimpanzés, de maneira quase que independente do que as civilizações alienígenas vinham praticando. Isso atrai a atenção delas, e também alguns ressentimentos.

A questão do primeiro contato como sun-ghosts é interessante em si mesma, mas quando o chimpanzé elevado Dr. Jeffrey é morto durante uma das incursões, a narrativa busca outro formato — o do romance de mistério, conforme Demwa desconfia de patifaria entre os membros da expedição, e não de hostilidade por parte dos nativos do Sol. Ele investiga e interroga, e a verdadeira face da política galáctica vai se apresentando em situações de grande suspense e perigo de vida, com soluções científicas bem imaginadas (o livro é, de fato, mais FC hard do que space opera, subgênero que vai se configurar mais nos volumes seguintes da série). Demwa é um personagem meio duro, mas seu estado mental, perturbado após a morte de sua amada em um acidente e estabilizado com esforços de meditação e auto-hipnose, fornece um toque interessante. Não se trata de um romance no mesmo nível dos episódios seguintes na série, Maré Alta Estelar (Startide Rising; 1983) e A Guerra da Elevação (The Uplift War; 1987), mas tem os seus próprios méritos e já expressa a tendência de Brin de apresentar enredos complexos, com muitas camadas de situações. Algo semelhante se pode dizer da capa do mestre inglês Jim Burns, aqui em momento pouco inspirado.

 

Arte de capa de Marc Simonetti.

Filhos de Duna (Children of Dune), de Frank Herbert. São Paulo: Editora Aleph, 2.ª edição, 2017, 526 páginas. Tradução de Maria Silvia Mourão Netto. Arte de capa de Marc Simonetti. Capa dura. Neste que é o terceiro livro da série Duna, em edição agraciada com capa crepuscular do artista francês Marc Simonetti, começa a se afigurar uma prática de Frank Herbert de ir, a cada novo volume, se desfazendo de personagens impactantes, desenvolvidos em volumes anteriores. Assim, Paul Atreides e Duncan Idaho são apenas sombras dos personagens fortes caracterizados antes, e o retorno de Lady Jessica ao palco, agora com o planeta Arrakis transformado em centro do império galáctico, reserva a ela a mesma sina. Pena, já que em Duna (1965) ela mostro ser uma das personagens femininas mais fortes da FC. Mulher poderosa e complexa em suas adesões, guia inicial de Paul na sua autodescoberta, é reduzida a mais uma operadora das intrigas palacianas do império. Idaho, antes filósofo questionador, é reduzido a consorte de uma cada vez mais enlouquecida e tirânica Alia Atreides, a irmã de Paul, exposta como feto ao líquido místico excretado pelo verme da areia.

O próprio Paul abandonou o império para se internar no deserto, ressurgindo como um pregador cego, também ele marionete de forças políticas ocultas. Tais forças se voltam para o extermínio dos gêmeos ilegítimos de Paul com a garota fremen Chani: Leto e Ghanima. A intriga contra as crianças inclui feras treinadas (com o perverso sacrifício de crianças escravas) para atacá-los nas areias de Arrakis. Antecipando a situação, os precoces Leto e Ghanima fogem e se internam no deserto. Criam um plano que envolve apagar a memória dela, e ele sofrer uma metamorfose pela sua fusão com trutas da areia (um estágio embrionário do verme). Os gêmeos são o centro da narrativa. Eles nasceram com o poder de Paul, o Muad’Dib, de reviver todas as experiências existenciais da sua linhagem e de prever o futuro dentro do desenvolvimento do Caminho Dourado ao qual se submetem, em uma das mais fortes manifestações, dentro do gênero, de um determinismo racial:

“Este foi o feito de Muad’Dib: ele entendeu que o reservatório subliminar de cada pessoa era um banco inconsciente de recordações que remontavam até às células primais de nossa gênese comum. Ele dizia que cada um de nós pode medir sua distância em relação a essa origem comum. Quando viu isso e relatou sua percepção, ele realizou o audacioso passo de tomar uma decisão. Muad’Dib se incumbiu de integrar a memória genética à avalição em andamento. Com isso, ele de fato atravessou os véus do tempo, tornando o futuro e o passado uma coisa só. Essa foi a criação e Muad’Dib corporificada em seu filho e em sua filha.” —Frank Herbert. Filhos de Duna.

Há uma face muito trágica nas duas crianças nascidas com tamanha bagagem. Constantemente, lembram os adultos de que são mais velhos, mais vividos, mais capazes e mais inteligentes do que eles. E certamente, menos inocentes ou abertas. Como Leto precisa colocar sozinho a dinâmica de Arrakis em cheque, Herbert praticamente o transforma, por força da metamorfose, em uma espécie de duro e implacável super-herói (ou supervilão). Nessa parte, os exageros pulp começam a incomodar. Como contraponto, o autor introduz o Príncipe Farad’n, treinado para ascender à posição de imperador pelas forças ocultas, se elas conseguissem eliminar os gêmeos. Farad’n traz um frescor ao romance, e Herbert foi especialmente sábio ao defrontar Leto com ele, no denouement.

 

Arte de capa de Jim Burns.

There Is No Darkness, de Joe Haldeman & Jack C. Haldeman II. Nova York: Ace Books, 4.ª edição, 1983 [1979], 246 páginas. Arte de capa de Jim Burns. PaperbackSe a arte de Jim Burns na capa de Sundiver não é das suas melhores, esta (mesmo esmaecida) é uma das minhas favoritas. Este é um romance composto de duas novelas assinadas pelos irmãos Haldeman e publicadas originalmente na Isaac Asimov’s Science Fiction Magazine em 1979, na primeira fase da revista. Acompanha um cadete espacial, Bok, também o narrador das aventuras. Ele vem de um planeta selvático de vida muito dura, e é um cara grande que se imagina muito apto à violência. Por isso se mete seguidamente em enrascadas, aceitando desafios de oponentes mais hábeis. Pesado, paga um “excesso de bagagem” quando sua turma de cadetes chega à Terra. Disposto a tudo para recuperar o dinheiro e se mostrar valoroso, ele se inscreve em vários torneios de gladiadores, primeiro contra feras, depois contra adversários ainda mais perigosos. A equipe de colegas e de gladiadores que reúne em torno de si não está livre de riscos.

Aqui, os Haldemans estão no território de Robert Sheckley, ou seja, um plano satírico em que muitos leitmotifs da ficção científica são tratados com uma violenta ironia, expondo faltas sociais no processo. O turrão e ingênuo Bok é vítima de espertalhões a cada passo que dá, e não parece haver uma pessoa honesta na sua Terra do futuro, apenas golpistas e corruptos, criminosos profissionais e burocratas maliciosos. Tudo isso, na primeira novela. Na segunda, é o ethos militar que sofre a atenção sarcástica dos irmãos, quando, durante um exercício militar, Bok e seus amigos são vendidos por um sargento corrupto para lutarem numa guerra anacrônica, com armas de fogo em trincheiras, em um conflito propositalmente limitado pelas partes. Joe Haldeman lutou no Vietnã e escreveu um livro de memórias de combate. Mais famoso, o seu romance clássico de FC Guerra sem Fim (The Forever War; 1974), também se nutre daquela experiência, que enriquece a segunda novela com reflexões interessantes sobre como o combate vai sangrando as disposições individuais, éticas e humanas dos soldados.

 

Arte de capa de Tim White.

A Jungle of Stars, de Jack L. Chalker. Nova York: Del Rey, 8.ª edição, s.d. [1976], 218 páginas. Arte de capa de Tim White. Paperback. Chalker, com quem tive o privilégio de conversar brevemente na MagiCon em Orlando, em 1992, escreveu uma das minhas histórias favoritas como leitor de FC, a delicada e sensível noveleta “A Orquestra de Dança do Titanic” (publicada aqui na antologia Asimov: O Melhor da Ficção Científica, organizada por Asimov & Martin H. Greenberg).

