Roberto Causo

Leituras de Julho de 2018

O destaque deste mês foram dois romances brasileiros recentes que se debruçaram sobre um momento da história no qual o Estado adotou medidas extremas motivadas pelo contexto da Segunda Guerra Mundial. O mês também trouxe espaço para não ficção, arte e quadrinhos.

 

Universo Alien: Se os Extraterrestres Existem… Cadê Eles? (Alien Universe), de Don Lincoln. São Paulo: Editora Cultrix, 2017 [20313], 320 páginas. Brochura. Tradução de Humberto Moura-Neto & Martha Argel. Em de 25 de maio, participei, com a pesquisadora Cláudia Fusco e o editor Adilson Silva Ramachandra, de uma mesa durante o laçamento do livro de não ficção de Adam Roberts, A Verdadeira História da Ficção Científica, pelo selo-irmão da Cultrix, Seoman. Fui presenteado com o titulo em lançamento, e com A Vida de Philip K. Dick: O Homem que Lembrava o Futuro (Philip K. Dick: The Man who Remembered the Future), de Anthony Peake — e também este Universo Alien. Seu autor, Don Lincoln, é um físico e divulgador, já tendo escrito para a famosa e longeva revista de ficção científica Analog. Presume-se de saída que ele conheça os assuntos do livro, a ciência da exobiologia e a própria FC — em como o gênero influencia a consciência coletiva no assunto OVNI e ufologia. E de fato, Lincoln demonstra grande conhecimento de todos os assuntos. Assim como Carl Sagan antes dele, sua preocupação é limpar um terreno científico do folclore, do misticismo e da má fé. A diferença é que ele é mais moderado em sua abordagem, e o resultado é um texto de grande clareza e precisão, leve e — ao mesmo tempo que dotado de uma medida exata dessa didática muito particular — respeitoso com as posições opostas. Mais um professor, portanto, e menos um cruzado fundamentalista científico. Note-se ainda, que se encontra em uma excelente tradução do casal Humberto Moura-Neto e Martha Argel.

A primeira obra de FC discutida é A Guerra dos Mundos (1897), mesmo porque esse romance de H. G. Wells fundamentava-se em ideias do século XIX acerca da possibilidade de vida em Marte. Lincoln também trata do Marte de Edgar Rice Burroughs, e, mais adiante, menciona nomes importantes da FC. As franquias Star Trek e Star Wars são igualmente mencionadas. A história da ufologia, a partir do relato de Kenneth Arnold em 1947, é explorada e logo o autor estabelece paralelos entre a questão dos discos voadores e a ficção científica popular da época, especialmente no cinema. Qualquer um que, como eu, tem interesse pela FC e pela ufologia, deve ter notado que tais paralelos existem — vejam, por exemplo, minha antologia Estranhos Contatos: Um Panorama da Ufologia em 15 Narrativas Extraordinárias (1998). Don Lincoln discute muito bem esse fato, até encerrar o livro com uma reflexão bem embasada sobre como seria a vida extraterrestre a partir do que se sabe sobre química, física e a vida na Terra. Universo Alien torna-se, portanto, uma obra de divulgação científica de interesse tanto para fãs e escritores de FC (que podem fundamentar melhor suas especulações sobre o assunto), quanto para quem deseja entender melhor a ufologia como fenômeno cultural dos nossos tempos.

 

Arte de capa de Paula Cruz.

Sobre a Imortalidade de Rui de Leão, Anônimo, ed. Pontes Gestal, SP: Plutão Livros, 1.ª edição eletrônica, 2018, 2784KB. Capa e ilustrações internas de Paula Cruz. Prefácio de Roberto de Sousa Causo. Eu tive a honra de ser procurado pelo editor André Caniato, da Plutão Livros, para escrever o prefácio deste e-book — certamente por conta de ter incluído a história de Machado de Assis, “O Imortal”, na antologia Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica (Devir Brasil, 2007), então uma indicação de Marcello Simão Branco.

O e-book reúne não apenas “O Imortal”, que é de 1882, mas também “Rui de Leão” (1872). Um conto deu origem ao outro; isto é, dez anos depois da primeira publicação, Machado viu impressa a segunda versão da história do aventureiro português Rui de Leão, que se torna imortal depois de beber uma poção indígena, entre os tamoios, durante o período colonial, e vive os eventos de séculos futuros. Ostensivamente, Machado afirmou que reescreveu o conto para “ganhar uns cobres”, mas entre uma e outra há uma evolução interessante. A segunda é mais sofisticada, de ironia mais fina e menor comicidade, com uma espécie de parêntese abraçando a narrativa do fidalgo — envolvendo seu filho a narrar as peripécias do pai, a um número de figuras da sociedade local, em noite de chuva. A edição da Plutão Livros tem uma capa marcante por Paula Cruz e um sólido tratamento editorial, que, salvo engano, a coloca um pouco acima dos e-books que eu andei vendo por aí. Chamou a atenção nas redes sociais. Note-se ainda que o livro saiu, oportunamente, no aniversário de 110 anos da morte do escritor. Você pode ler o prefácio, por cortesia de André Caniato, aqui.

 

 A Segunda Pátria, de Miguel Sanches Neto. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2015, 318 páginas. Brochura. Este é um romance brasileiro de ficção científica de história alternativa, província de Gerson Lodi-Ribeiro, Roberval Barcellos e uns poucos outros, apesar do steampunk, mais popular, às vezes resvalar por essa modalidade de FC recursiva. O enredo aqui margeia um dos temas mais explorados do subgênero: a variação em torno da II Guerra Mundial. Provavelmente, A Segunda Pátria não existiria sem que antes fosse publicado Complô Contra a América (Plot Against America; 2004), do recentemente falecido Philip Roth, agora em maio. Por sua vez, acredito que o romance do importante escritor judeu-americano não teria sido escrito não fosse o clássico O Homem do Castelo Alto (The Man in the High Castle; 1962), de Philip K. Dick. Em todos os casos, temos uma visão distópica do home front, no aftermath (no caso de Dick) ou pouco antes e durante o conflito. No seu livro, Sanches Neto explora o fato de Getúlio Vargas ter nutrido simpatias fascistas para sugerir que ele teria, nessa linha temporal alternativa, facultado uma presença nazista mais ostensiva no território brasileiro.

A narrativa alterna seções vividas pelo ponto de vista de dois personagens diferentes. Um deles, o engenheiro Adolpho Ventura, é um germanista afro-brasileiro. O outro é uma jovem, Hertha, espécie de fêmea prototípica germânica, hipersexualizada como a posterior Laura de Dezoito de Escorpião (2014), de Alexey Dodsworth, e como a anterior Vera Blumenau de Santa Clara Poltergeist (1991), de Fausto Fawcett. Adolpho aparece primeiro entregando seu filho bebê aos pais, antes de desaparecer após se apresentar a uma delegacia, como exigem as novas leias. Ele é encaminhado a uma fazenda para trabalhos forçados, enquanto seus pais fogem do Sul do Brasil, rumo ao Sudeste, como refugiados raciais — em andanças angustiadas e aflitivas como as da heroína de The Underground Railroad (2016), de Colson Whitehead. Enquanto isso, na fazenda modelo nazista tropical, seu filho tem a pele marcada como uma rês e trabalha como escravo, literalmente. Na outra linha narrativa, Hertha é contratada, como uma cortesã das antigas, para entreter um convidado especial vindo da Alemanha. Basta pensar no pior, dentro do contexto, para antecipar quem é essa figura misteriosa. A Segunda Pátria é modernista na estrutura e em boa parte da escrita — com diversas seções do romance tendo andamentos diferenciados —, mas flerta com a literatura pulp em vários momentos e situações. Na linha de Adolpho, que cai em si e abraça sua herança afro ao adotar o nome Trajano, há uma revolta dos negros escravizados e emboscadas nas florestas sulistas, com guerreiros despencando de árvores sobre a milícia nazista que os persegue. Mas é o frisson erótico politicamente incorreto em torno de Hertha nos primeiros momentos da sua linha narrativa, que se beneficia mais do pulp e se configura como o ponto mais interessante de se acompanhar, no romance. O encontro das duas linhas é intrigante, embora menos intenso, e reafirma justamente a qualidade mestiça da formação do brasileiro. A questão que o romance coloca acabou, pela superposição de fatos da vida real, política e social, do Brasil de hoje, ganhando uma relevância maior do que a denúncia velada do racismo presente na história do Sul. Afinal, o Brasil atual marcha cadenciado e convicto, rumo ao passado. A imagem da capa eu peguei na www. Aparentemente, no país a produção gráfica não é uma arte exata, e a imagem do mapa brasileiro, de ponta cabeça e apenas num tom mais escuro de vermelho, praticamente não aparece no exemplar que eu li.

