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O Poder do Deserto

O PODER DO DESERTO

 

 

O canadense Denis Villeneuve se consolida como um cineasta ambicioso e fortemente vinculado à ficção científica — algo relativamente raro, se pensarmos que um Ridley Scott ou um James Cameron não aparecem todo dia — ao trazer o épico da space opera exótica, Duna, de Frank Herbert, de volta às telas dos cinemas. A pandemia da covid-19 ameaçou comprometer o seu desempenho, mas, ao que parece, nada poderia passar uma rasteira nessa notável produção.


 

Duna (Dune: Part One) Inglaterra, 2021, 155 minutos. Warner Bros. Dirigido por Denis Villeneuve. Escrito por Eric Roth, Jon Spaihts & Denis Villeneuve, baseado no romance de Frank Herbert. Produzido por Mary Parent, Cale Boyter, Joe Caracciolo Jr. & Denis Villeneuve. Música de Hans Zimmer. Cinematografia de Graig Fraser. Montagem de Joe Walker.

Com Timothée Chalamet, Rebecca Fergusson, Zendaya, Oscar Isaac, Jason Momoa, Stellan Skarsgård, Stephen McKinley Henderson, Josh Brolin, Javier Barden, Sharon Duncan-Brewster, Chang Chen, Dave Bautista, David Dastmalchian, Charlotte Rampling, Babs Olusanmokun, Benjamin Clémentine.

 


Romance de Frank Herbert publicado originalmente em 1965, Duna (Dune) tem uma história tanto de adaptações realizadas quanto abortadas. Em artigo na revista britânica SFX #84 (novembro de 2001), o articulista John Gosling recorda que o primeiro a tentar a adaptação foi o produtor Arthur P. Jacobs, famoso pela primeira franquia moderna de ficção científica, O Planeta dos Macacos, juntamente com o roteirista e fã de Herbert, Robert Greenhut. O famoso David Lean de Lawrence da Arábia chegou a ser sondado para a direção (é tudo passado no deserto, não é?), mas ela acabou caindo nas mãos de Charles Jarrott, ganhador do Globo de Ouro de Melhor Diretor em 1969, com Ana dos Mil Dias. Outro roteirista experiente, Rospo Pallenberg, foi recrutado para trabalhar o roteiro — ele vinha da experiência de adaptar outro épico complexo, para uma frustrada produção de O Senhor dos Anéis a ser dirigida por John Boorman (famoso pela fantasia arturiana Excalibur).

O projeto de Jacobs, que seria parcialmente filmado em uma região vulcânica da Turquia, começou a descarrilhar com a morte do produtor, em 1973. Mais tarde, acabou abraçado pelo escritor e cineasta chileno Alejandro Jodorowski, a partir de 1975. A sua versão nunca realizada se tornaria um dos filmes abortados mais famosos de todos os tempos. Isso se deu, em grande parte, pelas ideias surrealistas e heterodoxas que ele havia enfiado no enredo, mas principalmente pela qualidade dos artistas envolvidos na pré-produção. Entre eles estiveram figuras de grande impacto como Moebius, H. R. Giger, Chris Foss e Richard Corben. O produtor e roteirista Dan O’Bannon trabalhou no projeto como diretor de efeitos especiais, e levou com ele Moebius, Giger e Foss para o projeto de Alien: O Oitavo Passageiro (1979), de Ridley Scott. com roteiro de O’Bannon e Ronald Shusett.

Cartaz do documentário Jodorowsky’s Dune, dirigido por Frank Pavish.

Com o naufrágio do seu projeto, Jorodowski se associou a Moebius na épica space opera em quadrinhos O Incal (1981-1988), e mais tarde com o brilhante Juan Giménez na Saga dos Metabarões — ambas as narrativas devendo muito ao cruel exotismo de Duna, sendo que o criador chileno continuou expandindo a space opera do Universo dos Metabarões até 2003. A experiência frustrada da adaptação cinematográfica é o assunto do documentário Jodorowski’s Dune (2013), de Frank Pavich.

Raffaella De Laurentiis, filha do famoso produtor Dino De Laurentiis, alavancou a primeira adaptação que chegou a termo, o filme de David Lynch lançado em 1984. Recentemente, Ridley Scott comentou a respeito do seu envolvimento com esse projeto, já que ele foi recrutado antes de Lynch para a direção. Basicamente, o diretor inglês se assustou com as condições do estúdio armado por Dino na Cidade do México, e pulou fora. Ele vinha de realizar Alien, o Oitavo Passageiro (1979) e Blade Runner: O Caçador de Androides (1982). David Lynch escreveu e dirigiu o Duna da produtora De Laurentiis, um fracasso de bilheteria e de crítica, mas que possui os seus méritos, com um visual sombrio que reteve algo da arte de produção de Giger.

Em 2000, a adaptação foi pela primeira vez para a TV por assinatura — a minissérie Frank Herbert’s Dune, criada e dirigida por John Harrison e exibida no então Sci Fi Channel, mas acabou sendo uma produção trôpega, com um excesso de efeitos digitais. Não obstante, foi a única adaptação que rendeu uma sequência — baseada no romance Messias de Duna, também como minissérie, desta vez com direção de Greg Yaitanes, em 2003.

Por fim, Peter Berg, cuja experiência com ficção científica foi o blockbuster Battleship: A Batalha dos Mares (2012), foi aventado para adaptar o livro mais uma vez em 2008, pela Paramount. Mas ele abriu mão, talvez fugindo da complexidade do assunto e buscando a saída mais fácil da sua versão de um filme de Michael Bay. A Paramount desistiu em 2011.

Denis Villeneuve vinha do sucesso de crítica A Chegada (The Arrival; 2016), baseado em uma noveleta do escritor sino-americano Ted Chiang, e do respeitável Blade Runner 2049 (2017), inspirado, por vias muito  indiretas, no romance de Philip K. Dick, Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? Em ambos, ele havia demonstrado um senso estético superior, narrativa sólida e sensibilidade quanto aos estados emocionais dos protagonistas. Fã de Duna desde a infância, em entrevista também declarou-se fã de David Lynch, mas que sentia que ainda havia o que explorar de uma adaptação cinematográfica da obra de Herbert e enfrentar o desafio do romance “infilmável”. Falando com o jornalista Alex Arabian, declarou que seu ponto de partida para o filme foi se reconectar com as imagens e sentimentos evocados quando da sua primeira leitura:

Duna ainda é um dos meus romances favoritos. Há algo que ele diz sobre o mundo e a exploração de ecossistemas. Há tantos elementos nele que ainda me trazem — toda vez que o abro e começo a ler — aquela bela e melancólica felicidade que eu tive quando o li pela primeira vez quando menino.” —Denis Villeneuve.

Exibido pela primeira vez em 3 de setembro no Festival de Veneza, onde foi ovacionado, o filme de Villeneuve entrou no circuito americano em 21 de outubro, quando também, em decisão polêmica, foi disponibilizado em streaming pela HBO Max. Com orçamento de US$ 165 milhões, faturou mais de US$ 400 milhões, garantindo, ao que tudo indica, a produção da parte 2. Se de algum modo a sombra do filme anterior de Byrne pairou sobre a produção de Villeneuve, ela é afastada nos primeiros cinco minutos de exibição, marcados por um prólogo em que a fremen Chani (Zendaya) narra como os Harkonnen estão se retirando do planeta Arrakis, deixando as portas abertas para um novo opressor a mando do Imperium — o império galáctico da imaginação de Herbert. A fala está no lugar daquela da Princesa Irulan (a jovem Virginia Madsen, no filme de Lynch), e lembra a história de opressão sofrida pelos árabes nas mãos do Império Otomano e, mais tarde, potências colonialistas europeias.

A narrativa vai imediatamente ao úmido e selvagem mundo de Caladan, lar da Casa Atreides comandada pelo Duque Leto Atreides (Oscar Isaac), e articulada de modo a dar a entender que a figura de Chani fazia parte de um sonho do seu filho, Paul Atreides (Timothée Chalamet). Se o prólogo era aberto, ensolarado e com efeitos oníricos da especiaria — substância estratégica para o império, encontrada apenas em Arrakis —, a cena em que Paul toma o café da manhã com sua mãe Jessica (Rebecca Ferguson) é fechada e sombria, com reflexos de luz filtrados por janelas circulares gradeadas. Sem dúvida, grande parte da separação estética entre o Duna de Villeneuve e o de Lynch está nos interiores criados pelo designer de produção Patrice Vermette, inspirados na arquitetura brutalista brasileira, de todas as fontes possíveis. Os planos longos das superfícies de concreto, quebradas por estruturas semicirculares e nuançadas por luz e sombra fornecem a solução minimalista para expressar a monumentalidade épica e o exotismo que, no filme de Lynch, foi alcançada com muito rococó e retrofuturismo.

Mudança semelhante fora obtida com as evocações de Frank Lloyd Wright em Blade Runner 2049, mas me parece que com maior felicidade neste Duna, que tem grande parte das suas imagens criadas como composições geométricas e de espaço negativo. Mesmo os figurinos de Jacqueline West foram expressos em planos e linhas bem geométricas, especialmente as armaduras de combate e os uniformes cerimoniais, com uma dose de movimento extra agraciando as figuras esguias das mulheres.

O pendor minimalista chegou às interpretações, com o corte dos pensamentos em off vistos no primeiro filme, herança do uso desse recurso pelo próprio Herbert para abreviar sua narrativa e acentuar análise (quando o personagem que reflete tenta imaginar as reações de interlocutores e adversários) e cálculo (quando ele pesa as próprias reações). Em Lynch, o recurso era redundante em muitos momentos, funcionando mais como ênfase dramática e prenúncio de suspense futuro. Sem ele, porém, o roteiro de Villeneuve & Cia às vezes pesa um pouco no diálogo expositivo: repetidamente há alertas de que os Atreides, em Arrakis para substituir a administração e prospecção de especiaria feita antes pelos Harkonnens, estão caindo em uma arapuca montada pelo imperador. Há até uma dica visual: os enormes vasos de desembarque do duque, ao descerem sobre Arrakis, têm o perfil de peões de jogo de xadrez.

Também é possível reconhecer a legítima preocupação de se esquivar das cenas mais seminais de Lynch, adotando mudanças de dinâmica além de tom o atmosfera. Muito é feito do encontro, da fuga e da luta final de Duncan Idaho (Jason Momoa) — talvez tendo em mente um possível retorno do carismático personagem na Parte 2, pinçado do contexto de Messias de Duna (1969) —, e menos é feito da captura e do sacrifício de Leto. A crueldade sistêmica do Barão Harkonnen (Stellar Skarsgård, oculto sob camadas de próteses) é atenuada em favor de uma qualidade mais tétrica e de trejeitos de Marlon Brando em Apocalipse Now (1979). Ao mesmo tempo, o imperador ou sua filha, a Princesa Irulan, não aparecem, assim como o violento sobrinho do barão, Feyd-Rautha — deixados para uma entrada enfática, na Parte 2?

Fergusson faz uma Lady Jessica um pouco emocional demais no esforço de comunicar o temor pelo seu filho. Chalamet está adequado como Paul Atreides, talvez apenas por ser superior a Kyle MacLachlan no papel. Momoa como Idaho traz um quê natural que contrasta positivamente com o modo composto de Oscar Isaac e Josh Brolin (como o mestre de armas Gurney Halleck), e da totalidade do elenco de apoio. Como muito deveria ter sido comunicado a respeito dos fremen neste filme, até como preparação para o seguinte, me pareceu que apenas Javier Barden (como o líder Stilgar) conseguiu transmitir a força física e de caráter desse povo. O elenco negro, para o meu desencanto, assumiu o manto de estoicismo e autonomia fremen como uma distância emocional que me incomodou — especialmente a atriz britânica Sharon Duncan-Brewster, fazendo o ecologista imperial Lyet Kines, que adotou os modos nativos (feito pelo incrível Max von Sidow, no filme de Lynch), e Babs Olusanmokun como o guerreiro Jamis, o primeiro homem a ser morto por Paul — e não o último. A exceção deve ser Zendaya, apesar das poucas falas (seu carisma pessoal já havia sido trabalhado nas visões de Paul).

De fato, eu esperava mais do uso do componente diversidade, tão determinante nos dias de hoje. Mas talvez a perspectiva minimalista de Villeneuve impeça uma ênfase maior, de maior nuance e projetando mais força de personalidade. É interessante observar que, no seu tom carnavalesco, o Duna de Lynch fez mais em termos de um corpo de coadjuvantes mais exuberante e melhor marcado. Embora, também naquele filme, os fremen pareçam mais apagados do que a trupe de lacaios imperiais ou Harkonnen, ou mesmo a criadagem fremen da cidade murada de Arrakis (saudades de Linda Hunt como a camareira Shadout Mapes). Qualquer deficiência nesse quesito, porém, é abafada pela força do enredo e da composição das imagens.

Ápice da space opera exótica, Duna foi adaptado por Denis Villeneuve com admirável economia estética e elementos concebidos com grande bom gosto e posicionados com habilidade para comunicar o exotismo, a complexidade e a crueldade do império galáctico. Estratégia oposta ao do filme de David Lynch, e abrindo mão daquela comicidade que parece obrigatória na space opera juvenil de Star Wars, Battlestar Galactica, Inimigo Meu e outros filmes e séries de outro período, pertencentes ao subgênero, e que vemos até no Incal de Jodorowsky.

A batalha pela posse da fortaleza é o clímax do novo Duna, e do seu emprego de efeitos especiais. Com o bombardeio do gerador de campo energético, torna-se possível o uso de armas de alta energia, e um laser persegue do alto o ornitóptero (mais para odonatóptero, já que não se inspira em pássaros mas na libélula), em que Idaho foge. Dotados de escudos individuais, os combatentes em terra ainda precisam usar espadas e adagas. A racionalização restritiva de Duna, para justificar o romantismo da esgrima herdado da fantasia científica de Edgar Rice Burroughs, fica bem marcada na sequência da batalha. Ao mesmo tempo, o design monumental das naves, pairando sobre uma cidade que parece um grande organismo de concreto, evoca todo o controle da imagética da ilustração épica de FC, por parte de Villeneuve, já sugerido em A Chegada. Certamente, escapou daquela evocação torta de velhos filmes italianos do gênero épico, pelo filme da Dino De Laurentiis Company.

E, mais uma vez, curiosamente o mesmo Villeneuve meio que desperdiçou o “nu frontal” do verme de areia, na cena em que todo o seu gigantismo surge das dunas, perante um pequeno humano atordoado. A revelação, que deveria ser portentosa, simplesmente não tem a força exigida. O que ele vai aprontar com o clímax programado para Duna Parte 2 (lançamento previsto para 2023), provavelmente aquela em que os vermes invadem a cidade-fortaleza? Ele já andou declarando que a cena vai ser um “belo desafio”.

Mais preocupante foi a declaração de que, o primeiro filme tendo montado o palco, o segundo vai apresentar uma “quantidade maior de diversão”. Pode ter sido um jeito de animar os espectadores para verem o primeiro, acesso para o suposto grau superior de diversão esperado para o segundo. Ou pode mesmo ser o realizador se curvando à onipresente pressão dos produtores de Hollywood para o patamar de bilheteria alcançado pelos filmes da Marvel ou de Star Wars.

Da minha parte, garanto que se a segunda parte apresentar uma “marvelização” de Duna, alguém vai ter uma síncope. E esse alguém pode muito bem ser eu.

Ou você?

Roberto Causo

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Leituras de Setembro de 2020

Em setembro, eu me vejo ainda buscando a essência da space opera, mas com espaço para a leitura de um notável romance da brasileira Claudia Dugim, e quadrinhos instigantes e divertidos, de J. Michael Straczynski e Meg Cabot.

