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Leituras de Novembro de 2020

Histórias em quadrinhos nacionais dominaram as minhas leituras em novembro, numa investigação da interface entre fanzine e publicação profissional, e de quadrinhos autorais e de auto-expressão. Também destaco a novela de horror cósmico de Ramiro Giroldo e uma antologia de fantasia e ficção científica ambientada na Bahia.

 

Arte de capa de Vincent Di Fate.

Space Opera, de Brian Aldiss, ed. Nova York: Berkley Medallion, 1977 [1974], 344 páginas. Arte de capa de Vincent Di Fate. Paperback. Esta antologia montada por Aldiss (1925-2017) na Inglaterra e publicada dos dois lados do Atlântico foi fundamental para dar um novo fôlego à space opera dentro da ficção científica, repensada como um espaço de autorreferência nostálgica dentro do gênero e modo de evocar temas grandiosos com uma linguagem pulp. Aldiss chega a dizer que a space opera já estaria morta, naquela altura. Abre, na seção “Será Tudo uma Ilusão”, com um conto de Robert Sheckley, de quem Aldiss era fã: “Zirn Left Unguarded…” (1972). Apresenta o tipo de uso gozador dos ícones da FC próprio de Sheckley, mas está longe de ser space opera. Já “Honeymoon in Space” (1901), de George Griffith, tem aventura o suficiente para ser lido como um precursor do subgênero. A história é parte de uma série reunida em romance fix-up. E “Tonight the Sky Will Fall” (1952), de Daniel F. Galouye, é uma novela intrigante, com algo de thriller e ambientada apenas na Terra; space opera apenas na acepção muito particular de Aldiss.

A seção “‘Precipices of Light that Went Forever Up…’“ abre com “The Star of Life” (1959), de Edmund Hamilton, pioneiro da space opera e criador do conceito do império galáctico, aqui em uma expedição a um astro estranho, em uma narrativa também mais limitada do que o esperado. “After Ixmal” (1962), de Jeff Sutton, é uma curiosa história de conflito mundial vista pelo ponto de vista de uma inteligência artificial megalomaníaca. E “Sea Change” (1956), de Thomas N. Scortia, trata de robôs que se unem para abandonar a humanidade e partir do Sistema Solar para as estrelas.

A seção “Exile Is Our Lot” traz quatro textos, e o primeiro é “Colony” (1953), de Philip K. Dick, expressão de paranoia em que, numa colônia planetária, um alien metamorfo ataca os colonos. É seguido de um excerto do romance The Sword of Rhiannon (1953), de Leigh Brackett, outro grande nome da primeira fase da space opera e a única mulher no livro. “All Summer in a Day” (1953), de Ray Bradbury, é tocante narrativa ambientada em uma colônia planetária em que chove há uma geração, e ninguém acredita na existência do sol… Nada de space opera, porém. Jack Vance escreveu muito dentro do subgênero, mas o seu “The Mitr” (1953) é justamente mais bradburiano que aventuresco. A última seção é “The Godlike Machines”, aberta com uma história de A. E. van Vogt, “The Storm” (1943), outro autor favorito de Aldiss (junto com Bradbury e Dick). Nessa noveleta, humanos fazem contato com uma civilização de robôs que se instalou na Grande Nuvem de Magalhães. Em “The Paradox Men” (1949), de Charles Harness, os homens-máquina se unem para abandonar a humanidade e partir para as estrelas. Curto, “Time Fuze” (1954), de Randall Garrett, coloca um terrível dilema sobre a tripulação da primeira nave com propulsão mais rápida que a luz: na primeira viagem, descobre-se que ela tem o “efeito colateral” de transformar sóis em novas… “The Last Question” (1956), de Isaac Asimov, é um conto muito reproduzido, sobre um computador construído por uma civilização galáctica e que assume poderes quase divinos. Obviamente, a baliza de Aldiss para esta antologia difere muitas vezes do que entendemos por space opera, ficando a impressão de que ele a usou mais para promover alguns autores de sua preferência.

 

Arte de capa de Hanuka Andrade.

Estranha Bahia, de Ricardo Santos, Alec Silva & Rochett Tavares, eds. Salvador: EX! Editora, 2019, 192 páginas. Arte de capa de Hanuka Andrade. Brochura. Esta antologia original é obviamente um projeto ambicioso, tanto pela qualidade gráfica quanto pela extensão das narrativas que reúne sob o tema regional, explorando a paisagem física e cultural de um dos estados mais antigos do Brasil. Deve se enquadrar, a partir da definição do pesquisador Alexander Meireles da Silva, dentro da tendência dominante da Quarta Onda da Ficção Científica Brasileira — diversidade étnica/sexual, e regionalidades. Ela conserva, porém, a remissão à ficção pulp, própria da Terceira Onda. De saída, chama a atenção a mistura de ficção de detetive e ficção científica de “Raças”, de Ricardo Santos, com seu verniz cyberpunk em uma narrativa dinâmica sobre alienígenas que convivem conosco — metáfora para o quanto os turistas estrangeiros determinariam a política e a segurança de Salvador. Em contraste, a noveleta “Canudos XXI”, de Isabelle Neves, é uma narrativa de horror que se lastreia nas atrocidades de Canudos e apresenta um menino que, na comunidade de Nova Canudos em 1997 (cem anos após o massacre), enfrenta a Morte, que vem cobrar uma dívida. Uma das melhores histórias do livro.

“Joel das Almas” também é ficção de horror, mas em tom bem diferente. Um conto mais urbano e envolvendo terreiros de umbanda e um caçador de demônios. A autora é a gaúcha Evelyn Postali. Mais horror está em “O Profeta do 666”, de Tarcísio José da Silva, narrativa claustrofóbica de um jornalista obrigado, por uma aparição, a relatar em quatorze segmentos os fatos violentos e sobrenaturais ocorrido em um antigo quarto de pensão. Os editores agruparam o horror como núcleo da antologia, fechado por uma quarta história, “Enterrados a Respirar”, do autor português Alexandre Cthulhu. Na história, um político corrupto português arranja uma amante brasileira e se torna alvo da vingança do marido traído, executada com muitas reviravoltas em uma propriedade baiana.

Se a FC abriu a antologia, é a fantasia que a fecha. “Em Busca da Disgraça da Pedra Azul”, da catarinense Cristiane Shwinden, é uma deliciosa história que combina humor, gíria regional e elementos da fantasia épica jogados na Salvador contemporânea: um casal de garotos tem que desvendar charadas e recolher objetos mágicos necessários para invocar as entidades afro que impedirão a invasão de Salvador por um mago gringo. Outro ponto alto da antologia. Mas é a noveleta “Quibungo”, do carioca Rochett Tavares, que a conclui. A história se passa na Bahia do século 17, e o protagonista é um jovem capturado como espólio de guerra na África pelo império de Daomé e enviado ao Brasil, onde eventualmente foge do cativeiro. Seu perseguidor é outro africano, mas um que ganhou o apreço do senhor como capitão do mato, um caçador de fugitivos. Outros personagens são um guerreiro maia e um exu. O conflito que se segue sugere uma narrativa que penetra o território do Brasil Colônia que Christopher Kastensmidt abriu para a fantasia heroica, com a série A Bandeira do Elefante e da Arara. Tavares, porém, impõe o seu próprio projeto, com tom, imagética e evocações culturais próprias, fechando com drama e intensidade uma antologia que merece a atenção do leitor de ficção especulativa.

 

Arte de capa de Guilherme Augusto.

O Tesouro de Antônio Silvino, de Braulio Tavares. Mossoró-RN: Editora Cordel, Coleção Cordelteca Vol. 32, 2ª edição, 2020 [2018], 20 páginas. Apresentação de Kydelmir Dantas. Arte de capa de Guilherme Augusto. Folheto. Este cordel foi uma das recompensas da campanha de financiamento coletivo da Editora Bandeirola, de São Paulo, que trouxe de volta duas das melhores coletâneas brasileiras de histórias de FC e fantasia que se conhece: A Espinha Dorsal da Memória e Mundo Fantasmo, de Braulio Tavares.

O poema narrativo em sextilhas trata de um ex-cangaceiro que teria a incumbência de guardar um antigo butim, distribuindo-o em confiança a um amigo. Antônio Silvino (1875-1944) realmente existiu e foi objeto de vários cordéis (por Leandro Gomes de Barros, por exemplo). Está representado na arte de capa de José Augusto. Na versão poética de Braulio Tavares, há um esboço biográfico, é claro. Mas o desfecho gira em torno da sua visita ao guardião do tesouro, para reavê-lo.

O poema é construído com o cuidado e a expressividade características de Braulio Tavares, um dos maiores nomes da ficção científica e do conto fantástico brasileiros, de todos os tempos. O final irônico incorpora uma observação sobre a transitoriedade da vida e dos valores que atribuímos às coisas.

 

Arte de capa de Denis Lenzi.

Red Hookers, de Ramiro Giroldo. São Paulo: Editora Cabana Vermelha, 2020, 144 páginas. Capa de Denis Lenzi. Brochura. Nesta novela de horror, um bom momento da expressão “lovecraftiana” do gênero, e um raríssimo exemplo de livro atrelado a um filme de curta metragem: Red Hookers (2013), dirigido por Larissa Anzoategui e escrito pelo mesmo Ramiro Giroldo, que acontece de ser um destacado pesquisador de ficção científica brasileira, autor de Ditadura do Prazer: Sobre Ficção Científica e Utopia (2013). A produção brasileira participou do H. P. Lovecraft Film Festival, em Portland, OR (nos Estados Unidos). Seu título remete ao conto de Lovecraft, “Horror in Red Hook” (1927). A capa de Denis Lenzi é uma das melhores que já vi, em um livro do gênero, e o book design também agrada.

A história tem outras marcas lovecraftianas, algumas bem explícitas, mas trata-se essencialmente de um romance curto de body horror e horror cósmico. O prólogo narra um ritual envolvendo uma criatura cheia de tentáculos, devorada por uma sacerdotisa que é subsequentemente morta por uma outra. A história acompanha duas irmãs em São Paulo: Karen, a certinha estudiosa, e Karina, sua irmã prostituta e usuária de drogas, vítima de agressão e estupro. O dilema das duas irmãs vai espiralando em torno da boate Red Hookers, que, obviamente, é mais do que um prostíbulo. Envolve a vingança contra “Zebu”, playboy violento, proto-bolsominion e estuprador de Karina; o surgimento de um soro que transforma, monstruosamente, o corpo do usuário; a figura venerável do especialista acadêmico em ocultismo; um grimório antigo, guia dos rituais; uma feminilidade dominante e monstruosa. Solano, amigo das irmãs e também natural da cidade do interior da qual vieram, se aproxima demais de forças que desconhece, motivado pelo desejo de se redimir de um incidente do passado. E Karen, ao entrar na Red Hookers atrás da irmã, pode ter se transformado em nova protagonista do sacrifício.

A prosa do autor é econômica, de eficiência tranquila e direta, raramente perdendo o passo ou deixando de chocar e impressionar o leitor com descrições escatológicas e sangrentas. O mundo que retrata é grotesco, nauseante, irredimível. Ainda assim, os personagens são vivos e envolventes, e a narrativa conduzida com mão segura até o clímax onírico e mais do que satisfatório. Há nesta estreia de Ramiro Giroldo não só a reverência intertextual a Lovecraft e sua criação, mas também respeito pelas lições do horror dos anos oitenta no cinema e na literatura, com uma saudação ao cinema brasileiro de horror e o seu componente escancarado de sexploitation. Fiquei muito bem impressionado, acreditando que Ramiro Giroldo é uma revelação no campo do horror brasileiro. Aguardo novos livros dele, no futuro próximo.

 

Arte de capa de Ron Walotsky.

Beyond Heaven’s River, de Greg Bear. Nova York: Tor Books, 1987 [1980], 192 páginas. Arte de capa de Ron Walotsky. Paperback. Outro dos primeiros romances de Greg Bear, também doado a mim por Alfredo Keppler, um ex-presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica. Tem premissa engenhosa: Yoshio Kawashita, jovem piloto militar japonês, é abduzido durante a Batalha de Midway, na Segunda Guerra Mundial, e instalado em um planeta remoto. Redescoberto, é adotado por Anna Nestor, empresária do transporte espacial que passa a patrocinar a sua busca por entendimento e identidade.

A premissa claramente se inspira em casos de soldados da IIGG que emergiram na década de 1970 e 80 como involuntários viajantes temporais, redescobertos em ilhas do Pacífico onde tinham ficado para trás. A premissa também evoca o fenômeno ufológico dos “foo fighters” avistados durante a guerra. O caso do personagem, porém, é o de um homem abduzido por alienígenas desconhecidos tanto no século 20 quanto no futuro do século 24, vivendo num habitat solitário em um planeta inóspito, como Billy Pilgrim na sua jaula em Tralfamadore, o mundo-zoológico de Matadouro 5 (1969), de Kurt Vonnegut.

A seção do livro em que Kawashita e Nestor se jogam em uma jornada para encontrar respostas ao drama vivido pelo ex-aviador é muito distinta na sua evocação da galáxia do futuro distante, mas o desfecho é, em última instância, desapontador — em choque, Kawashita mal consegue lidar com a estranheza do confronto com as forças que desviaram o curso da sua existência. Como de hábito, Bear não finge que o ser humano é capaz de lidar casualmente com destinos cósmicos.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Henry Jaepelt.