 

Malditas Fronteiras, de João Batista Melo. São Paulo: Benvirá, 2014, 280 páginas. Texto de orelha de Luiz Bras. Brochura. A coincidência temática me fez pegar de novo este que é o segundo romance do multipremiado escritor mineiro João Batista Melo, também um festejado contista. O primeiro romance foi Patagônia, de 1998, uma espécie de western ambientado na América Latina de fins do século XIX, com um brasileiro que caça por vingança a famosa dupla de assaltantes Butch Cassidy e Sundance Kid no seu exílio sul-americano. Malditas Fronteiras é um romance mainstream de época, ambientado em Minas Gerais nos anos da eclosão da II Guerra Mundial. Ganhou o concurso Prêmio Nacional Cidade de Belo Horizonte. É narrado pelo ponto de vista de uma família germânica envolvida com produção de cerveja artesanal, com agregados que incluem uma pintora judia que fugiu dos nazistas, e um menino brasileiro que tem ligação muito forte com Sophie, neta do cervejeiro Konrad Petersen. A condição de cegueira de Sophie a torna uma personagem que convoca a nossa ternura, e que simboliza a inocência de quem não enxerga divisões sociais.

Em Malditas Fronteiras, a situação é inversa à de A Segunda Pátria, e em mais de um sentido. A história aqui é aquela que conhecemos, e que insistimos em esquecer. Imigrantes alemães, italianos e japoneses sofreram a repressão do Estado e a desconfiança da sociedade brasileira, depois que o país entrou na guerra em 1943. Boa parte da tensão que a narrativa fomenta vem dos extremos que orbitam em torno dos Petersen, com um tio que vê oportunidades em aderir ao extremismo nazista, e com o pai do brasileirinho Valentino, que vê oportunidades em agredir a família alemã, fomentando o ódio popular contra ela e os alemães em geral. “Oportunidades” aqui é no sentido de sublinhar o oportunismo social e financeiro que surge nesses momentos de reorganização da sociedade. Se Miguel Sanches Neto misturou pulp e mainstream na narrativa do seu romance, João Batista Melo — que como contista já escreveu várias narrativas de ficção científica (inclusive a história alternativa “A Moça Triste de Berlim”), fantasia e realismo mágico — se mostra aberto para a ficção de gênero nas muitas epígrafes do seu. Nelas, J. R. R. Tolkien e Ray Bradbury aparecem juntos, por exemplo, com Clarice Lispector e Ian McEwan. E o tom que João Batista estabelece no livro é mais consistente do que o de Sanches Neto. Às vezes melancólico, às vezes pungente, sublinha com perfeição o sentimento trágico que sobrevém quando uma sociedade cede a posições extremistas. Ao mesmo tempo, esse tom é a marca de um estilo límpido e humano, um deleite para o leitor.

“Neste seu segundo romance, João Batista Melo prova mais uma vez que é um dos prosadores mais talentosos da geração 90.” —Luiz Bras (no texto de orelha de Malditas Fronteiras).

 

Arte de capa de Leo Pinheiro.

Sketchbook, Leo Pinheiro. São Paulo: edição do autor, s.d., 36 páginas. Capa de Leo Pinheiro. Brochura. Aqui está mais um sketchbook para a minha coleção, que inclui um material muito bacana de Gio Guimarães, Jeffrey Catherine Jones, Arthur Suydan (dois volumes) e Daniel HDR.

Eu comprei esse sketchbook do paulistano Leo Pinheiro no finzinho do mês na banca da Praça da Liberdade, o bairro oriental localizado aqui na região central de São Paulo. E o traço fino de Pinheiro de fato puxa para o mangá, o quadrinho japonês. Mesmo quando o artista faz, aparentemente, encomendas (requests) de super-heróis da Marvel ou da DC Comics. Inclusive, Leo Pinheiro dá aula na AreaE Escola de Arte, especializada em mangá e localizada lá mesmo na Liberdade. As suas figuras humanas são elegantes e bem proporcionadas, de rostos e poses expressivas, puxando para o juvenil. Há apenas uma página de quadrinhos no livro, porém. Alguns desenhos são bem infantis, expressando a versatilidade do artista. Gostei especialmente do desenho em que aparecem Groot e Rocky Racoon, inspirado no filme Guardiões da Galáxia. E este do dragão que a gente vê na capa, arte-finalizado a nanquim. Seu sketchbook acaba sendo, porém, uma edição bastante amadora e não traz muitas informações sobre o artista, mas cumpre a sua função. Pretendo, inclusive, acompanhar o trabalho de Leo Pinheiro no futuro.

 

Animais Fantásticos e Onde Habitam: Guia dos Personagens (Fantastic Beasts and Where to Find Them: Character Guide), de Michael Kogge. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2016, 144 páginas. Capa dura. Traduzido por Regiane Winarski. Já afirmei aqui que Animais Fantásticos e Onde Habitam foi meu filme favorito de 2016, e já tratei de um outro livro-guia do filme dirigido por David Yates. Este tem como foco os personagens, e também foi adquirido em uma unidade das Lojas Americanas aqui perto de casa, por um preço bem razoável.

O autor Michael Kogge estrutura o livro como fichas dos personagens, mas fornece alguma contextualização das situações do filme. Ele se esforça para não revelar demais, ao mesmo tempo em que menciona personagens que não entraram no corte final. Isso é interessante por alargar as relações dos heróis. Obviamente, o livro foi preparado antes do lançamento do filme. A tradução parece divergir um pouco do que eu me lembro de ter visto na telona, talvez também por isso. As fotos são o ponto forte do livro, assim como o material de design gráfico, já que a produção criou toda uma expansão do conteúdo do filme sob a forma de folhetos, cartazes, documentos e publicações. É um material muito rico, sugestivo — e também irônico, com uns trocadilhos bem sutis. Eu gostei especialmente da foto dos atores/personagens, cada um diante do seu painel personalizado no estilo art déco. O livro deixa de agregar uma ficha técnica do filme, justamente com os nomes dos atores e dos desenhistas de produção, provavelmente por ser dirigido a um público muito jovem que, supostamente, não se interessa por esses detalhes.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Gustavo Vícola.