 

Arte de capa de Alan Gutierrez.

Hegira, de Greg Bear. Nova York: Tor Books, 1.ª edição, 1989 [1987, 1979], 222 páginas. Arte de capa de Alan Gutierrez. PaperbackDe todas as ilustrações de capa de Alan Gutierrez que andei vendo por aí, esta é a melhor executada e a mais impactante. Perfeitamente adequada ao conceito fundamentador deste romance de estreia de Greg Bear, um dos autores de FC hard mais importantes a surgir no cenário do gênero, na segunda metade do século 20. A ambientação é um gigantesco conjunto articulado de habitats artificiais, onde vivem povos humanos que não se recordam das suas origens, e cujo conhecimento e tecnologia é alterado a partir do acesso que podem adquirir a gigantescos obeliscos de quilômetros de altura — quanto mais alto, mais elevado é o conhecimento científico, de modo que o acesso estaria subordinado à capacidade de organização e de realização tecnológica de cada povo. Certamente, um mecanismo de segurança, ajustado à dinâmica social possível, pensado pelos criadores desse mundo artificial. Mas também metáfora concreta, épica, da busca e da evolução civilizatória que remete ainda ao mitológico — como o voo de Ícaro, a Torre de Babel, e talvez o modelo das esferas celestes na antiguidade: um firmamento alcançável por meios físicos (explorado na noveleta premiada de Ted Chiang, “Tower of Babylon”, de 1990). 

Os personagens têm uma caracterização mundana, que se tornaria típica de Bear — não são heroicos, idealizados, e de saída não são especialmente capazes de refletir sobre o que se passa com eles. O atormentado jovem escriba Kiril é recrutado por um ex-general e seu companheiro, para viajar grandes distâncias nesse mundo (a quarta capa da edição dá erroneamente o general, Bar-Woten, como o protagonista). Às vezes, passam por territórios em que diferentes grupos fundamentalistas religiosos estão em guerra, em uma ocasião alistam-se em um navio, são capturados por um povo mais avançado que usa armas de alta energia para derrubar os obeliscos e acessar livremente o seu conhecimento. O romance é portanto um exemplo de viagem fantástica, o mais antigo formato narrativo associado à FC, temperado por muito estranhamento e exotismo. A busca do trio os leva até os limites do mundo, aos bastidores da grande encenação civilizatória armada pelos seus criadores, onde Kiril encontra algumas respostas sobre a sua amada (motivo do seu exílio inicial), sobre si mesmo e sobre o mundo. O que o fez pôr o pé na estrada foi a lenda de que quem chegasse ao fim do mundo se reencontraria com o seu amor. Ao exotismo da paisagem e das diversas evocações religiosas e de antigas civilizações soma-se o da revelação final: o planeta artificial, maior do que Júpiter, foi construído em torno de um buraco negro que lhe fornece energia perene, para que atravesse os momentos derradeiros da entropia de um universo moribundo. Desse modo, o que fora uma supercivilização foi fragmentado e reduzido em tamanho e retornado a algo semelhante ao que havia sido de início, inclusive em termos civilizatórios. Enquanto o supermundo artificial cruza de um universo moribundo para um por nascer, os diversos povos têm a oportunidade e o tempo de encenar suas buscas evolutivas e adquirir o conhecimento necessário para frutificarem, quando o novo universo estiver ponto para recebê-los. Ou assim se deduz. Grandioso e intrigante, provocante como só a FC pode ser. Mais um livro doado a mim, da coleção de Alfredo Keppler, um ex-presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica, e organizador da antologia Vinte Voltas ao Redor do Sol (2005).

 

Arte de capa de Jim Burns.

Sundiver, de David Brin. Nova York: Bantam Spectra, 1995 [1980], 340 páginas. Paperback. Este é o primeiro livro da série Elevação (Uplift), de David Brin, e que teve cinco títulos publicados em Portugal (segundo informou o tradutor Carlos Angelo), na coleção de FC da Europa-América. Eu já havia lido os dois outros, e agora, graças novamente a Alfredo Keppler, pude completar a leitura da trilogia. Brin, que fez muito sucesso com a série, também escreveu The Postman, romance de 1985 que virou um filme de Kevin Costner em 1997, tornando Brin o primeiro dos grandes da FC americana da década de 1980 a ter um livro adaptado por Hollywood (já no século 21, Orson Scott Card seria outro).

A história começa com Jacob Demwa, um especialista em xenologia, cooptado para participar de uma expedição conduzida por várias espécies alienígenas em companhia dos humanos, até as camadas externas do Sol, onde criaturas vivas foram observadas — batizadas de “espíritos do sol”. Muito é elaborado sobre a tecnologia de resfriamento laser da espaçonave que desce até a cromosfera do astro-rei. Também sobre os diversos alienígenas (um deles é uma planta) metidos na missão. No intrigante universo da Elevação, a “astropolítica” da galáxia é marcada pela prática de se elevar espécies com potencial para a senciência, tornando-as auxiliares da civilização-mestre na colonização da Via Láctea. A relação mestre-auxiliar dura um tempo, até que se conceda a autonomia plena. A Terra está envolvida em elevar golfinhos e nossos primos chimpanzés, de maneira quase que independente do que as civilizações alienígenas vinham praticando. Isso atrai a atenção delas, e também alguns ressentimentos.

A questão do primeiro contato como sun-ghosts é interessante em si mesma, mas quando o chimpanzé elevado Dr. Jeffrey é morto durante uma das incursões, a narrativa busca outro formato — o do romance de mistério, conforme Demwa desconfia de patifaria entre os membros da expedição, e não de hostilidade por parte dos nativos do Sol. Ele investiga e interroga, e a verdadeira face da política galáctica vai se apresentando em situações de grande suspense e perigo de vida, com soluções científicas bem imaginadas (o livro é, de fato, mais FC hard do que space opera, subgênero que vai se configurar mais nos volumes seguintes da série). Demwa é um personagem meio duro, mas seu estado mental, perturbado após a morte de sua amada em um acidente e estabilizado com esforços de meditação e auto-hipnose, fornece um toque interessante. Não se trata de um romance no mesmo nível dos episódios seguintes na série, Maré Alta Estelar (Startide Rising; 1983) e A Guerra da Elevação (The Uplift War; 1987), mas tem os seus próprios méritos e já expressa a tendência de Brin de apresentar enredos complexos, com muitas camadas de situações. Algo semelhante se pode dizer da capa do mestre inglês Jim Burns, aqui em momento pouco inspirado.

 

Arte de capa de Marc Simonetti.

Filhos de Duna (Children of Dune), de Frank Herbert. São Paulo: Editora Aleph, 2.ª edição, 2017, 526 páginas. Tradução de Maria Silvia Mourão Netto. Arte de capa de Marc Simonetti. Capa dura. Neste que é o terceiro livro da série Duna, em edição agraciada com capa crepuscular do artista francês Marc Simonetti, começa a se afigurar uma prática de Frank Herbert de ir, a cada novo volume, se desfazendo de personagens impactantes, desenvolvidos em volumes anteriores. Assim, Paul Atreides e Duncan Idaho são apenas sombras dos personagens fortes caracterizados antes, e o retorno de Lady Jessica ao palco, agora com o planeta Arrakis transformado em centro do império galáctico, reserva a ela a mesma sina. Pena, já que em Duna (1965) ela mostro ser uma das personagens femininas mais fortes da FC. Mulher poderosa e complexa em suas adesões, guia inicial de Paul na sua autodescoberta, é reduzida a mais uma operadora das intrigas palacianas do império. Idaho, antes filósofo questionador, é reduzido a consorte de uma cada vez mais enlouquecida e tirânica Alia Atreides, a irmã de Paul, exposta como feto ao líquido místico excretado pelo verme da areia.

O próprio Paul abandonou o império para se internar no deserto, ressurgindo como um pregador cego, também ele marionete de forças políticas ocultas. Tais forças se voltam para o extermínio dos gêmeos ilegítimos de Paul com a garota fremen Chani: Leto e Ghanima. A intriga contra as crianças inclui feras treinadas (com o perverso sacrifício de crianças escravas) para atacá-los nas areias de Arrakis. Antecipando a situação, os precoces Leto e Ghanima fogem e se internam no deserto. Criam um plano que envolve apagar a memória dela, e ele sofrer uma metamorfose pela sua fusão com trutas da areia (um estágio embrionário do verme). Os gêmeos são o centro da narrativa. Eles nasceram com o poder de Paul, o Muad’Dib, de reviver todas as experiências existenciais da sua linhagem e de prever o futuro dentro do desenvolvimento do Caminho Dourado ao qual se submetem, em uma das mais fortes manifestações, dentro do gênero, de um determinismo racial:

“Este foi o feito de Muad’Dib: ele entendeu que o reservatório subliminar de cada pessoa era um banco inconsciente de recordações que remontavam até às células primais de nossa gênese comum. Ele dizia que cada um de nós pode medir sua distância em relação a essa origem comum. Quando viu isso e relatou sua percepção, ele realizou o audacioso passo de tomar uma decisão. Muad’Dib se incumbiu de integrar a memória genética à avalição em andamento. Com isso, ele de fato atravessou os véus do tempo, tornando o futuro e o passado uma coisa só. Essa foi a criação e Muad’Dib corporificada em seu filho e em sua filha.” —Frank Herbert. Filhos de Duna.

Há uma face muito trágica nas duas crianças nascidas com tamanha bagagem. Constantemente, lembram os adultos de que são mais velhos, mais vividos, mais capazes e mais inteligentes do que eles. E certamente, menos inocentes ou abertas. Como Leto precisa colocar sozinho a dinâmica de Arrakis em cheque, Herbert praticamente o transforma, por força da metamorfose, em uma espécie de duro e implacável super-herói (ou supervilão). Nessa parte, os exageros pulp começam a incomodar. Como contraponto, o autor introduz o Príncipe Farad’n, treinado para ascender à posição de imperador pelas forças ocultas, se elas conseguissem eliminar os gêmeos. Farad’n traz um frescor ao romance, e Herbert foi especialmente sábio ao defrontar Leto com ele, no denouement.

 

Arte de capa de Jim Burns.

There Is No Darkness, de Joe Haldeman & Jack C. Haldeman II. Nova York: Ace Books, 4.ª edição, 1983 [1979], 246 páginas. Arte de capa de Jim Burns. PaperbackSe a arte de Jim Burns na capa de Sundiver não é das suas melhores, esta (mesmo esmaecida) é uma das minhas favoritas. Este é um romance composto de duas novelas assinadas pelos irmãos Haldeman e publicadas originalmente na Isaac Asimov’s Science Fiction Magazine em 1979, na primeira fase da revista. Acompanha um cadete espacial, Bok, também o narrador das aventuras. Ele vem de um planeta selvático de vida muito dura, e é um cara grande que se imagina muito apto à violência. Por isso se mete seguidamente em enrascadas, aceitando desafios de oponentes mais hábeis. Pesado, paga um “excesso de bagagem” quando sua turma de cadetes chega à Terra. Disposto a tudo para recuperar o dinheiro e se mostrar valoroso, ele se inscreve em vários torneios de gladiadores, primeiro contra feras, depois contra adversários ainda mais perigosos. A equipe de colegas e de gladiadores que reúne em torno de si não está livre de riscos.

Aqui, os Haldemans estão no território de Robert Sheckley, ou seja, um plano satírico em que muitos leitmotifs da ficção científica são tratados com uma violenta ironia, expondo faltas sociais no processo. O turrão e ingênuo Bok é vítima de espertalhões a cada passo que dá, e não parece haver uma pessoa honesta na sua Terra do futuro, apenas golpistas e corruptos, criminosos profissionais e burocratas maliciosos. Tudo isso, na primeira novela. Na segunda, é o ethos militar que sofre a atenção sarcástica dos irmãos, quando, durante um exercício militar, Bok e seus amigos são vendidos por um sargento corrupto para lutarem numa guerra anacrônica, com armas de fogo em trincheiras, em um conflito propositalmente limitado pelas partes. Joe Haldeman lutou no Vietnã e escreveu um livro de memórias de combate. Mais famoso, o seu romance clássico de FC Guerra sem Fim (The Forever War; 1974), também se nutre daquela experiência, que enriquece a segunda novela com reflexões interessantes sobre como o combate vai sangrando as disposições individuais, éticas e humanas dos soldados.

 

Arte de capa de Tim White.

A Jungle of Stars, de Jack L. Chalker. Nova York: Del Rey, 8.ª edição, s.d. [1976], 218 páginas. Arte de capa de Tim White. Paperback. Chalker, com quem tive o privilégio de conversar brevemente na MagiCon em Orlando, em 1992, escreveu uma das minhas histórias favoritas como leitor de FC, a delicada e sensível noveleta “A Orquestra de Dança do Titanic” (publicada aqui na antologia Asimov: O Melhor da Ficção Científica, organizada por Asimov & Martin H. Greenberg).

Este é o romance de estreia de Chalker, que se tornaria um autor muito bem sucedido comercialmente. Parte de um modelo antigo de composição de ficção científica, que começa com uma situação contemporânea. A história segue o herói Paul Savage, um oficial do exército americano no Vietnã, morto pelos seus colegas durante uma patrulha. Ele volta a vida e se vinga de alguns dos seus assassinos. O “milagre” é de responsabilidade de uma força alienígena. Ela o recruta para lutar em uma guerra escatológica entre facções que poderíamos chamar de “metadivina” (Haven) e “metademoníaca” (Bromgrev); isto é, superinteligências em conflito que podem ter inspirado essas noções metafísicas. O líder da organização “do bem” é reificado de forma tipicamente americana, como um empresário bem-sucedido chamado Wade.

Savage começa integrando uma organização de pesquisa de fenômenos estranhos.O serviço o leva a uma localidade americana onde ele conhece uma jovem cega e acima do peso, a quem ele imediatamente corteja. É interessante que esse gesto na direção de uma personagem incomum, fora dos padrões de beleza, antecipe em tantas décadas o questionamento muito em voga atualmente (a primeira edição do livro é de 1976). O relacionamento de Savage com a garota nem sempre soa maduro ou inteligente, mas é verdadeiro o bastante e sublinha o fato do herói se considerar muito feio, simiesco. Mais tarde, quando eles finalmente deixam a Terra para buscar a resolução do conflito em uma região remota da galáxia, a supertecnologia cura a cegueira da moça — e transforma Paul Savage em um modelo de beleza masculina: Doc Savage, um dos primeiros heróis pulp da FC. Chalker começou no mundo da FC como um superfã e fanzineiro, e este é um detalhe que expressa tal compromisso. Nesta altura, o romance já se moveu de situações de dark fantasy, passando por um pouco de FC ufológica, até se configurar como uma das mais estranhas space operas que já li. Bastante pulp em termos de estilo e de uma narrativa que migra muito de situação em situação, também firma com muita segurança a sua visão original e frequentemente inquietante, da luta entre o Bem e o Mal e de um indivíduo que impõe, a forças tão maiores, a sua própria solução.

 

Matando Gigantes, de Claudia Dugim. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, 2019, 332 páginas. Texto de orelha de Fábio Fernandes. Capa de Teo Adorno. Brochura. Escritora e antologista muito ativa na cena da Terceira Onda da FC Brasileira, Dugim entra na Futuro Infinito de Luiz Bras com um substancial romance de nave de gerações, subgênero explorado em Infinito em Pó (2004), de Luís Giffoni, em B9 (2011), de Simone Saueressig, e em Nômade (2010), de Carlos Orsi.