Maldito Seja Henry Jaepelt, de Douglas Utescher, ed. São Paulo: Ugra Press, outubro de 2013, 80 páginas. Arte de capa de Henry Jaepelt. Brochura. Adquiri este livrinho em uma das duas vezes que visitei a loja Ugra, em São Paulo. Henry Jaepelt é um artista-fã que eu conheço desde a década de 1980, por seus trabalhos em vários fanzines (Hiperespaço, Megalon, Juvenatrix, etc.). Esta bem acabada publicação é amadora, parte da linha de livros Maldito Seja, dedicada a artistas amadores ativos na cena dos fanzines — cena que tem sido objeto, em anos recentes, de uma substancial produção crítica que encontramos especialmente na Editora Marca de Fantasia, da Paraíba.

O livro inclui entrevista ao editor Douglas Utescher, em que Jaepelt reafirma a sua convicção na arte amadora, que se esquiva de prazos e de pressões para se enquadrar naquilo que o mercado demanda ou condiciona. Os exemplos são, necessariamente, histórias em quadrinhos curtas, dentro da sua abordagem metafórica, organicista e delirante, com os desenhos elaborados, de linha valorizada com variações e quebras, e efeitos pontilhistas que remetem a Moebius. Foi ótimo saber mais sobre este destacado artista-fã, e reler ou ler pela primeira vez histórias muito pessoais e de uma ética de trabalho tão singular, que toca tanto o meu coração de velho fanzineiro.

 

 

Arte de capa de Mike Deodato.

3000 Anos Depois, de Mike Deodato (arte) & Deodato Borges (texto). São Paulo: Criativo/Opera Graphica, 2015, 74 páginas. Arte de capa de Mike Deodato, Jr. Capa dura. Este é um álbum que eu conheço da sua versão semiprofissional, publicada lá na década de 1980, de um exemplar emprestado do quadrinista campinense Alvimar Pires dos Anjos. Mais tarde, um segmento chegou a aparecer na revista profissional Andróide N.º 1 (Estúdio Ofeliano de Almeida/Press Editorial), em 1987. É um fato muito inspirador que o álbum tenha sido republicado com uma produção editorial de primeira (por Dario Chaves e em capa dura). Mike Deodato Jr., é claro, é um gigante dos quadrinhos internacionais, tendo produzido para DC e Marvel.

O roteiro de Deodato Borges, pai de Mike Deodato, é um misto de pós-apocalipse nuclear e invasão alienígena. Não muito bem articulado como enredo, mas com uma expressão poética que lhe dá um ar panorâmico e fornece a sua própria coesão. Poemas ilustrados eram uma tendência muito forte nos fanzines brasileiros de quadrinhos na década de 1980, e 3000 Anos Depois faz sua vênia a essa tendência, composta com aquela denúncia sincera mais algo ingênua do estado do mundo na época, semelhante à abordagem de Jeronymo Monteiro. Esse quadro incluía a Guerra Fria e a ameaça nuclear, dramatizados na HQ. Assim como a arte de Mike homenageia algumas figuras das HQs internacionais que circulavam no Brasil e que se aproximavam da sua abordagem de então — como 5 por Infinito, de Esteban Maroto, e o personagem Hunter, da revista Kripta. Para esta edição o artista preparou um spread gigante com soluções digitais que expressam toda a exuberância da sua arte.

Completam o livro, a HQ “V.I.G. (Visitante Inter-Galáctico)”, seguida de “Uma História em 4 Tempos (Narrativa em Portfólio)”, que é um poema ilustrado; e então a HQ metalinguística “Os Super-Heróis Moram ao Lado”, com efeitos de luz, sombra e drapejamento que lembram Bernie Wrightson; textos apreciativos dos editores, sobre pai e filho, ladeados de comentários escritos por personalidades nacionais e internacionais dos quadrinhos. E ainda, uma entrevista com o artista, fechando com um conto de ficção científica ufológica escrito por Deodato Borges, “O Mistério da Serra do Disco”, e um álbum de família. Sem dúvida, uma edição muito especial, obrigatória para os fãs do nosso maior nome nas histórias em quadrinhos internacionais.

 

Arte de capa de Mike Deodato.

Quadro, de Mike Deodato, Jr. São Paulo: Editora Mino, julho de 2015, 80 páginas. Prefácio de Helcio de Carvalho. Posfácio de Janaina de Luna. Arte de capa de Mike Deodato, Jr. Brochura. É claro, o artista também merece uma edição tão caprichada quanto esta, com o seu primeiro trabalho autoral, pela Editora Mino. O álbum vem em uma slipcase de plástico rígido, onde vão aplicados os letreramentos da capa. O volume todo é um feito de artes gráficas. Cada trabalho presente nele aqui conta com uma apresentação do próprio Mike Deodato. Na primeira, ele informa que, depois de sair de uma entrevista com outros quadrinistas, se deu conta de que era o único sem um trabalho autoral. O resultado, de uma grande exuberância artística e versatilidade, em alguns pontos toca nas tendências daquele momento formativo da década de 1980. Não investe em uma narrativa de fôlego com um herói próprio, mas em vários fragmentos reflexivos, irônicos e emocionais.

“Dor” é primeira HQ, na qual um personagem com a fisionomia do artista descobre que sua passagem pelo dentista se transforma em uma história de horror — gênero forte, especialmente em relatos curtos como este, nos anos oitenta. “Sopro de Estrelas” é um poema ilustrado (com um desenho em elaborado autocontraste tipo Sin City), algo muito presente nos fanzines de quadrinhos daquela década. “Coração de Guerreiro”, todo em tons de sépia, dá vasão ao desejo do artista de desenhar fantasia heroica. Salta aos olhos a qualidade cinemática da curta narrativa. Fantasia heroica e fantasia científica eram outras forças da cena das HQs brasucas da década de 1980 (mas praticamente ausentes da nossa literatura).

“A Árvore da Serra” funde um poema de Augusto dos Anjos aos fatos trágicos da vida do herói ambientalista Chico Mendes, combinando aí, mais uma vez, o poema ilustrado e a denúncia social e política, também forte naquele período. “Círculo Vicioso” aparece em um centerfold dentro do álbum, e é uma HQ em forma de disco. Com duas páginas, “Roupas” tem quadrinhos espalhados na primeira, e uma cena de sexo na segunda — o texto é uma poesia. Pessoal e divertida, “Pai” foi feita em cima de fotos de Deodato Borges na cama de um hospital; enquanto “O Que Importa” foi feito para a filha do artista quando ela tinha 23 anos, e exibe um desenho estilizado, infantil mas que brinca com o vínculo do artista com os HQs de super-heróis. Já “Ninguém na Escuta” usa o hiper-realismo mais conhecido dele para retratar o que pensa da religião, e sem uma linha de texto além do título (que aparece no fim). “Insensibilidade” é em preto e branco e com um autocontraste de linhas finas, que Deodato associa a Jim Steranko. A seguinte, “Ponto Final”, retoma em um segundo centerfold, um jogo tonal de cores. Logo depois vem um autorretrato estilizado, em traço solto, sobre a timidez — aflição que Mike Deodato diz sofrer. “Dia da Caça” é outra fantasia heroica, mas em uma pré-história com dinossauros. “Vida, Morte e…” é não um poema ilustrado, mas uma reflexão, com um homem sentado em um banco de praça contemplando a existência. “Elo”, uma contemplação da maternidade, com arte que remete à da capa, fecha mais este desejável volume.

 

Arte de capa de Hector Gómez Alisio.

Samsara, de Hector Gómez Alisio (arte) & Guilherme de Almeida Prado (texto). São Paulo: Editora Globo, 1991, 64 páginas. Arte de capa de Hector Gómez Alisio. Álbum. Guilherme de Almeida Prado é o cineasta brasileiro que dirigiu A Dama do Cine Xangai (1988). Premiado com o Troféu HQ Mix em 1988 e 89, Hector Gómez Alisio é um artista argentino radicado há tanto tempo no Brasil que já faz parte da história dos quadrinhos nacionais. Sou fã do seu desenho. Ambientada em Nova York, Samsara é uma colaboração entre os dois. Mistura de FC de viagem no tempo e ficção de detetive hard boiled, é temperada com sexo, humor e muita referência intertextual irônica. Isso já dá pra sentir pelos nomes — como o do protagonista “John Lovecraft”. Segundo Prado, esta é “a sua primeira experiência com histórias em quadrinhos, e nasceu da impossibilidade de transformar seus sonhos cinematográficos em realidade num país carente de recursos como o Brasil.”

Lovecraft, enquanto recebia uma ordem de despejo, vê na rua a mulher dos seus sonhos, a segue e acaba nocauteado por uma futurista pistola de raios. Mais tarde, ainda seguindo a morena, descobre instalações super-high tech, onde é capturado por um robô e acaba metido na intriga de viagem no tempo. Isso permite ao artista representar várias situações típicas de filmes antigos, incluindo o caso verídico do sequestro do filho do aviador Charles Lindbergh. As andanças do desastrado herói e do seu interesse erótico (a garota é agente de uma polícia temporal) acabam reencenando o clichê sempre dispensável do casal primordial – na pré-história e com direito a dinossauros. As peripécias divertidas não escondem que Prado não acreditava muito no seu material, enxergando este mergulho na ficção científica como um exercício de paródia e pastiche. Obviamente, não é apenas a falta de recursos que nos impediria de possuir um cinema de FC com qualidade (veja o livro Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro, de Alfredo Suppia, a respeito disso).

 

Arte de capa de Shiko.

Piteco: Ingá, de Shiko. Barueri-SP: Panini Brasil/Mauricio de Sousa Editora, 2013, 82 páginas. Arte de capa de Shiko. Álbum. A quadrinista e ficcionista Rita Maria Felix me recomendou este álbum várias vezes. Finalmente, neste mês dedicado à leitura de quadrinhos brasileiros, tive chance de ler o trabalho notável de Shiko, artista de talento excepcional. Piteco é o Brucutu (Alley Op) de Mauricio de Sousa, mas a versão “graphic novel” de Shiko troca os dinossauros por uma exploração mais coerente, muito bem-vinda, da fauna latino-americana do Paleolítico recente. Também é muito rica a sua invenção de indumentária das três tribos que aparecem na história, a começar pelo povo de Piteco, passando pela do povo de Ur, chegando à dos inimigos homens-tigre.

Ficção científica pré-histórica é rara no Brasil: Sambaqui: Uma Estória da Pré-História (1975), de Stella Carr, é uma primeira ocorrência. Há ainda a noveleta “Foi Assim (Talvez)” (2000), de Ivanir Calado, a novela juvenil No Começo de Tudo (2002), de Domingos Pellegrini, e a novela Sambaqui (2008), da paleontóloga Urda Alice Klueger. Mas Piteco: Ingá é também fantasia, com visões xamânicas e aparições de entidades da floresta.

Ameaçados pela falta de água, a turma de Piteco tem que migrar. No processo, sua rechonchuda namorada Thuga é raptada pelos homens-tigre. O herói recruta o amigo trapalhão Beleléu e a guerreira Ogra, e eles vão à luta. Encontram pelo caminho uma espécie de Yara do brejo, saem na paulada com os caras de Ur, pedem ajuda ao tipo da Caapora montado em um tatu gigante, cavalgam aves do terror, enfrentam um morcego gigante, fazem amizade com répteis voadores (licença tomada do tempo dos dinossauros), negociam com os homens-tigre e confrontam o totêmico tigre-dentes-de-sabre gigante deles. Ufa! Genial, Shiko faz o malabarismo perfeito de todos esses elementos. Captura a riqueza étnica da nossa pré-história sugerida pelas hipóteses levantadas em torno do famoso fóssil de Luzia, integrando fisionomias africanas e nordestinas nossas contemporâneas. (Não reclame, filmes como Mil Séculos Antes de Cristo são “californianos na pré-história”.) Mesmo com as hipóteses de origem africana ou melanésia de Luzia sendo contestadas pelo mais recente exame genético do fóssil, Piteco: Ingá se sustenta como uma visão especulativa inspirada naquelas hipóteses. Nesse sentido, vai muito além de um spin-off jovem-adulto da criação de Mauricio de Sousa, por projetar, com um jeito bem-humorado, o mito do encontro das três raças e a diversidade brasileira atual para o nosso paleolítico. Uma realização admirável.

 

Arte de capa de Mauro Fodra.

Desafiadores do Destino: Disputa por Controle, de Felipe Castilho (texto) & Mauro Fodra (arte). Porto Alegre: Avec Editora, 2018, 64 páginas. Arte de capa de Mauro Fodra. Álbum. O autor best-seller Felipe Castilho me autografou este deslumbrante álbum de fantasia steampunk no Artists Alley da Comic Con Experience de 2018, em São Paulo. Trata-se de aventura em um passado alternativo no qual a Atlântida não afundou no mar e seres mágicos povoam a Terra. Um conselho de sábios residindo em Londres envia uma equipe multiétnica de heróis para as Ilhas Falkland (Malvinas) em missão diplomática. O arquipélago do Atlântico Sul é palco de uma guerra entre atlantes e lemurianos (Lemúria, outro continente lendário que, aqui, não teria desaparecido), e um enviado deve fazer um discurso de paz. A chefe da missão é a ruiva sardenta que aparece em primeiro plano na capa de Mauro Fodra: Luna Lefevre, que guarda um demônio ancestral dentro dela.

O enredo de Castilho é firme e forte e cada personagem da equipe tem a sua própria personalidade e papel na intriga. O desenho de Fodra é ao mesmo tempo delicado e dramático, com muitos detalhes finos e uma valorização artística da linha. Assim como um Michael Kaluta, há nele um amor à arte do desenho, e este álbum lhe rendeu um Prêmio Ângelo Agostini de Melhor Desenhista. Mas é preciso elogiar a cor de Mariane Gusmão, que não abafa essas qualidades ao mesmo tempo que se casa, com muitos tons, com a exuberância das minúcias do desenho. Ainda por cima fornece, com truques de brilho, uma sugestão de tridimensionalidade à arte. Mais um gol da linha de quadrinhos da Avec.