Star Wars Infinitos: O Retorno de Jedi (Star Wars Infinities: Return of the Jedi), de Adam Gallardo (texto) e Ryan Benjamin (arte). São Paulo: Panini Comics, 2018, 106 páginas. Capa de Rodolfo Migliari. Tradução de Gustavo Vícola. Brochura. Este é o livro que fecha uma exploração alternativa das situações da trilogia inicial de Star Wars (1977, 1980 e 1982) no cinema. A divergência é imediata: Leia Organa é desmascarada de saída, no palácio de Jabba the Hutt em Tatooine. O resgate de Han Solo é protelado, Boba Fett foge levando-o preso no bloco de carbonita para vendê-lo diretamente ao Império, e o retorno Luke a Dagobah também é adiado. Por conta disso, quando Han sai da carbonita, tempo demais se passou e ele acaba cego permanentemente. Ao mesmo tempo, Luke perde o adeus do moribundo Yoda — que depois aparece espiritualmente a ele junto com Ben Kenobi, para dar alertas mais extensos do que os do filme. Essa cena é um ganho, assim como a ação tática em Endor, que não envolve os heróis perdidos na superfície do planeta para fazer contato com os ewoks. Lando Calrissian tem mais tempo de cena e participa do resgate nos últimos instantes da Estrela da Morte 2.0. O ponto de reorganização mais importante do enredo é afastar Leia da sombra de Han e colocá-la no local do duelo entre Luke e Vader, de modo que os dois irmãos participem do virada moral do vilão de armadura negra. O imperador escapa, e a conclusão da trilogia fica em aberto — o que até pode ser interessante. A conversão de Vader é que soa absolutamente inverossímil e em desequilíbrio com os seus crimes anteriores.

A narrativa em quadrinhos de Ryan Benjamin é competente, mas ele não é um bom fisionomista nem lida particularmente bem com o conhecido hardware de Star Wars. Ainda assim, este episódio de Infinitos vale a leitura para aguçar o nosso senso crítico deste que é o pior dos filmes da primeira trilogia criada por George Lucas. O filme poderia ter sido muito melhor.

 

Arte de capa de Ricardo Delgado.

Age of Reptiles: Tribal Warfare, de Ricardo Delgado. Milwalkie, OR: Dark Horse Comics, 1996, 132 páginas. Introduções de Ray Harryhausen e John Landis. Capa de Ricardo Delgado. Brochura. Este é um livro de quadrinhos que eu vinha namorando há um bom tempo — desde que a loja Omniverse ainda se chamava Terramédia. Ele foi danificado por uma tempestade que se abateu há anos sobre o bairro do Cambuci, em São Paulo, daí a minha hesitação. Deu para ler sem problemas, de qualquer modo, e para apreciar o rico desenho do artista de storyboard Ricardo Delgado. Daí, inclusive, ele ter alguns grandes nomes da FC e da fantasia no cinema fazendo a apresentação deste que é o seu primeiro livro de quadrinhos: os diretores e produtores Ray Harryhausen e John Landis.

As tribos em guerra, que aparecem no subtítulo, são um bandos de velocirraptores e alguns tiranossauros. Seu conflito eterno é como aquele entre leões e hienas, nas savanas da África. A narrativa de Ricardo Delgado abre mão de balões com texto e de onomatopeias — é composta exclusivamente por imagens. Seu desenho é expressivo, de texturas precisas e dinamismo nas figuras. Lembra bastante o do famoso William Stout, que também se dedicou ao desenho de dinossauros, inclusive aparecendo no Brasil com o livro de contos de Ray Bradbury, Contos de Dinossauros. Delgado deu uma cara própria a cada um dos personagens animais, sem apelar para a sua humanização. Como artista de storyboards, ele sabe contar com precisão e competência uma história com imagens, buscando ângulos sugestivos e situações e atmosferas diversas. Obcecados com a sua luta constante, as duas tribos dão mole para uma terceira força: uma espécie de pró-símio pré-histórico, sublinhando aí, como foreshadowing engenhoso, a sucessão dos grandes lagartos  pelos mamíferos e pelo Homo sapiens. Há algo de bem pouco científico, porém, na descrição que Age of Reptiles faz dos dinossauros. A razão dos elefantes, o maior animal terrestre do planeta, não galoparem — a mesma razão de um tiranossauro, que tinha várias vezes o peso de um elefante, não poderia sobreviver a uma queda de sessenta metros.

—Roberto Causo

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Aquaman

O arrasa-quarteirão surpresa da DC Comics encanta pela entrega total a um raro ritmo narrativo e à força de imagens deslumbrantes.

 

Aquaman. Diretor: James Wan. Escritores: David Leslie Johnson-McGoldrick & Will Beal (Aquaman é uma criação de Mort Weisinger & Paul Norris). Estados Unidos e Austrália, 2018, 143 minutos. Com Jason Momoa, Amber Heard, Willem Dafoe, Patrick Wilson, Nicole Kidman, Dolph Lundgren.

 

 

Convicção é tudo.

O diretor James Wan sabe disso e empregou seu virtuosismo em cenas de luta e na criação de ricas imagens com grande convicção em Aquaman, a última aventura da DC Comics no cinema.

O universo dos super-heróis da DC vinha capengando na telona há alguns anos. Firmava-se meio como uma alternativa subprime do estilo e do vitorioso universo Marvel. Mulher-Maravilha (2016), por exemplo, é um filme de roteiro inconsistente e desempenhos fracos, que vence pela convicção ingênua dos astros Gal Gadot e Chris Pine e pelo subtexto feminista que avança apesar das falhas.

Claramente, Aquaman desfrutou de um investimento financeiro substancial. Isso é curioso, considerando o quanto, dentre os suspeitos usuais da Liga da Justiça, ele é visto como secundário — a ponto de virar piada na série The Big Bang Theory. Mas assim como Mulher-Maravilha, é um filme que funciona apesar das suas deficiências, e, em alguns momentos, por causa delas.

Aquaman abre com a narrativa de origem de Aquaman, filho da rainha atlante Atlanna (Nicole Kidman) com o faroleiro Tom Curry (Temuera Morrison, o homem por trás da máscara de Jango Fett, de Star Wars). Essa narrativa saiu direto do cânone do Aquaman da Era de Prata, em 1959. Mais tarde, o herói, ao salvar a tripulação de um submarino russo de uma equipe de impiedosos piratas high-tech, faz um inimigo para o resto da vida: o supervilão Black Manta (Yahya Abdul-Mateen II).

O dilema do filme surge quando o meio-irmão do herói, o príncipe Orm (Patrick Wilson), decide declarar guerra contra a humanidade da superfície, e Aquaman é forçado pela a desafiá-lo como herdeiro legítimo de Atlântida. Uma sábia decisão foi trazer o tema da mestiçagem mais para perto do espectador, na medida em que Aquaman (Jason Momoa) é apresentado como filho da princesa com um nativo-americano. Desse modo, a aparência étnica de Momoa contrasta claramente com a aparência nórdica de Orm e do seu futuro sogro, o Rei Nereus (Dolph Lundgreen), e da bela princesa Mera (interpretada pela linda Amber Heard). O próprio Momoa é meio havaiano, meio teuto-americano — enquanto a sua versão dos quadrinhos é originalmente tão loura e nórdica quanto os outros.

A intriga exige que Arthur Curry, a identidade secreta de Aquaman, se assuma como pretendente ao trono da Atlântida e enfrente Orm, que busca se tornar o Mestre dos Oceanos e liderar todas as várias nações submarinas contra a humanidade da superfície. Para isso, não apenas o seu mentor secreto, o conselheiro de Atlântida Vulko (Willem Dafoe), mas também a princesa Mera apelam a Arthur. Mas é a força dos eventos que o arrasta rumo ao seu destino — recuperar o tridente do Rei Atlan e impedir a guerra. Tomar posse do tridente equivale ao Rei Arthur (coincidência?) arrancar a espada Excalibur da pedra e se provar como o verdadeiro rei. Outras referências presentes no filme incluem Pinocchio e Lovecraft.