Matando Gigantes, o primeiro romance de Claudia Dugim, desenvolve duas linhas narrativas que se combinam — é a técnica da “narrativa entrançada”. A primeira linha envolve uma comunidade dedicada a caçar gigantes, que são mortos com finos cabos capazes de amputar membros ou decapitar um dos “monstros”. Gus é um homenzinho trans que se interessa muito pelo conhecimento e tem no irmão Uor um herói matador de gigantes. Enquanto Gus tropeça em burocratas megalomaníacos da sua comunidade instalada em tubulações da nave espacial, o policial Nicolau investiga as mortes e tropeça em um movimento revolucionário, antiautoritário, composto de haitianos e brasileiros (outro toque interessante). No desenrolar da trama, grandes mentiras oficiais são descobertas, enquanto os dois grupos lutam para sobreviver e triunfar, estabelecendo uma convergência de interesses e um gesto de protagonismo dos pequenos, dos periféricos e não empoderados.

Parece haver ecos de Non-Stop (1958; t.c.c. Starship), de Brian W. Aldiss, no contexto de um conflito aberto entre os viajantes de uma nave de gerações que parece se encaminhar para o desastre, na mão de frios tecnocratas. Certamente, a narrativa é tensa o bastante e apresenta um gravitas crescente conforme avança para o clímax. Não obstante, a autora vê o livro como dirigido ao público jovem, e escolhe descrever os pequeninos quase com índices de literatura para crianças, com muita fofura e atrapalhação, contrastando com as descrições sangrentas dos seus feitos contra os gigantes — nós, os humanos normais. Inclusive, a narrativa coloca um par de crianças parentes de Gus e Uor em perigo, no ápice da encrenca. Bem-vindas são as descrições da “vida cabocla”, descomplicada e iconoclasta, e de sexo livre dos pequeninos. De qualquer modo, talvez haja aí outro testemunho (o romance O Esplendor, de Alexey Dodsworth, é outro exemplo) do quanto a prosa jovem se tornou dominante no campo da FC e fantasia. Um outro modo de enxergar a prática, no caso do notável romance de Claudia Dugim, seria um emprego de um ângulo pós-modernista que questiona implicitamente as adesões emocionais da literatura tradicional e desafiando o leitor ao combinar diferentes registros textuais. (Em entrevista a Luiz Bras, Dugim admite ter meio que “duas personalidades”.)

 

Quadrinhos

Arte de capa de Christian Zanier.

Rising Stars: Power, de J. Michael Straczynski. Los Angeles: Top Cow, 1.ª edição, 2002, 190 páginas. Arte de capa de Christian Zanier. Trade paperbackEm maio de 2018, li Rising Stars: Visitations (2002), narrativa de origens desta criação de Straczynski, sobre um núcleo de super-heróis e supervilões surgido com a queda de um meteoro na cidade de Pederson. Por meio de flashbacks, o livro relembrava o surgimento dos “Pederson Specials”.

Neste Power, muita coisa já rolou por baixo da ponte, conforme informam artigos de revista noticiosas ficcionais, antecedendo à HQ propriamente. Ficamos sabendo que muitos Specials foram cooptados por empresas de segurança, depois de um grave evento em Chicago. Outro texto trata da reação governamental a esses “mutantes” que são vistos como armas vivas de destruição em massa, e o seguinte conta como a superpoderosa Stephanie Maas — sofrendo de um caso de superpsicopatia — declarou Chicago sua área de ocupação, reunindo lá outros Specials. O artigo final conta como os Specials tendem a agir de modo arbitrário e mesquinho, já que a maioria só pode se detida por seus colegas.

O grosso do livro é dedicado ao conflito entre duas facções de Specials, quando uma delas, liderada por John Simon, decide enquadrar a outra, especialmente depois que companheiros têm sido mortos um a um. Chicago é o campo de batalha. Straczynski antecipou algo do ciclo Guerra Civil da Marvel — que é de 2006-2007. Mas enquanto Mark Millar se concentrou em expressar a sua desconfiança quanto ao poder, zoando com a psicologia dos tradicionais super-heróis e buscando no seu comportamento traços fascistas, Straczynski ousou abordar um questão subjacente à relação entre super-heróis e o poder legítimo: para quê, exatamente, os super-heróis salvam o mundo? Todo ano, uma ou duas vezes assistimos os Vingadores salvarem o mundo, aparentemente para que algum malandro como Trump, Putin ou Bolsonaro venha, amparado por mentiras em grande escala e pela cooptação dos mecanismos da democracia, se fartar do poder e empurrar o planeta mais para junto do penhasco. Após o conflito fraticida, alguns Specials resolvem enfim fazer algo substancial com o seu poder, para além de bancarem arrogantes excepcionalistas ou supertiras e mercenários. Em Power, eles se focam em livrar o mundo de armas nucleares e resolverem parte da questão Palestina, mesmo que ao custo do auto-sacrifício. É o catolicismo do autor se fazendo sentir, nestes primeiros passos para endireitar o mundo, já que a série prossegue e elabora ainda mais a ousadia autoral de Straczynski.

 

Canário Negro: Combustão (Black Canary: Ignite), de Meg Cabot (texto) & Cara McGee (arte). Barueri, SP: Panini Livros, 2020, 154 páginas. Arte de capa de Cara McGee. Brochura. A DC Comics teve uma boa sacada ao criar uma linha de livros de quadrinhos escritos por grandes nomes da literatura infantojuvenil, como este, escrito por Meg Cabot, aquela do Diário da Princesa. Funcionou muito bem com a arte de Cara McGee, numa história sobre a heroína de Gotham City, Canário Negro, parceira eventual do Arqueiro Verde.

Na história, Dinah é uma mina de 13 anos, meio caxias, que tem uma banda com outras duas amigas, uma nerd e a outra radical. Filha de uma florista e de um detetive de polícia, Dinah quer ser policial — para desespero do papai. Ela começa a entender que tem algo de “diferente” quando, toda vez que dá um gritinho, alguma coisa se quebra nas vizinhanças. Na escola, isso gera problemas com a severa diretora. Aos poucos, as pessoas em torno vão deixando claro que a sua esquisitice é na verdade um superpoder. Obviamente, é o grito sônico da Canário Negro. A história, porém, se passa em um momento contemporâneo em que, na mitologia do universo da DC, os outros super-heróis já são adultos e veteranos. A complicação é o surgimento de uma supervilã que vai cercando a garota e sua família.

Este foi o meu primeiro contato com a escrita de Cabot. Achei que ela produziu um texto de escrita inteligente, de grande competência, graça e capacidade de envolvimento. Dinah é uma aborrecente simpática, e a autora deu a ela, ainda que com algumas repetições inevitáveis, dinâmica própria com as amigas, os pais e a escola. A ambientação também ganha vida com facilidade, seja a escola, a casa ou a floricultura. Embora eu não goste muito desse tipo de arte estilizada, achei que a arte de McGee casou perfeitamente, com toques de fofura e tudo.

 

Arte de capa de Jamal Campbell.

Star Wars: A Fuga, de Kieron Gillen (texto) e Andrea Broccardo e Angel Unzueta (arte). Barueri, SP: Panini Comics, 2020, 136 páginas. Tradução de Dandara Palankof. Arte de capa de Jamal Campbell. Brochura. Este livro começa onde Star Wars: A Esperança Morre, parou: os heróis da Aliança Rebelde escaparam da traição da matreira Trios, a Rainha de Shu-Torun, uma traidora da confiança de Leian Organa, sua amiga, e aliada de Darth Vader. Mas estão sendo caçados pelo império, galáxia afora. Sana Starros, que também aparece no (final do) livro anterior, está com eles. Na fuga, separando-se de Sana, Leia, Luke, Han, Chewie e os robôs vão parar em um planeta independente, povoado pelo Clã Markona, uma casta de guerreiros que, no passado, havia conquistado as graças do  império. A história se transforma em um drama de fronteira, com os heróis mostrando o seu valor contra feras que acossam os colonos — feras que fazem o papel dos nativo-americanos, nos velhos westerns — ou contra a desconfiança dos locais, com direito até a um duelo de saque rápido ao meio-dia. Luke encontra na filha do líder da colônia uma interlocutora de sua idade, mais sofisticada do que ele, e que puxa a sua orelha pela impaciência em sair do planeta e retornar à luta. É claro, há um jogo de lealdades envolvido na situação toda, pois logo uma nave do império chegará para definir de que lado cada um está — e quais preços deverão ser pagos… Quem chega na nave imperial é um esquadrão de elite, e o roteirista Gillen reserva a eles um final surpresa.

A história final, com arte de Angel Unzueta e uma colorização mais sutil, forma um epílogo interessante e fornece um gancho para a próxima aventura. Apesar das às vezes cansativas referências ao western, é bacana ver o grupo de amigos envolvidos com uma situação diferente e sem o fracionamento da ação em várias linhas narrativas, tão comum a Star Wars. Um detalhe particularmente interessante do Clã Markota é a tez escura dos seus membros, fazendo-os lembrar latinos ou afro-descendentes.

—Roberto Causo

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Leituras de Julho de 2019

Ficção científica brasileira e traduzida foram a tônica em um mês de leituras não muito numerosas. Mas o horror e a não ficção também tiveram o seu espaço, assim como as histórias em quadrinhos de fantasia e de Star Wars, com destaque para o álbum francês Aurora.

 

Arte de capa de Jim Burns.

Armor, de John Steakley. Nova York: DAW Books, 1984, 426 páginas. Arte de capa de Jim Burns. Paperback. Tropas Estelares (Starship Troopers; 1959), de Robert A. Heinlein, é um marco da ficção científica militar que influenciou outros romances de peso que vieram dialogar com ele. Disponíveis no Brasil estão, por exemplo: A Guerra Eterna (The Forever War; 1974), de Joe Haldeman, e O Jogo do Exterminador (Ender’s Game; 1985), de Orson Scott Card. Armor, do texano Steakley, é outro exemplo, inédito aqui. Seu autor parece ter rejeitado o lado filosófico e político de Tropas Estelares, buscando os seus opostos: o lado visceral, naturalizado e aleatório do combate.

A narrativa acompanha o soldado Felix, que, misteriosamente e sem explicações, sobrevive vez após vez aos combates contra alienígenas insetoides, em um planeta de geografia e atmosfera hostis. Felix tem um comportamento quase psicótico, nutrindo um estado mental que chama de “o motor” — mecanismo que o isola emocionalmente dos companheiros em torno, das mortes e mutilações, e o faz reagir prontamente às exigências do combate. O comportamento bate com crônicas de guerra em que soldados sobreviventes de ações muito intensas reportam terem se comportado com grande eficiência ao sentirem que não havia saída e que já estavam praticamente mortos. Aos poucos, porém, a sombra da “culpa do sobrevivente” vai se instalando dentro de Felix.

A certa altura, Felix sai de cena e entra uma narrativa em primeira pessoa que segue as ações de Jack Crow, famoso pirata espacial e assassino por conveniência. Ele foge de uma prisão de trabalhos forçados, mata o tripulante de uma nave pirata e o substitui, ganha as graças do cruel capitão — que o seleciona para a tarefa de conseguir combustível em um planeta privado, onde está instalada uma base científica. Ele se mete entre os cientistas e ganha a confiança do genial cientista-chefe. Para isso, leva com ele a armadura (daí o título) negra de combate propulsado (conceito apresentado no romance de Heinlein) que era usada como enfeite pelo capitão da nave pirata. Quando o cientista imagina um método para reaver os registros da armadura, ele e Crow descobrem que ela pertencera a Felix, e revivem as suas experiências de combate emocionalmente excruciantes. Com isso, o leitor também descobre que o soldado fizera parte da elite da guarda palaciana de uma rica monarquia, e que havia se alistado no impulso suicida de livrar-se do tormento de um amor proibido: um toque de space opera exótica — e de Beau Geste (1924), o famoso romance de ficção militar de P. C. Wren sobre a Legião Estrangeira, que trata dos horrores do combate de maneira semelhante: a guerra contra um inimigo indistinto, e uma escalada de mortes até o afunilamento final levando ao drama dos sobreviventes.

Quando os piratas enfim descem para realizar o seu ataque e, mais do que obterem combustível, conquistarem o planeta, Crow já havia conhecido o criminoso chefe local, o bêbado “dono” do planeta, e a mulher que se tornaria a sua amante. Quando ele escolhe apoiar os habitantes locais, há algo do faroeste Shane (1949), de Jack Schaefer. Outros momentos também são situações de western adaptadas para o gênero, algo que às vezes a FC americana exagera. Um exemplo está em Santiago: A Myth of the Far Future (1986), de Mike Resnick, e quando Felix ressurte no final do romance de Steakley com proporções mitológicas para salvar o dia, fica claro que o autor também forçou a mão em tais referências. Outro ponto que me incomodou especialmente na linha narrativa de Crow foram os seus encontros com mulheres dispostas a ter sexo com ele depois de espancadas. Se Tropas Estelares é um romance juvenil e idealizado, Armor quer ser adulto, perverso e cínico, mas perde o equilíbrio e às vezes soa forçado. Apesar disso, a intensidade da narrativa e a disposição do autor em firmar seus efeitos não importando o quê, tornam a leitura memorável. A bela arte de capa do inglês Jim Burns investe na textura e no protagonismo da armadura, alcançando com poucos elementos composicionais, a sugestão mítica.

 

Fractais Tropicais: O Melhor da Ficção Científica Brasileira, de Nelson de Oliveira, ed. São Paulo: Editora SESI-SP, 2018, 496 páginas. Brochura. Ganhadora de três prêmios (até o momento em que escrevo estas anotações), Fractais Tropicais é uma realização de Nelson de Oliveira no nível de suas antologias da Geração 90. É a mais importante antologia retrospectiva da ficção científica brasileira. Fez mais pela ideia, muitas vezes rejeitada por fãs e pesquisadores, da divisão dos períodos da nossa FC em “ondas”, do que anos de discussões e polêmicas. Nelson dá a sua inclinação pessoal na organização e estruturação do livro de várias maneiras, a começar pela contagem regressiva em termos das ondas: a primeira seção do livro apresenta autores da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira (2004 ao presente), e a Primeira é a que encerra o livro. Só por aí, a antologia garante fechar em grande estilo. Ficaram de fora outros períodos da nossa história: o Período Pioneiro (1857 a 1957) e o Ciclo de Utopias e Distopias (1972 a 1982). A seleção priorizou histórias com efeitos surrealistas, experimentais e irônicos, e de estilos pouco convencionais, dentro das preferências estéticas do organizador. No conto de abertura, “Além do Invisível”, de Cristina Lasaitis, os protagonistas transitam pela paisagem abstrata da realidade virtual, enquanto “O Templo do Amor”, de Ana Cristina Rodrigues, um assassino contratado avança pelo cenário indefinido do lugar do título, para matar a sacerdotisa. “Cão 1 Está Desaparecido”, de Lady Sybylla, é uma movimentada FC militar com imagens que lembram videogames e animes, e que partilha com Rodrigues o mergulho na ação.