 

Arte de capa de Laudo Ferreira.

Cadernos de Viagem: Anotações e Experiências do Psiconauta, de Laudo Ferreira. São Paulo: Devir Brasil, 1ª edição, outubro de 2016, 84 páginas. Prefácio de André Diniz. Arte de capa de Laudo Ferreira. Brochura. Laudo, autor do monumental Yeshua, me autografou um exemplar desta HQ muito especial no evento Start de 2018, quando tivemos chance de conversar e lamentar a morte recente de nosso amigo Douglas Quinta Reis (1954-2017), sócio-fundador da Devir e alguém que editou muitos dos nossos trabalhos.

O gibi de Laudo foi beneficiado com o incentivo do ProacSP, da Secretaria de Cultura do Governo do Estado. Os desenhos são bem estilizados, ao contrário do realismo de Mike Deodato, mas a história se alinha, novamente, com algo daquela tônica mais pessoal e menos comercial das HQs brasileiras da década de 1980 (época do início da carreira do artista). Assim como Laudo, o seu protagonista Miguel é um criador de quadrinhos. Após uma “viagem” causada pelo brasileiríssimo Santo Daime, ele recupera lembranças abafadas da infância vivida no interior, com o pai autoritário que não aceitava a sua vocação e reprimia o seu mundo imaginativo. Esse rememorar balança a vida do psiconauta (neologismo muito feliz), e a memory trip é tratada por Laudo com riqueza de momentos oníricos e signos que incluem fisionomias e paisagens brasileiras, e um carro alegórico que conduz o protagonista desnudo até uma visão cósmica. Além de uma certa action-figure que fala muito à minha geração.

Dá para dizer que Cadernos de Viagem, uma bem-sucedida experiência metaficcional, é também uma história em quadrinhos de autoficção: “Miguel não é Laudo. E é”, afirma André Diniz, no prefácio, destacando o fator que torna esta história tão humana e poderosa. “Sou eu também. E você também.” Com certeza, eu me senti, em certa medida, muito bem representado em suas páginas.

 

Outras Leituras

Arte de capa de

Scientific American Brasil Ano 19, N.º 213, novembro de 2020, Nastari Editores, 66 páginas. A matéria de capa trata de asteroides extra-solares, i.e., originários de fora do Sistema Solar, uma fantástica novidade da astronomia recente. É assinada pelos astrônomos David Jewitz & Amaya Moro-Martín, e trata dos dois corpos interestelares conhecidos, 1I, o famoso ‘Oumuamua, e 2I/Borisov, menos conhecido. Os autores nada mencionam sobre a possibilidade do primeiro ser uma espaçonave alienígena como Rama, de Encontro com Rama (1973), de Arthur C. Clarke (como crê o astrônomo Avi Loeb). Em “O Destino dos Bravos Maias”, Zach Zorich trata — acompanhado de um belo ensaio fotográfico de Christian Rodriguez — de novas descobertas arqueológicas na região do Lago Mensabak (Sul do México). Os demais artigos principais tratam da necessidade de programas sociais que garantam a alimentação adequada na primeira infância; de como a pandemia da Covid-19 alterou o sono das pessoas mundo afora, mexendo até no conteúdo dos sonhos; e as lições da pandemia da AIDS, para o combate à Covid. Nas seções fixas, o jornalista científico e trekker Salvador Nogueira trata da primeira imagem de um buraco negro (feita em 2017).

—Roberto Causo

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Leituras de Outubro de 2020

Mais space opera neste mês, e também a interessante experiência de ler o brasileiro Ivan Carlos Regina, um dos pilares da Segunda Onda da FC Brasileira, seguido do brilhante autor americano Harlan Ellison. Histórias em quadrinhos de super-heróis e de ficção de crime completaram a dieta de outubro.

 

Capa de Stephanie Marino.

O Par: Uma Novela Amazônica, de Roberto de Sousa Causo. São Paulo: Agência Magh, 1.ª edição eletrônica, outubro de 2020. Prefácio de Osvaldo Ceschin, posfácio de Roberto Causo. Arte de capa de Stephanie Marino. A primeira edição eletrônica da minha novela de ficção científica premiada no Projeto Nascente 11 (da pró-Reitoria de Cultura da USP) no ano 2000, saiu da pré-venda e foi distribuída pela Amazon em 9 de outubro.

A nova edição conta com o posfácio original do Prof. Osvaldo Ceschin, da Universidade de São Paulo, feito para a edição da Editora Humanitas em 2008. Além disso, apresenta um posfácio feito especialmente para esta edição da Agência Magh, com comentários meus sobre as questões da Amazônia Brasileira e sua mística torta junto aos militares e políticos nacionais.

A história acompanha um soldado que, após se indispor com os companheiros de armas, deserta e passa a vagar por uma Amazônia basicamente isolada do restante do mundo por uma estranha invasão alienígena. Após o encontro imediato com uma das naves alienígenas, ele testemunha o retorno à vida, da companheira morta em um acidente. Após muitas andanças do casal, o ápice da novela se dá quando eles vão parar em uma comunidade de pessoas que não atenderam à evacuação, ou que foram cooptadas para continuar trabalhando na floresta por um oligarca local, um predador da natureza crente nos clichês nacionais de progresso e prosperidade. O estilo é mais minimalista e áspero do que o meu habitual.

 

The Man-Kzin Wars, de Larry Niven com Poul Anderson & Dean Ing. Londres: Orbit, 1.ª edição, 1989 [1988], 290 páginas. PaperbackA série Man-Kzin Wars é o “universo de aluguel” de Larry Niven, pertencente ao seu universo ficcional e história do futuro “Espaço Conhecido” (Known Space). Mais explicitamente space opera, do que, por exemplo, o romance clássico Ringworld (1970), surgiu de um conto de Niven intitulado “The Warriors” (1966) . Na introdução desta que foi a primeira antologia original de histórias do rented universe, Niven conta que a ideia para ele surgiu em uma viagem de táxi partilhada pelo editor Jim Baen, da Baen Books, que a sugeriu a ele. Incluído na antologia, o conto de Niven fala do encontro de uma nave humana com os belicosos kzin — os gatões que aparecem na vibrante capa do artista não creditado da edição inglesa. O problema é que a humanidade havia abandonado as armas e os próprios instintos guerreiros, após algumas gerações de treinamento psicológico. Para que a tripulação sobreviva aos predadores alienígenas, ela precisa contornar seus bloqueios e improvisar uma arma efetiva, com a tecnologia existente a bordo.

“Iron” é a contribuição do veterano e renomado Poul Anderson (1926-2001), uma movimentada aventura de FC hard sobre uma expedição privada a um sistema planetário pobre em ferro e regido por uma anã vermelha que pode ser tão antiga quanto o universo. A história propriamente abre com o herói Richard Saxtorph sobrevivendo ao ataque de um kzin, em uma estação espacial humana reconquistada desses alienígenas. Ele e a esposa Dorcas comandam a expedição, que inclui um especialista em kzin e burocrata da exploração espacial, que insiste em acompanhá-los. Uma vez no sistema, eles se deparam com uma nave kzin e precisam dividir a tripulação. Alguns são capturados e interrogados, em uma intriga que inclui tortura e a traição do burocrata, um colaboracionista protofascista que admira a cultura de violência e autoritarismo dos aliens predadores. Em outra linha, um casal que descobre o amor refugia-se na superfície de um planeta, em que são prontamente ameaçados por uma massa de protoplasma — constituído de uma única molécula sedenta de metal, formada nos bilhões de anos em que o planeta coletou átomos simples no espaço intergaláctico. A volta por cima dos humanos sobre os kzin se dá com uma dramática atividade extra-veicular conduzida por Dorcas. Com 150 páginas, a novela de enredo complexo e rico resulta na leitura própria de um romance. A imaginação de Anderson está em grande forma aqui, em um texto empolgante que se lê como uma deliciosa mistura de FC antiga e moderna.

“Cathouse”, de Dean Ing, é a novela que fecha o livro, mais restrita na ambientação, igualmente interessante quanto a sua exploração do universo dos kzin: um etologista é feito prisioneiro pelos aliens e deixado em um estranho planeta — zoológico espacial com vários habitats lacrados por um campo de força. Naquele destinado aos kzinti, ele encontra um grupo deles preservado em um campo de stasis. Precisando de um colaborador, “descongela” uma fêmea que imediatamente dá em cima dele. A relação que se estabelece entre os dois é divertida e, ao mesmo tempo, alarga alguns dos sentidos da série: assim como em outros momentos do universo Known Space, de Niven, as fêmeas alienígenas são animalizadas. Mas Kit e as amigas que ela libera mais tarde do campo de stasis são de uma era anterior às manipulações dos machos da espécie, e reivindicam bastante. Tantas fêmeas em volta do humano permitem a brincadeira com o título (gíria para “prostíbulo” ou “zona”, como diríamos no Brasil), mas a verdade é que a história se concentra no humor e na aventura (quando os militares kzinti retornam ao habitat para dar um destino ao prisioneiro). Kit acaba sendo uma personagem especial. Gostei do livro como um todo.

 

Arte de capa de Jim Burns.

Night Train to Rigel, de Timothy Zahn. Nova York: Tor Books, 2006 [2005], 326 páginas. Arte de capa de Jim Burns. Paperback. Timothy Zahn, a quem já tive a oportunidade de entrevistar, é conhecido no Brasil pela Trilogia Thrawn, de romances originais atrelados a Star Wars, mas ele teve antes uma carreira associado à revista Analog. Cedo, fez a transição para a FC de aventura e space opera, mas uma série de space opera militar como a sua série Cobra (inédita aqui) não é necessariamente incompatível com a FC hard.

Antes de pegar a Trilogia Thrawn, resolvi ler este romance de conceito diferente, que brinca com o elemento mobilidade da space opera: a tecnologia que conecta os mundos de uma comunidade galáctica futura não são naves espaciais que viajam mais rápido que a luz, mas um trem que percorre um caminho entre as dimensões. Ao mesmo tempo, evoca as histórias de suspense do tipo Assassinato no Expresso do Oriente (1934), de Agatha Christie. A história, inclusive, abre como o protagonista Frank Compton, um agente secreto com um passado meio desastrado, tropeçando em um assassinato, antes de embarcar no trem interestelar. A sidekick de Compton é uma jovem especialista na cultura das Spiders que controlam o transporte. Também presente na arte de Burns na capa, o sujeitinho peludo à esquerda é um alienígena de uma cultura que tem a arma manual como símbolo social máximo (talvez um cowboy animalizado, para efeito de sátira ao apego americano pelas armas de fogo?). No comboio que não permite armas, eles usam réplicas inertes — exceto pelo fato de que atentados acontecem e investigações tentam descobrir quem deseja impedir o trabalho de Compton. A trilha leva à descoberta de um contrabando de caças estelares, para emprego em um conflito que deve ser evitado a todo custo. Nesse ponto, é preciso desembarcar do trem e chegar a algum lugar. Neste caso, um planeta em que existe um fungo inteligente e manipulador de vontades, a ameaça maior por trás do conflito. Outra ideia bem pulp, que remete àquela FC de aventuras da era de ouro da FC americana. A história só teria a ganhar se os protagonistas tivessem um pouco mais de vibração ou carisma, ou se a atmosfera de fato replicasse algo do charme do romance de Christie. Outra doação de Alfredo Keppler.

 

O Fruto Maduro da Civilização + O Éter Inconsútil, de Ivan Carlos Regina. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, 2019, 220/364 páginas. Introduções do autor e de Karina Elizabeth Vázquez. Texto de orelha de Luiz Bras. Capas de Teo Adorno. Brochura. Ivan Carlos Regina é uma das figuras centrais da Segunda Onda da FC Brasileira. Sócio fundador do Clube de Leitores de Ficção Científica, foi muito ativo no fanzine Somnium. Publicou profissionalmente pela primeira vez na antologia de Gumercindo Rocha Dorea, Enquanto Houver Natal… (1989), com “Pode Acontecer com você na Noite de Natal”. Mais tarde, Dorea incluiu a sua coletânea O Fruto Maduro da Civilização (1993), com 19 textos, na mesma coleção Ficção Científica GRD. O livro ressurgiu em 2019 como parte deste volume completado por O Éter Inconsútil, a segunda coletânea do autor. Em nenhum lugar do novo livro há a menção da sua publicação anterior pelas Edições GRD — exatamente o tipo de coisa que tem enfurecido Dorea ao longo de seis das suas nove décadas de vida.

O Fruto Maduro da Civilização abre com o “Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira” (primeiro publicado no Somnium em 1988), texto que merece ser sempre revisitado para um entendimento da Segunda Onda e do tupunipunk (cyberpunk tupiniquim). Com sua evocação de misticismo hindu e de uma contracultura nacional, “Ananda: O Homem que Purpurava” é um dos contos do livro que também se qualifica como tupinipunk. Assim como o conto-manifesto “O Caipora Capira”, importante para entendermos como as ideias do manifesto casam com a proposta estilística e as intenções satíricas do autor, além das suas influências modernistas e tropicalistas. No plano do estilo, é um dos mais ousados de um livro de narrativas experimentais e intenções vanguardistas. Os premiados “Pela Valorização da Vida” e “A Derradeira Publicidade do Hebefrênico Alfredo” são alegorias modernistas da alienação das relações e da comodificação da vida humana que ampararam manipulações consumistas que vão além da publicidade. Num plano oposto ao da denúncia aberta, narrativas anedóticas como “O Tempo É um Carrasco Impiedoso” satirizam as formulações mais clichês da FC anglo-americana, outro tópico do manifesto. “Solange Súcuba Salva Sibarita Sexual” e “O Robô que Era Chato de se Ouvir e Todo Mundo Evitava sua Frequência” são poemas rimados, muito sarcásticos, e a poesia também invade outros textos, como “T-Vírus”. Fecha o primeiro livro o notável “O Fruto Maduro da Civilização”, mais curto que a média e extremamente contundente na denúncia do homem moderno e sua falta de volição e degradação física causadas pelo nosso estilo de vida. Eu o incluí na minha antologia Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica: Fronteiras (Devir Brasil; 2010).