A estrada até lá é na verdade uma montanha russa. Assim como em um gibi há uma cena de ação ou um painel deslumbrante a cada duas ou três páginas, James Wan faz com que a cada dois ou três minutos haja uma explosão, uma luta intensa ou um panorama de destruição ou maravilhamento com sua paisagem marinha fantástica. A quantidade de cidades e mundos perdidos vistos durante o filme acentua o desejo de deslumbrar, culminando com o tema antigo de um mundo selvático com dinossauros e tudo, situado no interior da Terra. E em toda parte, relíquias incríveis (algumas do nosso mundo), que fariam Indiana Jones salivar, são lascadas ou destruídas por completo.

As lutas coreografadas são mais tridimensionais do que em outros filmes da DC, assim como são superiores o apuro visual, a fotografia e o emprego de CGI. Mesmo tendo custado basicamente o mesmo que Mulher-Maravilha, Aquaman parece estar em uma classe superior. Wan subordina tudo ao ritmo narrativo alucinante. Uma decisão positiva nesse sentido foi explorar o caráter palhaço do Aquaman de Jason Momoa, que acaba sendo mais divertido do que o lado bufão de Benedict Cumberbatch em Doutor Estranho (2016), por exemplo. Em alguns momentos, Aquaman forma com Mera uma descarada dupla cômica — que disfarça bem a total falta de química do casal improvisado.

Os personagens certamente não são tridimensionais, mas é interessante como Wan extrai de todos interpretações exaltadas, canastronas, que nivelam o filme no seu espírito brincalhão focado em arrastar o espectador com ele, cena após cena — e clichê após clichê.

Às vezes, uma obra se entrega ao mundo paralelo do pulp, dos quadrinhos ou da fantasia a ponto de criarem uma realidade desapegada do real, dos ditames da qualidade e dos valores canônicos do seu veículo, e mesmo assim se firma por sua delirante personalidade própria. Aquaman pode ser uma dessas.

—Roberto Causo

 

 

 

Roberto Causo agradece a Gabriela Colicigno & Roberto Fideli, do Who’s Geek, pela oportunidade de ver a cabine de Aquaman em 11 de dezembro de 2018, no JK Shopping, em São Paulo.

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Publicado o Segundo Romance da Série As Lições do Matador

Em outubro, a Devir Brasil, de São Paulo, colocou o romance Mestre das Marés, de Roberto Causo, em pré-venda na Amazon. A pré-venda foi até o dia 25 de outubro.

 

Arte de capa de Vagner Vargas.

Mestre das Marés é o segundo livro da série de ficção científica As Lições do Matador, seguindo Glória Sombria: A Primeira Lição do Matador, lançado em 2013. Traz uma aventura mais densa e uma situação mais estabelecida do que o livro anterior, que serviu para apresentar o protagonista Jonas Peregrino e a complicada situação política e estratégica em que ele é enfiado ao ser transferido para a região da galáxia conhecida como A Esfera.

Com uma forte arte de capa de Vagner Vargas, o livro tem 288 páginas, contra as 174 de Glória Sombria. Conta ainda com arte quarta capa do experiente artista brasileiro Bruno Werneck; arte de frontispício de R. S. Causo; e insígnias pelo designer Daniel Abrahão. A diagramação é de Tino Chagas.

O enredo trata de uma missão de resgate comandada por Peregrino. Uma estação espacial de pesquisa é destruída por naves-robôs tadais em um sistema fora da Esfera. Os cientistas e o pessoal técnico e de segurança refugia-se em um ex-gigante gasoso cuja atmosfera foi arrancada por jatos relativísticos lançados por um buraco negro. Nos subterrâneos desse mundo devastado, encontra-se uma máquina tadai capaz de anular a energia sísmica desencadeada pela catástrofe. Invadir as instalações da máquina e obter dados sobre ela torna-se a nova missão de Peregrino, e com o ansioso aval dos cientistas. Mas ha um esquadrão de robôs-exterminadores no caminho, e reforços inimigos a caminho…

Mestre dás Marés dá continuidade em grande estilo, à space opera militar que é a série As Lições do Matador, com combates em terra e no espaço, e uma intriga entre os cientistas que pode sabotar todos os esforços de Peregrino e seus comandados. Para complicar ainda mais, desde que testemunhou pela primeira vez a magnitude do poder do buraco negro Firedrake, Peregrino é atirado em um turbilhão de medo e insegurança.

 

Arte de Bruno Werneck.

 

O livro está à venda na Amazon.com.br.

 

 

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Leia o Posfácio de Roberto Causo para o Livro “Fantástico Brasileiro”

De autoria de Bruno Anselmi Matangrano & Enéias Tavares, Fantástico Brasileiro: O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo (Arte & Letra Editora, 2018) traz um raro levantamento e uma ousada defesa dessa literatura no Brasil. Roberto Causo teve o privilégio de escrever o prefácio do livro, que você pode conferir abaixo.

 

 

Arte de capa de Karl Felippe.

Uma Questão Literária para o Século 21

 

O principal produto da cultura brasileira é o esquecimento.

Costumamos nos esconder desse fato atrás de justificativas muito repetidas, mas que nunca fizeram muito sentido. A principal delas é a de que o tempo — ele mesmo uma abstração sem senso crítico ou noção de justiça — faz a seleção do que deve ou não permanecer para a posteridade. Uma falácia que esconde, ao mesmo tempo, a preguiça em emitir opiniões e o jogo de forças por trás da seleção efetiva realizada pelos atores do sistema literário — no caso específico da literatura, que é o interesse deste notável livro que você tem em mãos.

Alguém sempre escolhe, e esse alguém, que muitas vezes se apresenta como autoridade em razão de formação, bom gosto ou posição de destaque nos meios de comunicação ou aparelhos culturais, não está distante de empregar no campo da política literária, os mesmos recursos baixos utilizados na política partidária ou ideológica, como o Dr. Martim Vasques da Cunha apontou no seu importante embora desastrado ensaio A Poeira da Glória (2015). Recursos que incluem a difamação, a desonestidade intelectual no momento da crítica, e o empenho em colocar inimigos literários no ostracismo acionando aliados em círculos intelectuais e artísticos — e atualmente, fomentando consensos fabricados nas redes sociais.

Outro argumento, muito ouvido há alguns anos no ambiente da literatura especulativa (ficção científica, fantasia e horror) brasileira, é o de que a internet e os recursos de comunicação e socialização advindos dela representam uma mudança radical de paradigmas. E essa mudança tornaria irrelevante o que veio antes, já que a maior necessidade seria o fomento e a criação de espaços para a geração de autores (no que chamei de Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira) surgida dentro desses novos paradigmas.

O que se expressava então era, antes de qualquer outra coisa, a ansiedade de jovens escritores em serem publicados, comentados e integrados a um mercado editorial de literatura especulativa que, na época, crescia de maneira sem precedentes. Trata-se, de qualquer modo, de outra instância de política literária, uma que ignora a importância do diálogo intertextual como mecanismo de evolução literária — e que nega a possibilidade de um diálogo específico com textos brasileiros, e não apenas com as influências internacionais contemporâneas. Essa postura tem uma resposta óbvia: quem não está disposto a lembrar, dificilmente será lembrado. Porque com essa negação solapamos a formação de um futuro quadro institucional disposto e apto a lembrar.