Este é o romance de estreia de Chalker, que se tornaria um autor muito bem sucedido comercialmente. Parte de um modelo antigo de composição de ficção científica, que começa com uma situação contemporânea. A história segue o herói Paul Savage, um oficial do exército americano no Vietnã, morto pelos seus colegas durante uma patrulha. Ele volta a vida e se vinga de alguns dos seus assassinos. O “milagre” é de responsabilidade de uma força alienígena. Ela o recruta para lutar em uma guerra escatológica entre facções que poderíamos chamar de “metadivina” (Haven) e “metademoníaca” (Bromgrev); isto é, superinteligências em conflito que podem ter inspirado essas noções metafísicas. O líder da organização “do bem” é reificado de forma tipicamente americana, como um empresário bem-sucedido chamado Wade.

Savage começa integrando uma organização de pesquisa de fenômenos estranhos.O serviço o leva a uma localidade americana onde ele conhece uma jovem cega e acima do peso, a quem ele imediatamente corteja. É interessante que esse gesto na direção de uma personagem incomum, fora dos padrões de beleza, antecipe em tantas décadas o questionamento muito em voga atualmente (a primeira edição do livro é de 1976). O relacionamento de Savage com a garota nem sempre soa maduro ou inteligente, mas é verdadeiro o bastante e sublinha o fato do herói se considerar muito feio, simiesco. Mais tarde, quando eles finalmente deixam a Terra para buscar a resolução do conflito em uma região remota da galáxia, a supertecnologia cura a cegueira da moça — e transforma Paul Savage em um modelo de beleza masculina: Doc Savage, um dos primeiros heróis pulp da FC. Chalker começou no mundo da FC como um superfã e fanzineiro, e este é um detalhe que expressa tal compromisso. Nesta altura, o romance já se moveu de situações de dark fantasy, passando por um pouco de FC ufológica, até se configurar como uma das mais estranhas space operas que já li. Bastante pulp em termos de estilo e de uma narrativa que migra muito de situação em situação, também firma com muita segurança a sua visão original e frequentemente inquietante, da luta entre o Bem e o Mal e de um indivíduo que impõe, a forças tão maiores, a sua própria solução.

 

Matando Gigantes, de Claudia Dugim. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, 2019, 332 páginas. Texto de orelha de Fábio Fernandes. Capa de Teo Adorno. Brochura. Escritora e antologista muito ativa na cena da Terceira Onda da FC Brasileira, Dugim entra na Futuro Infinito de Luiz Bras com um substancial romance de nave de gerações, subgênero explorado em Infinito em Pó (2004), de Luís Giffoni, em B9 (2011), de Simone Saueressig, e em Nômade (2010), de Carlos Orsi.

Matando Gigantes, o primeiro romance de Claudia Dugim, desenvolve duas linhas narrativas que se combinam — é a técnica da “narrativa entrançada”. A primeira linha envolve uma comunidade dedicada a caçar gigantes, que são mortos com finos cabos capazes de amputar membros ou decapitar um dos “monstros”. Gus é um homenzinho trans que se interessa muito pelo conhecimento e tem no irmão Uor um herói matador de gigantes. Enquanto Gus tropeça em burocratas megalomaníacos da sua comunidade instalada em tubulações da nave espacial, o policial Nicolau investiga as mortes e tropeça em um movimento revolucionário, antiautoritário, composto de haitianos e brasileiros (outro toque interessante). No desenrolar da trama, grandes mentiras oficiais são descobertas, enquanto os dois grupos lutam para sobreviver e triunfar, estabelecendo uma convergência de interesses e um gesto de protagonismo dos pequenos, dos periféricos e não empoderados.

Parece haver ecos de Non-Stop (1958; t.c.c. Starship), de Brian W. Aldiss, no contexto de um conflito aberto entre os viajantes de uma nave de gerações que parece se encaminhar para o desastre, na mão de frios tecnocratas. Certamente, a narrativa é tensa o bastante e apresenta um gravitas crescente conforme avança para o clímax. Não obstante, a autora vê o livro como dirigido ao público jovem, e escolhe descrever os pequeninos quase com índices de literatura para crianças, com muita fofura e atrapalhação, contrastando com as descrições sangrentas dos seus feitos contra os gigantes — nós, os humanos normais. Inclusive, a narrativa coloca um par de crianças parentes de Gus e Uor em perigo, no ápice da encrenca. Bem-vindas são as descrições da “vida cabocla”, descomplicada e iconoclasta, e de sexo livre dos pequeninos. De qualquer modo, talvez haja aí outro testemunho (o romance O Esplendor, de Alexey Dodsworth, é outro exemplo) do quanto a prosa jovem se tornou dominante no campo da FC e fantasia. Um outro modo de enxergar a prática, no caso do notável romance de Claudia Dugim, seria um emprego de um ângulo pós-modernista que questiona implicitamente as adesões emocionais da literatura tradicional e desafiando o leitor ao combinar diferentes registros textuais. (Em entrevista a Luiz Bras, Dugim admite ter meio que “duas personalidades”.)

 

Quadrinhos

Arte de capa de Christian Zanier.

Rising Stars: Power, de J. Michael Straczynski. Los Angeles: Top Cow, 1.ª edição, 2002, 190 páginas. Arte de capa de Christian Zanier. Trade paperbackEm maio de 2018, li Rising Stars: Visitations (2002), narrativa de origens desta criação de Straczynski, sobre um núcleo de super-heróis e supervilões surgido com a queda de um meteoro na cidade de Pederson. Por meio de flashbacks, o livro relembrava o surgimento dos “Pederson Specials”.

Neste Power, muita coisa já rolou por baixo da ponte, conforme informam artigos de revista noticiosas ficcionais, antecedendo à HQ propriamente. Ficamos sabendo que muitos Specials foram cooptados por empresas de segurança, depois de um grave evento em Chicago. Outro texto trata da reação governamental a esses “mutantes” que são vistos como armas vivas de destruição em massa, e o seguinte conta como a superpoderosa Stephanie Maas — sofrendo de um caso de superpsicopatia — declarou Chicago sua área de ocupação, reunindo lá outros Specials. O artigo final conta como os Specials tendem a agir de modo arbitrário e mesquinho, já que a maioria só pode se detida por seus colegas.

O grosso do livro é dedicado ao conflito entre duas facções de Specials, quando uma delas, liderada por John Simon, decide enquadrar a outra, especialmente depois que companheiros têm sido mortos um a um. Chicago é o campo de batalha. Straczynski antecipou algo do ciclo Guerra Civil da Marvel — que é de 2006-2007. Mas enquanto Mark Millar se concentrou em expressar a sua desconfiança quanto ao poder, zoando com a psicologia dos tradicionais super-heróis e buscando no seu comportamento traços fascistas, Straczynski ousou abordar um questão subjacente à relação entre super-heróis e o poder legítimo: para quê, exatamente, os super-heróis salvam o mundo? Todo ano, uma ou duas vezes assistimos os Vingadores salvarem o mundo, aparentemente para que algum malandro como Trump, Putin ou Bolsonaro venha, amparado por mentiras em grande escala e pela cooptação dos mecanismos da democracia, se fartar do poder e empurrar o planeta mais para junto do penhasco. Após o conflito fraticida, alguns Specials resolvem enfim fazer algo substancial com o seu poder, para além de bancarem arrogantes excepcionalistas ou supertiras e mercenários. Em Power, eles se focam em livrar o mundo de armas nucleares e resolverem parte da questão Palestina, mesmo que ao custo do auto-sacrifício. É o catolicismo do autor se fazendo sentir, nestes primeiros passos para endireitar o mundo, já que a série prossegue e elabora ainda mais a ousadia autoral de Straczynski.

 

Canário Negro: Combustão (Black Canary: Ignite), de Meg Cabot (texto) & Cara McGee (arte). Barueri, SP: Panini Livros, 2020, 154 páginas. Arte de capa de Cara McGee. Brochura. A DC Comics teve uma boa sacada ao criar uma linha de livros de quadrinhos escritos por grandes nomes da literatura infantojuvenil, como este, escrito por Meg Cabot, aquela do Diário da Princesa. Funcionou muito bem com a arte de Cara McGee, numa história sobre a heroína de Gotham City, Canário Negro, parceira eventual do Arqueiro Verde.