A introdução de Karina Vásquez, da University of Alabama, em O Éter Inconsútil, vincula a abordagem de Regina ao neobarroco latino-americano e elogia a sua postura crítica. A coletânea traz 31 textos, um punhado visto antes em antologias. É interessante que, décadas depois, haja remissões claras a textos anteriores: “O Filho do Caipora Caipira” e “Ananda Comes Back”, além de “A Volta do Robô que Era Chato”, em diálogo com aquelas primeiras explorações fundadoras do Movimento Antropofágico da FC Brasileira. “Pequena História do Passado”, do mesmo modo, torna a explorar uma escala de neurose como definidora da experiência da modernidade vista antes em “A Derradeira Publicidade do Hebefrênico Alfredo”. A tendência anedótica e o melodrama pós-modernista reaparecem em “Amor de Lata Não Mata”, em que um robô desorientado vira babá de bebês na nave colonizadora que inesperadamente os gerou a partir do seu banco de embriões. “Balada do Cárcere de Celulose” é uma novidade: conto mainstream, curto, intimista e sombrio, ensaio de uma voz narrativa sólida e livre de experimentalismos. “Pode Acontecer com você na Noite de Natal” está neste livro, assim como “Rosa dos Ventos de Luz” (1998), este um conto ufológico, delicado, místico e, novamente, resgatando uma contracultura nacional expressiva, pacata e associada a uma das influências de Regina: a Tropicália (também presente em obras tupinipunks como Silicone XXI, de Alfredo Sirkis). “A Oportunidade Perdida por uns É a Oportunidade Ganha por Outros” é outra narrativa irônica, menos experimental ou formalista, na qual se expressam melhor influências como Robert Sheckley e Philip K. Dick. Algo semelhante se dá com “Aliens Deliriuns”, “Amarelo e Vermelho” (combinando FC da Golden Age com medicina alternativa, e dedicado à escritora Finisia Fideli), “Jairzinho” e a assemblage “Letters from Tomorrow”, colagem de vários textos, alguns vistos previamente. “Negro Laranja” é outra novidade: irônico conto de fantasia, com direito a um cerco medieval e a dragões, também em primeira pessoa como outras narrativas no livro. “O Último dos Bagos Roxos” incorpora outros procedimentos ao arsenal pós-modernista de Regina: o sexo explícito e a prosa brutalista de “mundo cão”, em uma caracterização de mesquinha figura política (tomada a partir de uma expressão “folclórica” de Fernando Collor de Mello) que remete tanto à ficção pop nacional da década de 1970, e à atual ficção pós-Mensalão de desencanto político e social. A brincadeira com o sexo também está em “O Centro Estelista”, uma sátira sexual de “Flores para Algernon” (1959), de Daniel Keyes, e mais um exercício de irreverência e iconoclastia (outro tópico do manifesto). “Ressuscitol”, escrito como uma bula de remédio, retorna à veia experimentalista e irônica, assim como “Clonaram el Rei” — um sketch de ventriloquismo com diálogos rimados. Destaques do livro são “Sete Vezes Homem, Sete Vezes Besta”, outra assemblage que explora fragmentos de épocas e lugares diferentes no mundo, e “Manduruvá É o Pai de Todos”, talvez delírio paranoico do narrador, mas com imagens inquietantes que reforçam a condenação comum em Regina, dos descaminhos da sociedade. Paradoxalmente positivo, “MOMA: Minha Organização Mundial de Animais” dá voz a sete espécies da Terra, o Homo sapiens sendo só uma delas, e termina com um comentário metaficcional que ampara outro ponto comum no autor: a conclamação para a mudança. Um favorito, “Teviterone” também é metaficcional e com uma sugestão de auto-refente (além de um toque de paródia do V’ger de Jornada nas Estrelas: O Filme): um poeta em futuro próximo acaba encontrando um robô-redator automático, o The Writer One, programado para escrever pulp fiction barata e que, ao ganhar consciência, assume uma prosa existencialista, com o poeta assumindo o seu manto de pulp writer depois da eutanásia do aparelho. Está lá com peças metaficcionais que expressam a tensão entre o enfoque modernista e o popular entre nossos autores de FC: “Pequenas Histórias do Tempo” (1994) e “Paperback Writer” (1994), de Braulio Tavares, e “Director’s Cut” (2008), de Fábio Fernandes.

Regina deu a entender que a trajetória do protagonista de “Teviterone” seria semelhante à sua, da prática poética radical, vanguardista, a uma abertura ao narrar mais natural, e realmente me encantou a emergência de uma prosa literária sólida, brasileira, elegante e inteligente presente nesse e em outros contos. Mas não se deixe enganar — em O Éter Inconsútil ainda há muito experimentalismo e os elementos buscados por ele desde a década de 1980, expressos no “Manifesto Antropofágico”. Um dos principais lançamentos de 2019 e o resgate da obra de um autor que merece consideração crítica aprofundada e maior reconhecimento.

 

Arte de capa de Bob Pepper.

Ellison Wonderland, de Harlan Ellison. Nova York: Signet, 1974 [1962], 178 páginas. Arte de capa de Bob Pepper. Paperback. Esta é uma das primeiras coletânea de contos de Ellison, doada por Alfredo Keppler. Na introdução, o renomado autor inglês, muito vinculado à televisão e ao cinema, conta que foi para Hollywood com uma mão na frente e outra atrás, e a venda deste livro teria sido um refresco necessário naquele momento. Lembra ainda como uma resenha de Dorothy Parker na The New Yorker alterou o rumo de sua carreira. São 16 histórias de FC e fantasia pulp publicadas em revistas menos conhecidas, como Fantastic Universe, Rogue Magazine, Infinity Science Fiction, Science-Fantasy Magazine e Space Travel Magazine. Umas poucas apareceram em Amazing Stories e If: Worlds of Science Fiction — testemunho, na verdade, de um autor prolífico e singular.

Na primeira história, “Commuter’s Problem”, um cara comum da nossa realidade, meio sem opções na vida, começa a enxergar uma outra realidade que se cruza com a nossa, seguindo as pistas que aparecem e indo parar em um outra planeta que usa secretamente o nosso como colônia de férias e válvula de pressões sociais. Ao ser descoberto, é que os seus problemas começam — para não ser morto, precisa convencer as autoridades locais de poderia ter lugar nessa outra sociedade. “Do-It-Yourself” tem uma mulher insatisfeita fazendo uso de uma empresa especializada em eliminar cônjuges, por meio de um kit entregue a domicílio. Um conto meio Além da Imaginação, com tipo de conceito visto em Richard Matheson e Stephen King, explicitando a falta de valores da sociedade moderna. “The Silver Corridor” apresenta outra empresa especializada em morte — a organização de duelos, neste caso —, mas no futuro. Os duelistas são dois cientistas rivais em um jogo de xadrez mortal, numa história de imagens inquietantes, com um final irônico e violento. “All the Sounds of Fear” tem um ator de imersão como protagonista, um homem que vai parar em um sanatório mental, culpado de um crime de morte. É uma história de horror sobre dissociação de identidade. “Gnomebody”, por sua vez, é um conto de humor — sobre um gnomo atrapalhado e de sotaque irlandês, é claro. “The Sky Is Burning” é uma FC de fim de mundo, com alienígenas que vem morrer na Terra, perante o fim do universo — escrita com seriedade e brevidade. Ambientado em uma nave espacial, “Mealtime” é bem mais irônico, sobre um planeta como aquele de Poul Anderson em “Iron”, que rejeita os humanos da sua tripulação, como alimento — contraponto a toda uma conversa de chauvinismo humano, de alguns deles. Em “The Very Last Day of a Good Woman” um sujeito descobre que o holocausto nuclear vem aí, e vai à caça de uma mulher, que encontra em um bar, resultando em um final estranhamente terno, e irônico, é claro. “Battlefield” mostra um futuro em que as guerras são disputadas na Lua. As descrições épicas e tecnológicas mascaram a verdadeira natureza, mesquinha e pequena, do conflito, em outro conto que satiriza valores distorcidos. Em “Deal from the Bottom” um prisioneiro no corredor da morte aguardando sua execução, faz um incomum trato com o diabo. “The Wind Beyond the Mountains” é uma FC de exploração espacial com tripulantes de uma nave que se aproximam demais do alienígena que capturaram para levar à Terra, na esperança de justificarem o seu empreendimento exploratório. “Back to the Drawing Boards” narra como um robô abusado em seus direitos acaba adquirindo o suficiente para comprar o governo da Terra e virar o jogo — história com reviravolta final, como várias outras no livro. “Nothing for my Noon Meal” é outra FC sobre húbris e de como a aventura humana em outro planeta não triunfa. Mais curto, “Hadj” tem um sentido semelhante, quando uma delegação da Terra vai ao planeta dos Mestres do Universo. “Rain, Rain, Go Away” tem um burocrata massacrado às voltas com um novo dilúvio. Fechando a coletânea, o ambientado em Marte “In Lonely Lands” é mais filosófico.

Além de Robert Sheckley e Philip K. Dick, Harlan Ellison é outro autor que partilha uma identidade programática com o nosso Ivan Carlos Regina, na crítica mordaz aos azares humanos, sem se esquivar de um certo moralismo incisivo e necessário.

 

Duelo dos Mundos, de Paul Koenig. Rio de janeiro: Tecnoprint, Série Futurâmica N.º 1, s.d., 140 páginas. Livro de bolso. Na grupo do Facebook “Edições de Ouro-Tecnoprint“, Pedro Lucas Silva Santana levantou a possibilidade deste livro ter sido escrito por um brasileiro, sob pseudônimo. Dioberto Souza invocou Quim Thrussel, um especialista em quadrinhos e edições populares nacionais, muito ativo na blogosfera e no Facebook, e este me pediu para opinar. Como eu tinha o livro aqui, doado pelo filho do escritor da Primeira Onda, Clóvis Garcia, resolvi ler e tirar a prova. O livro apresenta um futuro em que a humanidade, pela aplicação do ensino hipnótico e de uma língua universal criada artificialmente, apresenta-se política e culturalmente unificada. O meio de transporte interplanetário são discos voadores e a civilização humana é ameaçada por naves marcianas esféricas, situação de guerra interplanetária que ecoa, inclusive no título, a novela de H. G. Wells, A Guerra dos Mundos (1897). O enredo envolve o herói, um agente secreto chamado Meneson, sendo capturado pelos marcianos e conhecendo uma garota chamada Mari Silvan, para participar marginalmente de um deus ex-machina apocalíptico — que torna inútil toda a missão do herói, de fundamentar a construção de um raio da morte chamado “calorato”; a humanidade queda sob o controle marciano. O objetivo dos alienígenas: usar os humanos como cobaias em um experimento de aceleração evolutiva da mente, o que soa surpreendentemente positivo. Em toda a novela, a ação é confusa e a ciência ginasial ou ausente.

Não há menções a Koenig nas enciclopédias de FC anglo-americana e francesa mais conhecidas, e a internet não revela nada. A principal pista de que se trata de pseudônimo de um autor brasileiro está no artifício de, na sua variação do esperanto, terminar os nomes masculinos substituindo (ou somando) alguma sílaba ou letra final pela desinência “-on”, e os femininos por “-an”. Desse modo: Meneson (Meneses?), Pradon (Prado), Machadon (Machado), Campon (Campos), Nuneson (Nunes), Teleson (Teles) e Silvan (Silva). Segundo o Catálogo de Ficção Científica em Língua Portuguesa: 1921-1993 (1994), de R. C. Nascimento, Paul Koenig também é autor de Os Piratas de Vênus, na mesma coleção. Um brasileiro publicado na Série Futurâmica, com o seu próprio nome, foi Orígenes Lessa, com A Desintegração da Morte. Também foi publicado na Coleção Fantastic, da mesma Tecnoprint/Ediouro.

 

Quadrinhos

Arte de J. Scott Campbell & Tim Thowsend.

Marvel Saga: Espetacular Homem-Aranha: A Vida e a Morte das Aranhas, de J. Michael Straczynski (texto) & John Romita Jr. (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2020, 232 páginas. Arte de capa de Scott Campbell & Tim Thowsend. Capa dura. No terceiro volume da coleção dedicada à passagem de Straczynski pela Marvel, Peter Parker sonha com o Dr. Estranho — que o informa das consequências do seu encontro anterior com uma aranha mítica, em outra dimensão. Ele mal tem tempo de respirar, e surge uma espécie de vespa negra com forma de mulher e chamada Shathra, para matá-lo, forçando-o a lutar e a fugir. A criatura assume a identidade de uma jovem chamada Sharon, que se dedica a difamar a figura do Homem-Aranha, afirmando-se uma ex-amante dele. Com esta situação base, o autor não só expande a sua nova mitologia do herói, como explora a questão contemporânea da difamação e da sede de fofocas dos tabloides — impressos ou televisivos. Os toques de Straczynski são sempre fabulosos, como o Aranha detonado pela vespa indo se refugiar em uma exposição de “aracnomania” num museu de história natural. Quando o empresário Ezekiel Sims intervém, a aventura vai parar na África, em uma alusão à deusa-aranha Anansi, aquela mesma do romance de Neil Gaiman, e, na mitologia de Straczynski, a origem das características do Homem-Aranha.