Finalmente, existe ainda a questão do lugar destinado, dentro das letras brasileiras e do atual sistema literário, tanto à literatura especulativa propriamente, quanto aos outros ramos agrupados dentro do útil conceito do Prof. Flavio García, o insólito. O que subjaz aqui é que essa produção ou esse aspecto da literatura brasileira, dentro do sistema literário, não mereceria ser lembrado. Seria “secundário”, “minoritário”, “irrelevante”, “subliterário”, “impertinente”, “espúrio”, “ideológico”… Dependendo, é claro, do alvo da avaliação. Secundário, quando ocorrendo na obra de grandes nomes como Machado de Assis, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Monteiro Lobato, Erico Verissimo, Jorge Amado, João Guimarães Rosa, Dinah Silveira de Queiroz, Antonio Olinto, Lygia Fagundes Telles, Ignácio de Loyola Brandão, Conceição Evaristo, Rubem Fonseca, João Ubaldo Ribeiro, Flávio Carneiro, Rubens Figueiredo e Nelson de Oliveira. Subliterário, quando configurado como um gênero popular como a ficção científica, a fantasia e o horror — vistos pela intelligentsia como parte da “indústria cultural” ou “mera literatura de entretenimento”.

Diante desse estado de coisas, é preciso um tipo especial de generosidade para contextualizar historicamente uma produção como a literatura especulativa, no contexto das letras brasileiras. Escrito pelos Profs. Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares, Fantástico Brasileiro: O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo, vem se juntar a uma pequena produção de livros que se incumbiu de — muitas vezes para além da muleta intelectual do recorte de pesquisa — levantar, interpretar e nos lembrar da existência e da importância dessa produção no Brasil. Entre eles estão Viagem às Letras do Futuro: Extratos de Bordo da Ficção Científica Brasileira: 1947-1975 (2002), de Francisco Alberto Skorupa; Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (2004), de M. Elizabeth Ginway; a iniciativa em vários volumes do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica (2004 a 2013), de Cesar Silva & Marcello Simão Branco; e Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro (2013), de Alfredo Suppia.

Essa generosidade é em si mesma uma ousadia, que Matangrano & Tavares multiplicam ao colocarem sob a mesma chave grandes autores do romance e do conto brasileiro, ao lado dos menos conhecidos, desconhecidos ou iniciantes — como conterrâneos de um mesmo território literário. Tamanho ecletismo e destemor tem precedente no singular Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog preparado por Braulio Tavares para a Fundação Biblioteca Nacional, em 1991. O insólito abraça a todos, e essa postura não hierarquizante também é algo a ser reconhecido e aplaudido, no trabalho dos autores de Fantástico Brasileiro.

Mais do que a perspectiva cronológica, o livro tem uma divisão engenhosa cujos tópicos sublinham a mais interessante perspectiva da Terceira Onda — a problemática da diversidade e da representatividade. A ênfase na fantasia — que sentimos no conceito do fantasismo — e na literatura para jovens, são outros pontos constantes da Terceira Onda, aqui também representados com a mesma preocupação de abrangência. Assim como a recorrência à tradição da escrita pulp, nem sempre bem manipulada pela Terceira Onda, mas estabelecida como símbolo de desejo de se engajar o leitor e renunciar ao elitismo literário e à mesmice da alta literatura brasileira, demanda que também caracteriza a situação da leitura e da literatura no século 21.

Ao expressar esses tópicos de retórica literária e das estratégias de ação da Terceira Onda, Fantástico Brasileiro se une ao também recente livro de Kátia Regina Souza, A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil (2017), como um texto que traduz o caráter desse momento tão intenso e inédito dentro da trajetória nacional seja da literatura especulativa, seja do insólito — este, incorporado sob a forma do absurdismo metaficcional (ou fabulation, na expressão do acadêmico americano Robert Scholes) à ficção pós-modernista brasileira desde a década de 1970, e sublinhado pelos autores da Geração 90.

Diversidade e representatividade parecem compor o ponto mais relevante deste momento da Terceira Onda. O “Manifesto Irradiativo” (2015), dos escritores Alliah & Jim Anotsu, e o consequente Encontro Irradiativo (realizado também em 2015) certamente serviram para marcar a eclosão dessa tendência. Nela temos, muito bem expresso no livro de Matangrano & Tavares o fantástico brasileiro como uma alternativa ao infeliz estado de coisas que trouxe perplexidade à Dr.ª Regina Dalcastagnè, quando o segundo round da sua pesquisa sobre o perfil demográfico dos narradores e personagens de ficção na literatura brasileira revelou que pouco havia mudado desde a sua denúncia inicial, há mais de uma década (2005), de que as letras nacionais são ocupadas pela figura do homem branco, heterossexual e de classe média, com valores estagnados e focado majoritariamente na metalinguística da escrita literária. O fato da Dr.ª Dalcastagnè ter se concentrado em três editoras que representaria o núcleo duro (engessado?) da literatura brasileira contemporânea, e de ter excluído deliberadamente qualquer forma de ficção de gênero, é uma daquelas instâncias em que a impertinente instituição do recorte de pesquisa escusa a pesquisadora de buscar remédios para o mal que denuncia. Sem esse olhar para fora, a própria voz que exige mudanças acaba sendo uma daquelas que condena a todos, sem salvar ninguém.

Devo dizer que os resultados levantados pela Dr.ª Dalcastagnè não são e nunca foram surpresa para mim. Já por volta de 1993 eu pedia, implorava e exigia uma variação temática, uma busca maior por representatividade, por enfoques literários diversos dentro da literatura especulativa brasileira. O país que possui a maior biodiversidade do mundo não pode ser o país da monocultura, eu disse mais tarde, numa metáfora ecológica. Se a lit spec brasuca deseja não apenas existir e não só vender bem, mas ser relevante, ela precisa compor um ecossistema forte e diversificado. Não só para crescer e frutificar em si mesma, mas para constituir ela mesma uma variação que se posicione em simultânea articulação e divergência perante o mainstream literário. Um bioma distinto, dentro do ecossistema maior da literatura brasileira.

A proposta de que esse bioma — uma corrente, prática ou conjunto de possibilidades — teria o potencial para contestar, redirecionar ou reposicionar pontos como os levantados pela Dr.ª Dalcastagnè, é uma questão literária significativa para as letras nacionais no século 21. E ela está implícita, eu creio, no anúncio do fantasismo como um movimento literário, feito nas páginas deste livro.

Vale lembrar que antes, no ensaio “Convite ao Mainstream” (de 2009), o escritor Luiz Bras (Nelson de Oliveira) havia apontado o esgotamento dos modelos de protagonista na ficção brasileira contemporânea, e levantado a ficção científica como um possível antídoto. Nisso — assim como Matangrano & Tavares no plano maior da literatura especulativa —, ele enxerga em um gênero literário popular uma força que, em diálogo com o mainstream, poderia conduzir a literatura brasileira a direções diferentes e produtivas. Quem sabe até, sacudi-lo em suas certezas.

Tudo isso faz com que o livro de Bruno Anselmi Matangrano & Enéias Tavares não seja exclusivamente um estudo que encara o passado remoto ou recente dessa produção literária esquecida. Lembrar o passado é importante porque todos aqueles que vieram antes no insólito e na literatura especulativa formam um contingente considerável — e você precisa de um exército atrás de si, se quiser fincar sua bandeira em território ocupado. Eu suspeito que Fantástico Brasileiro encara com mais intensamente ainda, o futuro da literatura que ele investiga.

—Roberto de Sousa Causo

São Paulo, 15 de março de 2018.

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Leituras de Junho de 2018

Leituras variadas em junho, mas com espaço para dois romances significativos de ficção científica e alguma história em quadrinhos.

 

Arte de capa de Danilo Ducak.