Na história, Dinah é uma mina de 13 anos, meio caxias, que tem uma banda com outras duas amigas, uma nerd e a outra radical. Filha de uma florista e de um detetive de polícia, Dinah quer ser policial — para desespero do papai. Ela começa a entender que tem algo de “diferente” quando, toda vez que dá um gritinho, alguma coisa se quebra nas vizinhanças. Na escola, isso gera problemas com a severa diretora. Aos poucos, as pessoas em torno vão deixando claro que a sua esquisitice é na verdade um superpoder. Obviamente, é o grito sônico da Canário Negro. A história, porém, se passa em um momento contemporâneo em que, na mitologia do universo da DC, os outros super-heróis já são adultos e veteranos. A complicação é o surgimento de uma supervilã que vai cercando a garota e sua família.

Este foi o meu primeiro contato com a escrita de Cabot. Achei que ela produziu um texto de escrita inteligente, de grande competência, graça e capacidade de envolvimento. Dinah é uma aborrecente simpática, e a autora deu a ela, ainda que com algumas repetições inevitáveis, dinâmica própria com as amigas, os pais e a escola. A ambientação também ganha vida com facilidade, seja a escola, a casa ou a floricultura. Embora eu não goste muito desse tipo de arte estilizada, achei que a arte de McGee casou perfeitamente, com toques de fofura e tudo.

 

Arte de capa de Jamal Campbell.

Star Wars: A Fuga, de Kieron Gillen (texto) e Andrea Broccardo e Angel Unzueta (arte). Barueri, SP: Panini Comics, 2020, 136 páginas. Tradução de Dandara Palankof. Arte de capa de Jamal Campbell. Brochura. Este livro começa onde Star Wars: A Esperança Morre, parou: os heróis da Aliança Rebelde escaparam da traição da matreira Trios, a Rainha de Shu-Torun, uma traidora da confiança de Leian Organa, sua amiga, e aliada de Darth Vader. Mas estão sendo caçados pelo império, galáxia afora. Sana Starros, que também aparece no (final do) livro anterior, está com eles. Na fuga, separando-se de Sana, Leia, Luke, Han, Chewie e os robôs vão parar em um planeta independente, povoado pelo Clã Markona, uma casta de guerreiros que, no passado, havia conquistado as graças do  império. A história se transforma em um drama de fronteira, com os heróis mostrando o seu valor contra feras que acossam os colonos — feras que fazem o papel dos nativo-americanos, nos velhos westerns — ou contra a desconfiança dos locais, com direito até a um duelo de saque rápido ao meio-dia. Luke encontra na filha do líder da colônia uma interlocutora de sua idade, mais sofisticada do que ele, e que puxa a sua orelha pela impaciência em sair do planeta e retornar à luta. É claro, há um jogo de lealdades envolvido na situação toda, pois logo uma nave do império chegará para definir de que lado cada um está — e quais preços deverão ser pagos… Quem chega na nave imperial é um esquadrão de elite, e o roteirista Gillen reserva a eles um final surpresa.

A história final, com arte de Angel Unzueta e uma colorização mais sutil, forma um epílogo interessante e fornece um gancho para a próxima aventura. Apesar das às vezes cansativas referências ao western, é bacana ver o grupo de amigos envolvidos com uma situação diferente e sem o fracionamento da ação em várias linhas narrativas, tão comum a Star Wars. Um detalhe particularmente interessante do Clã Markota é a tez escura dos seus membros, fazendo-os lembrar latinos ou afro-descendentes.

—Roberto Causo

Temos 2 comentários, veja e comente aqui

Leituras de Abril de 2020

Em abril, um mês de leituras particularmente interessantes, li dois livros de não ficção relacionados, de um modo ou de outro, com a astronáutica. E também ficção científica nacional e estrangeira, e alguns álbuns de quadrinhos antigos visualmente deslumbrantes.

 

Arte de capa de John Berkey.

Colonies in Space, de T. A. Heppenheimer. Nova York: Warner Books, 1980 [1978], 322 páginas. Prefácio de Ray Bradbury. Arte de capa de John Berkey. Fotos. PaperbackPensando em escrever uma história das Lições do Matador ambientada em uma estação espacial, recorri a este livro que trata dos projetos da década de 1970, de construção de habitats espaciais. Menos do que me trazer informações úteis especificamente para a história, me fez viajar a uma visão futurista retrô — isto é, um futuro que, infelizmente, a humanidade veio a desprezar.

O primeiro capítulo discute as dificuldades de se encontrar vida em outros mundos, a par com as dificuldades de estabelecer a vida humana em outros planetas do Sistema Solar e da galáxia. A solução explorada é construir colônias no espaço: habitats artificias, como os que aparecem no Universo da Tríade, de Jorge Luiz Calife. Na narrativa de Heppenheimer, a questão começa com o físico Gerard K. O’Neill perguntando a um grupo de pós-graduandos se a superfície de um planeta seria o melhor lugar para uma colônia fora da Terra. Daí surgiram ideias de cilindros rotacionais em certos pontos estáveis (os Lagrange) do sistema Terra-Lua. As ideias foram parar em um congresso, que, por sua vez, capturou a atenção da imprensa e da NASA. Novos projetos aperfeiçoaram as ideias originais, com eles surgindo planos de captar energia solar e enviá-la via emissões de microondas para receptores na Terra, fornecendo energia barata e ecologicamente responsável a bilhões de seres humanos, inclusive de países pobres, tudo devidamente calculado e com o rascunho da tecnologia necessária. O material para a construção das colônias também foi equacionado nos projetos: rastelados na Lua, colocados em órbita por um lançador e apanhado no espaço por uma espécie de luva de baseball gigante acoplada a uma nave espacial, e levado ao local de construção.

Após tratar da engenharia dos espaços internos, o livro mergulha na especulação típica da ficção científica, imaginando gerações nascidas nesse tipo de habitat espacial, e seu estilo de vida, economia, cultura e herança — milhões de anos no futuro, com as colônias funcionando como naves de gerações e chegado a outros sistemas planetários. A edição original do livro é de 1978, e sabemos que, 42 anos depois, nada disso veio a se realizar. A única coisa que temos no espaço orbital é a Estação Espacial Internacional, que é uma realização em si, mas muito aquém do que aqueles visionários haviam imaginado. Ao mesmo tempo, e mesmo reconhecendo o espírito positivista e pouco crítico do utopismo energético daqueles cientistas, ainda temos um mundo que sofre com as consequências ambientais da mesma política energética de então.

 

Arte de capa de Michael Whelan.

In Conquest Born, de C. S. Friedman. Nova York: DAW Books, 1.ª edição, 1987 [1986], 512 páginas. Arte de capa de Michael Whelan. Paperback. Este romance de space opera foi resgatado da substancial estante de literatura em inglês do agora fechado Sebo do Farah, no Centro Velho de São Paulo. Ficou muito tempo em uma caixa de papelão até que eu tornasse a ser cativado pela impressionante arte de capa do artista Michael Whelan. Claramente, sente-se nesta space opera exótica da autora C. S. Friedman a influência da série Duna, de Frank Herbert. Ela imagina duas sociedades em conflito, uma composta por aristocratas absolutos, escravagistas e perversos, além de geneticamente decadentes, os braxins; e a outra, os azeans, mais igualitária e dedicada à manipulação genética. Dois personagens representam as duas sociedades: o ambicioso Zatar, uma espécie de Júlio César que deseja unificar os braxins sob o seu poder; e Anzha lyu Mitethe, uma militar com poderes telepáticos, em ascensão na sua busca por vingança contra os braxins. Apesar de implacáveis e cruéis, cada um ao seu modo, eles são apresentados com simpatia e orbitam em torno um do outro em uma série de situações episódicas que forma um mosaico complexo, envolvendo de duelos com espadas a combates espaciais e atividades extraveiculares, sedução de adversários políticos, traições, intrigas palacianas e assassinato de amantes e de parentes. A fabulosa ilustração de Michael Whelan na capa captura com perfeição a dança entre os dois personagens obsessivos, e a natureza cinzenta da história.