Em outra aventura presente no volume, Peter vai a Los Angeles atrás de Mary Jane, mas se depara, ainda no aeroporto, com uma encrenca de muita ambiguidade moral envolvendo o Dr. Destino e o Capitão América. Logo depois, a história “O Escavador” combina um monstro mutante com a máfia italiana, em mais um roteiro divertido e inteligente, que parece muito verdadeiro em suas reflexões sobre crime e família, nas mãos de Straczynski — que é de Nova Jersey, não esqueçamos. Muito bom.

 

J. Kendall: Aventuras de uma Criminóloga N.º 148. São Paulo: Mythos Editora, setembro/outubro de 2020, 258 páginas. Tradução de Júlio Schneider. Brochura. Na primeira história deste volume duplo, “Carne de Açougue”, desenhada por Ernesto Michelazzo, a criminologista Julia Kendall atende ao apelo de uma amiga de infância, abusada fisicamente pelo marido açougueiro. Contudo, o caso logo se transforma em uma investigação de assassinato, que revela a vida dupla do marido e um inesperado e trágico triângulo amoroso, que, como de hábito nesta série, expressa uma ironia cortante quanto à violência, e sonda o caráter surpreendente e inesperado da vida.

“Atrás das Grades”, desenhada por Antonio Marinetti, faz a heroína se infiltrar, sob disfarce de prisioneira, em uma penitenciária para desbaratar as atividades da viúva de um chefão das drogas. Isso acontece depois que uma corajosa detetive disfarçada é morta ao ser descoberta. Em conjunto, as duas narrativas exploram a capacidade da mulher de cometer crimes, mas carregando consigo questões e dramas próprios da condição feminina — incluindo momentos de lesbianismo e da problemática da prisioneira que é mãe. Se a primeira história aborda a carência de valores da classe média, a segunda desce ao submundo da mulher no crime. Os escritores Giancarlo Berardi e L. Calza e Maurizio Mantero incorporam a reflexão social na sua ficção de crime com ambiguidade e inteligência, fazendo, por exemplo, uma abusiva carcereira salvar o dia.

Roberto Causo

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Leituras de Setembro de 2020

Em setembro, eu me vejo ainda buscando a essência da space opera, mas com espaço para a leitura de um notável romance da brasileira Claudia Dugim, e quadrinhos instigantes e divertidos, de J. Michael Straczynski e Meg Cabot.

 

Arte de capa de Alan Gutierrez.

Hegira, de Greg Bear. Nova York: Tor Books, 1.ª edição, 1989 [1987, 1979], 222 páginas. Arte de capa de Alan Gutierrez. PaperbackDe todas as ilustrações de capa de Alan Gutierrez que andei vendo por aí, esta é a melhor executada e a mais impactante. Perfeitamente adequada ao conceito fundamentador deste romance de estreia de Greg Bear, um dos autores de FC hard mais importantes a surgir no cenário do gênero, na segunda metade do século 20. A ambientação é um gigantesco conjunto articulado de habitats artificiais, onde vivem povos humanos que não se recordam das suas origens, e cujo conhecimento e tecnologia é alterado a partir do acesso que podem adquirir a gigantescos obeliscos de quilômetros de altura — quanto mais alto, mais elevado é o conhecimento científico, de modo que o acesso estaria subordinado à capacidade de organização e de realização tecnológica de cada povo. Certamente, um mecanismo de segurança, ajustado à dinâmica social possível, pensado pelos criadores desse mundo artificial. Mas também metáfora concreta, épica, da busca e da evolução civilizatória que remete ainda ao mitológico — como o voo de Ícaro, a Torre de Babel, e talvez o modelo das esferas celestes na antiguidade: um firmamento alcançável por meios físicos (explorado na noveleta premiada de Ted Chiang, “Tower of Babylon”, de 1990). 

Os personagens têm uma caracterização mundana, que se tornaria típica de Bear — não são heroicos, idealizados, e de saída não são especialmente capazes de refletir sobre o que se passa com eles. O atormentado jovem escriba Kiril é recrutado por um ex-general e seu companheiro, para viajar grandes distâncias nesse mundo (a quarta capa da edição dá erroneamente o general, Bar-Woten, como o protagonista). Às vezes, passam por territórios em que diferentes grupos fundamentalistas religiosos estão em guerra, em uma ocasião alistam-se em um navio, são capturados por um povo mais avançado que usa armas de alta energia para derrubar os obeliscos e acessar livremente o seu conhecimento. O romance é portanto um exemplo de viagem fantástica, o mais antigo formato narrativo associado à FC, temperado por muito estranhamento e exotismo. A busca do trio os leva até os limites do mundo, aos bastidores da grande encenação civilizatória armada pelos seus criadores, onde Kiril encontra algumas respostas sobre a sua amada (motivo do seu exílio inicial), sobre si mesmo e sobre o mundo. O que o fez pôr o pé na estrada foi a lenda de que quem chegasse ao fim do mundo se reencontraria com o seu amor. Ao exotismo da paisagem e das diversas evocações religiosas e de antigas civilizações soma-se o da revelação final: o planeta artificial, maior do que Júpiter, foi construído em torno de um buraco negro que lhe fornece energia perene, para que atravesse os momentos derradeiros da entropia de um universo moribundo. Desse modo, o que fora uma supercivilização foi fragmentado e reduzido em tamanho e retornado a algo semelhante ao que havia sido de início, inclusive em termos civilizatórios. Enquanto o supermundo artificial cruza de um universo moribundo para um por nascer, os diversos povos têm a oportunidade e o tempo de encenar suas buscas evolutivas e adquirir o conhecimento necessário para frutificarem, quando o novo universo estiver ponto para recebê-los. Ou assim se deduz. Grandioso e intrigante, provocante como só a FC pode ser. Mais um livro doado a mim, da coleção de Alfredo Keppler, um ex-presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica, e organizador da antologia Vinte Voltas ao Redor do Sol (2005).

 

Arte de capa de Jim Burns.

Sundiver, de David Brin. Nova York: Bantam Spectra, 1995 [1980], 340 páginas. Paperback. Este é o primeiro livro da série Elevação (Uplift), de David Brin, e que teve cinco títulos publicados em Portugal (segundo informou o tradutor Carlos Angelo), na coleção de FC da Europa-América. Eu já havia lido os dois outros, e agora, graças novamente a Alfredo Keppler, pude completar a leitura da trilogia. Brin, que fez muito sucesso com a série, também escreveu The Postman, romance de 1985 que virou um filme de Kevin Costner em 1997, tornando Brin o primeiro dos grandes da FC americana da década de 1980 a ter um livro adaptado por Hollywood (já no século 21, Orson Scott Card seria outro).

A história começa com Jacob Demwa, um especialista em xenologia, cooptado para participar de uma expedição conduzida por várias espécies alienígenas em companhia dos humanos, até as camadas externas do Sol, onde criaturas vivas foram observadas — batizadas de “espíritos do sol”. Muito é elaborado sobre a tecnologia de resfriamento laser da espaçonave que desce até a cromosfera do astro-rei. Também sobre os diversos alienígenas (um deles é uma planta) metidos na missão. No intrigante universo da Elevação, a “astropolítica” da galáxia é marcada pela prática de se elevar espécies com potencial para a senciência, tornando-as auxiliares da civilização-mestre na colonização da Via Láctea. A relação mestre-auxiliar dura um tempo, até que se conceda a autonomia plena. A Terra está envolvida em elevar golfinhos e nossos primos chimpanzés, de maneira quase que independente do que as civilizações alienígenas vinham praticando. Isso atrai a atenção delas, e também alguns ressentimentos.

A questão do primeiro contato como sun-ghosts é interessante em si mesma, mas quando o chimpanzé elevado Dr. Jeffrey é morto durante uma das incursões, a narrativa busca outro formato — o do romance de mistério, conforme Demwa desconfia de patifaria entre os membros da expedição, e não de hostilidade por parte dos nativos do Sol. Ele investiga e interroga, e a verdadeira face da política galáctica vai se apresentando em situações de grande suspense e perigo de vida, com soluções científicas bem imaginadas (o livro é, de fato, mais FC hard do que space opera, subgênero que vai se configurar mais nos volumes seguintes da série). Demwa é um personagem meio duro, mas seu estado mental, perturbado após a morte de sua amada em um acidente e estabilizado com esforços de meditação e auto-hipnose, fornece um toque interessante. Não se trata de um romance no mesmo nível dos episódios seguintes na série, Maré Alta Estelar (Startide Rising; 1983) e A Guerra da Elevação (The Uplift War; 1987), mas tem os seus próprios méritos e já expressa a tendência de Brin de apresentar enredos complexos, com muitas camadas de situações. Algo semelhante se pode dizer da capa do mestre inglês Jim Burns, aqui em momento pouco inspirado.

 

Arte de capa de Marc Simonetti.

Filhos de Duna (Children of Dune), de Frank Herbert. São Paulo: Editora Aleph, 2.ª edição, 2017, 526 páginas. Tradução de Maria Silvia Mourão Netto. Arte de capa de Marc Simonetti. Capa dura. Neste que é o terceiro livro da série Duna, em edição agraciada com capa crepuscular do artista francês Marc Simonetti, começa a se afigurar uma prática de Frank Herbert de ir, a cada novo volume, se desfazendo de personagens impactantes, desenvolvidos em volumes anteriores. Assim, Paul Atreides e Duncan Idaho são apenas sombras dos personagens fortes caracterizados antes, e o retorno de Lady Jessica ao palco, agora com o planeta Arrakis transformado em centro do império galáctico, reserva a ela a mesma sina. Pena, já que em Duna (1965) ela mostro ser uma das personagens femininas mais fortes da FC. Mulher poderosa e complexa em suas adesões, guia inicial de Paul na sua autodescoberta, é reduzida a mais uma operadora das intrigas palacianas do império. Idaho, antes filósofo questionador, é reduzido a consorte de uma cada vez mais enlouquecida e tirânica Alia Atreides, a irmã de Paul, exposta como feto ao líquido místico excretado pelo verme da areia.

O próprio Paul abandonou o império para se internar no deserto, ressurgindo como um pregador cego, também ele marionete de forças políticas ocultas. Tais forças se voltam para o extermínio dos gêmeos ilegítimos de Paul com a garota fremen Chani: Leto e Ghanima. A intriga contra as crianças inclui feras treinadas (com o perverso sacrifício de crianças escravas) para atacá-los nas areias de Arrakis. Antecipando a situação, os precoces Leto e Ghanima fogem e se internam no deserto. Criam um plano que envolve apagar a memória dela, e ele sofrer uma metamorfose pela sua fusão com trutas da areia (um estágio embrionário do verme). Os gêmeos são o centro da narrativa. Eles nasceram com o poder de Paul, o Muad’Dib, de reviver todas as experiências existenciais da sua linhagem e de prever o futuro dentro do desenvolvimento do Caminho Dourado ao qual se submetem, em uma das mais fortes manifestações, dentro do gênero, de um determinismo racial:

“Este foi o feito de Muad’Dib: ele entendeu que o reservatório subliminar de cada pessoa era um banco inconsciente de recordações que remontavam até às células primais de nossa gênese comum. Ele dizia que cada um de nós pode medir sua distância em relação a essa origem comum. Quando viu isso e relatou sua percepção, ele realizou o audacioso passo de tomar uma decisão. Muad’Dib se incumbiu de integrar a memória genética à avalição em andamento. Com isso, ele de fato atravessou os véus do tempo, tornando o futuro e o passado uma coisa só. Essa foi a criação e Muad’Dib corporificada em seu filho e em sua filha.” —Frank Herbert. Filhos de Duna.

Há uma face muito trágica nas duas crianças nascidas com tamanha bagagem. Constantemente, lembram os adultos de que são mais velhos, mais vividos, mais capazes e mais inteligentes do que eles. E certamente, menos inocentes ou abertas. Como Leto precisa colocar sozinho a dinâmica de Arrakis em cheque, Herbert praticamente o transforma, por força da metamorfose, em uma espécie de duro e implacável super-herói (ou supervilão). Nessa parte, os exageros pulp começam a incomodar. Como contraponto, o autor introduz o Príncipe Farad’n, treinado para ascender à posição de imperador pelas forças ocultas, se elas conseguissem eliminar os gêmeos. Farad’n traz um frescor ao romance, e Herbert foi especialmente sábio ao defrontar Leto com ele, no denouement.

 

Arte de capa de Jim Burns.

There Is No Darkness, de Joe Haldeman & Jack C. Haldeman II. Nova York: Ace Books, 4.ª edição, 1983 [1979], 246 páginas. Arte de capa de Jim Burns. PaperbackSe a arte de Jim Burns na capa de Sundiver não é das suas melhores, esta (mesmo esmaecida) é uma das minhas favoritas. Este é um romance composto de duas novelas assinadas pelos irmãos Haldeman e publicadas originalmente na Isaac Asimov’s Science Fiction Magazine em 1979, na primeira fase da revista. Acompanha um cadete espacial, Bok, também o narrador das aventuras. Ele vem de um planeta selvático de vida muito dura, e é um cara grande que se imagina muito apto à violência. Por isso se mete seguidamente em enrascadas, aceitando desafios de oponentes mais hábeis. Pesado, paga um “excesso de bagagem” quando sua turma de cadetes chega à Terra. Disposto a tudo para recuperar o dinheiro e se mostrar valoroso, ele se inscreve em vários torneios de gladiadores, primeiro contra feras, depois contra adversários ainda mais perigosos. A equipe de colegas e de gladiadores que reúne em torno de si não está livre de riscos.