Omega, de Jack McDevitt. Nova York: Tor Books, 2004 [2003], 494 páginas. Capa de Danilo Ducak. Paperback. Desisti de fechar a série The Academy (T.C.C. Priscilla Hutchins), à qual pertence este título, para ler os livros na ordem. Afinal, eles podem tranquilamente ser lidos em separado. Eu já tinha lido, na série, o volume de abertura The Engines of God (1994), romance sobre xenoarqueologia em que a humanidade se dá conta de não estar sozinha na galáxia, depois de tomar contato com as obras de uma civilização extinta conhecida como “os criadores de monumentos”. Entre The Engines of God e este Omega existe Deepsix, de 2001 — livro que ainda não adquiri. Priscilla “Hutch” Hutchins aparece como piloto espacial no primeiro livro, e neste como diretora da Academia, uma organização global que controla a exploração científica humana pela galáxia. A série, assim como a série Alex Benedict, também de McDevitt, apresenta uma humanidade às voltas com uma Via Láctea acentuadamente subpovoada.

Em Omega, mais uma civilização alienígena é descoberta. O problema é que ela está no caminho de uma de muitas nuvens de destruição que inteligências ainda incógnitas espalharam pela galáxia. A Terra também está, mas a nuvem ainda está longe, em voo subluz — alguns milênios de alcançar nosso mundo com seu poder destruidor. Por conta disso, é claro, políticos e tecnocratas dormem sobre a questão. Também por conta disso, não existe um aparato firmado para socorrer os alienígenas em perigo. Além do mais, há o obstáculo representado pelo “Protocolo”, a versão de McDevitt para a Primeira Diretriz da Federação dos Planetas Unidos, de Star Trek, que proíbe o contato com civilizações em nível tecnológico e cultural “inferior”. Mesmo assim, naves e recursos são enviados. Dividem-se em um grupo que investiga meios de deter ou desviar a nuvem da morte, e outro que estuda os alienígenas. A descrição dos E.T.s é um dos pontos fortes. Contorna a maioria das tendências e clichês, para propor um povo bon vivant, turbulento, caótico, meio cômico, vivendo em uma sociedade mais ou menos equivalente à europeia do século 17 mas sem guerra ou expansionismo. A aparência de bichos humanizados os leva à comparação com um programa infantil da época, e eles ganham a alcunha de goompahs. O contato s é feito com trajes de invisibilidade, câmeras ocultas e projetores holográficos, para garantir o mínimo impacto possível. Como de hábito, McDevitt cerca seus conceitos com uma problematização de toque leve, que expressa o quanto o futuro provavelmente não será muito diverso do presente: argumentos religiosos tentam pegar carona nos apelos humanitários, e o imediatismo político e burocrático, mascarado de pragmatismo, se move para bloquear o pensamento racional de longo prazo. Como vemos no nosso presente desanimador, o ser humano acumula capacidades técnicas, mas não necessariamente capacidades intelectuais e políticas de lidar com o desconhecido — seja ele a ameaça futura ou o contato com outra civilização. Ainda assim, tem-se a esperança de contar com indivíduos capazes ou abnegados, que vão salvar o dia e o futuro, sem que, lembremos, os agentes da inércia e da impertinência se dignem a agradecer ou reconhecer o erro das suas posições. A revelação final das máquinas de destruição também parece original: ao invés de serem herança de uma espécie dedicada ao extermínio de possíveis rivais, é uma obra de arte galáctica que saiu do controle. McDevitt também costuma dar uma janela para a sobrevivência de sentimentos religiosos nos seus futuros. Aqui, o personagem Avery Whitlock escreve em seu diário, depois de testemunhar os esforços de salvação dos goompahs:

Tem estado na moda deste Darwin atacar a crença religiosa com o argumento de que ela é opressora, que fecha a mente, que conduz à intolerância e frequentemente à violência. E não menos do que isso, que a maioria das fés é necessariamente errada, enquanto elas se contestam umas às outras.

Todavia, há muito de enobrecedor na crença de que há, afinal, um poder mais elevado. Que há um propósito à existência. Que devemos lealdade a algo maior do que nós mesmos. E me parece que, mesmo quando erramos os detalhes, essa crença pode produzir um resultado feliz. —Jack McDevitt. Omega.

 

Minha Noite no Século Vinte e Outros Pequenos Avanços (My Twentieth Century Evening and Other Small Breakthroughs), de Kazuo Ishiguro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, 60 páginas. Tradução de Antonio Xerxenesky. Capa dura. Comprei este livrinho — uma espécie de livro-troféu com o discurso de recepção do Nobel de Literatura do ano passado — por causa de uma declaração de Ishiguro em particular, sobre a necessidade de uma abertura maior aos gêneros literários. Eu soube desse autor pela primeira vez quando fiz um curso sobre literatura pós-colonial com o Prof. Lynn Mário Trindade Menezes de Souza, em 1994. O próprio Ishiguro, um inglês de origem japonesa, escreveu ficção científica e fantasia, que, se vistos como um único campo literário, corresponderia a quase um terço da sua produção de romance. É claro, obtive muito mais do que a confirmação dessa declaração, ao ler o livro. Nele, Ishiguro faz um apanhado da sua carreira no romance, pontuando os instantes de insight que vieram da leitura, de ouvir uma música ou de assistir a um filme. São observações ao mesmo tempo simples e preciosas sobre como funciona a cabeça criativa deste autor consagrado mundialmente.

O livro também nos traz a sua percepção — a partir do seu reconhecimento de que vivia em uma bolha de intelectuais liberais — do papel do escritor num mundo marcado pelo atual recrudescimento de atitudes reacionárias, nacionalistas e xenófobas. As conexões de Ishiguro com a ficção especulativa são os seus romances Não me Abandones Jamais (2005), uma ficção científica sobre clonagem humana, e O Gigante Enterrado (2015), uma fantasia arturiana. Abaixo, a declaração que me fez procurar o livro:

“[P]recisamos alargar nosso mundo literário comum para incluir muitas outras vozes que surgem de fora da nossa zona de conforto da elite cultural de Primeiro Mundo. Temos que tentar, de forma mais enérgica, descobrir as pérolas do que restam das culturas literárias ainda desconhecidas, não interessa se os escritores vivem em países muito distantes ou dentro das nossas próprias comunidades. Em segundo lugar, temos que tomar um grande cuidado para não estabelecer de forma tão estreita ou conservadora as nossas definições do que constitui a boa literatura. A próxima geração virá com toda espécie de novas maneiras, às vezes desconcertantes, de contar histórias importantes e maravilhosas. Precisamos manter a mente aberta, especialmente no diz respeito a gênero e forma, para que possamos valorizar e celebrar as melhores narrativas. Em uma época cuja polarização está aumentando perigosamente, precisamos escutar. A boa escrita e a boa leitura romperão barreiras. Talvez precisemos até mesmo encontrar uma nova ideia, uma grande visão humana que possamos defender.” —Kazuo Ishiguro, Minha Noite no Século Vinte e Outros Pequenos Avanços.

 

Bicho Brasil, de Araquém Alcântara. São Paulo: Tordesilhas, 1.ª edição, 2018, 120 páginas. Capa de Araquém Alcântara. Capa dura. Há algum tempo que eu queria ter um livro do fotógrafo da vida selvagem brasileira, Araquém Alcântara. Este volume bilíngue, de cuja existência eu soube por uma matéria na “Ilustrada” da Folha de São Paulo, tem grande qualidade gráfica mas é bem mais acessível que um daqueles livros de arte em formato gigante. É uma ótima opção. Com texto bilíngue português/inglês, comemora os 50 anos da carreira do fotógrafo. Começa reproduzindo a primeira foto desse gênero”, feita por ele: a de uma onça abraçada a um galho mergulhado num igarapé, e mordendo esse galho. É em preto e branco, e no texto Araquém conta que estava em Manaus para cobrir uma inauguração, quando soube do boato da onça do igarapé. Foi lá se borrando de medo mas fez a foto, que vendeu por US$ 1.200,00.

