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Leituras de Outubro de 2020

Mais space opera neste mês, e também a interessante experiência de ler o brasileiro Ivan Carlos Regina, um dos pilares da Segunda Onda da FC Brasileira, seguido do brilhante autor americano Harlan Ellison. Histórias em quadrinhos de super-heróis e de ficção de crime completaram a dieta de outubro.

 

Capa de Stephanie Marino.

O Par: Uma Novela Amazônica, de Roberto de Sousa Causo. São Paulo: Agência Magh, 1.ª edição eletrônica, outubro de 2020. Prefácio de Osvaldo Ceschin, posfácio de Roberto Causo. Arte de capa de Stephanie Marino. A primeira edição eletrônica da minha novela de ficção científica premiada no Projeto Nascente 11 (da pró-Reitoria de Cultura da USP) no ano 2000, saiu da pré-venda e foi distribuída pela Amazon em 9 de outubro.

A nova edição conta com o posfácio original do Prof. Osvaldo Ceschin, da Universidade de São Paulo, feito para a edição da Editora Humanitas em 2008. Além disso, apresenta um posfácio feito especialmente para esta edição da Agência Magh, com comentários meus sobre as questões da Amazônia Brasileira e sua mística torta junto aos militares e políticos nacionais.

A história acompanha um soldado que, após se indispor com os companheiros de armas, deserta e passa a vagar por uma Amazônia basicamente isolada do restante do mundo por uma estranha invasão alienígena. Após o encontro imediato com uma das naves alienígenas, ele testemunha o retorno à vida, da companheira morta em um acidente. Após muitas andanças do casal, o ápice da novela se dá quando eles vão parar em uma comunidade de pessoas que não atenderam à evacuação, ou que foram cooptadas para continuar trabalhando na floresta por um oligarca local, um predador da natureza crente nos clichês nacionais de progresso e prosperidade. O estilo é mais minimalista e áspero do que o meu habitual.

 

The Man-Kzin Wars, de Larry Niven com Poul Anderson & Dean Ing. Londres: Orbit, 1.ª edição, 1989 [1988], 290 páginas. PaperbackA série Man-Kzin Wars é o “universo de aluguel” de Larry Niven, pertencente ao seu universo ficcional e história do futuro “Espaço Conhecido” (Known Space). Mais explicitamente space opera, do que, por exemplo, o romance clássico Ringworld (1970), surgiu de um conto de Niven intitulado “The Warriors” (1966) . Na introdução desta que foi a primeira antologia original de histórias do rented universe, Niven conta que a ideia para ele surgiu em uma viagem de táxi partilhada pelo editor Jim Baen, da Baen Books, que a sugeriu a ele. Incluído na antologia, o conto de Niven fala do encontro de uma nave humana com os belicosos kzin — os gatões que aparecem na vibrante capa do artista não creditado da edição inglesa. O problema é que a humanidade havia abandonado as armas e os próprios instintos guerreiros, após algumas gerações de treinamento psicológico. Para que a tripulação sobreviva aos predadores alienígenas, ela precisa contornar seus bloqueios e improvisar uma arma efetiva, com a tecnologia existente a bordo.

“Iron” é a contribuição do veterano e renomado Poul Anderson (1926-2001), uma movimentada aventura de FC hard sobre uma expedição privada a um sistema planetário pobre em ferro e regido por uma anã vermelha que pode ser tão antiga quanto o universo. A história propriamente abre com o herói Richard Saxtorph sobrevivendo ao ataque de um kzin, em uma estação espacial humana reconquistada desses alienígenas. Ele e a esposa Dorcas comandam a expedição, que inclui um especialista em kzin e burocrata da exploração espacial, que insiste em acompanhá-los. Uma vez no sistema, eles se deparam com uma nave kzin e precisam dividir a tripulação. Alguns são capturados e interrogados, em uma intriga que inclui tortura e a traição do burocrata, um colaboracionista protofascista que admira a cultura de violência e autoritarismo dos aliens predadores. Em outra linha, um casal que descobre o amor refugia-se na superfície de um planeta, em que são prontamente ameaçados por uma massa de protoplasma — constituído de uma única molécula sedenta de metal, formada nos bilhões de anos em que o planeta coletou átomos simples no espaço intergaláctico. A volta por cima dos humanos sobre os kzin se dá com uma dramática atividade extra-veicular conduzida por Dorcas. Com 150 páginas, a novela de enredo complexo e rico resulta na leitura própria de um romance. A imaginação de Anderson está em grande forma aqui, em um texto empolgante que se lê como uma deliciosa mistura de FC antiga e moderna.