Aqui, os Haldemans estão no território de Robert Sheckley, ou seja, um plano satírico em que muitos leitmotifs da ficção científica são tratados com uma violenta ironia, expondo faltas sociais no processo. O turrão e ingênuo Bok é vítima de espertalhões a cada passo que dá, e não parece haver uma pessoa honesta na sua Terra do futuro, apenas golpistas e corruptos, criminosos profissionais e burocratas maliciosos. Tudo isso, na primeira novela. Na segunda, é o ethos militar que sofre a atenção sarcástica dos irmãos, quando, durante um exercício militar, Bok e seus amigos são vendidos por um sargento corrupto para lutarem numa guerra anacrônica, com armas de fogo em trincheiras, em um conflito propositalmente limitado pelas partes. Joe Haldeman lutou no Vietnã e escreveu um livro de memórias de combate. Mais famoso, o seu romance clássico de FC Guerra sem Fim (The Forever War; 1974), também se nutre daquela experiência, que enriquece a segunda novela com reflexões interessantes sobre como o combate vai sangrando as disposições individuais, éticas e humanas dos soldados.

 

Arte de capa de Tim White.

A Jungle of Stars, de Jack L. Chalker. Nova York: Del Rey, 8.ª edição, s.d. [1976], 218 páginas. Arte de capa de Tim White. Paperback. Chalker, com quem tive o privilégio de conversar brevemente na MagiCon em Orlando, em 1992, escreveu uma das minhas histórias favoritas como leitor de FC, a delicada e sensível noveleta “A Orquestra de Dança do Titanic” (publicada aqui na antologia Asimov: O Melhor da Ficção Científica, organizada por Asimov & Martin H. Greenberg).

Este é o romance de estreia de Chalker, que se tornaria um autor muito bem sucedido comercialmente. Parte de um modelo antigo de composição de ficção científica, que começa com uma situação contemporânea. A história segue o herói Paul Savage, um oficial do exército americano no Vietnã, morto pelos seus colegas durante uma patrulha. Ele volta a vida e se vinga de alguns dos seus assassinos. O “milagre” é de responsabilidade de uma força alienígena. Ela o recruta para lutar em uma guerra escatológica entre facções que poderíamos chamar de “metadivina” (Haven) e “metademoníaca” (Bromgrev); isto é, superinteligências em conflito que podem ter inspirado essas noções metafísicas. O líder da organização “do bem” é reificado de forma tipicamente americana, como um empresário bem-sucedido chamado Wade.

Savage começa integrando uma organização de pesquisa de fenômenos estranhos.O serviço o leva a uma localidade americana onde ele conhece uma jovem cega e acima do peso, a quem ele imediatamente corteja. É interessante que esse gesto na direção de uma personagem incomum, fora dos padrões de beleza, antecipe em tantas décadas o questionamento muito em voga atualmente (a primeira edição do livro é de 1976). O relacionamento de Savage com a garota nem sempre soa maduro ou inteligente, mas é verdadeiro o bastante e sublinha o fato do herói se considerar muito feio, simiesco. Mais tarde, quando eles finalmente deixam a Terra para buscar a resolução do conflito em uma região remota da galáxia, a supertecnologia cura a cegueira da moça — e transforma Paul Savage em um modelo de beleza masculina: Doc Savage, um dos primeiros heróis pulp da FC. Chalker começou no mundo da FC como um superfã e fanzineiro, e este é um detalhe que expressa tal compromisso. Nesta altura, o romance já se moveu de situações de dark fantasy, passando por um pouco de FC ufológica, até se configurar como uma das mais estranhas space operas que já li. Bastante pulp em termos de estilo e de uma narrativa que migra muito de situação em situação, também firma com muita segurança a sua visão original e frequentemente inquietante, da luta entre o Bem e o Mal e de um indivíduo que impõe, a forças tão maiores, a sua própria solução.

 

Matando Gigantes, de Claudia Dugim. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, 2019, 332 páginas. Texto de orelha de Fábio Fernandes. Capa de Teo Adorno. Brochura. Escritora e antologista muito ativa na cena da Terceira Onda da FC Brasileira, Dugim entra na Futuro Infinito de Luiz Bras com um substancial romance de nave de gerações, subgênero explorado em Infinito em Pó (2004), de Luís Giffoni, em B9 (2011), de Simone Saueressig, e em Nômade (2010), de Carlos Orsi.

Matando Gigantes, o primeiro romance de Claudia Dugim, desenvolve duas linhas narrativas que se combinam — é a técnica da “narrativa entrançada”. A primeira linha envolve uma comunidade dedicada a caçar gigantes, que são mortos com finos cabos capazes de amputar membros ou decapitar um dos “monstros”. Gus é um homenzinho trans que se interessa muito pelo conhecimento e tem no irmão Uor um herói matador de gigantes. Enquanto Gus tropeça em burocratas megalomaníacos da sua comunidade instalada em tubulações da nave espacial, o policial Nicolau investiga as mortes e tropeça em um movimento revolucionário, antiautoritário, composto de haitianos e brasileiros (outro toque interessante). No desenrolar da trama, grandes mentiras oficiais são descobertas, enquanto os dois grupos lutam para sobreviver e triunfar, estabelecendo uma convergência de interesses e um gesto de protagonismo dos pequenos, dos periféricos e não empoderados.

Parece haver ecos de Non-Stop (1958; t.c.c. Starship), de Brian W. Aldiss, no contexto de um conflito aberto entre os viajantes de uma nave de gerações que parece se encaminhar para o desastre, na mão de frios tecnocratas. Certamente, a narrativa é tensa o bastante e apresenta um gravitas crescente conforme avança para o clímax. Não obstante, a autora vê o livro como dirigido ao público jovem, e escolhe descrever os pequeninos quase com índices de literatura para crianças, com muita fofura e atrapalhação, contrastando com as descrições sangrentas dos seus feitos contra os gigantes — nós, os humanos normais. Inclusive, a narrativa coloca um par de crianças parentes de Gus e Uor em perigo, no ápice da encrenca. Bem-vindas são as descrições da “vida cabocla”, descomplicada e iconoclasta, e de sexo livre dos pequeninos. De qualquer modo, talvez haja aí outro testemunho (o romance O Esplendor, de Alexey Dodsworth, é outro exemplo) do quanto a prosa jovem se tornou dominante no campo da FC e fantasia. Um outro modo de enxergar a prática, no caso do notável romance de Claudia Dugim, seria um emprego de um ângulo pós-modernista que questiona implicitamente as adesões emocionais da literatura tradicional e desafiando o leitor ao combinar diferentes registros textuais. (Em entrevista a Luiz Bras, Dugim admite ter meio que “duas personalidades”.)

 

Quadrinhos

Arte de capa de Christian Zanier.

Rising Stars: Power, de J. Michael Straczynski. Los Angeles: Top Cow, 1.ª edição, 2002, 190 páginas. Arte de capa de Christian Zanier. Trade paperbackEm maio de 2018, li Rising Stars: Visitations (2002), narrativa de origens desta criação de Straczynski, sobre um núcleo de super-heróis e supervilões surgido com a queda de um meteoro na cidade de Pederson. Por meio de flashbacks, o livro relembrava o surgimento dos “Pederson Specials”.

Neste Power, muita coisa já rolou por baixo da ponte, conforme informam artigos de revista noticiosas ficcionais, antecedendo à HQ propriamente. Ficamos sabendo que muitos Specials foram cooptados por empresas de segurança, depois de um grave evento em Chicago. Outro texto trata da reação governamental a esses “mutantes” que são vistos como armas vivas de destruição em massa, e o seguinte conta como a superpoderosa Stephanie Maas — sofrendo de um caso de superpsicopatia — declarou Chicago sua área de ocupação, reunindo lá outros Specials. O artigo final conta como os Specials tendem a agir de modo arbitrário e mesquinho, já que a maioria só pode se detida por seus colegas.

O grosso do livro é dedicado ao conflito entre duas facções de Specials, quando uma delas, liderada por John Simon, decide enquadrar a outra, especialmente depois que companheiros têm sido mortos um a um. Chicago é o campo de batalha. Straczynski antecipou algo do ciclo Guerra Civil da Marvel — que é de 2006-2007. Mas enquanto Mark Millar se concentrou em expressar a sua desconfiança quanto ao poder, zoando com a psicologia dos tradicionais super-heróis e buscando no seu comportamento traços fascistas, Straczynski ousou abordar um questão subjacente à relação entre super-heróis e o poder legítimo: para quê, exatamente, os super-heróis salvam o mundo? Todo ano, uma ou duas vezes assistimos os Vingadores salvarem o mundo, aparentemente para que algum malandro como Trump, Putin ou Bolsonaro venha, amparado por mentiras em grande escala e pela cooptação dos mecanismos da democracia, se fartar do poder e empurrar o planeta mais para junto do penhasco. Após o conflito fraticida, alguns Specials resolvem enfim fazer algo substancial com o seu poder, para além de bancarem arrogantes excepcionalistas ou supertiras e mercenários. Em Power, eles se focam em livrar o mundo de armas nucleares e resolverem parte da questão Palestina, mesmo que ao custo do auto-sacrifício. É o catolicismo do autor se fazendo sentir, nestes primeiros passos para endireitar o mundo, já que a série prossegue e elabora ainda mais a ousadia autoral de Straczynski.

 

Canário Negro: Combustão (Black Canary: Ignite), de Meg Cabot (texto) & Cara McGee (arte). Barueri, SP: Panini Livros, 2020, 154 páginas. Arte de capa de Cara McGee. Brochura. A DC Comics teve uma boa sacada ao criar uma linha de livros de quadrinhos escritos por grandes nomes da literatura infantojuvenil, como este, escrito por Meg Cabot, aquela do Diário da Princesa. Funcionou muito bem com a arte de Cara McGee, numa história sobre a heroína de Gotham City, Canário Negro, parceira eventual do Arqueiro Verde.

Na história, Dinah é uma mina de 13 anos, meio caxias, que tem uma banda com outras duas amigas, uma nerd e a outra radical. Filha de uma florista e de um detetive de polícia, Dinah quer ser policial — para desespero do papai. Ela começa a entender que tem algo de “diferente” quando, toda vez que dá um gritinho, alguma coisa se quebra nas vizinhanças. Na escola, isso gera problemas com a severa diretora. Aos poucos, as pessoas em torno vão deixando claro que a sua esquisitice é na verdade um superpoder. Obviamente, é o grito sônico da Canário Negro. A história, porém, se passa em um momento contemporâneo em que, na mitologia do universo da DC, os outros super-heróis já são adultos e veteranos. A complicação é o surgimento de uma supervilã que vai cercando a garota e sua família.

Este foi o meu primeiro contato com a escrita de Cabot. Achei que ela produziu um texto de escrita inteligente, de grande competência, graça e capacidade de envolvimento. Dinah é uma aborrecente simpática, e a autora deu a ela, ainda que com algumas repetições inevitáveis, dinâmica própria com as amigas, os pais e a escola. A ambientação também ganha vida com facilidade, seja a escola, a casa ou a floricultura. Embora eu não goste muito desse tipo de arte estilizada, achei que a arte de McGee casou perfeitamente, com toques de fofura e tudo.

 

Arte de capa de Jamal Campbell.

Star Wars: A Fuga, de Kieron Gillen (texto) e Andrea Broccardo e Angel Unzueta (arte). Barueri, SP: Panini Comics, 2020, 136 páginas. Tradução de Dandara Palankof. Arte de capa de Jamal Campbell. Brochura. Este livro começa onde Star Wars: A Esperança Morre, parou: os heróis da Aliança Rebelde escaparam da traição da matreira Trios, a Rainha de Shu-Torun, uma traidora da confiança de Leian Organa, sua amiga, e aliada de Darth Vader. Mas estão sendo caçados pelo império, galáxia afora. Sana Starros, que também aparece no (final do) livro anterior, está com eles. Na fuga, separando-se de Sana, Leia, Luke, Han, Chewie e os robôs vão parar em um planeta independente, povoado pelo Clã Markona, uma casta de guerreiros que, no passado, havia conquistado as graças do  império. A história se transforma em um drama de fronteira, com os heróis mostrando o seu valor contra feras que acossam os colonos — feras que fazem o papel dos nativo-americanos, nos velhos westerns — ou contra a desconfiança dos locais, com direito até a um duelo de saque rápido ao meio-dia. Luke encontra na filha do líder da colônia uma interlocutora de sua idade, mais sofisticada do que ele, e que puxa a sua orelha pela impaciência em sair do planeta e retornar à luta. É claro, há um jogo de lealdades envolvido na situação toda, pois logo uma nave do império chegará para definir de que lado cada um está — e quais preços deverão ser pagos… Quem chega na nave imperial é um esquadrão de elite, e o roteirista Gillen reserva a eles um final surpresa.

A história final, com arte de Angel Unzueta e uma colorização mais sutil, forma um epílogo interessante e fornece um gancho para a próxima aventura. Apesar das às vezes cansativas referências ao western, é bacana ver o grupo de amigos envolvidos com uma situação diferente e sem o fracionamento da ação em várias linhas narrativas, tão comum a Star Wars. Um detalhe particularmente interessante do Clã Markota é a tez escura dos seus membros, fazendo-os lembrar latinos ou afro-descendentes.

—Roberto Causo

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Leituras de Agosto de 2020

O mês de agosto foi reservado principalmente à leitura de mais space opera, nacional e traduzida, na literatura e nos quadrinhos.

 

Arte de capa de Ingrid Guimarães Leitão.