Surge aí a carreira do primeiro fotógrafo brasileiro dedicado a esse campo maravilhoso, que nos lembra do legado sempre ameaçado da natureza brasileira. O próprio fato de ele ser o primeiro expressa a triste realidade de que não existiram outros antes dele. Ou seja, essa dedicação e essa especialização, tão rica e tão importante, é um fenômeno recente e raro em nosso país. Outro buraco na cultura brasileira, preenchido apenas por Alcântara e uns poucos outros.

 

Arte de capa de Marcelo Grassmann.

Marcelo Grassmann: Gravuras do Acervo da Pinacoteca, de Anônimo, ed. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2014, 160 páginas. Apresentação de Ivo Mesquita, cronologia de Priscila Rufinoni. Arte de capa de Marcelo Grassmann. Capa dura. Em 20 de maio deste ano, minha esposa Finisia Fideli e eu fomos à Pinacoteca do Estado para ver a exposição “Possible Worlds”, da artista Hilma af Klint, uma espiritualista que, postumamente, foi identificada como uma antecipadora do abstracionismo nas artes plásticas. A aquisição deste belo livro de gravuras do artista teuto-brasileiro Marcelo Grassmann foi um dos resultados daquela visita à Pinacoteca — que detém o maior acervo de obras do artista. Suponho que baste olhar para a imagem ao lado, impressa na sobrecapa do livro (essencialmente, um catálogo de uma exposição de 2014) para entender o que me atraiu na arte de Grassmann.

Em fevereiro, falei do meu interesse pela xilogravura e sua conexão com o Expressionismo. A bola da FC brasileira bateu nessa trave com as ilustrações de João Mottini para o romance 3 Meses no Século 81 (1947), de Jeronymo Monteiro, e com as vinhetas de Levy Menezes para o seu notável livro de contos de FC, O 3.º Planeta (1965). Em Grossmann (1925-2013), temos o fantástico escancarado em figuras quiméricas e remissões tanto ao medievalismo europeu quanto à arte especulativa das descrições de seres estranhos das antípodas (incluindo-se aí as Américas) no naturalismo e na cartografia europeia — uma referência que a comentarista Priscila Rufinoni parece desconhecer, quando analisa a opinião de um jornalista francês não creditado. Suas imagens remetem à sua herança familiar germânica, mas frequentemente sugerem aquela iconografia medieval ibérica que alimenta também as capas dos cordéis do Nordeste. O artista, especialmente nos seus primeiros trabalhos, foi vinculado ao Expressionismo, mas o Surrealismo também é convocado para caracterizar a sua xilogravura, litografia e desenho (pouco representado no livro).

 

Arte de capa de Michael Whelan.

Destiny’s Road, de Larry Niven. Nova York: Tor Books, 1998 [1997], 434 páginas. Arte de capa de Michael Whelan. Paperback. Provavelmente, a experiência de escrever a seis mãos o romance Beowulf’s Children ainda estava viva na mente de Larry Niven, quando ele escreveu este Destiny’s Road. Tem em comum com o anterior (publicado em 1995) ser um romance planetário que problematiza conscientemente as encrencas da colonização de um outro planeta. A história começa com um jovem que, ao defender uma garota, mata um mercador meio que por acidente, e é forçado a cair na estrada. Nesse planeta, Destiny, os humanos se concentram em uma pequena faixa de terra litorânea, separada por um istmo e com uma cidade em cada ponta. São ligadas por uma estrada criada pelos reatores de uma das naves, voando em rasante, riscada ali há gerações. Algo obviamente deu errado, porque a comunidade do rapaz, Jemmy Bloocher, decaiu para algo como uma cidade medieval.

Na estrada, Jemmy chega a uma aldeia de pescadores, onde é prontamente abordado por uma garota. Diante da pouca oportunidades de troca genética, as comunidades de Destiny incentivam o amor livre. Ele acaba se casando com essa garota, até que passa ali uma caravana de mercadores com uma vaga de cozinheiro. A comunidade o contrata para essa vaga em troca de um conjunto de facas, e Jemmy está de novo na estrada, perigosamente próximo dos comerciantes que podem identificá-lo e exigir justiça. No caminho, são atacados por salteadores e o herói se desempenha bem na luta. Além disso, mais da ecologia mista do planeta, que combina fauna e flora nativas e importadas da Terra, também é melhor descrita. Fica claro que romance deve algo ao gênero do western e da história dos pioneiros americanos. Quando finalmente a situação de Jemmy azeda com os mercadores, ele foge para o mar, encontrando uma embarcação abandonada e algum equipamento moderno deixado nela. Com esses poucos recursos, ele chega do outro lado da grande península.

Destiny carece de alguns elementos minerais essenciais para os processos biológicos humanos — especialmente o potássio essencial para o funcionamento do cérebro e servido quase em tudo como tempero —, e é exatamente esse o principal produto do comércio itinerante pela estrada. Mas o herói está no limite do seu suprimento, quando chega à terra do outro lado e atravessa uma região vulcânica. Ele cai nas mãos de uma colônia penal que usa as roupas que ele trouxe do barco como recurso para uma tentativa de fuga — mas para serem bem-sucedidos eles precisam superar um psicopata em seu meio. Os sobreviventes dos fugitivos formam a base de um pequeno negócio em um restaurante de beira de estrada, que prospera sob os talentos culinários do herói. A essa altura, Jemmy e o leitor descobrem que do outro lado da península a cidade possui mais tecnologia, memória e organização social. E também qual é o papel de uma planta nativa que captura o raro potássio do solo vulcânico do planeta (cultivar essa planta é o objetivo da colônia penal). A cidade high-tech usa a substância para impor uma dominação às outras comunidades, especialmente a cidade da qual o herói vem e cuja população funciona como “grupo de controle” do experimento social realizado em Destiny. Anos depois, não mais um procurado seja de uma cidade ou de outra, Jemmy cai de novo na estrada e retorna à cidade natal. Lá, ele é bem-sucedido em semear a planta captadora de potássio no lugar, o que promete o fim do monopólio e a ruptura da velha ordem.

Jemmy Bloocher como herói é aquele típico jovem de fortes recursos pessoais que a FC americana sempre valoriza, e o formato biográfico lembra as narrativas de Orson Scott Card. Ele sustenta o interesse do leitor por toda a sua aventura no áspero contexto social e ambiental de Destiny, e as alusões libertarianas de valorização do self-made man e do rebelde são bem exploradas e problematizadas — uma das “leis de Niven” afirma que a “anarquia é a menos estável das estruturas sociais”. A prosa de Niven sempre foi esparsa, mas neste romance planetário sólido e inteligente ela está tão telegráfica e ríspida (a par com as condições de vida em Destiny) que lembra o estilo de C. J. Cherryh. A ilustração de capa de Michael Whelan é uma glória. Épica, exótica e cheia de movimento na composição, permite que o espectador consiga sentir a atmosfera espalhando a luz dourada.

 

Arte de Michael Whelan.

 

Arte de capa de Karl Felippe.

Fantástico Brasileiro: O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo, de Bruno Anselmi Matangrano & Enéias Tavares. Curitiba: Arte & Letra Editora, 2018, 340 páginas. Arte de capa e ilustrações de Karl Felippe. Prefácio de Flavio García. Posfácio de Roberto de Sousa Causo. Capa dura. Tive a felicidade de escrever o posfácio deste importante livro que sonda a produção brasileira de fantasia, ficção científica, horror, fantástico e fabulation — naquilo que o Prof. Flavio García, que assina o prefácio, chamou de “insólito”, um contínuo marcado pela divergência em relação ao que é aceito como real. O livro, lançado pela Arte & Letra, tem capa dura artesanal e ilustrações internas muito sugestivas, por Karl Felippe. Tem chamado muito a atenção tanto nas redes sociais quanto nas páginas de um jornal de importância como O Estado de S. Paulo. Consta que a primeira edição já foi. Os autores realizaram uma sessão de autógrafos na Livraria Martins Fontes da Av. Paulista no dia 24 de agosto, com presença também de Flavio García, que estava nas proximidades de São Paulo para uma atividade acadêmica.