Fica claro que Friedman pescou de Duna a estrutura feudalista que remete às monarquias imperiais dos séculos 18 e 19, e os elementos paranormais como fonte do grande exotismo do romance. Seu feminismo aflora aqui e ali em discussões da condição da mulher nas duas sociedades, especialmente na braxin. Mas, como costuma ocorrer nesse tipo de narrativa fundada em um pensamento darwinista social extrapolado para a sexualidade e a luta de classe sociais, qualquer discurso igualitário e progressista meio que se perde na enxurrada de violência e degradação. De fato, In Conquest Born, que tem uma sequência, The Wilding (2004), é exemplo exacerbado de um pensamento bem americano que naturaliza e advoga opressão e submissão em termos psicanalíticos e darwinistas. Vemos isso em Charles Moulton (o psicanalista William Moulton Marston), criador da Mulher-Maravilha, e no autor de alta fantasia John Norman (o professor de Filosofia John Frederick Lange Jr.), autor da Gorean Saga, que dramatiza situações de escravidão sexual e gerou uma espécie de “culto” S&M que ainda anda solto por aí.

 

A Verdadeira História da Ficção Científica: Do Preconceito à Conquista das Massas (The History of Science Fiction), de Adam Roberts. São Paulo: Seoman, 1.ª edição, 2018, 704 páginas. Apresentação de Silvio Alexandre. Prefácio de Braulio Tavares. Posfácio de Gilberto Schoereder. Tradução de Mário Molina. Brochura. Em dezembro de 2019, saiu nova edição da revista eletrônica Zanzalá, criada e editada por Alfredo Suppia. É a primeira revista acadêmica dedicada à FC e fantasia no Brasil. Este que é a sua terceira edição trouxe meu artigo “A Editor Seoman e a Ficção Científica”, no qual discuto os livros de não ficção dessa editora que são do interesse do pesquisador e fã de FC. São eles A Vida de Philip K. Dick: O Homem que Lembrava o Futuro (A Life of Philip K. Dick: The Man Who Remembered the Future; 2015), de Anthony Peake; Universo Alien: Se os Extraterrestre Existem… Cadê Eles? (Alien Universe; 2017), de Don Lincoln; A Verdadeira História da Ficção Científica: Do Preconceito à Conquista das Massas (The History of Science Fiction; 2018), de Adam Roberts; e O Guia Geek de Cinema: A História por Trás de 30 Filmes de Ficção Científica que Revolucionaram o Gênero (The Geek’s Guide to SF Cinema; 2019), de Ryan Lambie. Todos aí graças ao interesse do editor Adilson Silva Ramachandra. No afã de atender aos prazos da revista, pulei uns trechos (as notas, especialmente) deste importante livro de Adam Roberts, de modo que só completei a leitura mais tarde. Aqui, empresto alguns trechos do artigo em questão, e acrescento alguma coisa a título de apreciação final.

Roberts escreveu Science Fiction (2000), livro introdutório, parte da conhecida e popular série The New Critical Idiom. É bastante citado entre os jovens pesquisadores brasileiros de ficção científica. Nesse livro anterior, Roberts afirmou achar que a FC é moderna, surgida entre  1780 e 1830. Mas já no prefácio à primeira edição de A Verdadeira História da Ficção Científica, ele afirma:

“Sustento que as raízes do que hoje chamamos de ficção científica são encontradas nas viagens fantásticas da novela [sic] grega antiga” —Adam Roberts. A Verdadeira História da Ficção Científica, página 23.

A mudança de ponto de vista fica estabelecida, portanto, e o próprio autor explicita no prefácio que, com a escrita do livro, sua ignorância quanto à FC diminuiu e que as suas visões evoluíram. Ele nem emprega a expressão “proto-ficção científica” em seu livro, preferindo abandonar qualquer ambiguidade ou divergência do gênero que a expressão poderia indicar, para chamar diretamente de “ficção científica” as obras antigas que investiga.

A tese do novo livro com a nova perspectiva é a de que a FC como a conhecemos deveria muito a um ponto de clivagem até então insuspeito: a Reforma Protestante no século 16. Propõe que, entre a Antiguidade Clássica e o século 17, houve um hiato na escrita de viagens fantásticas, motivado pelas condições sócio-culturais da ordem feudal e do catolicismo. Para Roberts, o ressurgimento da FC vem junto com a reforma protestante. A teoria de Giordano Bruno da pluralidade dos mundos habitados, rechaçada pela Igreja, é um dos pilares desse entendimento da parte de Roberts, e que a imaginação da FC se atrela à cultura protestante ocidental. Imagino que uma primeira reação possível que esse tipo de argumento despertaria em nós seria a suspeita de que Roberts desejaria afirmar a superioridade da cultura protestante, e da colonização anglo-nórdica em detrimento da latina ou das culturas não-ocidentais, especialmente em uma época em que (ainda) se fala em “choque de civilizações” e se volta a falar em “guerra cultural”. Roberts evita o campo minado com argumentos sólidos que remetem mais à história das ideias e das mentalidades. Também foge de uma perspectiva chauvinista anglo. Mais que tudo, Roberts quer firmar uma nova visada dialética sobre a FC. Declara que, se fosse reduzir a tese do seu livro em poucas linhas, diria que

“a ficção científica é determinada com exatidão pela dialética entre os imaginários protestante e católico, que emergiu do particular contexto cultural-ideológico do século XVII. […] [O]s textos de FC são mediadores desses determinantes culturais com diferentes ênfases, algumas mais estritamente materialistas, outras mais místicas ou mágicas.” —Adam Roberts. A Verdadeira História da Ficção Científica, página 29.

Seguem-se capítulos altamente informativos sobre a evolução do gênero ao longo dos séculos, e com um muito bem-vindo viés internacional. De modo ainda mais bem-vindo, traz insights significativos sobre a FC da era dos romances científicos (século 19), da era pulp e sobre o gênero no cinema e nos quadrinhos. Há um esforço honesto em superar vícios críticos elitistas, o que põe o livro no topo das minhas considerações sobre como deve ser uma história da FC. Este é um livro que merece a atenção de todo pesquisador interessado na ficção científica, e de todo fã que deseje conhecer questões culturalmente relevantes por trás da história do gênero. Se me torcessem o braço para apontar um problema, eu diria que Roberts exagera na mecânica dialética quando se foca em minúcias, perdendo a força da afirmativa clara e aberta das suas posições.

 

Arte de capa de Teo Adorno.

Fanfic, de Braulio Tavares. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, 2019, 168 páginas. Texto de orelha de Bandeira Sobrinho. Brochura. Braulio Tavares não poderia faltar em uma coleção de livros montada por Luiz Bras. Um dos melhores contistas da FC brasileira e do nosso conto fantástico em todos os tempos, ele entra com uma coletânea de histórias reunidas sobre uma chave de modéstia literária que enfatiza a intertextualidade e o jogo metalinguístico de reconhecimento de influências. 