A história seguinte, “Menina Bonita Bordada de Entropia”, de Cirilo Lemos, muda o tom e leva o leitor ao terreno da inquietação, da violência explosiva e do bizarro, talvez dentro do foco do New Weird. Já “Metanfetaedro”, de Alliah, trata de um experimento de arte e geometria que leva o leitor a uma paisagem surrealista. Me fez lembrar a engenhosidade conceitual de Ted Chiang. “Da Astúcia dos Amigos Improváveis”, de Santiago Santos, é uma space opera desenvolvida em segmentos curtos, em narrativa ao mesmo tempo exótica e introspectiva. Assim como o texto de Santos, “O Apanhador do Tempo”, de Márcia Olivieri, é um longo depoimento — aqui, prestado em tribunal por um homem que descobriu um processo de retardo de envelhecimento. “Aníbal”, de Andréa del Fuego, é narrado por um alienígena que recebe um humano para desenvolver no interior do seu corpo. No conto, muitas ideias de FC como consumo de informações e nanotecnologia são encadeadas pelo seu poder sugestivo, em uma prosa quase poética, levemente irônica. “A Última Árvore”, de Luiz Bras, dá título a um livro de contos do autor, e se desenvolve como linhas de diálogo, apresenta crime e favelas com muita ironia e índices claros de tupinipunk (cyberpunk tupiniquim). Nisso, lembra o admirável romance do autor, Distrito Federal (2014), um dos marcos da Terceira Onda. Segue-se “Quinze Minutos”, de Ademir Assunção, num texto fragmentado, enigmático e com parágrafos de prosa poética. Outro conto com uma aura surrealista é “Cibermetarrealidade”, de Tibor Moricz, originalmente publicado na minha antologia Contos Imediatos (Terracota Editorial, 2009), e que mergulha, com um estilo inventivo, no ponto de vista da máquina e de uma hipertrofia da sua presença em uma monstruosa megalópole. “Los Cibermonos de Locombia”, de Ronaldo Bressane, reproduz um sarcástico depoimento em espanhol (e em primeira pessoa) sobre cibermacacos criados para a indústria pornô. É o último texto da seção dedicada à Terceira Onda.

Braulio Tavares, um dos melhores autores da Segunda Onda (1982 a 2015), abre a nova seção com a noveleta “O Molusco e o Transatlântico”, que começa com um pique de thriller de FC e se torna mais uma história de um prisioneiro narrando por experiências estranhas. “Paradoxo de Narciso”, de Ivanir Calado, é um conto de viagem no tempo em que o viajante se dedica ao sexo com ele próprio — interessantemente, escrito em terceira pessoa. A noveleta “Visitante”, de Carlos Orsi, retorna à primeira pessoa e racionaliza elementos espirituais em termos tecnocientíficos. Outra história longa, “Ostraniene”, de Lucio Manfredi, em primeira pessoa, traz ação tensa numa versão do ciberespaço. “Galimatar”, de Fábio Fernandes, é uma noveleta que abre com uma espécie de ensaio sobre uma linguagem bioquímica na forma de alimentos, antes de seguir para a ação. Ataíde Tartari contribui com “A Máquina do Saudosismo”, conto em terceira pessoa incluído no seu livro 17 Histórias, sobre um homem que viaja por meios criogênicos ao mundo do século 23. Logo depois, Finisia Fideli contribui com dois contos curtos, o poético “Estrela Marinha no Céu” e o fluído e surreal “As Múltiplas Existências de Áries”. “A Coleira do Amor”, de Gerson Lodi-Ribeiro, é uma narrativa longa, em primeira pessoa, sobre um homem implantado com um “chip de amor eterno” que o leva a confundir a cunhada com sua esposa morta, com consequências trágicas. Jorge Luiz Calife, o Pai da FC Hard Brasileira, está no livro com “As Sereias do Espaço”, space opera que integra o seu famoso Universo da Tríade. A space opera também comparece com o meu “Tempestade Solar”, parte da série Shiroma, Matadora Ciborgue. Ivan Carlos Regina está na antologia com dois textos curtos marcados por gráficos e tabelas: “Acúmulo de Skinnot em Megamerc”, uma crítica ao consumismo, e “Quando Murgau A.M.A. Murgau”, alegórica defesa do amor livre. De Octávio Aragão, “O Dia em que Vesúvia Descobriu o Amor” narra em terceira pessoa o encontro amoroso de duas cidades imaginárias — uma heterotopia (termo do crítico Brian McHale) exuberante em estilo e com imagens e neologismos que homenageiam o colega Braulio Tavares. A torrente verbal tupinipunk em parágrafo único de Fausto Fawcett, “Caro Senhor Armageddon”, fecha a seção.

Fractais Tropicais é um ambicioso monumento à FC brasileira, contendo vários livros em um. O último, dedicado à Primeira Onda (1957 a 1972), abre com “O Grande Mistério”, de André Carneiro, parte da sua enigmática série Anarquia Sexual (com os romances Piscina Livre e Amorquia) mas de uma fase tardia (reunida no livro A Máquina de Hyerónimus e Outras Histórias, de 1997) que merece ser lembrada. A metaficcional noveleta “A Ficcionista”, de Dinah Silveira de Queiroz, é uma seleção importante — uma das primeiras narrativas metaficcionais da FC nacional que sustenta relação com a New Wave britânica (assim como vários contos de Carneiro). “Chamavam-me de Monstro”, de Fausto Cunha, saiu das páginas da sua sempre lembrada coletânea As Noites Marcianas (1960); narrativa de visita de um E.T. à Terra (obviamente, em primeira pessoa). “O Elo Perdido”, do pioneiro Jeronymo Monteiro, é noveleta que acompanha uma criança nascida com morfologia e comportamento recessivos, um mutante que responde por momentos cômicos e trágicos. A seção e a antologia fecham com o introspectivo “Morte no Palco”, de Rubens Teixeira Scavone, conto que deu título à terceira coletânea do autor (1979), um mestre da FC literária, psicológica e humanista.

Não há como enfatizar mais a importância da realização de Nelson de Oliveira com Fractais Tropicais, em como esse volume dá testemunho da diversidade, vigor e expressividade da nossa ficção científica, em sua jornada evolutiva desde a década de 1960. Imagino que a fama da antologia só fará crescer com os anos. Talvez daqui a cinco ou dez, ela reapareça, quem sabe dividida em três volumes com novas apresentações, para sublinhar ainda mais a sua importância. Fica a sugestão.

 

Prime Evil, de Douglas E. Winter, ed. Nova York: Signet Books, 1988, 382 páginas. Paperback. Não sei se os jovens fãs de Stranger Things se deram conta, mas a ficção de horror da década de 1980 foi especial. Basta atentar para os nomes presentes nesta antologia original montada por Douglas E. Winter só com gente graúda: Stephen King, Clive Barker, Peter Straub, Whitley Strieber, David Morrell, Ramsey Campbell, Thomas Tessier, M. John Harrison, Jack Cady, Charles L. Grant, Paul Hazel, Dennis Etchison e Thomas Ligotti. O livro é dividido em seções, com direito a epígrafes específicas, que agrupam histórias com algo em comum. A primeira é “In the Court of the Crimson King”, e é uma noveleta de Stephen King que a abre: “The Night Flyer”, que de algum modo e no ápice surpreendente, parece capturar algo da lustfulness do horror como gênero literário e cinematográfico naquela década. Foi visto aqui na coletânea Pesadelos e Paisagens Noturnas. “Having a Woman at Lunch”, de Hazel, é conto sobre um grupo de funcionários blasé de uma empresa de implementos domésticos envolvidos com uma jovem funcionária recém-contratada, que pode ou não ter sido devorada por eles, no final ambíguo. Em “The Blood Kiss”, Etchison emprega sua experiência como roteirista para criar uma intriga em torno de um roteiro sobre zumbis, prestes a ser roubado por um produtor de série de TV, e o esforço confuso de sua jovem assistente, de impedir essa injustiça. Metaficcional, combina a narrativa com trechos do script — em fusão mal diagramada mas sugestiva. O horror aqui é por associação, com a jovem se metendo em uma situação inesperada, perto do fim.

A seção seguinte se chama “Turn to Earth” e abre com “Coming to Grief”, do autor best-seller Clive Barker, que nos apresenta outra heroína, uma jovem que retorna à sua cidade natal para o funeral da mãe, e projeta suas inquietações psicológicas sobre uma trilha escura em uma pedreira abandonada, onde ela, quando criança, imaginava a presença do Bicho-Papão. Uma das joias do livro, a noveleta tem ótima cadência e imersão psicológico, brincando com a possibilidade de um terror estritamente subjetivo alcançando uma concretude arrepiante no final. Com um tom mais irônico, “Food”, de Tessier, acompanha um homem solitário e metódico que acompanha a sua amizade com uma jovem encantadora a seu modo, mas muito obesa. Ele aos poucos se dá conta de que a ama, e fantasia mudar seus hábitos pelo amor. O final, contudo, reserva a ela uma metamorfose em criatura quase lovecraftiana, sublinhando as tensões entre o seu conteúdo humano, irônico e politicamente incorreto. Certamente, o horror deve ser a última resistência ao politicamente correto, já que o gênero costuma crescer com essa tensão. “The Great God Pan”, de Harrison, um nome associado tanto à New Wave quando ao New Weird, faz o narrador se reencontrar com uma amiga peripatética, aparentemente porque ela é acompanhada de um casal de amantes homúnculos, vívida alucinação que é apenas uma de várias que acompanham um grupo de amigos que convergem para uma figura cínica que teria conduzido um experimento misterioso com eles, no passado.

“Orange is for Anguish, Blue for Insanity” abre a seção “Secrets”. O autor é David Morrell, um astro do dark suspense da época. Narrada em primeira pessoa, essa noveleta explora a história da arte: dois amigos discutem o trabalho de um obscuro pintor holandês do século 19, espécie de versão terrorífica de Van Gogh e cuja obra poderia contaminar os seus admiradores com a loucura que acometera o pintor. Narrativa densa, sólida e muito efetiva. A ela sucede “The Juniper Tree”, de Straub, novela que, à moda de um Harlan Ellison, enfoca a magia do cinema para apresentar o horror do flagelo da pedofilia. A figura do monstro aí é a do abusador. Uma narrativa ao mesmo tempo envolvente e incômoda, realista e assustadora, de boa lembrança no campo da ficção do horror, finalista do Prêmio Bram Stoker. Por si só, vale a leitura da antologia. “Spinning Tales” é a nova seção, iniciada com “Spinning Tales with the Dead”, de Grant: pai e filho se sentam à beira de um lago para contar lorotas e parodiar situações da cultura popular, enquanto uma mulher misteriosa, obviamente morta, faz movimentos na água, pontuando a narrativa. Uma discreta aura absurdista sublinha a sugestão de culpa e luto, pelo crime praticado pelo pai. O cultuado Thomas Ligotti, um autor sofisticado e marcante, comparece com “Alice’s Last Adventure” — a narradora, uma escritora de livros infantis sombrios, que recorda (a memória é uma das tônicas da antologia) seus pais, família, livros e estranhas aparições que a importunam ao longo da vida. O título e alguns pontos do enredo remetem a Alice no País das Maravilhas. Outra história sobre escrita e escritores é “Next Time You’ll Know Me”, de Ramsey Campbell, autor inglês que, assim como Ligotti, tem uma conexão com a aura da escrita de H. P. Lovecraft. Aqui, porém, apresenta texto humorístico sobre um pretensioso jovem aspirante a escritor, um tanto alienado, que vê partes de suas histórias inéditas aparecendo nas obras de outros autores. Ele sempre exige satisfações, em um crescendo que o coloca numa bela encrenca. “By Reason of Darkness” é a seção final, iniciada com o perturbador “The Pool”, do polêmico ficcionista e ufólogo “contactado” Whitley Strieber. A história mais curta da antologia, narra a angústia de um pai cujo filho pequeno assume um comportamento muito mais maduro do que a sua idade — e a disposição inamovível de terminar a própria existência. Fecha o livro a novela “By Reason of Darkness”, de Jack Cady (1932-2004), autor de boa reputação nos EUA, cuja narrativa trilha a linha tênue entre o realismo e o absurdismo, na tentativa de representar o absurdo da guerra do Vietnã. É o mesmo terreno de um Thomas Pynchon ou, mais especificamente, de Tim O’Brien e o seu premiado romance do Vietnã Going after Cacciatto (1978). Não obstante, a narrativa patina bastante e parece desconjuntada e sem foco. É pena que esta robusta antologia termine assim, mas sua leitura conserva muitos momentos especiais.

 

Arte de capa de Julio Zartos.

Nightflyers (Nightflyers), de George R. R. Martin. Rio de Janeiro: Suma, 2019 [1981, 2018], 140 páginas. Tradução de Alexandre Martins. Arte de capa de Julio Zartos. Ilustrações internas de David Palumbo. Capa dura. George Martin foi parar no colo da Suma, que, além de relançar os livros das Crônicas de Gelo e Fogo, publicou esta novela de ficção científica, ganhadora do Prêmio Locus 1981 de Melhor Novela, e transformada em filme em 1987. Ao ler, notei que a história não me era estranha, e me pergunto se não vi o filme em VHS ou algo assim. Mas pode ser a semelhança com Alien: O Oitavo Passageiro, que é de 1979 e pode ter inspirado Martin a escrever esta novela de suspense sobre um bando de cientistas sendo mortos um a um dentro de uma nave interestelar. Martin foi para Hollywood circa 1985 (ainda me lembro com afeto da série A Bela e a Fera, de 1989), mas a leitura de Nightflyers sugere que ele cortejava a Fábrica de Sonhos antes disso. Mais recentemente, a novela virou minissérie no SyFy.

O objetivo da expedição é localizar uma espécie alienígena mitológica, que existe apenas em naves espaciais subluz transitando cegamente no espaço interestelar. A espaçonave que os persegue tem apenas um tripulante, o capitão, que telecomanda tudo de algum lugar onde permanece incógnito. A heroína, presente na capa, é uma mulher negra, trans-humana e hiper-sexualizada, mas inteligente e capaz. Entre os cientistas há dois telepatas, e a telecinesia também possui uma participação importante. Não foi difícil prever quem é o vilão — e nisso Alien também dá uma pista ao leitor. Apesar da previsibilidade e dos personagens antipáticos e inconsistentes como cientistas, o suspense me fisgou e li a novela com prazer. Esta edição da Suma vai no rastro de uma edição de 2018 da Bantam Books, com ilustrações internas de David Palumbo, coloridas, realistas mas com uma mancha muito artística. A arte de capa do brasileiro Julio Zartos puxa um pouco para o juvenil, mas está dentro da história e apresenta um traje espacial de look mais moderno.

 

The Revenge of Gaia: Why the Earth Is Fighting Back – And How We Still Can Save Humanity, de James Lovelock. Londres: Penguin Books, 2007 [2006], 222 páginas. Prefácio de Sir Crispin Tickell. Fotos e gráficos. Paperback. O aquecimento global e o consequente agravamento do clima é uma realidade cientificamente irrefutável, que está aí há algum tempo, sendo denunciada por cientistas e ficcionistas (como Bruce Sterling, com Tempo Fechado, de 1994, publicado aqui pela Devir Brasil). Este livro de não ficção, com uma capa que lembra cartaz de filme de catástrofe, fez a denúncia em 2006, quando foi best-seller no Reino Unido. Seu autor é conhecido pelo conceito de Gaia (batizado assim pelo romancista inglês William Golding, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura e autor do clássico da FC, O Senhor das Moscas), metáfora de uma “Terra viva”, usada para tratar do planeta como um sistema auto-sustentado, do qual a vida faz parte e dá caráter a fenômenos antes considerados independentes dela, como a atmosfera e a geografia.