O livro é de fato um marco dos estudos de literatura fantástica e ficção especulativa no Brasil, com um levantamento de proporções inéditas, do século 19 ao presente, e reflexões muito pertinentes também o momento atual dessas literaturas no país, culminando com o lançamento de um movimento literário voltado para elas, o fantasismo. Daí o potencial de galvanizar os atores da área, em um novo clima de ação coletiva e com uma nova perspectiva de entendimento do papel de cada um dentro no cenário. Ao invés de colocar aqui anotações, vou remeter o leitor a uma versão do meu posfácio, publicado aqui com a autorização dos autores.

 

Winter Dreams/Sonhos de Inverno, de F. Scott Fitzgerald. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Inglês com Clássicos da Literatura Vol. 1, 2018, 96 páginas. Tradução de Irineu Franco Perpétuo. Brochura. Fitzgerald (ou FitzGerald) é o autor mainstream favorito da minha esposa, Finisia Fideli. Eu mesmo o pego eventualmente, desde a adolescência, quando li O Grande Gatsby (The Great Gatsby) na saudosa coleção Grandes Sucessos da Abril Cultural. Esta coleção da Folha de S. Paulo publica noveletas num esquema bilíngue com anotações (em forma de notas de rodapé) para aperfeiçoar o inglês do leitor. A curadoria é do crítico Manuel da Costa Pinto. A necessidade de harmonizar as notas com o texto em português acaba fazendo com que o livro traga uns poucos parágrafos por página, o que não favorece muito a leitura e exige um tempinho para o leitor se habituar. “Winter Dreams” é uma noveleta originalmente publicada em 1922 na Metropolitan Magazine, e o próprio Fitzgerald afirmava que ela seria o gérmen do seu romance mais famoso, justamente O Grande Gatsby.

A história trata de Dexter Green, um jovem que conheceu, enquanto trabalhava em um campo de golfe, uma garota que o impulsiona e o deixa obcecado ao longo dos anos, Judy Jones. No mesmo instante, movido por um sentimento vago e indistinto, ele abandona o subemprego e parte para realizar o sonho americano da faculdade e dos negócios, controlando antes dos trinta uma rede de lavanderias. Judy fica em sua mente, e ao longo dos anos ele a procura mas encontra nela um espírito frívolo e interesseiro. No primeiro contato mais sério, ela deixa claro que nunca se interessaria por um homem sem dinheiro. Aos poucos, ele se dá conta de que é um entre uma dúzia de pretendentes que a orbitavam. Dexter então fica noivo de uma outra mulher, e durante esse noivado acaba finalmente tendo um encontro amoroso com Judy. Eles não podem ficar juntos, porém, e ele acaba desfazendo o noivado. Nesse trajeto, a narrativa musical e sedutora — ao mesmo tempo descomplicada — de Fitzgerald move-se do íntimo ao panorâmico, valsando de um modo que traça em suas pegadas as costuras do sistema de classes e da falsidade das promessas do sistema americano. Tanto que, quando estoura a Primeira Guerra Mundial, Dexter se alista e parte para o conflito com alívio pela interrupção de tudo. Ao retornar, a fofoca de um colega de trabalho revela que Judy casou-se mal e que sua beleza e vivacidade, motores da vida dele, haviam desaparecido. A noveleta, portanto e assim como várias obras do autor, trata das promessas e desapontamentos da juventude, sempre efêmera naquela época. Mas ao mesmo tempo, trata de muito mais.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Tsutomu Nihei.

Blame! vol. 2, de Tsutomu Nihei. São Paulo: Editora JBC, 2017 [1998], páginas. Capa de Tsutomu Nihei. Brochura. Mês passado eu vi a animação japonesa baseada neste mangá de Tsutomu Nihei, produzida pela Netflix. É uma aventura high-tech bastante enigmática, e por isso quando encontrei o mangá no Shopping Sogo, na Liberdade, aqui em São Paulo, comprei para saber mais. Trata-se de uma série de dez volumes, e o número mais baixo que encontrei foi o 2. Eu já conhecia o trabalho de Nihei pelo mangá Biomega, cujo volume 4 eu tinha lido em inglês (uma edição da Viz Media, de San Francisco). A rigor, o formato narrativo de Blame! é o da viagem fantástica, na qual o viajante ou viajantes se deparam com eventos e seres fabulosos ao longo do caminho. O formato, é claro, vem lá da antiguidade e se integrou de modo natural à FC, bastando lembrar das voyages extraordinaires de Jules Verne. Aqui o jovem solitário chamado Killy marcha pelas estruturas tão gigantescas quanto claustrofóbicas, tão mecânicas quanto biológicas, de uma vasta cidade dividida em níveis e que possui uma interface com uma espécie de ultranet do futuro distante. O desenho animado — repleto de cenas de ação e detalhes ultratecnológico — fala de uma esfera de Dyson (que rodeia uma estrela, para otimizar o aproveitamento de energia), mas no mangá eu não encontrei essa referência.

Os talentos de Killy são basicamente um estoicismo pra lá de samurai, e um “disparador de radiação gravitacional” para o qual poucos têm defesa. O Santo Graal dele é encontrar uma pessoa dotada de um modem genético, para fazer contato com a “Netsphere”. O volume 2 começa com Killy entrando na Metrópole Kaito, habitada por gente de 2,50 ou 3,0 metros de altura, depois de escapar de um ataque dos carados, que usam lanças de metal como arma. Logo ele descobre que o povo do lugar abusa violentamente dos carados, e tem recursos técnicos para lidar com sua insatisfação. No caminho ele resgata os restos de Cibo, uma ciborgue cientista, que passa a carregar com ele rumo a um ponto crucial, os arquivos da cidade. Defendida por Killy ao longo do caminho, lá ela fabrica um novo corpo para si e um braço para ele, perdido num confronto com a segurança do Presidente, um gigante que funciona como CPU mas tem programação falha. Fica claro que não um gene-modem nesse nível da megaconstrução. Cibo convence Killy a usar sua arma especial para abrir uma passagem entre os níveis, algo que ela havia tentado insistentemente e sem sucesso. Seguindo adiante, a dupla encontra um clone do Presidente, que lhes mostra mais uma super-entidade monstruosa que funciona como um componente de hardware desse mundo biocibernético. O clone gerencia um gene-modem em gestação, que dá a Killy um vislumbre da Netsphere — uma espécie de mundo pastoral de onde uma entidade invade o laboratório e ataca o gene-modem e descarrega uma massa biológica maior do que tudo visto até ali. Sobrevivendo mais uma vez, Killy e Cibo avançam para a megaestrutura que liga os níveis, um zigurate altíssimo. Lá, outra entidade administradora da Netsphere se manifesta, dirigindo-se a Killy. Informa que uma espécie de infecção viral atingiu o lugar, e que um antivírus ataca qualquer humano que tentam acessar a Netsphere sem um gene-modem. O vírus provoca o crescimento desordenado da metrópole e o descontrole do sistema. A entidade explica tudo e dá o seu aval ao plano da dupla. Fácil dizer, porém, e há mais obstáculos a serem superados até que cheguem ao topo do zigurate. Ao longo do episódio todo, Nihei mantém os diálogos em um mínimo, e apresenta às vezes quase uma dúzia de páginas sem balões, apenas ação desenfreada. Ele também é o mestre imbatível do clímax estendido, e daí o leitor pode ter ideia o que esperar da sequência final.

—Roberto Causo

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