Alguns contos foram vistos em outras reuniões dos seus textos admiráveis, mas o segundo olhar me revelou, por exemplo, a criatividade vibrante presente na exótica space opera “The Ghost in the Machine” [sic], cujas notas-glossário explicitam o jogo da influência e o diálogo específico mantido pela ficção científica. A riqueza da linguagem irônica remete à New Wave e é de fazer inveja a um Brian W. Aldiss ou a um Samuel R. Delany. Já “Finegão Zuêra”, que abre o livro, pode se ligar ao romance Finnegans Wake (1939) de James Joyce, pela brincadeira irônica com o título e pela densidade de neologismos e jogos de palavras na narrativa precipitada em parágrafo único. Em oposição, “O Homem que Perdeu seu Reflexo” é conto fantástico, curto, em tom memorialista. Urbano e violento, “Haxan” caberia bem em uma antologia tupinipunk. “Sete OVNIs” é episódico, composto de pequenos parágrafos-narrativas, um para cada personagem diferente, em locais diversos mundo afora. “Fenda no Espaçotempo” é anedótico e divertido, enquanto “Concerto Noturno” é um conto de horror. Também curto (muitos dos contos devem ter sido pescados da coluna diária que ele mantém no Jornal da Paraíba), “A Estética Eliminacionista” é um ensaio ficcional, e “Universos Tangenciais” é outra narrativa metaficcional, sobre o poder da leitura. “A Arca” é texto poético aliterativo que lembra, pelos parágrafos curtos, as narrativas de Ivan Carlos Regina, enquanto “A Demanda do Bosque Sombrio” retoma o tom mais introspectivo e de parágrafos e sentenças longas, num dos contos mais compridos e de maior expressividade lexical. “A Propósito da Difração Quântica nas Regiões Periféricas da Consciência” saiu na edição especial da revista Ficções: Revista de Contos, editada por Dorva Rezende em 2006, e é um dos contos de melhor equilíbrio entre enredo e estilo. “Um Só seu Filho” é conto fantástico irônico, com um fundo de ficção religiosa, e “A República do Recurso Infinito” dialoga com Kafka, na figuração fantástica da burocracia. “O Vale da Maldição” é uma divertida história de pós-holocausto nuclear, e “Gronk” é outro conto humorístico, sobre um intercâmbio não entre gente de países diferentes, mas de planetas diferentes. “Aquele de Nós” é narrado em primeira pessoa por uma entidade coletiva, e “O Polvo” é um conto de horror com final surpresa. Em “A Ilha ao Meio”, o narrador investiga uma ilha dividida “cirurgicamente” no meio — como em muitas das suas histórias, o estranho desemboca em alguma reação impulsiva que parece descarregar o estranhamento acumulado pelo componente descritivo da narrativa.

Duas histórias mais longas, e com um envolvimento maior, fecham o livro: “Frankenstadt” e “O Molusco e o Transatlântico”. O primeiro explora o conceito da realidade virtual e é outra história em primeira pessoa. O último, “O Molusco e o Transatlântico”, partilha dessa característica, em narrativa que trata de um psíquico sendo treinado em uma estação espacial, envolvido com o contato com alienígenas. Embora eu anseie por ver Braulio retornando com FC aos formatos da noveleta e do romance, aqui se tem uma amostra do vigor e da versatilidade deste estilista. Muito adequado para o espírito geral da Coleção Futuro Infinito.

 

Piquenique na Estrada, de Arkádi & Boris Strugátski. São Paulo: Editora Aleph, 2017 [1972], 370 páginas. Prefácio de Ursula K. Le Guin. Posfácio de Bóris Strugátski. Tradução de Tatiana Larkina. Capa dura. Ainda me lembro do renomado escritor João Silvério Trevisan me recomendando a leitura deste romance, em uma oficina literária coordenada por ele em 1988. Minha primeira tentativa de lê-lo, poucos anos depois em edição da Caminho Ficção Científica com o título de Stalker, foi frustrada. Desta vez eu apanhei a bela edição da Aleph e fui até o fim. O romance clássico dos irmãos Strugátski parte da premissa de que alienígenas incognoscíveis passam pela Terra a caminho de alguma outra destinação, deixando para trás restos hipertecnológicos na sua passagem. A analogia é com o lixo deixado para trás depois de um piquenique à beira da estrada. Ocorre que existe um grande interesse humano por esses restos, com os autores irmãos construindo consistentemente relações científicas e de mercado negro em torno dos artefatos encontrados nos arrabaldes da cidade britânica de Harmont. Estruturalmente, o romance também é relativamente engenhoso, com saltos temporais e a narrativa a partir de personagens-pontos de vista diferentes. Grosso modo, porém, a história segue o “stalker” Redrick Schuhart, primeiro um funcionário do instituto de pesquisas, especialista em entrar na zona proibida e encontrar e resgatar os artefatos. Para isso ele precisa contornar pontos perigosos em que as leis da física são alteradas por forças desconhecidas resultantes dos artefatos, frequentemente com resultados fatais. Muito depende da caracterização de Red, um cara duro mas amoroso, especialmente com a mulher e a filha — que nasceu com algum tipo de sequela causada pelas emissões dos artefatos. O personagem precisa representar ao mesmo tempo o que há de caloroso, valoroso e insensato no ser humano. Fora do instituto, Red se torna um requisitado contrabandista. A história de Red é intercalada pela canalhice de autoridades como a do representante industrial Richard Goonan, que comanda o mercado negro local e um dos bordéis mais concorridos. Red acumula um resíduo de emoções e ressentimentos ao longo dos anos, que alcança uma descarga genuinamente pungente no final.

O romance, que pode ser lido como uma crítica ao capitalismo e o seu aceno constante de um “Santo Graal” de fama e fortuna, foi proibido na União Soviética em razão da linguagem chula de Red e de outros personagens, num texto visto como “pouco edificante” pelos burocratas do regime. O fato, porém, é que o romance, a partir da sua premissa e do final, motiva um leque de interpretações: o alienígena como o inescrutável, o maravilhoso trivializado e objetificado pelo comércio e pela busca pelo poder, a incapacidade de canalizarmos os nossos impulsos utópicos para algo que de fato dignifique a condição humana. Na sua articulação de sentidos, é um romance que expressa, como poucos, a insensatez do empreendimento humano na era da ciência. O posfácio de Bóris, com os bastidores da escrita e da publicação do romance, é um documento que vale ser conhecido por si próprio.

 

The Way of the Explorer: An Apollo Astronaut’s Journey Through the Material and Mystical Worlds, do Dr. Edgar Mitchell & Dwight Williams. Nova York: G. P. Putnam’s Sons, 1996, 230 páginas. Hardcover. Muitos vão discordar, mas um dos grandes índices dessa insensatez é a divisão estrita e frequentemente belicosa entre ciência e religião. Esse é um dos pontos balizares deste livro do astronauta americano Edgar Mitchell (1930-2016), que foi à Lua como parte da missão Apollo 14, em 1971. Nos anos seguintes, eu (que nasci em 1965) me lembro de ter lido e visto programas de TV que mencionavam que ele teria feito experimentos de paranormalidade durante o voo espacial. O livro — que adquiri no curto período em que fui assinante do Book-of-the-Month Club — trata disso, é claro, mas os primeiros capítulos são um esboço biográfico de Mitchell. Há muita informação interessante sobre a sua atividade como astronauta.

A caminho da Lua — expressão que uso impunemente porque o sujeito de fato esteve lá e trabalhou no satélite natural da Terra por mais de quatro horas —, Mitchell conduziu um experimento solitário, realizado com o conhecimento de apenas quatro pessoas. Mentalizou um conjunto de números aleatórios combinados com os símbolos das cartas Zener, enquanto na Terra outros aguardavam para reproduzir as combinações “emitidas”. No retorno, ele repetiu o experimento. Mas o livro registra mais do que isso, centrando-se em uma epifania sentida por ele, também no voo de volta:

“Conforme olhei para além da própria Terra, para a magnificência da cena mais ampla, houve um espantoso reconhecimento de que a natureza do universo não era o que me havia sido ensinado. Meu entendimento da qualidade distinta e separada e da relativa independência de movimento daqueles corpos cósmicos foi estilhaçada. Houve uma irrupção de novo insight combinado com um sentimento de ubíqua harmonia — um senso de interconexão com os corpos celestiais que cercavam a nossa espaçonave.” —Dr. Edgar Mitchell. The Way of the Explorer, página 58.

Ele não define essa epifania como religiosa, e nos anos seguintes buscou explicá-la e aos resultados dos seus experimentos à luz de investigações científicas ou paracientíficas, que o levaram a fundar o Institute of Noetic Sciences. A partir de muitas pesquisas e leituras, além do contato com supostos paranormais como Uri Geller e Norbu Chen, ele convocou a mecânica quântica, o xamanismo e a tradição de misticismo oriental para propor o seu “Modelo Diádico da Realidade” (Dyadic Model), no qual as qualidades de consciência e intenção são propriedades partilhadas pelo cosmos, com o campo de ponto zero (da mecânica quântica) servindo como órgão de ressonância das consciências. Isso explicaria os fenômenos paranormais e a sua “não-localidade”.