O conceito é antigo (1979), e cruzei com ele ainda criança pelos jornais e revistas da época. Este livro bem posterior fornece uma infinidade de insights e dados sobre Gaia e o aquecimento global e suas consequências desastrosas. O capítulo “What Is Gaia?” descreve o conceito e como Lovelock chegou a ele, sua relação com teoria relativamente recente da emergência (de “emergir”) ou complexidade (e de como o entrelaçamento quântico pode fundamentá-la), assim como as reações do mundo científico a Gaia, além da importância da temperatura e da química necessária à vida, no sistema autorregulatório da Terra como sistema auto-sustentado. “The Life History of Gaia” fornece mais substância à teoria, a partir da evolução da vida e da geologia do planeta. A evidência mais recente estaria no ciclo de eras do gelo, que leva o autor a supor que a própria biodiversidade seria uma resposta da Terra aos desafios representados por essa ciclo. “Forescasts for the Twenty-First Century” argumenta contra a posição infame de Michael Crichton e outros questionadores dos modelos da mudança climática, e parece ter previsto o agravamento acelerado que temos visto nos últimos anos, no que já vem sendo chamado de crise climática. Já “Sources of Energy” faz uma polêmica defesa da energia nuclear para evitar as emissões a partir do carvão, petróleo e destruição de vegetação com as hidroelétricas. Para isso, Lovelock minimiza os efeitos danosos de acidentes nucleares como os de Chernobyl. Ele não confia em fontes alternativas nem na mudança de hábitos de consumo como solução. Só o que posso dizer sobre isso é que de lá (2007) para cá, as fontes eólica e solar aumentaram em muito a sua eficiência e difusão — como atesta o caso da Escócia. A partir daí e dos capítulos seguintes — “Chemicals, Food and Raw Materials” e “Technology for a Sustainable Energy” —, Lovelock deriva para uma crítica do ambientalismo, que para ele mais atrapalhava do que ajudava, ao interferir, com sua condenação da energia nuclear e da poluição de alimentos, com medidas de otimização que ajudariam a diminuir a derrubada de florestas e a emissão de gases de efeito estufa. A bronca dele culmina em “A Personal View of Environmentalism”.

Para um socialista verde como eu, os argumentos contra o ambientalismo parecem uma ação contra quem está próximo — ambientalistas e proponentes da alimentação orgânica — e portanto acessível, já que o verdadeiro problema se mostra inacessível ao autor: o negacionismo climático, a atividade industrial e agropecuária sem regulação, a ganância do sistema financeiro internacional. Ele não vê qualquer sinergia entre esses movimentos e a luta contra o aquecimento global, ao mesmo tempo em que não explora a sinergia presente e danosa, dos fatores adversários. É também culpado de dirigir-se em demasia ao público precípuo do seu livro, o leitor inglês, quando o problema exige uma visão bem mais global. Ainda assim, The Revenge of Gaia funciona  bem como advertência contra o terrível caminho suicida que tomamos como espécie.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Ken Kelly.

Star Wars: Boba Fett: Inimigo do Império (Star Wars: Boba Fett: Enemy of the Empire), de John Wagner (texto) e Ian Gibson & John Nadeau (arte), e Cam Kennedy (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2015, 146 páginas. Arte de capa de Ken Kelly. Brochura. Este livro reúne uma minissérie de quatro fascículos e uma história solo do caça-prêmios Boba Fett, sendo que na minissérie ele se confronta com Darth Vader. São dois dos maiores vilões de Star Wars, e Fett, que apareceu primeiro no desenho animado embutido no The Star Wars Holyday Special (1978). Depois vimos, no filme Star Wars Edição Especial (t.c.c. Star Wars Episode IV: A New Hope), que ele estivera em uma cena cortada do filme que inaugurou a franquia, em 1977.

Um relacionamento entre Vader e Fett certamente seria algo sombrio, e o escritor John Wagner o pinta mergulhando em situações que estariam bem situadas na revista Kripta ou na EC Comics. Wagner é um dos criadores do Juiz Dredd na saudosa revista 2000 A. D., e trouxe a Star Wars aquela inclinação para a violência mais explícita e para efeitos de humor negro. Na minissérie em questão, Vader procura Fett pessoalmente para que ele capture um oficial desertor do Império. Ao mesmo tempo, o vilão coloca um quarteto de assassinos na cola do caça-prêmios. A trilha leva a uma espécie de monastério localizado em um planeta remoto, ocupado por uma ordem de monges pessimistas, cruelmente explorados com fins humorísticos por Wagner. Diz respeito a um “artefato” capaz de prever o futuro. Vader quer esse objeto, e nesse local ele se defronta com Fett. Algo que ele descobre é que precisará do caça-prêmios no futuro (de O Império Contra-Ataca, certamente). A arte da dupla Ian Gibson & John Nadeau tenta encostar na de Cam Kennedy (que havia trabalhado com Wagner desenhando o Juiz Dredd), mas é caricata. Kennedy, que eu conhecia pela minissérie A Guerra de Luz e Trevas (1988) e por uma outra HQ de Star Wars, Dark Empire (1992 e 1994), comparece ele mesmo na última história, “Caça a Bar-Kooda”. Nela, Fett persegue, a mando dos Hutts, um criminoso espacial conhecido por devorar os artistas de entretenimento de cuja apresentação ele não gostou. A chave para chegar a Bar-Kooda é um mágico baixote e resignado. Também escrita por Wagner, a história é igualmente sombria e irônica, mas melhor desenhada e com uma virada “canibal”. O capista Ken Kelly deve ser familiar aos leitores de A Espada Selvagem de Conan.

 

Arte de capa de Kerascoët.

Aurora nas Sombras (Jolies ténêbres), de Fabien Vehlmann & Kerascoët (Marie Rommepuy & Sébastien Cosset). Rio de Janeiro: DarkSide, 2019 [2009], 96 páginas. Tradução de Maria Clara Carneiro. Arte de capa de Kerascoët. Álbum capa dura. Uma menina morre na floresta, a caminho da escola ou de um passeio solitário. Nesse instante, criaturas do seu mundo imaginário deixam o cadáver, para viverem uma existência liliputiana e esquálida nas vizinhanças do corpo em decomposição. São seres simplificados como bonecas e crianças, meninos e meninas, princesas e bailarinas de ilustração de livros infantis. Assim como os contos de fadas na origem, a fome e o choque das ilusões infantis com a essência bruta e implacável do mundo natural assombram as suas andanças e festejos pueris. Aurora, a protagonista, é a mocinha loira e de vestido de bolinhas que aparece na capa. Lembra tanto Alice quando Poliana, na sua solidariedade e positividade inicial. Esse espírito não sobrevive à dureza da vida no bosque e às mesquinharias que aparecem cada vez mais no comportamento dos seres imaginários. O que emerge é a crueldade, o egoísmo e o lado autocentrado da criança, que muitas vezes as brincadeiras e a fantasia infantis mascaram. Assustada e magoada com tudo, Aurora se refugia na cabana (como o povo pequeno das lendas sobre hobgoblins e lucharacháin) de um homem solitário, e na qual a presença de uma boneca quebrada parece sugerir que ele pode ter algo a ver com a morte da menina. A nêmesis de Aurora é a arrogante princesa Zélia, que, a certa altura, afirma que o problema de Aurora é que “ela nunca foi muito maligna… todo o problema está aí”. Mas Aurora já completou o seu processo de brutalização e resolve a rivalidade de um modo que faz o leitor recordar o fantasma das atrocidades nazistas na Europa. Só isso já bastaria como um final aterrorizante, mas a conclusão do livro escrito pelo francês Fabien Vehlmann e desenhado pelo casal Marie Rommepuy & Sébastien Cosset (que assinam “Kerascoët”) guarda para Aurora um traço de inocência e idealização que, no contexto, é ainda mais assustador.

O livro andou aqui em casa trazido por meu filho, Roberto Fideli, que o tomou emprestado de sua amiga Isabella Lubrano. (Mais tarde, adquirimos um exemplar.) Agradeço aos dois pela chance de ler o livro lançado pela DarkSide este ano, com um acabamento luxuoso. Meu filho me entregou o livro com o alerta de que era de causar pesadelos. E de fato, escrevo estas notas depois de despertar de um desses pesadelos. Fique avisado.

—Roberto Causo

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Leituras de Janeiro de 2018

O ano começa como o ano anterior havia terminado com um livro de Ana Cristina Rodrigues, e começo este com outro livro da mesma autora. A fantasia foi bem representada nas minhas leituras de janeiro, que também incluíram, porém, FC cyberpunk e feminista.

 

Arte de capa de Frede Tizzot.

Fábulas Ferais: Histórias dos Animais de Shangri-lá, Conforme Relatadas no Atlas Ageográfico dos Lugares Imaginários, de Ana Cristina Rodrigues. Curitiba: Arte & Letra Editora, 2017, 86 páginas. Capa de Frede Tizzot. Capa dura artesanal. O último livro que li em dezembro do ano passado foi Minicontos de Fadas (Aquário, 2017), de Ana Cristina Rodrigues, e o mês de dezembro foi substancialmente dedicado à leitura de livros da Arte & Letra Editora, de Curitiba. Então eu começo 2018 lendo outro livro de Ana Cristina, e um lançado pela Arte & Letra. Trata-se de um livro particularmente bem cuidado nos seus aspectos gráficos, com uma maravilhosa capa dura artesanal de Dani Shuster & Patricia Jaremtchuk.

O título já nos diz que se trata de uma montagem de fábulas de animais, mas o reino de Shangri-lá, por agrupar bichos de todos os cantos e de espécies de continentes diversos, tem  uma qualidade própria de Nárnia, a imortal criação de C. S. Lewis. Inclusive, apresenta animais fabulosos como quimeras e minotauros. O livro é o primeiro título de um universo maior, o do “Atlas Ageográfico de Lugares Imaginados”, que já tem página no Facebook. A estrutura de Fábulas Ferais é episódica (valendo aí um índice, algo que o livro deixou de fora) e envolve as encrencas políticas e guerreiras dos bichos na cidade fortificada, de como a quimera Gilgamesh chegou ao poder e como foram as primeiras lutas contra os seres humanos. Ao final de cada episódio tem-se excertos de verbetes do atlas em questão (existe uma disparidade, atribuída não sei ao que, no título do atlas, entre o que aparece no livro e o que vemos no Facebook). A sugestiva capa de Frede Tizzot, feita sobre a arte “The Haunt of the Troll” (1910), de Reginald L. Knowles (1879-1951), tem movimentos sutis e foge do óbvio. Tizzot também assina o elegante projeto gráfico, que valoriza muito o livro.

 

Arte de capa de Steve Gilberts.

The Long Look, de Richard Parks. Detroit: Five Stars, 1.ª edição, setembro de 2008, 298 páginas. Capa de Steve Gilberts. Hardcover. Há alguns anos, contei a Christopher Kastensmidt que gostava muito das histórias de fantasia do escritor americano Richard Parks, e encontramos nisso algo em comum. Eu até havia tentado, sem sucesso, selecionar uma história de Parks para aparecer na série Asas do Vento, a coleção de livros de bolso da Devir Brasil. Christopher me presenteou, então, com dois livros de Parks. Este romance de alta fantasia, The Long Look, e a coletânea de histórias The Ogre’s Wife (2002).

O romance é o primeiro de uma trilogia apresentando Tymon the Black, um mago adepto da ilusão, do uso de golens e de uma vidência precognitiva conhecida como “long look“. Conhecer o futuro faz com que ele se mexa para minimizar a dor e a miséria da guerra, e corrigir injustiças (quando possível). É acompanhado pelo anão e aspirante a cronista Seb — um tipo inteligente e que, pelas indicações respingadas no texto, é tão bom de briga quanto Bruce Lee. A eles se agrega, lá pelo meio do livro, um aprendiz de feiticeiro que a dupla salva de um matador de aluguel. Outros personagens secundários também aparecem e têm um bom tratamento — especialmente as mulheres: a Princesa Ashesa em particular. As mulheres são retratadas como firmes em suas posições e o feminismo que projetam não soa estridente, parecendo pessoal e natural a elas. Ao contrário de muita fantasia por aí, os personagens de Parks, heróis ou vilões, têm motivações compreensíveis e ancoradas nas circunstâncias sociais e políticas que, embora apenas esboçadas, parecem bastante concretas ao leitor. A ficção de Parks se caracteriza pela inteligência, sutileza, simpatia pelos personagens e eficiência enganadora em todos os fundamentos da composição literária. De fato, o romance tem uma aura tanto de alta fantasia tolkieniana quanto de contos de fadas, o que em si já uma realização. Mas há traços subversivos costurados em cada elemento — a começar pelo herói, Tymon, que, para ser efetivo dentro da política palaciana do seu mundo, precisa se apresentar como vilão.

 

Arte de capa de John Everett Millais.

Pré-Rafaelismo (Pre-Raphaelites), de Robert de la Sizeranne. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Folha O Mundo da Arte volume 27, 68 páginas. Capa de John Everett Millais. Tradução de Gil Reyes. Capa dura. Existiu uma arte de fantasia, antes da fantasia como gênero literário existir — ou enquanto os elementos que viriam a dar forma à fantasia ainda eram peneirados nos agitos do século 19. Essa arte, especialmente na Inglaterra, foi a pintura Pré-Rafaelita, surgida a partir de 1846 e galvanizada em torno da Irmandade Pré-Rafaelita, um grupo de jovens artistas descontentes com o academicismo e o Neo-Classismo da época. Pregavam a atenção ao detalhe e à natureza, a recuperação de temas da Idade Média e do Renascimento (anteriores a Rafael), da cultura clássica e do folclore, e a pintura in loco — uma prática que chegou a render imagens de precisão fotográfica. É fácil reconhecer sua influência na ilustração realista de fantasia feita por Kinuko Y. Craft, Janny Wurts, Stephen Youll, Donato Giancolla e dúzias de outros artistas.

Uma disposição interessante dos pré-rafaelitas — especialmente no seu agitador, Ford Madox Brown (1821-1893) — estava no interesse de popularizar a arte, em um país eminentemente elitista. É adequado, portanto, que tenham tido impacto na ilustração de um gênero popular como a fantasia. O movimento Arts & Crafts, do qual alguns pré-rafaelitas foram fundadores (como William Morris) ou membros, também deve se conectar com essa postura. (O Arts & Crafts também tem suas digitais na arte de fantasia, como no trabalho muito romântico de Thomas Canty.) O autor, de la Sizeranne, lista outros três nomes além de Brown, como importantes para a primeira hora do movimento: Dante Gabriel Rossetti, William Holman Hunt e John Everett Milais. Mas ele também aponta o trabalho do crítico John Ruskin, como essencial para o estabelecimento da nova escola. Os livros dessa série tem uma seção que discorre sobre os principais artistas de cada escola ou movimento, e aqui os selecionados são Hunt, Millais, Rossetti, Brown, Edward Burne-Jones, e William Morris. Certos nomes da segunda hora do movimento acabaram ficando de fora, embora tenham pintado algumas das obras mais conhecidas e influentes do pré-rafaelismo: John William Waterhouse e Edmund Blair Leighton (que aparecem em outras partes do volume). De qualquer modo, este é um livro acessível e bem interessante para o fã de fantasia e de sua ilustração editorial. Para sublinhar ainda mais a conexão do seu assunto com a arte de fantasia, veja este ótimo artigo no blog de Terri Windling (em inglês), que enfatiza a vinculação da escola com o Romantismo.

Lady of Shallot, baseado no poema arturiano de Alfred, Lord Tennyson, é uma adorável pintura de John William Waterhouse, ausente do livro.

 

The Peripheral, de William Gibson. Nova York: Putnam’s, 1.ª edição, 2014, 486 páginas. Hardcover. Aqui no Brasil, a Editora Aleph, de São Paulo, retomou a sua publicação de ficção científica no século 21 com a obra de William Gibson, que se tornou um dos seus carros-chefes. Mas este romance de FC de futuro próximo e viagem no tempo (tema novo para Gibson) ainda não apareceu por aqui. Estava comigo há algum tempo e o que me fez tirá-lo da estante foi uma entrevista feita com Gibson, publicada por Elizabeth Hand na edição de ressurgimento da revista OMNI. O que me chamou a atenção foi a hipótese de se tratar da primeira narrativa de viagem no tempo, escrita por Gibson. Não é bem, mas chega perto.