O Palácio do Amor (The Palace of Love), de Jack Vance. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, Coleção Novos Mundos da Ficção Científica, 1992 [1967], 210 páginas. Tradução de Ruy Jungmann. Arte de capa de Ingrid Guimarães Leitão. Brochura. O terceiro volume da Saga dos Príncipes Demônios surgiu dez anos após o primeiro, com a coleção Mundos da Ficção Científica (coordenada durante uma década por Fausto Cunha) transformada em Novos Mundos da Ficção Científica, agora dirigida pelo tradutor e cineasta Sylvio Gonçalves. A nova coleção parece ter se nutrido do agito causado pela Isaac Asimov Magazine nas bancas nacionais. Gonçalves colaborou com a revista, inclusive, com traduções e um conto premiado. O tradutor Ruy Jungmann, a propósito, foi um autor da Primeira Onda da FC Brasileira. Os dois primeiros volumes eu discuti nas leituras do mês passado.

Difícil entender o que se passou pela cabeça de Vance, para escrever este romance. Trata-se, de tudo o que poderia se encaixar no mundo da ficção científica de aventura, de um romance boêmio. Do tipo visto na literatura europeia do século 19, começo do século 20. Aparentemente, Vance teve uma vida boêmia em San Francisco, e isso apareceu em sua ficção. O livro começa com uma desajeitada concessão às situações do livro anterior, A Máquina de Matar (1964), com a separação do herói Kirth Gersen da princesa espacial Alusz Iphigenia, que entende que não pode competir com a sua missão obsessiva de livrar a galáxia dos príncipes-demônios. A gota d’água foi uma situação deveras pulp em um planeta de envenenadores, orgulhosos do seu ofício em uma inversão de valores muito vista nos contos de Robert Sheckley, com Gersen avaliando tudo clinicamente. Mas a personagem já havia se transformado em uma sombra da cativante personalidade feminina do episódio anterior. E a lógica interna da série tem o mesmo destino, já que, para abraçar a perspectiva do romance boêmio, Vance precisou abrir mão de toda aquela coisa do alienígena reptiliano capaz de se passar por humano. No rastro do príncipe-demônio Viole Falushe, Gersen vai à Terra, tendo como única pista um poeta maldito que conhecera o criminoso, em sua infância, no colégio em que ele estudou, e no qual foi humilhado por uma garota. Gersen chega a visitar a mãe de Falushe — ela mesma aparentemente tão humana quanto o próprio herói. Não há mesmo qualquer menção àquela característica central, mencionada nos dois livros anteriores.

Navarth, o poeta maldito, é um personagem excêntrico e interessante em si mesmo, enquanto a garota que vive com ele, Zan Zu de Eridu, é outra personagem feminina que parece muito mais cativante do que a descrição de Vance daria a entender. De algum modo, o contexto boêmio amplia seus encantos. Criada por Navarth sem estudo e de modo anônimo, parece exercer um apelo incomum sobre Falushe. Uma primeira tentativa de desentocar o príncipe-demônio por meio de uma performance de Navarth não dá certo, restando a Gersen usar de um anacrônico truque de ataque pessoal por intermédio de uma revista comprada por ele, para enfim enfrentá-lo no seu território: o “Palácio do Amor”, um prostíbulo planetário (outra premissa digna de Sheckley) onde é possível encenar elaboradas fantasias — e onde Zan Zu é colocada em perigo mortal. Em meio a movimentos que lembram os filmes de James Bond e suas ações em espaços subterrâneos, a grande revelação trágica é menos a identificação de Falushe, e mais o reconhecimento da profundidade da desilusão amorosa da juventude, que ainda o motiva. Nesse ponto, a descoberta de uma infinidade de clones de Zan Zu gerados ao longo dos anos para serem objetos do amor/ódio do vilão também amplia o quanto a garota representa: no se encanto, ela pode ser mais do que ela mesma, tanto como representação dos vários estágios do feminino, quanto do nível de projeção masculina. Um livro muito incomum, que talvez triunfe mais na sua adoção de elementos do romance boêmio.

 

A ilustração de capa desta edição americana de 1979 dá o spoiller da revelação final envolvendo os clones da heroína. Arte de capa de Gino D’Achille.

 

 

The Case of the Restless Redhead, de Earle Stanley Gardner. Nova York: Pocket Book, 2.ª edição, 1961 [1954], 194 páginas. Paperback. Não me lembro se já tinha lido algum livro anterior da série Perry Mason de Earle Stanley Gardner na infância. Talvez, mas a série da HBO inspirada nela me chamou a atenção o suficiente para eu buscar nas caixas de papelão um dos paperbacks que havia juntado desde que me mudei pra São Paulo e tive acesso aos sebos da capital paulista. A nova série brincou com o fato conhecido de que Mason é um advogado de defesa — nela, ele começa como investigador particular de um escritório de advocacia, e, depois que o advogado morre, é alçado a advogado graças a um esquema comandado pela secretária do escritório…

Uma pesquisa na Wikipedia revelou que The Case of the Restless Redhead foi o primeiro livro de Gardner adaptado na primeira série de TV, mesmo sendo o volume 45 da série de livros. Abre com Mason assistindo a um julgamento em cidade vizinha de Los Angeles, e trava contato com um inexperiente advogado de defesa, que passa a aconselhar. O caso envolve Evelyn Bagby, uma garçonete ruiva de fechar o comércio, a caminho de Hollywood para tentar a vida como starlet, e que é acusada de roubar uma cara joia pertencente a uma dama das altas-rodas. Gardner lida bem com os elementos investigativos da história, análise forense, e com o jogo de classes sociais tão importante para a ficção de crime americana. O seu advogado põe a mão na massa, embora neste episódio ao menos não se possa dizer que é um thriller, quer dizer, sua vida não corre um risco grave. Muita atenção é dada aos personagens secundários, todos tratados com inteligência, fugindo dos clichês. Assim, Evelyn não é uma aventureira amoral, e Della não é uma secretária boazuda, mas mulher esperta e capaz. Interessante que a série da HBO tenha “atualizado” os personagens dando a Della a caracterização de uma jurista prática sem oportunidades em um mundo masculino, com um relacionamento estável com uma outra mulher; e transformando o detetive particular Paul Drake em um policial negro que teve de se demitir para manter sua integridade, deixando de uma estrutura corrupta que o excluía e limitava. Mais difícil de justificar é Mason como figura decadente, marginal e atormentada.

 

Arte de capa de John Berkey.

John Berkey: Painted Space, de John Berkey & Sharon Berkey. Pittsburg: Friedlander Publishing, 1991, 96 páginas. Introdução de Michael Friedlander. Arte de capa de John Berkey. Brochura. Já tive este livro (adquirido de José Carlos Neves), mas ao emprestá-lo a um professor de pintura, nunca mais o vi. Com a doação de Alfredo Keppler, tive a oportunidade de ler novamente esta compilação de ilustrações de John Berkey (1932-2008), com texto de sua filha. Um prolífico pintor americano, Berkey fez posters de cinema (incluindo o King Kong de 1978) e capas de livros de FC, tendo sido um dos primeiros a trabalhar com Star Wars. Sem receber o crédito, foi responsável por parte da estética da animação WALL-E (2008), e a revista de arte Juxtapoz tem uma galeria de imagens dele, em seu website.

Berkey começou pintando imagens de calendário (folhinhas) para um gigante do ramo, a Brown and Bigelow, onde pintou todo tipo de coisa. Essa prática intensa e constante lhe deu muita cancha. Paisagens rurais, marinhas e históricas são brevemente representadas nas páginas 8 a 13, do livro. Os seus efeitos dominantes de aglomerar pinceladas e de explorar elementos focados e desfocados para sugerir a impressão de realismo das composições já estão presentes lá. O texto revela que um dos seus “segredos” era um dispositivo de espelhos, criado para projetar para longe os segmentos da tela, produzindo a falta de foco (a discussão da sua técnica está nas páginas 32 a 34). Quando o livro foi publicado, Berkey havia feito mais de 200 capas de livros, FC na maioria, o que invertia a relação entre representação e imaginação. Em muitos casos, há uma luz imaginária, em cores quentes, que cativa o olhar e determina muito das formas. Na maioria, manchas longas e oleosas, com o predomínio do branco e de cinza azulado, para contrastar com o fundo negro do espaço — que o artista povoava com planetas e luas em concentrações pouco realistas. O interesse principal costuma estar na espaçonave e em outras estruturas futuristas, mas estudos feitos para o poster do filme catástrofe Inferno na Torre (1974) mostram que ele era um bom fisionomista.

As páginas 36 e 37 trazem um centerfold, com uma imagem acompanhada de vários estudos coloridos. Outros, aparecem ao longo do livro, confrontando a arte-final. As páginas 40 e 41 trazem a imagem de um habitat espacial, praticamente o único exemplo da sua ilustração científica (ele fez muita coisa para a revista Popular Mechanics). As páginas 80 e 81 trazem quase que um passo a passo dos estudos para a ilustração de capa deste livro dedicado à arte de John Berkey, um dos grandes da arte de ficção científica em todos os tempos.

 

Mais um livro de arte de FC de John Berkey, este pela colecionadora Jane Frank, publicado em 2003.

 

Arte de capa de Stephan Martiniere.

Fleet of Worlds, de Larry Niven & Edward M. Lerner. Nova York: Tor Books, 1.ª edição, 2007, 302 páginas. Arte de capa de Stephan Martiniere. Hardcover. Este é um romance de FC hard pertencente à série Known Space de Larry Niven. Outro livro doado por Alfredo Keppler. Eu já conhecia essa sequência ambientada 200 anos antes do clássico de Niven Ringworld (1970), de um outro romance: Betrayer of Worlds (2010). Desse modo, na leitura eu estou retornando ao início da sequência. A ilustração de capa de Stephan Martiniere, um dos grandes artistas digitais dedicados à FC na atualidade, não é particularmente inspirada, mas captura a essência épica do conceito da série: os alienígenas puppeteers ou “marionetistas”, temendo uma reação em cadeia de supernovas disparada a partir do centro galáctico (onde os sóis são mais próximos um do outro), empregam a sua hipertecnologia para colocar os seus planetas em voo para fora da galáxia, rumo ao halo galáctico.

Na rota da “frota de mundos”, é preciso viajar adiante em velocidade maior que a da luz para fazer um reconhecimento avançado. Os puppeteers são proverbialmente covardes demais para isso, mas têm a solução perfeita: humanos descendentes de uma nave subluz resgatada por eles em fins do século 22 (a história se passa no século 27) estão a seu serviço. As coisas se complicam quando os jovens batedores humanos, liderados pela dinâmica Kirsten Quinn-Kovacks, descobrem um planeta no caminho, com uma civilização nascente que, quando os puppeteers passarem por ali, poderão estar avançados o suficiente para representarem uma ameaça. O caso é que os mestres alienígenas desses humanos — a maioria deles habitando um planeta pertencente à “frota”, como em uma reserva — consideram, em sua covardia inerente, o extermínio preventivo. Na tentativa de salvar os habitantes desavisados desse planeta, Kirsten e seus companheiros acabam descobrindo que os puppeteers não foram exatamente altruístas, ao abrigar os seus antepassados.

O romance explora as divisões políticas entre os puppeteers; a sua estranha forma contra-intuitiva em termos evolucionários, de reprodução por “mútua alcovitagem” de dois machos com uma fêmea não senciente da espécie (algo que aparece também no mundo partilhado das guerras humano-kzin, criado por Niven); o temor e o conservadorismo dos colonizadores humanos; e uma aventura de Kirsten e seus companheiros até a preservada nave original dos seus avós. Conhecendo a verdade, resta disseminá-la entre os colonos para conquistar o seu apoio, e, ao mesmo tempo, assenhorar-se de meios tecnológicos para colocar os mestres marionetistas em cheque e forçar um novo acordo. Bem se vê que é um romance movimentado e relativamente compacto, considerando tudo o que narra, repleto de grandes ideias de FC hard — característica essencial do Known Space que colocou Niven no estrato superior da FC americana no século 20.

 

Arte de capa de Hugo Vera.

Space Opera: Aventuras Fabulosas por Universos Extraordinários, de Hugo Vera & Larissa Caruso, eds. São Paulo: Editora Draco, 1.ª edição, 2015, 356 páginas. Introdução de Hugo Vera & Larissa Caruso. Prefácio de Flávio Medeiros Jr. Arte de capa de Hugo Vera. Brochura. Este é o terceiro volume, e até o momento o último, da vitoriosa série de antologias originais editada por Vera & Caruso para a Editora Draco. A space opera é um subgênero da FC, mas mesmo como subdivisão de um gênero maior, pode ser muitas coisas diferentes. Por isso a diversidade de abordagens é importante para uma antologia com este tema. No seu prefácio, Flávio Medeiros Jr. aponta que a space opera apresenta possibilidades múltiplas, e como a série de antologias vem atualizando o gênero. Também que os dois volumes anteriores redundaram em Prêmios Argos para melhor ficção curta. Informa que o terceiro volume, ao contrário dos anteriores, recebeu submissões espontâneas, ao invés de se convidar individualmente cada um dos autores. Nota-se, neste, além do novo processo de composição do conteúdo, a ausência de uma história de Caruso. O segundo volume eu discuti aqui mês passado.