“Matéria e consciência são uma díade inseparável, não um dualismo com dois reinos irreconciliáveis.” —Dr. Edgar Mitchell. The Way of the Explorer, página 160.

Para ele, consciência e experiência são informação, que, por sua vez, é uma forma de organização de energia. E energia pode ser transformada e assumir outras formas. Argumentos empregando funções quânticas para explicar a consciência têm se tornado mais comuns e consistentes, ao longo dos anos. Roger Penrose e Stuart Hameroff propuseram — na teoria da Redução Quântica Orquestrada — que estruturas celulares conhecidas como “microtúbulos” teriam um número de átomos pequeno o suficiente para amparar fenômenos quânticos, e que a água ordenada no interior das células impediria a interferência do ambiente sobre esses efeitos. A maioria dos cientistas que trabalha com teorias semelhantes não assumem o misticismo de Mitchell, e aqui cabe lembrar de algo que ele disse, nos primeiros capítulos do seu admirável livro, tão bem escrito e tão instigante:

“O público foi lançado ao espaço exterior pelas experiências dos astronautas. Através deles, caminharam em outros mundos.” —Dr. Edgar Mitchell. The Way of the Explorer, página 160.

O mundo das experiências humanas foi ampliado pelos astronautas, para fora da atmosfera terrestre, para a órbita e até a Lua. Mas a maioria dos astronautas, cosmonautas e taikonautas do mundo nos prestaram um desserviço, quando limitarem os seus testemunhos aos de garotos-propaganda das suas nacionalidades, e ao se restringirem a posturas de engenheiros e militares. O alargamento das nossas experiências exige poetas, filósofos, visionários — e místicos. Edgar Mitchell foi um astronauta que — não importa o que possamos pensar objetivamente das ideias que ele veio a desenvolver — ousou dar esse passo adiante na sua representação do olhar humano fora do nosso planeta.

 

Arte de capa de Frede Marés Tizzot.

Uma Cidade Flutuante (Une ville flottante), de Jules Verne. Curitiba: Arte & Letra Editora, Coleção EM Conserva, 2010 [1870], 208 páginas. Tradução de Beatriz Sidou. Arte de capa de Frede Marés Tizzot. Livro de Bolso em estojo de metal. Este é o último livro do lote que adquiri na mesa da Arte & Letra, na feira do livro da Universidade de São Paulo, em  29 de novembro de 2017. Outros foram A Sombra do Abutre, de Robert E Howard; A Fúria do Cão Negro, de Cesar Alcázar; Três Viajantes, de Thiago Tizzot; e Fábulas Ferais: Histórias dos Animais de Shangri-lá, Conforme Relatadas no Atlas Ageográfico dos Lugares Imaginários, de Ana Cristina Rodrigues.

Este romance curto é provavelmente um dos menos conhecidos de Jules Verne. Faz parte da Coleção EM Conserva, que inclui outros autores clássicos em domínio público: Liev Tolstói, com Nota Falsa; Émile Zola, com As Aventuras do Grande Sidoine e do Pequeno Médéric; Charles Dickens & Wilkie Collins, com A Viagem Preguiçosa de Dois Aprendizes Vazios; e Robert Louis Stevenson, com O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Sr. Hyde. Um material muito bom, com uma apresentação bastante original: além das ilustrações de capa de Frede Marés Tizzot, que imitam as ilustrações de miolo em xilogravura comuns no século 19, os livros vêm dentro de uma latinha de metal — daí o nome Coleção EM Conserva, o que pega bem com a ideia de se publicar clássicos.

Uma Cidade Flutuante é uma aventura de amor e violência ocorrida a bordo do maior navio do mundo, segundo a descrição, minuciosa, de Verne. O SS Great Eastern existiu de fato, e Verne discorre longamente sobre as dificuldades de se manter, operar e navegar o colosso de 211 metros de comprimento. O narrador é amigo de um militar inglês, o Capitão Fabian MacElwin, que, uma vez a bordo, descobre que o amor de sua vida, a jovem Ellen Hodges, também está na viagem, acompanhada do seu marido abusivo, Harry Drake. Vários acidentes trágicos acompanham a viagem, que parece amaldiçoada, e, por proximidade, alimentam de tensão palpável o duelo eminente entre MacElwin e Drake. É um texto que se lê com grande prazer, fluido e com pitadas de humor e sugestão do sobrenatural no denouement.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Juan Giménez.

Leo Roa Book 1: The True Tales of Leo Roa (Leo Roa tome 1: le veritable histoire de Leo Roa), Juan Giménez. Hollywood, CA: Humanoids Publishing, 2001 [1992], 60 páginas. Arte de capa de Juan Giménez. Álbum capa dura. Giménez, um dos meus artistas de quadrinhos favoritos em todos os tempos, desencarnou no dia 2 deste mês de abril. Foi uma das primeiras vítimas, no mundo nerd/geek, da COVID-19. Confesso que foi uma morte que me atingiu. Além de admirar muito o trabalho dele, tinha-o como uma influência. Este álbum gigante eu adquiri há alguns anos na antiga loja Terramédia — hoje Omniverse. Me deparei com ele durante uma das minhas faxinas da madrugada, e o peguei prontamente para ler.

Talvez o melhor trabalho dele tenha sido a arte da criação de Alejandro Jodorowsky, a Saga dos Metabarões (publicada aqui pela Devir Brasil), mas a série Leo Roa também é uma space opera exótica. A tônica, porém, vai para o cômico: Leo é um telejornalista medíocre que sonha em ser um grande herói aventureiro, admirado pelas garotas. Ao tropeçar em uma informação decisiva sobre a identidade do mais notório pirata da galáxia, descobre que a sua ambição heroica é mais complicada e perigosa do que nos seus sonhos. Com a ajuda do primo Meke, um roqueiro ainda mais atrapalhado do que ele, Leo tenta escapar dos seus perseguidores, atrás do mesmo segredo. Vai parar nas garras do dito cujo, o pirata Capitão Drake, um ciborgue megalomaníaco, e da sua ninfomaníaca primeira em comando, Crapula.

A narrativa rocambolesca inclui escapadas, monstros cheios de tentáculos e um outro muito ciumento de Crapula, uma batalha espacial e feitos sexuais do herói atrapalhado mas dotado de estranho sex-appeal. Há uma ironia específica aí, já que o sonho de interessar as garotas se realiza sem que ele banque o herói, mas como está sempre na correria para salvar a vida, aproveita pouco. Crapula, aliás, está no gancho fixado para o volume 2. Com uma arte e uma cor aquarelada mais luminosa e arejada do que na Saga dos Metabarões, Giménez exibe aqui o seu imenso talento para o desenho de estruturas e veículos, artefatos hipertecnológicos e vestimentas. Mesmo com a modulação voltada para o humor, ele fornece aquele sense of wonder tão apreciado, na ficção científica.

 

Arte de capa de Richard Corben.

Den 1: Neverwhere, de Richard Corben. Kansas City, MO: Fantagor Press, 1991 [1978], 112 páginas. Arte de capa de Richard Corben. Álbum. Outro dos tesouros encontrados na madrugada, Den era um velho conhecido das páginas brilhosas da revista Heavy Metal, e também do filme antologia de 1981. Naquela época, quando eu mal sabia ler em inglês, tive contato apenas com fragmentos deste volume 1 e dos posteriores. Ler o volume completo agora me permitiu desfrutar muito mais das referências intertextuais ao Edgar Rice Burroughs da série Barsoom, e ao H. P. Lovecraft dos Mitos de Cthulhu.