Apenas dois personagens detêm o ponto de vista narrativo, cada um se ocupando de um linha do livro: Flynne Fisher, uma jovem americana do futuro próximo; e Wilf Netherton, um inglês do futuro não tão próximo. Os dois começam a se aproximar depois que Flynne é recrutada por seu irmão, Burton, um veterano de guerra, para substituí-la naquilo que ela acredita ser o beta-teste de um game de realidade virtual. Isso enquanto Burton vai dar um pau num grupo fundamentalista cristão numa cidade vizinha. Ele é preso e demora para voltar. No ínterim, a garota testemunha uma espécie de assassinato usando agentes nanitas, numa Londres estilizada do futuro. Acaba sendo que não era um game, mas o modo que os aristocratas das cleptocracias europeias frequentadas por Wilf encontraram para se divertirem “viajando no tempo”. O rationale científico é de que se a viagem no tempo é impossível, o fluxo de dados do passado para o futuro não o é (uma noção que Gibson tirou do colega cyberpunk Rudy Rucker, um matemático). A consciência de Flynne é levada ao futuro para atuar lá tripulando uma espécie de robô ou androide chamado de periférico (daí o título). Esse futuro é descrito como o resultado das agressões ambientais e sociais que estamos armando agora, após um evento conhecido ironicamente como “Jackpot” (o grande prêmio do caça-niqueis). É mais ou menos o que Bruce Sterling chamou de “heavy weather” no romance Tempo Fechado: condição de vida global, marcada pelas consequências da crise climática. Pode ser que o objetivo dos aristocratas com o truque temporal fosse inicialmente só a recreação exclusivista, mas ao longo do romance vai surgindo a hipótese de intervenções seletivas no passado (o nosso futuro próximo) que tornem o Jackpot menos grave. Para isso, manipulações financeiras e de compra e venda de empresas coloca Flynne e seus associados sentados na grana, mas tendo que se defender do crime organizado e de policiais e federais (chamados lá de “Homers”: de Homeland Security) corruptos. Obedecendo a um certo padrão estabelecido desde Neuromancer, em 1984, The Peripheral firma logo cedo algumas encrencas para os protagonistas e alguns mistérios, colocando-os em movimento lento até revelações que assustam pelo seu retrato tanto de uma aristocracia que parece monstruosa, quanto de desenvolvimentos tecnológicos que nos fazem encolher em nossa condição humana. No caminho, toma-se contato com uma plêiade de personagens estranhos, excêntricos, bizarros mas quase sempre camaradas. A construção do futuro (ou futu-ros, aqui) é, como de hábito, um ponto forte de Gibson. Tanto o degradado futuro próximo de Flynne, que vive em uma América rural meio desértica e sem perspectiva, quanto o futuro pós-humano de Wilf. Mas as descrições muitas vezes brilhantes são alternadas com uma exposição por meio de diálogos rápidos que acabam recorrendo ao cacoete de um personagem sempre dizendo algo do tipo, “Hã, o quê?”, para se tornarem mais claros. A prosa de Gibson está mais minimalista neste romance, e algo da densidade e das suas marcas de estilo foi perdido com isso. Existe um papo de que The Peripheral vai virar uma série de TV, com o envolvimento do diretor Christopher Nolan.

 

Arte de capa de Qiu Ying.

Arte Chinesa (Chinese Art), de Stephen W. Bushell & Pierre Emmanuel Klingbeil. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção O Mundo da Arte vol. 30, 2017, 68 páginas. Arte de capa de Qiu Ying. Tradução de Gil Reyes. Capa dura. O primeiro romance de Shiroma, Matadora Ciborgue tem como título provisório “Cerco em Ulaambaatar”, e nele a heroína se envolve com uma organização criminosa interestelar semelhante às tríades chinesas: a T’ien-Ti-Hwey da Era Galáctica. Para explorar alguma coisa da cultura chinesa no romance, comecei a minha pesquisa com este livro. A primeira coisa que se pode dizer sobre ele é que não se fixa em um movimento, estilo ou escola, como a maioria dos títulos da coleção. Isso provavelmente é inevitável, e o aspecto panorâmico se destaca.

A introdução abre com a interessante afirmativa de que a China não é um país tão fechado quanto se imagina. Não obstante, o livro parece ser composto tanto do material selecionado para o passeio panorâmico, quanto de ausências, já que é uma adaptação, por Klingbeil, do trabalho de Bushell — que morreu em 1908. Mesmo assim, o livro, belamente ilustrado com fotografias de primeira categoria, fornece uma visão geral das direções que a arte chinesa tomou desde a antiguidade, com seções sobre arquitetura, entalhes e artes de lapidação, materiais manufaturados e arte pictórica. A característica da “geomancia” (ou feng-shui) na arquitetura é das mais interessantes. Por outro lado, o único artista chinês nomeado contando com reprodução de obra de sua autoria na seção de arte pictórica é Qiu Ying, que aparece na capa. A atualização mais óbvia é a inclusão dos Guerreiros de Xian, do Exército de Terracota descoberto em 1974, bem depois da morte de Bushell.

 

A Destruição do Mundo, de Vero de Lima. São Paulo: Editora Cacique, s.d. [1955?], 182 páginas. Brochura. Mais uma leitura de ficção científica brasileira do Período Pioneiro (1857-1957), visando a versão “revista e ampliada” de Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil. Trata-se de um romance curto ambientado nos Estados Unidos em futuro próximo, escrito originalmente em 1936. Na nota inicial, Vero de Lima conta que o apresentou inicialmente a Monteiro Lobato. (O próprio Lobato havia ambientado um romance nos EUA, o infame O Presidente Negro ou O Choque das Raças, de 1925.) A primeira parte do romance apareceu como uma novela, no jornal A Época, sob o pseudônimo de “J. Allan Patrick”.

O protagonista é o jovem herdeiro milionário Richard Write, que, depois de voltar da guerra, abandona a vida loca e resolve empregar seu capital e interesse científico para o avanço da humanidade. O arrazoado científico é confuso: a princípio, fala-se de que o segredo da “desintegração nuclear” trará uma revolução à humanidade. Mais tarde, fala-se de um “raio condutor” e de uma placa com propriedades energéticas capaz de ser usada tanto como arma quanto como promotora da fertilidade do solo e das plantas. Depois que suas intenções vazam para a imprensa, ele é convidado para falar em um evento da elite novaiorquina, na sede da Liga Anti-Guerreira, organização que remete aos movimentos pacifistas do entre-guerras), mas seus discurso evita o comentário científico, para assumir uma retórica pacifista e moralizante, e se dedicar à defesa do direito natural, uma escola jurídica que, no Brasil, alimentou o pensamento do Movimento Integralista. Ao final do discurso, White diz:

“Esperavam ouvir de minha boca alvíssaras novas, anunciando-lhes maravilhosas descobertas científicas para salvar o mundo. Mas a salvação do mundo não será obra da ciência. A ciência, quando muito, descobre e utiliza o conteúdo da natureza, mas a salvação da humanidade pertence ao domínio do espírito. Convençamo-nos do seguinte: As elites são como as plantas pujantes e úteis; se porém o solo em que medrarem fôr inculto e sáfaro, seus frutos serão, por isso mesmo, raquíticos e até nulos. Cultivemos, portanto, o solo, se desejamos que as elites produzam bons frutos. E, na vida social de uma nação, o povo é o solo. Humanizemos o mundo, dando-lhe o direito humano e mínimo natural, e que garanta uma existência decente a todos […]” —Vero de Lima, A Destruição do Mundo.

É um artifício do herói para sair da mira de Mr. Ember, “a maior força político-industrial da América”, que pretende fazer dinheiro com qualquer inovação high-tech que possa usar na próxima guerra. Mas também expressa a desconfiança da FC brasileira quanto à ciência e a tecnologia, e adesão a um humanismo moralizante e católico. Essa desconfiança foi uma das marcas locais dominantes no gênero até a eclosão da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira (1982 a 2015), e continua vigente. O discurso e o anúncio do novo conflito encerram a primeira parte do livro, que também expressa outra tensão característica da FC brasileira do Período Pioneiro (1857 a 1957), aquela entre a narrativa de aventura e a de observação social ou de costumes, presente desde, por exemplo, A Rainha do Ignoto (1899), de Emília Freitas. Assim, a intriga alterna traições de funcionários, assassinatos, ações de gangsters à mando do industrial vilão, e militares invasores asiáticos (perigo amarelo!), com observações sobre o amigo poeta do herói, sobre seus empregados, namorada e familiares. Obviamente, Vero de Lima tem familiaridade com as convenções da ficção pulp da década de 1930, e com algo da realidade americana de então. Mas não em profundidade, e os desvios e subterfúgios que adota para se esquivar do detalhe específico são evidentes. A certa altura, e de modo interessante, o texto denso do autor parece adotar essa sinuosidade como marca de estilo, aproximando-o do understatement sofisticado característico da ficção americana da época. Mas o fato é que a qualidade da sua imaginação tropeça seguidamente, e em especial no denouemant, no qual White é capturado pelos invasores asiáticos e obrigado a construir seu raio da morte e visor remoto (recurso visto tanto em Monteiro Lobato quanto nos contos de Berilo Neves, nas décadas de 1920 e ’30). O pacifista White, assim como o pacifista Campos, no romance de Jeronymo Monteiro 3 Meses no Século 81 (1947), resolve que o único meio de dar fim à guerra é o extermínio dos povos conflitantes ou da humanidade como um todo. Aí a narrativa se encontra com o título do livro, e o romance com o seu conteúdo católico, com missionários sobreviventes vindo redimir White na ilha solitária, depois que ele realizou o Armagedom.

Vero de Lima — eu me toquei depois de ler o livro — tornou-se em 1956 o editor (ou “redator-chefe”) da versão brasileira da lembrada revista americana de FC Fantastic. Publicou nela, inclusive, pelo menos um conto. No Brasil, a revista durou de 1955 a 1960, sendo a revista nacional de FC que circulou por mais tempo. O autor foi, portanto, um daqueles raros nomes brasileiros que teve uma atuação relativamente dedicada ao campo da FC, antes da inserção da Geração GRD a partir de 1960.

 

The James Tiptree Award Anthology 3, de Karen Joy Fowler, Pat Murphy, Debbie Notkin & Jeffrey D. Smith, eds. San Francisco, CA: Tachyon Publications, 2007, 274 páginas. Trade paperback. O Prêmio James Tiptree é  voltado para o reconhecimento de obras que desafiam os papeis sexuais. E já há um tempinho. Um dos lados mais divertidos da iniciativa é a venda de bolos pelas moças do comitê em convenções de ficção científica, para levantar fundos para o prêmio. Esta antologia dedicada a ele e aos seus vencedores e destaques me foi presenteada pelo Prof. Alfredo Suppia, autor de Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro (Devir Brasil), que a trouxe de um dos congressos de que participou, nos EUA.

O livro combina histórias de ficção científica e fantasia, textos de não-ficção e listas com os resultados do prêmio, ao longo dos anos (ele foi fundado em 1991). As histórias são ganhadoras ou finalistas do prêmio. Mas um dos textos que mais me tocou foi justamente um ensaio: “Shame”, de Pam Noles, sobre a questão da representação na FC e fantasia, escrito antes da questão se tornar determinante, nos últimos anos. Noles, uma afro-americana, recorda com muita graça, como foi finalmente encontrar personagens de cor na série de fantasia Terramar, de Ursula K. Le Guin. A própria Le Guin, falecida agora em 2018, está no livro com a bela novela “Mountain Ways”, sobre uma idílica comunidade poli-amorosa que tem os seus próprios desajustados. “Have not Have”, de Geoff Ryman, é excerto do seu elogiado romance Air (2006), e trata de uma mulher que vive em uma vila no “Karzistão” e que tem como negócio guiar visitas a centros comerciais com outras mulheres, para organizar casamentos. No processo, ela funciona como um pilar da comunidade, cuidando do povo da vila de diversas maneiras. Mas tudo está ameaçado por uma inovação tecnológica que fará com as pessoas possam receber a internet diretamente em suas cabeças. Ryman é o líder do movimento Mundane-SF, e o texto dele aqui é um bom exemplo dessa corrente. Uma das narrativas mais longas da antologia é “Little Faces”, de Vonda N. McIntyre: uma utopia feminina do futuro distante e composta por mulheres aristocráticas e fashionistas vivendo solitárias em naves vivas e se reproduzindo com o concurso de pequenos alienígenas que vivem como parasitas em seus corpos — uma ideia que emana quase que diretamente da noveleta “Bloodchild” (1984), de Octavia E. Butler. A história de McIntyre, que vai na direção oposta à Mundane-SF de Ryman, me alienou na sua maior parte, soando artificial e sem enredo. Butler mereceu um ensaio muito interessante sobre a sua obra, “The Future of Female: Octavia Butler’s Mother Lode”, de Dorothy Allison.

Outras histórias no livro são “The Glass Bottle Trick”, da afro-canadense Nalo Hopkinson; “Wooden Bridge”, da australiana Margo Lanagan; “Dearth”, da americana Aimee Bender; e “Liking What You See: A Documentary”, de Ted Chiang — história que já discuti aqui ao resenhar o livro de Chiang, Story of your Life and Others. Como o prêmio homenageia o pseudônimo de Alice B. Sheldon, “James Tiptree, Jr.”, a antologia traz “Dear Alice Sheldon”, de L. Timmel Duchamp, um texto de não-ficção que explora, numa estrutura epistolar, as características da ficção da autora. E também a pioneira e premiada noveleta pré-cyberpunk “The Girl Who Was Plugged In” (1973), intrigante e violenta narrativa meio beatnik sobre uma jovem fisicamente deformada mas de coração romântico que recebe um extreme makeover pela ciência de uma empresa de publicidade, que a fabrica como figura do jet-set internacional que promova os seus produtos e tendências. A narrativa, muito irônica e às vezes nonsense, ao mesmo tempo que denuncia a fabricação de imagens femininas, descreve a heroína como sem noção e entregue aos seus devaneios, telecomandada por computadores. Cabe assim numa postura feminista que se firma pela crítica do estereótipo e do comportamento feminino frívolo e não-esclarecido, muito presente, inclusive, na ficção pós-modernista americana. Eu me pergunto se essa perspectiva teria algum futuro no Brasil em tempos de demanda por retratos positivos da mulher, e com um público leitor com grandes dificuldades para entender ironia.

—Roberto Causo

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Leituras de Dezembro de 2017

No fim de 2017, muita fantasia brasileira e muito sobre Robert E. Howard, com destaque para os livros da editora curitibana Arte & Letra. Mas com espaço para alguma ficção científica também.

 

A migração deste site para um provedor mais seguro e o tempo exigido pela finalização do primeiro rascunho de “Anjos do Abismo” atrasaram bastante a postagem destas anotações sobre minhas leituras de dezembro de 2017.