“Convite do Imperador”, de Roberta Spindler, abre com uma situação erótica, de sexo interespécies em que uma piloto espacial tem contato com um alien, o que lhe faculta alucinar com um amante perdido. Mais tarde ela é recrutada por piratas espaciais que tentarão tomar de assalto uma instalação planetária, empregando um robô de combate operado por ela. A história terminando como o primeiro episódio de uma série. “Na Crista da Onda”, do veterano autor português Luis Filipe Silva, muito ativo na cena brasileira, é uma história de FC hard sobre astronautas internacionais em missão arranjada por um bilionário, para guiar um cometa até a superfície de Marte. A história tem uma cadência controlada e eficiente, mas embora seja de aventura, não é necessariamente uma space opera. O mesmo se dá com o noveleta seguinte, de Antonio Luiz M. C. Costa, “Nosso Estranho Amor”, ambientado em um futuro mais longínquo. Trata da visita a um planeta extrassolar por uma ciborgue pós-humana, e, como outros textos do autor, despreza o enredo em favor de uma espirituosidade discreta, ideias modernas, impulso utópico embutido em situações de amor livre, e uma prosa sempre elegante. O duo de autores portugueses Júlia Durand & Rui Leite é responsável por “Uma Princesa de Stroff-Bingen”, com uma abordagem nova para a série de antologias: o humor que explora os clichês do subgênero. “Os Argonautas”, de Sid Castro, tem abordagem quase oposta — sua movimentada novela de space opera exótica cita e empresta elementos de um dos textos fundadores da viagem fantástica, uma das raízes aventurescas da FC, ainda na antiguidade clássica (A Argonáutica, de Apolônio de Rhodes, é do século 3 a.C.). O liberdade que a space opera confere para se montar cenários e criar imagens também está na narrativa mais curta de Carol Chiovatto, “Ecos de Maztah”, com direito a mulheres aladas como fadas (também vistas em um dos primeiros textos atribuídos ao subgênero, A Honeymoon in Space, de 1901, por George Griffith) misturadas com traços de Star Wars — uma Aliança Galáctica cuja derrota dá origem a uma Resistência, e uma princesa que recruta os serviços de um relutante e cínico capitão de nave estelar chamado Solomon.

A prática de citação, homenagem e humor se combina radicalmente em “O Cortiço e as Estrelas”, de Pedro Vieira — que conheço do seu interessante “Instinto Materno” na antologia Cyberpunk: Histórias de um Futuro Extraordinário (2010), editada por Richard Diegues para a Tarja Editorial (foi o único texto tupinipunk na antologia). Aqui, Vieira empresta situações do clássico do naturalismo brasileiro, O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, agora uma nave de transporte cheia de intrigas, pequenos abusos e sacanagens, além de piratas espaciais. Tem muita verve e o contraste entre linguagem arcaica e futurismo. Hugo Vera traz, com “As Filhas de Cassiopeia: A Cruzada pela Liga Interestelar”, mais uma aventura da sua série de space opera exótica, e a novela mais longa da antologia. Suas influências são exploradas de modo menos ostensivo, e a preocupação com enredo, intriga e ação são fortes. É a narrativa mais épica dentro de uma antologia que, aparentemente por razões aleatórias, optou por um forte tempero de pastiche, paródia e referencialismo pós-modernista. Eu me pergunto se a tendência vem de estarmos rodeados de space opera no cinema, TV, HQ e games sem que nos relacionemos fortemente com nenhuma, ou se a série de antologias em questão foi tão bem-sucedida em tornar a space opera parte da nossa paisagem (algo que eu ainda acho insuficiente), que já podemos entrar na fase de brincar com suas características.

A melhor história do livro é a que fecha o volume, “Nenhuma Babilônia nos Dará Ordens!”, do brilhante Cirilo S. Lemos, um dos melhores autores da Terceira Onda da FC Brasileira. Trata-se de uma noveleta complexa, sofisticada tanto em termos das suas ideias de FC quanto no estilo e narrativa, e que mira a civilização suméria como elemento de composição. E um dos textos mais representativos da new space opera e do New Weird no Brasil — lembrando que, segundo China Miéville, há um cruzamento claro entre as duas tendências. Isso o torna um texto exemplar, obrigatório para entendê-las entre nós, e eu recomendo a aquisição do e-book se você não quiser ler a antologia toda.

 

Quadrinhos

Arte de capa de John Romita Jr. & Scott Hanna.

Marvel Saga: O Espetacular Homem-Aranha: Até as Estrelas Esfriarem, de J. Michael Straczynski (texto) & John Romita, Jr. (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2020, 216 páginas. Tradução de Mario Luiz C. Barroso. Arte de capa de John Romita Jr. & Scott Hanna. Capa dura. A maior parte deste segundo volume da coleção Marvel Saga: O Espetacular Homem-Aranha já havia saído como o volume 22 da coleção Marvel Graphic Novels. Mas esta edição tem três itens que são muito atraentes: duas páginas de texto do editor Fernando Lopes, e as HQs publicadas na revista The Amazing Spider-Man 36 e 39. A primeira aborda diretamente do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 em Nova York, assunto do editorial de Lopes. Trata-se de uma narrativa que eu conhecia apenas de anúncios, e que agora tive o grande prazer de ler. Foi a primeira reação do mundo dos quadrinhos àquele evento terrível que ainda dá forma ao mundo atual, e Lopes conta que Straczynski ficou bloqueado por semanas até escrever tudo em 45 minutos! Nessa história, o Aranha, que sempre foi, por trás do apelo adolescente, um herói capaz de filosofar, intervém — juntamente com vários outros super-heróis e supervilões — nas operações de resgate. Por meio de um monólogo, ele reflete sobre a tragédia. Muito comovente.

O grosso do volume está focado nas encrencas de Peter Parker longe da esposa Mary Jane Watson, e agora tendo que lidar com uma Tia May que agora sabe que ele é o Homem-Aranha. Sempre ativa, ela está disposta a mudar sozinha a imagem que a sociedade faz do herói — protegendo o sobrinho em todas as situações. Uma primeira sequência envolve o desaparecimento de jovens marginalizados em Nova York (um deles irmão de uma aluna de Peter na velha escola que ele cursou), algo que envolve o sobrenatural e, quase que por consequência, a participação do Dr. Estranho. Há uma visita ao astral pelo herói atarantado, em que ele pode ter pode ter arrumado uma encrenca sobrenatural a cobrar o seu preço mais tarde, e uma viagem astral junto a MJ, na Costa Oeste. Disposto a ir até ela, o herói se coloca no caminho do velho inimigo, o Dr. Octopus — e de uma versão mais nova e mais moderna do vilão —, com MJ e May no fogo cruzado. A aventura em Hollywood também dá a Straczynski chance de brincar com a sua experiência na Fábrica dos Sonhos, rindo de várias situações de filmes-B de monstros, de produtores malucos e astros superficiais.

 

Arte de capa de David Marquez & Matthew Wilson.

Star Wars: Motim em Mon Cala, de Kieron Gillen (texto) & Salvador Larroca (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2020, 136 páginas. Tradução de Tiago P. Zanetic. Arte de capa de David Marquez & Matthew Wilson. Brochura. A bonita capa de Marquez & Wilson engana: a arte interna de Larroca é meio dura, embora cumpra muito bem o requisito necessário a toda HQ de Star Wars: representar bem fisionomias e maquinários. A história começa em uma faixa de areia em um atol alienígena — com o detalhe da rocha “Dedo de Deus” da Ilha de Fernando de Noronha aparecendo claramente no segundo quadro.

Depois das situações de Star Wars Episódio IV: Uma Nova Esperança (1977), Luke, Leia, Han, C3P0 e o Almirante Ackbar estão ali para negociar, com o líder do povo dele em Mon Cala, a entrada deles na Aliança Rebelde. É claro, o império está bem ali na cola deles, e a ação começa cedo. A estratégia, depois que eles fogem do primeiro ataque, é libertar o monarca mon calamari das garras do império e restituí-lo. Para isso, precisam primeiro libertar e recrutar um metamorfo da espécie clawdita (apresentada em Star Wars Episódio II: Ataque dos Clones), um tal de Tunga Arpagion, tipo irônico metido a artista. Na melhor tradição do capa e espada, Tunga deve imitar um afetado oficial do império para obter acesso ao prisioneiro a ser libertado. Em vários momentos, a cor de Guru e-FX empresta charme ao desenho, e até imersão no exotismo que inclui aventuras submarinas e muitas escapadas. O final do livro é uma história quase solo em que os heróis têm de pelejar para se reunirem à armada rebelde, e, subsequentemente, cumprirem sua promessa de libertarem Tunga. O livro apresenta como coadjuvante uma mulher que faz parte das relações antigas de Leia, também ela da realeza: Trios, Rainha de Shu-Torun, e que vai ser importante nos próximos episódios.

 

No quadro central, a famosa rocha de Fernando de Noronha foi parar na Galáxia Distante

 

Arte de capa de Travis Clareth.

Star Wars: A Esperança Morre, de Kieron Gillen (texto) e Salvador Larroca (arte). Barueri-SP: Panini Comics, abril de 2020, 192 páginas. Tradução de Dandara Palankof. Arte de capa de Travis Clareth. Brochura. Li este gibi em maio, mas apenas agora me dei conta de que a narrativa viria depois daquela de Motim em Mon Cala. A princesa Leia e Trios, Rainha de Shu-Torun, ocupam muito do palco central nesta aventura, mas a tradicional ação dividida contempla Han e Chewbacca retornando de uma missão e encontrando grande dificuldade para se reunirem à armada rebelde. As dificuldades incluem a rara situação do Millennium Falcon sendo avariado, a ponto de Han, para continuar lutando, se enfia no cockpit de um caça Asa-X…

A longa sequência parece ter emprestado algo do trecho de Star Wars Episódio VIII: O Último Jedi (2017; dirigido por Rian Johnson) em que uma flotilha da Resistência é perseguida por uma força superior do império. Luke Skywalker também está num Asa-X, assim como Wedge Antiles. Coadjuvantes de A Nova Esperança aparecem, assim como Vader no seu super-destroier estelar. Giuseppi Camuncoli assume os desenho na segunda parte dessa aventura, trazendo ainda mais artes baseadas em computador e pinçadas dos fotogramas do episódio IV. A última história, porém, traz um desenho mais vivo e criativo, mais colorido, pelo lápis de Ario Anindito. Kieron Gillen cede a escrita a Cullen Bunn, que inventou uma história em que Luke faz par com a contrabandista e ex-namorada de Han, Sana Starros, na busca por um sabre de luz que pertenceu a um Lord Sith das antigas, e objeto de desejo de Darth Vader. O sabre empresta o guarda-mão laser visto nos episódios VII a IX. Relíquias jedi já foram McGuffins em outras aventuras, como a gema de Splinter of the Mind’s Eye (1978), de Alan Dean Foster. A aventura escrita por Bunn apresenta um final mais do que adequado.

 

Comics Star Wars Clássicos 6. Embu das Artes, Quinhau, SP: Editora Planeta DeAgostini do Brasil, Coleção Comics Star Wars N.º 6, 2015, 200 páginas. Capa dura. “Quim Thrussel”, blogueiro muito ativo em tudo o que diz respeito a quadrinhos e ficção pulp, me chamou a atenção para esse volume da coleção Comics Star Wars: “Peguei a edição [6] da Coleção de Star Wars da Planeta DeAgostini, tem duas histórias que a Marvel não usou de John Carter e transformaram em Star Wars, John Carter vira Aron Peacebringer.” Curioso, fui conferir. Vamos lembrar, antes de mais nada, que as histórias reunidas neste volume em capa dura são as histórias originais criadas pela Marvel ainda na década de 1970, com todo o frescor do momento em que o primeiro filme, Guerra nas Estrelas (Star Wars; 1977), ainda estava na memória e no coração das pessoas — mas talvez com todo um outro conjunto de vícios e faltas, quando as comparamos com as HQs mais atuais, pós-Disney…

Com roteiro de David Michelinie e desenhos do admirável Walt Simonson, a primeira história se passa logo após O Império Contra-Ataca (1980). Nela, Luke, Leia e os robôs, além de Lando Calrissian e Chewbacca, participando do esforço da Aliança para encontrar um outro planeta para instalar uma nova base rebelde, depois que eles foram expulsos, por Vader, do planeta gelado Hoth. A aventura envolve um desenvolvimento particularmente interessante: um complô de oficiais do império para eliminar o próprio Vader. Michelinie sai de banda e ninguém menos que Chris Claremont assume o roteiro, justamente das histórias apontadas por Quim Thrussel. Na primeira, uma nave que transporta Leia sofre uma pane e ela é a única sobrevivente, indo parar, em um casulo de escape, em um planeta de fantasia heroica. Salva de homúnculos por um galante chefe-guerreiro que vive dando pulos prodigiosos como John Carter, o herói criado por Edgar Rice Burroughs, Leia torna-se sua hóspede e alvo do seu interesse erótico-romântico. Uma variação interessante que traz outra dimensão a Leia, embora a maior parte da história adote o ponto de vista do tal Aron Peacebringer — que tem a sua própria Dejah Thoris e se sente dividido, agora que apaixonou por Leia. Carmine Infantino fez o desenho, mais rústico que o de Simonson.

Depois desse desvio, o grupo de heróis encontra enfim um planeta candidato a abrigo da nova base rebelde. Um mundo florestal como a Lua de Yavin, habitado por pequenos telepatas peludos que convencem os rebeldes a enfrentar um monstro espacial que os tem como presa. Outra linha acompanha o retorno de Lando a Bespin e a sua cidade nas nuvens, agora controlada pelos imperiais e onde ele reencontra o seu assistente ciborgue. A intriga envolve uma associação momentânea com o comandante local, e a descida a uma parte do planeta não apresentada no filme: a superfície, onde vivem os pequenos anões-ferreiros que haviam desmontado C3P0. Lando é um personagem bastante sólido, nessa história que termina com Luke aparecendo e exibindo poderes jedi ausentes dos filmes. A próxima história de Michelinie é ainda mais interessante por ser uma FC hard: os rebeldes instalam uma base provisória na cromosfera de uma estrela. Quando as instalações sofrem problemas técnicos, cabe à conhecida dupla de droids saírem em atividade extra-veicular para salvar a todos. O inventivo recurso pode ter sido recuperado em Prisão Rebelde. Na última história, Lando e Luke abordam um traficante de armas para obter recursos para a Aliança, e caem em uma emboscada a ser executada por um monstro gigante — uma aventura mais tradicional.

Roberto Causo

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