A história abre com um parrudão tipo Schwarzenegger aparecendo em uma planície rochosa, sem roupas e sem pelos, aos poucos se lembrando de ter sido um nerd franzino chamado David Norman, que descobriu, nas anotações do tio desaparecido, como construir uma espécie de máquina de transmigração da alma. Apanhado na máquina, ele ressurge no mundo de Neverwhere como Den. Aparentemente, como a história vai contando, Den também era a persona do seu tio, de modo que ele não herda apenas o corpanzil, mas uma história de conflitos nesse mundo. Mal pôs os pés lá, e se vê em uma intriga envolvendo uma perversa rainha e um degenerado imortal, pela posse de um objeto mágico, Loc-Nar, necessário para invocar o Grande Uhluhtc (Cthulhu ao contrário). No caminho, Den luta com todas as armas disponíveis, conhece inimigos e aliados valorosos mesmo entre os habitantes bestiais do lugar. A cada passo da sua jornada, encontra mulheres que seguem um mesmo padrão conhecido dos fãs de Corben: rechonchudas, peitudas e depiladas. Primeiro a moça indígena de adereço asteca da cabeça, e que tenta alimentar um dragão com ele; depois a Rainha que o assedia na cara dos seus súditos; e a escritora inglesa Katherine Wells, que também veio da Terra, mas do século 19. Den se apaixona por Kathy, que acaba nas mãos do vilânico imortal Ard. A arte de efeitos tridimensionais de Corben, sua iluminação e cor quase psicodélica e o dinamismo que ele dá aos personagens capturam o olhar e a imaginação. A diagramação dos balões e outros textos, porém, ficou meio perdida nessa edição da Fantagor. A nudez é impossível de ser desvinculada desta obra. Trabalhando com o material de Burroughs e de Lovecraft não nas décadas de 1920 e 30, mas na década de 1970 pós-revolução sexual, Corben “dessublima” o conteúdo sexual do romance planetário heroico e do horror cósmico, tornando-o explícito e celebrado.

—Roberto Causo

Sem comentários até agora, comente aqui!

Leituras de Março de 2020

Num certo sentido, a maior parte das leituras de março foi continuidade de séries e de obras anteriores. Prepare-se para vários hiperlinks

 

Arte de capa de Stephen Youll.

The Wolf Man: Hunter’s Moon, de Michael Jan Friedman. Milwaukie, OR: Dark Horse Books, 1.ª edição, 2007, 238 páginas. Arte de capa de Stephen Youll. PaperbackNeste mês, achei uma brecha para retomar o trabalho em um romance de dark fantasy, espécie de sequência de Mistério de Deus (2017), e li para me inspirar este romance que retrabalha um dos monstros clássicos do horror: o lobisomem. De fato, o romance de Friedman faz parte de uma linha da Dark Horse que recupera os monstros da Universal — eu já havia, inclusive, lido há dois anos um outro livro da série: Creature from the Black Lagoon: Time’s Black Lagoon, de Paul Di Filippo. Este é um tipo de horror que a Universal promoveu e que penetrou na cultura como um dos fundamentos do gênero, centrado na figura do monstro. Sua leitura me remeteu muito à minha infância, aquele clima dos filmes vistos na TV tarde da noite, e que a arte hiper-realista de Stephen Youll capturou completamente.

O lobisomem aqui se inspira no filme O Lobisomem (Wolf Man; 1941), dirigido por George Waggner com roteiro original do autor de FC Curt Siodmak, e Lon Chaney Jr. como o tal. Há em comum entre o filme e o livro a ambientação britânica. Embora a história abra com um prólogo ambientado na Idade Média e envolvendo o viking que originou a maldição do lobisomem, e a história do filme está embutida no background do herói, Lawrence (Larry, no filme) Talbot — que entra em cena como em um filme de ação, fugindo num carro metralhado por caçadores de lobisomem, com direito a projéteis de prata e tudo. Com ele no carro estão membros de uma “sociedade protetora de lobisomens”; quer dizer, uma sociedade secreta da cavaleiros que promete a ele refúgio e a redenção da maldição que o aflige. Em uma propriedade rural antiga, ele conhece o líder da ordem de cavaleiros, e uma garota jovem e misteriosa por quem se encanta. Quando o lugar é atacado, os dois fogem para uma cidadezinha em que uma arapuca já está armada para Talbot — cujo papel não é o de um ser especial a ser protegido, mas o de vítima de um sacrifício encenado com os efeitos visuais de um Steven Spielberg. Me pareceu que a traição da garota era previsível, mas a história prende a atenção e Friedman a conduz com segurança e textura suficientes. Os toques de filme de ação, a paranoia de fundo e o cenário mais diversificado são as atualizações propostas por ele para a narrativa clássica de monstro, aqui em um livro que confirma o charme dessa linha da Dark Horse.

O Lobisomem (The Wolf Man), de 1941.

 

 

Mass Effect: Revelation, de Drew Karpyshyn. Nova York: Del Rey, 2007, 324 páginas. PaperbackEste é o segundo romance original atrelado ao videogame Mass Effect que eu li. O primeiro foi Mass Effect: Ascension, do mesmo Drew Karpyshyn, lido em 2015. Ambos, parte de uma trinca de romances apresentados como “prequência” do jogo, foram traduzidos e publicados no Brasil. Resenhas de FC original americana publicadas na revista Locus atestam a influência desse game na FC atual, talvez no Brasil também (como, possivelmente, na série As Filhas de Cassiopeia, criada por Hugo Vera).

Este é portanto outro romance original atrelado (tie-in) escrito com competência e efetividade. Ao contrário de Ascension, que lida com experimentos secretos paranormais para dar uma vantagem ao grupo chauvinista humano comandado pelo “Elusive Man”, um dos vilões do game, Revelation é uma aventura com menos de thriller e mais de space opera militar: acompanha o oficial David Anderson em uma missão secreta. Após explorar as ruínas de um laboratório palco de um massacre promovido pelo grupo mercenário Blue Suns, Anderson acaba, assim como no posterior Legado Bourne, um filme de 2012, fazendo par com uma cientista sobrevivente daquela ação criminosa, a também oficial militar Kahlee Sanders, filha de uma figura importante na Aliança, o Almirante Jon Grisson. Noutra linha narrativa, o alienígena turiano Saren, investigador do corpo de elite Spectre, se aproxima dos dois como uma ameaça concreta — quase como um psicopata, ele recorre ao assassinato e à tortura como ferramentas de investigação. Estar perto demais de Saren (que aparece na capa) é um perigo…

Há uma boa dinâmica entre Anderson e Sanders, com os dois se completando e funcionando bem como equipe. O romantismo do herói faz o contraponto ao cinismo gritante tanto de Saren quanto dos mercenários. Karpyshyn é um dos escritores principais do jogo, e faz um bom trabalho de introdução ao universo de Mass Effect. O que se tem como motivador do massacre é um big dumb object, uma nave espacial de uma outra era da galáxia, com recursos bélicos singulares e que deve ter algum papel importante no game.

 

Still Dead, de Hart D. Fisher. Granada Hills, CA: Boneyard Press, 1.ª edição, julho de 1998, 142 páginas. Ilustrado. Trade paperbackEm outubro de 2017, comentei o doloroso livro de poemas de Fisher, Poems for the Dead, de 1997. Este Still Dead surgiu logo depois e prossegue com as torturadas ruminações deste quadrinista americano cuja namorada, e pelo jeito amor de sua vida, foi assassinada por um serial killer.

Muitos dos poemas são contemplações ásperas de uma vida sem sentido, extrapoladas para a vida americana em geral. O apelo do suicídio, do sexo desesperado e de arroubos de violência fazem parte dos seus poemas cortantes, sem concessões e que frequentemente produzem imagens do horror como gênero literário e midiático. Todo o projeto gráfico, com cara de fanzine, abraça a esqualidez existencial e a marginalidade social que os poemas expressam. As dezenas de ilustrações, algumas pelo famoso David Mack (da HQ Kabuki), ampliam ainda mais essa vinculação. (Uma ilustração em particular de Daerick Gross, com conteúdo pornográfico, é particularmente incômoda.) Still Dead não é um livro fácil de ler nem de refletir a respeito. Mas realiza uma figuração literária única, do drama de uma personalidade do mundo da ficção de horror que incorpora, em sua biografia, estilemas do próprio gênero em uma imbricação que assusta e perturba. O horror está mais enraizado na realidade do que às vezes gostamos de admitir, e pode produzir uma sublimação estranha, na qual suas fontes sinistras e muito reais retêm uma vida própria.

 

Arte de capa de Teo Adorno.