 

Mal-Entendido em Moscou (Malentendu à Moscu), de Simone de Beauvoir. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Mulheres na Literatura #4, 2017, 74 páginas. Prefácio de Éliane Lecarme-Tabone. Capa dura. Quando eu era garoto, no terço final do século passado, Simone de Beauvoir foi uma referência dentro do feminismo e do mundo literário elevado. O que li dela naquela época, se a memória não falha, foram ensaios dispersos. Esta novela foi publicada numa coleção de belo acabamento, publicada e distribuída pela Folha de S. Paulo nas bancas de todo o país, com seleção do meu vizinho aqui em Sampa, o crítico Manuel da Costa Pinto. Originalmente, deveria ter entrado em uma coletânea da autora, A Mulher Desiludida (1968), mas ficou de fora, aparecendo na revista Roman 20-50, apenas em 1992. Deve ser bem rara por aqui…

Um casal de intelectuais franceses, Nicole e André entrando na terceira idade e claramente baseados na própria autora e em seu marido, Jean-Paul Sarte, estão em Moscou visitando a filha que André tem, de outro relacionamento. A autor teria se baseado em duas viagens, feitas em 1962 e ’66. Lá, o casal de protagonistas faz turismo e discute a situação política da então União Soviética. O título lembra thrillers de espionagem, mas o tema central é o envelhecimento dos membros do casal e do seu relacionamento. Há um certo cansaço e impaciência da parte dos dois, durante a visita, especialmente de Nicole, que se irrita quando André prolonga a estadia deles no país, sem consultá-la. Imagino que a sugestão de que a novela faz uma fusão das acomodações que o casal é obrigado a fazer, nessa fase de sua vida, com as acomodações que a Revolução Russa precisou fazer no seu próprio momento de envelhecimento ou maturidade — em 1966 ela estaria fazendo quase 50 anos — e 100 anos agora em 2017, o que coloca a republicação deste livro bem dentro das discussões e comemorações do aniversário, chegando inclusive ao Brasil. Não obstante, são as considerações humanas e a perspectiva feminina, que dominam a narrativa precisa, adornada com a mais leve ironia, traçada por de Beauvoir.

 

Arte de capa de Frede Marés.

A Sombra do Abutre (The Shadow of the Vulture), de Robert E. Howard. Curitiba: Arte & Letra Editora, 2012, 88 páginas. Capa de Frede Marés. Tradução de Gabriel Oliva Brum. Introdução de Cesar Alcázar. Capa dura. Em 29 de novembro, dei um pulo à minha alma mater, a Universidade de São Paulo, para visitar a Festa do Livro da USP. Meu objetivo era conferir a bancada da Editora Draco, mas no caminho fiquei agradavelmente surpreendido em me deparar com a da Arte & Letra Editora. Fazia tempo que não tinha contato com o seu catálogo, e fiquei feliz em registrar a variedade e a qualidade do material que eu ainda não conhecia. Adquiri muita coisa, incluindo esta novela de aventura histórica do criador de Conan, Kull e Solomon Kane. A história é famosa por trazer uma personagem que seria o embrião de Sonja Vermelha — personagem de quadrinhos de fantasia heroica criada por Roy Thomas para a Marvel em 1973, como parte do universo de Conan, o Bárbaro. Na introdução, o escritor e editor Cesar Alcázar observa que a personagem — chamada Red Sonya na história — domina o texto, quando aparece, apesar da história ter como protagonista o guerreiro fanfarrão e bebum Gottfried von Kalmbach.

A aventura se passa durante o Cerco de Viena (1529) pelos turcos otomanos. Gottfried participa da defesa da cidade, e a principal complicação vem do fato de ele ser um desafeto do Sultão Suleiman. O herói foi o único a sobreviver a um massacre ordenado pelo conquistador otomano, tornando-se um ponto de honra de Suleiman, que coloca no encalço de Gottfried um matador implacável, o tal Abutre do título (e da ótima capa de Frede Marés). A noveleta tem momentos e pontos de vista narrativos diferenciados, o que areja o texto e lhe dá um abertura mais panorâmica para os eventos. De fato, mesmo possuindo aquela energia celebrada de Howard, a noveleta pode ter como principal virtude o modo como o foco salta habilmente do herói e suas encrencas, para o quadro mais amplo do conflito armado. Além do desenho muito expressivo na capa, a edição se diferencia pela introdução de Alcázar e pela bela, embora frágil, encadernação em capa dura.

 

Arte de capa de Frede Tizzot.

A Fúria do Cão Negro, de Cesar Alcázar. Curitiba: Arte & Letra Editora, 2014, 100 páginas. Capa de Frede Tizzot. Brochura. É perfeitamente natural, imagino, que em seguida eu fosse ler esta novela de fantasia heroica do próprio Alcázar, um autor que admite ter Robert E. Howard entre suas influências na sua série iniciada com “Lágrimas do Anjo da Morte” em Sagas Volume 1: Espada e Magia (Editora Argonautas, 2010), antologia que tive o privilégio de prefaciar. A série é protagonizada pelo mercenário Anrath, vulgo “Cão Negro”, que perambula pelas ilhas irlandesas no século 11. Histórias do Cão Negro já apareceram no exterior e chegaram aos quadrinhos — com o álbum O Coração do Cão Negro (2016), ilustrado por Fred Rubim, e que já tive chance de ler. Já saiu um segundo, A Canção do Cão Negro (2017). Ambos são publicados pela Editora AVEC.

Nesta história, o violento e ágil espadachim está em uma jornada de vingança, depois que um lorde irlandês e um padre malicioso mataram uma feiticeira conhecida de Anrath, em uma cerimônia sincrética que incorpora o suposto hábito celta de realizar sacrifícios humanos enfiando pessoas dentro de um gigante de madeira incendiado. A história abre habilmente com Anrath desembainhando a sua lâmina fatal numa taberna, e depois recupera seus passos e motivações. Ao longo do caminho ele adota como sidekick o jovem ladino Seán, metido a menestrel. Anrath raramente desperta a solidariedade dos seus conterrâneos, porque, criado por vikings, lutou ao lado deles na invasão da Irlanda. A dupla formada nesta aventura acaba lembrando a criação de Howard, Turlogh Dubh O’Brien e Athelstane. Menos brutal, Conn serve de contraponto moral ao herói e um elemento vulnerável ao seu lado, enquanto ele vai exterminando os associados do lorde vilânico. No caminho, a luta contra um monstro aquático. Sem a necessidade de escrever muito em um contexto em que se pagava por palavra (as revistas pulp para as quais Howard escrevia), Alcázar extrai a sua energia narrativa de um texto minimalista, brutal e sombrio que compõe uma atmosfera peculiar, despojada e crua — de algum modo capturada pelo traço rasgado de Rubim nos quadrinhos.

 

Arte de capa de Steve Firchow.

The Fantastic Worlds of Robert E. Howard, James van Hise, ed. Uycca Valley, CA: James van Hise, 2.ª edição, 2001, 192 páginas. Capa de Steve Firchow. Tanta evocação direta e indireta de Howard (1906-1936) me fez desencavar este livro que o editor Douglas Quinta Reis me presenteou há alguns anos, uma publicação talvez amadora da APA (amateur associated press) The Robert E. Howard United Press Association. É uma antologia de ensaios e outros textos, mas também de ilustrações, tudo num formato A4.

Dois dos primeiros artigos, incluindo um de van Hise, tratam da história de Howard, “The Valley of the Worm” (1934) — representada na arte de Firchow na capa do livro. A história é vista como uma das melhores do autor, e fiquei agradavelmente surpreso com o consenso de que a HQ de Richard Corben, “Bloodstar”, que acompanhei com muito interesse na revista Heavy Metal entre 1980 e 1981, teria sido baseada nela. Um destaque do livro é a presença de um longo texto de Patrice Louinet, expert cujos ensaios sobre Howard eu aprendi a apreciar nas antologias da Del Rey comemorando os 100 anos de nascimento do autor — até em termos estilísticos, o que é raro para não ficção. Ele trata da “fase celta” de Howard e seu reflexo nos heróis Conan, Kull e Bran Mak Morn.

O caráter “mais fã” do livro aparece em dois ensaios de Rusty Burke dedicados a chutar as canelas de L. Sprague de Camp (1907-2000), autor que concluiu e retrabalhou histórias de Howard com Conan, a partir da década de 1960. A conclusão é de que de Camp buscava se apropriar das histórias como propriedade intelectual que lhe rendesse royalties, indo, portanto, para além de revisar ou terminar histórias. Noutro texto, Rich McCollum responde às acusações, feitas por de Camp, de que Howard seria um louco recluso; e mais para o fim do livro, o mesmo McCollum defende a superioridade da fantasia heroica hard-boiled de Howard, em relação à alta fantasia de J. R. R. Tolkien, no que é um tipo de comparativismo ainda mais típico de fã. Finalmente, Morgan Holmes examina a vida e a obra de outro autor que terminou e expandiu algumas narrativas de Howard: Lin Carter (1930-1988). Outros artigos são informativos, como a recuperação de Burke faz das menções a Howard na coluna de cartas da revista Weird Tales; Steve Trout examina as revisões feitas nas histórias do personagem Solomon Kane, eliminando elementos de conflito racial, por exemplo; McCollum analisa o conto “The Frost Giant’s Daughter” e van Hise o romance de fantasia científica Almuric (1939). As ilustrações incluem um portfolio de Roy G. Krenkel, artista que influenciou Frank Frazetta e outros, além de ilustrações de Corben, Virgil Finlay, Ned Dameron, Stephen Fabian, William Stout, Gary Gianni e vários outros. Informações particularmente interessantes — em um livro em si mesmo altamente informativo — se referem ao filme sobre a vida de Howard, Um Amor do Tamanho do Mundo (The Whole Wide World, 1996), dirigido por Dan Ireland e baseado nas memórias de Novalyne Price, professora e escritora que conviveu com Howard. Ninguém menos do que Vincent D’Onofrio faz o papel do escritor. No todo, The Fantastic Worlds of Robert E. Howard contém um tesouro de informações sobre o produtivo escritor pulp que impactou a fantasia heroica como poucos.

 

Arte de capa de Michael Whelan.

Beowulf’s Children, de Larry Niven, Jerry Pournelle & Steven Barnes. Nova York: Tor Books, 1.ª edição,  1996 [1995], 494 páginas. Capa de Michael Whelan. Paperback. O escritor Jerry Pournelle (1933-2017) faleceu em 8 de setembro de 2017. No Brasil, ele é conhecido pelo romance Invasão! (Footfall, 1985), escrito com Larry Niven. Na comunidade internacional de FC, ele também tem a fama de ter contribuído indiretamente para o fim da URSS por meio de um grupo de pressão que estaria por trás do projeto Guerra nas Estrelas, da administração de Ronald Reagan. Eu o vi em um painel na MagiCon, a convenção mundial de FC que aconteceu em Orlando, em 1992. Nesse painel, ele deu umas patadas no editor Jim Baen. Seu obituário e os depoimentos sobre ele na Locus de outubro do ano passado falam de um sujeito generoso, ponta firme e dedicado à comunidade. Resolvi conferir este romance planetário dele, escrito com Niven e Steven Barnes.

O livro narra os dilemas de colonizador num planeta dotado de fauna perigosa, marcada especialmente pelos grendels, uma espécie de velocirraptor com anfetaminas. O pessoal da colônia já apanhou deles antes — no romance anterior, The Legacy of Heorot (1987). O resultado é uma colônia presa a uma única ilha do planeta. E uma geração nascida nesse mundo que não apenas tem o seu espírito de aventura e de expansão reprimido, como está sob uma geração traumatizada e, muitas vezes, lesada: a criogenia que trouxe os pioneiros ao planeta vitimou alguns com a formação de gelo no tecido cerebral. Uma das marcas desse livro é a descrição de uma ecologia que de fato nos parece alienígena. Um ciclo solar de 50 anos gera uma hiperatividade da fauna que os colonos ainda não compreendem, e os grendels e outras criaturas agressivas são mais consistentes do que as da Terra reconfigurada em Adiamante (1996), de L. E. Modesitt, Jr., por exemplo. Mais do que isso, o livro faz um bom uso da larga experiência da FC americana em discutir liberdade, repressão e revolução. Pournelle foi um famoso conservador e libertariano, e sua formação acadêmica (ele tinha um PhD em psicologia e outro em ciência política) deve ter contribuído na formulação do enredo e das situações de fundo do romance. Mas o texto não oferece nenhuma discussão doutrinária conservadora, e sim situações problematizadas com inteligência e equilíbrio. Como a única certeza que se poderia ter numa situação como essa dificilmente seria ideológica e sim a de que problemas surgiriam inapelavelmente, o romance me parece ter acertado na marca. O regime político dos colonos da ilha é um tipo de democracia direta, com os town hall meetings que os americanos apreciam, e a geração mais jovem tem certa liberdade de auto-organização e iniciativa. Nem por isso é um a sociedade imune a manipulações, e é um feito do livro tornar a psicologia do manipulador acessível e compreensível. Mesmo que essa manipulação leve a violência e morte. Um ponto de tensão particularmente forte está no conflito conduzir à possível agressão entre pais e filhos. Interessante, portanto, que o atrito político se expresse em termos de conflito de gerações (expressão comum quando eu era garoto, que sumiu do diálogo público). Há ainda o comentário de que a arrogância de autonomia psicológica e política surgiria da juventude e do exercício pleno da sexualidade (é uma sociedade de amor livre), detalhe que de algum modo me parece tipicamente americano.

A capa de Michael Whelan mostra por que ele ganhou tantos prêmios de melhor ilustrador do ano. A luz é ao mesmo tempo dramática e acolhedora (refletindo as angústias e esperanças dos colonos), e reforça os pontos de exotismo na vegetação e no grendel à esquerda. Ao mesmo tempo, a semelhança entre o homem maduro e a jovem ao seu lado traduz com sutileza o tema presente do conflito de gerações. No Brasil, o nosso Vagner Vargas é um dos poucos artistas dotados de sensibilidade semelhante.

 

Arte de Michael Whelan.

 

 

Arte de capa de Paulo Werneck.

O Outro Mundo, de Epaminondas Martins. Rio de Janeiro: Calvino Filho Editor, 1934, 236 páginas. Capa de Paulo Werneck. Brochura. Não passa um mês em que alguém não me aborda no Facebook ou por e-mail, pedindo dicas de como adquirir o meu livro Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950 (Editora UFMG, 2003). Faz um tempinho que está esgotado, e já me chegaram histórias absurdas sobre exemplares usados custando mais de cem reais na Estante Virtual. Em dezembro, tomei coragem e liguei para a Editora da Universidade Federal de Minas Gerais propondo uma edição revista e ampliada, e a vice-diretora Camila Figueiredo mostrou-se interessada. Significa que lerei nos próximos meses muitos livros de FC brasileira que me passaram quando da escrita do livro. Este livro de Epaminondas Martins contém a novela “O Outro Mundo” (que parece ser fusão de vários contos publicados em 1932) e a noveleta “O Sino de Poribechora”. Só conheço outro livro com esse formato, a pioneira space opera de Luiz Armando Braga, O Planeta Perdido (1968). A novela começa com o narrador carioca sendo abduzido por um explorador vindo de Saturno. Depois de uma curta viagem espacial em que eles têm de se desviar de asteroides, chegam ao planeta gigante que não é descrito diferentemente da Terra — como na novela absurdista de Ruth Bueno, Asilo nas Torres (1979). Lá, o humano é descrito originalmente como um animal, e depois como um sábio da sociedade terrestre. Torna-se amante de uma fiada de moças locais, mais liberadas mas não menos iludidas que as brasileiras de então.