Vinte & Um, de Nelson de Oliveira. São Paulo: Editora Patuá, 2020, 168 páginas. Introdução de Moacyr Scliar. Capa e ilustrações de Teo Adorno. Brochura. Assumindo o pseudônimo de “Luiz Bras”, Nelson de Oliveira — um autor da Geração 90 consagrado no mainstream brasileiro com prêmios de prestígio aqui e no exterior — tem sido, por cerca de dez anos, um dos principais nomes da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira. Além de publicar Luiz Bras com constância, a Editora Patuá tem republicado títulos significativos assinados por Nelson de Oliveira, incluindo o admirável romance fantástico Subsolo Infinito, em edição de 2016, com a obra redefinida por Fábio Fernandes como um romance New Weird. Elogiado por Moacyr Scliar (que escreve a introdução), Bernardo Ajzemberg, José Paulo Paes, José Castello e Leo Gilson Ribeiro, originalmente reunindo 13 contos, seu livro Treze (1999) reaparece como uma edição ampliada com mais oito narrativas — daí o novo título de Vinte & Um.

Em Oliveira/Bras, o mainstream literário brasileiro se casa com a ficção científica, uma das questões litrárias centrais da Terceira Onda. Esse casamento já foi visto antes, no campo da ficção curta e com outras modulações, nas obras de Rubens Teixeira Scavone, André Carneiro, Braulio Tavares e outros, e programaticamente, no Ciclo de Utopias e Distopias (1972-1982). A modulação que ele dá é, porém, muito singular, e um livro como Vinte & Um fornece a oportunidade de enxergarmos melhor o antes e o depois, e os pontos de transição. Bras é um dos autores que eu mais tenho acompanhado aqui, comentando a noveleta Anacrônicos (2017), o livro de contos A Última Árvore (2017), e a novela Não Chore (2016).

A primeira história do livro (e do anterior Treze) é “Dies Irae”, que firma sua ironia de saída, ao empregar a expressão teológica do título numa história absurdista sobre a vida brutal de pessoas em situação de rua. O tema do sem-teto foi central para a Geração 90 naquela década, e o próprio autor o empregou em Subsolo Infinito. De parágrafo único, “Fábula Rasa” empresta toques narrativos dos contos de fadas, enquanto “Doce Dilema Azul de Bolinhas Amarelas” é uma fabulation (o texto ficcional que acena ser contrário ao modo realista) que explicita a arbitrariedade literária de se dar nome a personagens ao nomear os personagens do texto por meio de descrições recorrentes (como Luiz Bras, ele fez algo semelhante com o elogiado “Déjà-vu”, de 2009). “Ela Não Vê no que os seus Olhos Creem” e “Gorducha” são minicontos em que um ponto da narrativa pega a deixa de uma expressão ou sonoridade vista antes, para conduzir a situações de surpresa e desconforto, com o desfecho re-significando o sentido geral. O segundo também é de parágrafo único, e uma única sentença. O mesmo para “Mesdra”, que vem a seguir. “Duas Quedas” é dividido em dois segmentos, o primeiro narrado na primeira pessoa do plural, e o segundo com um narrador de sexualidade oscilante — assim como a personagem mais inquietante de Subsolo Infinito. “Homenagem a Troia” tem parágrafos mas nenhuma vírgula, e se desenrola em contradições propositais que firmam uma incerteza constante. Mais longo, “Monstro” personaliza um mise-en-scène burocrático, enquanto “Toleima?”, também mais longo, ecoa em linguagem roseana a questão da ambiguidade sexual do desejo do narrador, visto em Grande Sertão: Veredas. Em “Zede, o Gado”, último conto de “Treze”, o principal efeito é uma dicção fanhosa que exige uma leitura diferenciada para se assimilar o sentido. “Sete”, a segunda seção do livro, abre com “Chapeuzinho Pergunta ao Chapeleiro”. Muito curto, brinca com o subtexto sexual dos contos infantis, enquanto “Crime e Castigo” esvazia a competência investigativa necessária ao protagonista da ficção de detetive — remetendo, ao mesmo tempo, a alguns dos maiores embusteiros da literatura: Dom Quixote e Simão Bacamarte. “Una Fábula Colorida” faz com o portunhol algo semelhante ao efeito de “Zede, o Gado”. Um dos textos mais longos do livro, “Gritos Ocultos” traz o contraste entre o diálogo (sem marcação) de um casal que se reencontra, com pensamentos entre parênteses que expressam as suas ansiedades e contrariedades, e estendem a história. Último texto de “Sete”, “Curva Dramática” também apela para os parênteses para ampliar a narrativa de parágrafo único. Longo, “Pintando o Sete” explora a paisagem de São Paulo e tem um narrador que avalia e descreve as sete amantes que ele manobra uma por dia durante a semana, com um imprevisto problema de multiplicação no final. “Reconhecimento de Padrões” tem imagens de ficção científica e algumas das preocupações de Luiz Bras quanto ao estado da vida no século 21. Fechando o livro, “Fenômeno Fenomenal” inclui imagens, o que reforça a vinculação do autor com a literatura pós-modernista. Texto (que em um ponto evoca situações do conto tupinipunk de Braulio Tavares “Jogo Perigoso”) e imagens remetem à música rock como fornecedora da identidade do problemático século 20. Em tudo, Vinte & Um sublinha a inventividade e o experimentalismo que está no centro da escrita de Nelson de Oliveira/Luiz Bras.

—Roberto Causo

Temos 4 comentários, veja e comente aqui

Novo Livro de Contos de Roberto Causo: “Brasa 2000”

Em junho de 2020, a Editora Patuá enviou pelo correio os primeiros exemplares vendidos de Brasa 2000 e Mais Ficção Científica, a coletânea de contos de Roberto Causo incluída na respeitada coleção Futuro Infinito, editada por Luiz Bras.

 

Arte de capa de Teo Adorno.

Com 204 páginas, Brasa 2000 e Mais Ficção Científica é dividido em quatro seções: “Aqui, Agora, Futuro Próximo”, “Tupinipunk”, “Steampunk” e “Space Opera”, reunindo um total de 11 histórias. Abrindo com “Infiltrado”, publicado originalmente em 1992, e fechando com “Tengu e os Assassinos” (2013), uma noveleta pertencente à série As Lições do Matador, do Universo GalAxis, o livro é uma amostra dos trinta anos de carreira do escritor na ficção científica.

O conto “Brasa 2000” (2006), que dá título ao livro, é uma história de guerra futura publicada na Argentina, Brasil, Cuba e Espanha, tendo aparecido em duas antologias internacionais de ficção científica latino-americana.

A Coleção Futuro Infinito, com dois anos de existência, apresenta títulos de Fábio Fernandes, Braulio Tavares, Claudia Dugim, Marco Aqueiva, Ivan Carlos Regina e Michel Peres.

Apresentando capa de Teo Adorno, no mesmo padrão de capas de todos os livros da Futuro Infinito, Brasa 2000 e Mais Ficção Científica apresenta texto de orelha de Marcello Simão Branco, a coletânea traz ainda texto de contracapa de Nunes Dias, sublinhando a versatilidade de Causo:

“Dos muros pixados por um cangaceiro jedi num corrompido bairro do Morumbi às etnias resguardadas do colapso financeiro nos fundões da Amazônia, das hordas marcianas invadindo os subúrbios cariocas nos estertores do século dezenove à cultura oriental que refloresce resguardada num planeta distante… A antologia Brasa 2000 nos presenteia com um vislumbre panorâmico da produção de Roberto de Sousa Causo, um dos autores mais importantes da ficção científica brasileira. À space opera, ao steampunk e à FC tradicional e sua miríade de tropos junta-se o aguerrido tupinipunk, termo cunhado pelo próprio Causo. As histórias contidas aqui — incluindo um conto antológico reunindo o capitão Jonas Peregrino e a assassina ciborgue Shiroma — homenageiam as influências clássicas, torcem as rédeas monótonas da realidade e oferecem ótimos momentos de uma voz autenticamente brasuca.” —Nunes Dias. Na contracapa de Brasa 2000 e Mais Ficção Científica.

O livro está disponível para compra na loja virtual da Patuá.

Temos 2 comentários, veja e comente aqui