A narrativa é claramente farsesca, cômica no sentido de expor diferenças grotescas de costumes e realçar as faltas humanas numa relação de atraso em relação aos ETs. De fato, o positivismo é evidente na perspectiva de Martins, com a sugestão de que os saturnianos já estiveram onde nós estivemos, e de que estaremos onde eles estão, de modo que a evolução parece ser uma trilha fixa e de percursos bem marcados. Os ETs são descritos como dotados de moralidade mais avançada e de poderes mentais e físicos, mas o narrador tende a esquecer os detalhes. Por exemplo, quando o abduzido tem que falar em uma academia de sábios sobre o estado do conhecimento científico na Terra, ele é forçado a enrolar descaradamente, e a telepatia dos alienígenas é esquecida. As suas amantes também não conseguem detectar a sua frivolidade. De Saturno, o abduzido e o explorador alienígena vão a Urano, onde se deparam com um único ser imortal, de 70 milhões de anos de idade e o último da sua espécie. Em tudo, a novela é um travelogue filosófico-satírico, que trai a inspiração da proto FC “Micrômegas” (1752), de Voltaire (1694-1778). “O Sino de Poribechora” (1932) nos apresenta um narrador que, como o da novela, é meio bocó — sua única preocupação é cortejar a jovem Elisa, que pode muito bem ser a primeira cientista espacial da FC brasileira e é de longe inteligente demais para ele. Elisa o arrasta para uma aventura em Netuno. Lá, eles observam os nativos até serem descobertos e perseguidos. Os locais são abatidos pela arma de fogo do herói ou pelas rochas que ele faz rolar sobre eles. Daí o interesse maior do conto ser essa transição entre a comédia romântica e a aventura. A arte de capa do livro é de Paulo Werneck, que se tornaria um importante muralista brasileiro com trabalhos em prédios de Brasília.

 

Luminous, de Greg Egan. Londres: Millennium, 1998, 296 páginas. Paperback. Egan deve ser o escritor número um da ficção científica hard australiana. De impacto internacional, suas histórias, geralmente novelas e noveletas, apareceram na capas de revistas importantes como a americana Asimov’s Science Fiction e a britânica Interzone. Ele também não é estranho aos principais prêmios do gênero, em língua inglesa. Suas histórias têm uma audácia de conceitos científicos e especulativos que lembram Ted Chiang, mas sem a fina ironia do americano e sua propensão à fabulation.

“Mitochondrial Eve” (1995) é divertida, porém: a pesquisa sobre a origem da primeira mulher da humanidade moderna, feita pela análise do ADN mitocondrial, torna-se uma questão política global e base de novos discursos igualitários, motivando respostas da “oposição” que mobiliza suas próprias pesquisas. O herói é convocado pela namorada a investigar um método definitivo que utiliza o entrelaçamento quântico, embora ele despreze a utilização política desse tipo de ciência. “Shaff” (1993) é uma noveleta meio cyberpunk ambientada na América Latina. Também meio cyberpunk, “Luminous” (1995) é uma história complexa, das mais inquietantes e intrigantes do livro, sobre a matemática de um outro universo vazando para o nosso. “Cocoon” (1994) imagina, como efeito colateral de uma pesquisa para a proteção da mulher grávida contra infecções virais, a eliminação de um suposto efeito metabólico que determinaria o pendor da criança para o homossexualismo. A descoberta levaria à “cura gay“, e o policial que investiga supostas sabotagens de grupos pró-LGBT é um homossexual. “Transition Dreams” (1993) trata das ansiedades de um australiano idoso que escaneia sua consciência para que seja implantada em um robô, desenvolve uma terrível ansiedade quanto aos sonhos de transição que ele poderá ter — levando-o a um delírio em que os alicerces da sua realidade podem ser falsos. “Silver Fire” (1995) estende a disposição crítica de Egan das “guerras culturais” para a religião, e é uma das poucas histórias com uma mulher protagonista — e das mais dramáticas do livro, narrada sob o ponto de vista de uma investigadora médica. Na maioria das histórias, porém, as personagens femininas são secas e ásperas, apenas um degrau acima da Dr.ª Susan Calvin de Isaac Asimov. “Reasons to Be Cheerful” (1997) é a história que mais explora a caracterização de personagem. Narrada em primeira pessoa, trata de um jovem incomumente otimista na infância, que descobre ter um tumor no cérebro que afetava o seu humor. Após a operação, o mundo perde a cor para ele, até que um procedimento experimental implanta uma espécie de software de controle do humor em seu cérebro, exigindo que ele encontre os pontos de equilíbrio. “Our Lady of Chernobyl” (1994) é uma espécie de hard boiled do futuro próximo, na qual um investigador europeu é contratado para encontrar uma versão do Falcão Maltês de Dashiell Hammett: uma boneca matryoshka que se supõe vir de Chernoby e ter efeitos místicos curativos.

Egan é claramente um fundamentalista científico, e em “Our Lady of Chernobyl” ele se dedica a atacar o impulso místico ou religioso. Enquanto suas especulações científicas são ricas e interessantes, seu desprezo pela religião parece ser tão grande que ela é caracterizada como elementos tão diminuídos e superficiais, que desequilibram as narrativas. Das dez histórias do livro, nove são ambientadas na Terra e no futuro próximo. Apenas “The Planck Dive” (1998), ganhadora do Prêmio Locus, se passa no futuro distante e no espaço, onde uma estação espacial com sua tripulação de cientistas pós-humanos estuda um buraco negro. Eles recebem a visita de um poeta vindo de outro planeta, disposto a cantar o feito deles. Vem acompanhado de uma jovem filha, uma aspirante a física. Nessa noveleta, Egan, depois de espetar a religião organizada, a Nova Era e o misticismo, ataca o impulso mítico e épico da humanidade — e quiçá a própria literatura. Em sua cartilha, parece restar apenas a curiosidade científica. Mas depois da humilhação do aspirante a bardo cósmico, o que resta de “The Planck Dive” é um texto meio estéril e despersonalizado.

 

Arte de capa de Frede Tizzot.

Três Viajantes, de Thiago Tizzot. Curitiba: Arte & Letra Editora, 2014, 140 páginas. Capa de Frede Tizzot. Mapa de Larissa Costa. Brochura. Completando o conjunto de livros da Arte & Letra que adquiri em minha visita à feira de livros na USP, está esta novela escrita pelo próprio publisher da editora curitibana, Thiago Tizzot. A história faz parte de um universo de alta fantasia iniciado em 2005, logo no início da Terceira Onda, com O Segredo da Guerra, publicado sob o pseudônimo de Estus Daheri, seguido de A Ira dos Dragões. A série é ambientada em uma terra chamada Breasal — variante de Breasil, um dos muitos nomes de Hy Brasil, a ilha mágica do folclore irlandês e de inúmeras citações clássicas, uma das razões do nosso país ter o nome que tem.

Três Viajantes começa com seu protagonista, o elfo Estus, fugindo da prisão juntamente com dois outros prisioneiros. É o começo de uma irmandade que partirá na demanda por um livro mágico. A busca exigirá deles que atravessem um terrível deserto, guiados por uma mulher chamada Aetla, uma hábil arqueira. Eles enfrentem inimigos armados e criaturas monstruosas para alcançar uma cidade perdida na areia. Tizzot manipula, portanto, os elementos clássicos da alta fantasia à moda de Tolkien e seus seguidores. Sua prosa é firme e ele pontua com habilidade a dinâmica entre seus personagens com suaves toques descritivos. Uma revisão mais atenta, porém, ficou faltando.

A ilustração de capa de Frede Tizzot faz um bom uso das cores e das camadas de pinceladas, e se prolonga para uma “orelha” especialmente larga. O monstro da areia lembra os vermes gigantes do planeta Arrakis, da série Duna de Frank Herbert.

 

Arte de Frede Tizzot.

 

Arte de capa de Estevão Ribeiro.

Microcontos de Fadas, de Ana Cristina Rodrigues. Rio de Janeiro: Editora Aquário, 2017, 50 páginas. Capa e ilustrações internas de Estevão Ribeiro. Brochura. Nos dias 8 e 10 de dezembro do ano passado eu tive chance de estar na Comic Con Experience 2017, por obra e graça de Taira Yuji, chefe do Estúdio Desire. Lá, tive chance de conviver com o pessoal do Desire, incluindo os artistas Diego Cunha e Marine Perrenoud, mas também de rever no Artist’s Alley Gio Guimarães e Raphael Fernandes. No dia 8, também encontrei no Artist’s Alley a mesa da Editora Aquário, gerida pelo casal Ana Cristina Rodrigues e Estevão Ribeiro. O lançamento mais recente era este Microcontos de Fadas, com 20 micronarrativas de fantasia humorística, muitas vezes com um caráter subversivo.

Cada texto ocupa uma página é ilustrado em preto e branco pelo bem-humorado Ribeiro. Estão aí, portanto, a Bela Adormecida, a Gata Borralheira, a Princesa da Ervilha, Pinóquio, Chapeuzinho Vermelho, João e Maria e mais uma dezena de personagens conhecidos dos contos de fadas, vivendo finais alternativos e humorísticos. É um livro que se lê de uma sentada e com um sorriso nos lábios. Imagino que seu público ideal seja composto de crianças que já conhecem tais narrativas, e ficariam intrigados com as versões de Ana Cristina Rodrigues — ou jovens e adultos que tiveram contato com elas no passado e que podem entender a brincadeira, a atualização e a possível crítica por trás das micronarrativas.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Tim Conrad.

Almuric, de Roy Thomas (texto) e Tim Conrad (arte). Milwalkie, OR: Dark Horse Comics, s.d. [1980], 72 páginas. Capa de Tim Conrad. Álbum. Eu conhecia esta adaptação do romance Almuric (1939), de Robert E. Howard. das páginas da revista Epic Illustrated, que adquiri quando garoto, na década de 1980. Este exemplar da Dark Horse eu achei na loja Omniverse (antiga Terramédia), em São Paulo. Eu me lembro que essa história em quadrinhos me causou uma impressão muito forte, que a releitura confirmou. A narrativa de Thomas tem o vigor exigido por qualquer adaptação de Howard. Seca, violenta, mas com muitas aberturas para momentos de maravilhamento — muito bem amparados pela arte de Tim Conrad.

Na história, o herói Esau Cairn foge da polícia após matar não intencionalmente um político corrupto. Ao se refugiar no laboratório de um cientista, é transplantado para o mundo primitivo de Almuric, onde passa a sentir-se em casa. Cairn é um daqueles heróis de Howard que se realiza na competição violenta e na suposta pureza do conflito e da luta. É descrito como uma espécie de mutante físico, com uma força e energia que estão um degrau acima de qualquer atleta humano normal. Uma sacada do roteirista foi incluir uma narração em primeira pessoa feita pelo cientista, funcionando como conexão entre os diversos episódios. O momento em que Cairn ainda está na Terra é desenhado em tons de cinza, com um jeitão de filme B da década de 1940, e quando ele vai para Almuric, a HQ assume cores esmaecidas muito bem realizadas por Conrad. O enredo segue o modelo do romance planetário criado por Edgar Rice Burroughs com Uma Princesa de Marte (A Princess of Mars, 1917), romance em que o herói John Carter é misteriosamente transferido a um planeta Marte repleto de raças exóticas em conflito. Tanto o posfácio de Roty Thomas quanto o livro de van Hise lido antes observam que a imitação de Burroughs foi uma guinada na obra de Howard. Na época da escrita de Almuric, o autor texano tinha como agente literário um outro imitador de Burroughs, Otis Adelbert Kline, que o teria convencido a investir nesse formato — e talvez até revisado e terminado o romance, já que Howard suicidou-se antes da primeira publicação da história.

A relação de Roy Thomas com a escrita de Howard é conhecida — ele trabalhou no Conan da Marvel. Tanto no romance quanto na HQ, Cairn aterrissa no meio da ação, é agredido pelos nativos, luta contra eles e contra feras, é aprisionado e liberta-se, conquista a admiração dos seus captores, arruma uma namorada e lidera duas nações em conflito, contra uma civilização alada predadora de ambas. As figuras humanas de Conrad são troncudas, cabeçudas, de rostos largos e olhos separados, meio animalescas e por isso meio que caíram com perfeição nesta adaptação de Howard. Elas também possuem um tipo de expressividade sombria que lembra Bernie Wrightson. Às vezes, os painéis mais amplos têm uma força lírica surpreendente, surgida da paisagem agreste de Almuric.

 

Outras Leituras

Arte de capa de Francesca Myman.

Locus—The Magazine of the Science Fiction & Fantasy Field 681 (volume 79, N.º 4), outubro de 2017. O assunto da Locus de outubro para mim foi a morte de Jerry Pournelle, que mereceu obituário e comentários de seus amigos Larry Niven, David Gerrold, Tim Powers, Gregory Benford, Stephen Kotowych e John Goodwin. O destaque dos comentários vai para a inteligência, a generosidade e os esforços de Pourlelle em “pay forward” — i.e., retribuir à comunidade de ficção científica abrindo oportunidades para os outros. Ele foi, por exemplo, presidente da Science Fiction and Fantasy Writers of America. Niven também trata do método de trabalho deles, nas colaborações. Os dois começara a colaborar em histórias e romance em 1971.

A edição também traz entrevistas com James Patrick Kelly e Annalee Newitz, e os resultados do infame-no-nascedouro Prêmio Dragon 2017. Dentre os muitos livros resenhados na edição, o destaque deve ser Ka: Dar Oakley and the Ruin of Ymr, uma inovadora fábula de John Crowley, autor respeitado no mainstream e elogiado por Harold Bloom.

 

 

Arte de capa de Maurizio Manzieri.

The Magazine of Fantasy & Science Fiction Volume 127, N.ºs 1 & 2 (714), julho/agosto de 2014. Com a publicação do romance premiado Todos os Pássaros do Céu (All Birds in the Sky, 2016), de Charlie Jane Anders, pela Editora Morro Branco, desencavei este exemplar da revista The Magazine of Fantasy & Science Fiction com uma história de capa escrita por ela. “Palm Strike’s Last Case” mistura a estrutura da narrativa de super-heróis com um drama de colonização de outro planeta. O que se pode dizer dela é que a mistura é inconsistente e a narrativa em si parece esbarrar em si mesma. A outra história de capa é “Subduction”, de Paul M. Berger, fantasia contemporânea sobre um cara meio perdidão que vai parar numa ilha do Pacífico instalada sobre uma falha geológica. Ele escapa de ser sacrificado por uma bruxa local quando ela descobre que o desmemoriado sujeito é uma espécie de caçador de dragões — dragões que surgem de terremotos e maremotos. A parte final da história é o confronto dos dois com um dragão gigantesco, mas no entrevero o interesse humano é atropelado e essa noveleta acaba soando precipitada. Mais equilibrado, apesar do texto soando um pouco imaturo aqui e ali, é o conto de estreia de Annalee Flower Horne, “Seven Things Cadet Blanchard Learned from the Trade Summit Incident”, texto disfarçado de ensaio encomendado pelas autoridades militares de uma estação espacial que abriga uma academia militar, a uma cadete que é uma aloprada viciada em pegadinhas. Mesmo na dissertação em que ela deve expressar o seu arrependimento, ela enfia as suas gozações. Divertidíssimo, mas com uma farpa dirigida a práticas comerciais agrícolas (a base espacial está recebendo uma conferência da área). Gostei tanto que já estou pensando em usar alguma ideia semelhante em histórias futuras do Universo GalAxis. Também vale mencionar a coluna “Books”, em que Chris Moriarty avalia a obra cínica mas ao mesmo tempo esperançosa do há pouco falecido escritor inglês Iain Banks (visto no Brasil com A Fábrica de Vespas, pela DarkSide). Esta edição da revista foi editada especialmente por C. C. Finlay. Apesar das minhas críticas, o editor Gordon van Gelder deve ter gostado bastante, pois contratou Finlay para ser o titular, deste número em diante.

—Roberto Causo

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