“Cathouse”, de Dean Ing, é a novela que fecha o livro, mais restrita na ambientação, igualmente interessante quanto a sua exploração do universo dos kzin: um etologista é feito prisioneiro pelos aliens e deixado em um estranho planeta — zoológico espacial com vários habitats lacrados por um campo de força. Naquele destinado aos kzinti, ele encontra um grupo deles preservado em um campo de stasis. Precisando de um colaborador, “descongela” uma fêmea que imediatamente dá em cima dele. A relação que se estabelece entre os dois é divertida e, ao mesmo tempo, alarga alguns dos sentidos da série: assim como em outros momentos do universo Known Space, de Niven, as fêmeas alienígenas são animalizadas. Mas Kit e as amigas que ela libera mais tarde do campo de stasis são de uma era anterior às manipulações dos machos da espécie, e reivindicam bastante. Tantas fêmeas em volta do humano permitem a brincadeira com o título (gíria para “prostíbulo” ou “zona”, como diríamos no Brasil), mas a verdade é que a história se concentra no humor e na aventura (quando os militares kzinti retornam ao habitat para dar um destino ao prisioneiro). Kit acaba sendo uma personagem especial. Gostei do livro como um todo.

 

Arte de capa de Jim Burns.

Night Train to Rigel, de Timothy Zahn. Nova York: Tor Books, 2006 [2005], 326 páginas. Arte de capa de Jim Burns. Paperback. Timothy Zahn, a quem já tive a oportunidade de entrevistar, é conhecido no Brasil pela Trilogia Thrawn, de romances originais atrelados a Star Wars, mas ele teve antes uma carreira associado à revista Analog. Cedo, fez a transição para a FC de aventura e space opera, mas uma série de space opera militar como a sua série Cobra (inédita aqui) não é necessariamente incompatível com a FC hard.

Antes de pegar a Trilogia Thrawn, resolvi ler este romance de conceito diferente, que brinca com o elemento mobilidade da space opera: a tecnologia que conecta os mundos de uma comunidade galáctica futura não são naves espaciais que viajam mais rápido que a luz, mas um trem que percorre um caminho entre as dimensões. Ao mesmo tempo, evoca as histórias de suspense do tipo Assassinato no Expresso do Oriente (1934), de Agatha Christie. A história, inclusive, abre como o protagonista Frank Compton, um agente secreto com um passado meio desastrado, tropeçando em um assassinato, antes de embarcar no trem interestelar. A sidekick de Compton é uma jovem especialista na cultura das Spiders que controlam o transporte. Também presente na arte de Burns na capa, o sujeitinho peludo à esquerda é um alienígena de uma cultura que tem a arma manual como símbolo social máximo (talvez um cowboy animalizado, para efeito de sátira ao apego americano pelas armas de fogo?). No comboio que não permite armas, eles usam réplicas inertes — exceto pelo fato de que atentados acontecem e investigações tentam descobrir quem deseja impedir o trabalho de Compton. A trilha leva à descoberta de um contrabando de caças estelares, para emprego em um conflito que deve ser evitado a todo custo. Nesse ponto, é preciso desembarcar do trem e chegar a algum lugar. Neste caso, um planeta em que existe um fungo inteligente e manipulador de vontades, a ameaça maior por trás do conflito. Outra ideia bem pulp, que remete àquela FC de aventuras da era de ouro da FC americana. A história só teria a ganhar se os protagonistas tivessem um pouco mais de vibração ou carisma, ou se a atmosfera de fato replicasse algo do charme do romance de Christie. Outra doação de Alfredo Keppler.

 

O Fruto Maduro da Civilização + O Éter Inconsútil, de Ivan Carlos Regina. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, 2019, 220/364 páginas. Introduções do autor e de Karina Elizabeth Vázquez. Texto de orelha de Luiz Bras. Capas de Teo Adorno. Brochura. Ivan Carlos Regina é uma das figuras centrais da Segunda Onda da FC Brasileira. Sócio fundador do Clube de Leitores de Ficção Científica, foi muito ativo no fanzine Somnium. Publicou profissionalmente pela primeira vez na antologia de Gumercindo Rocha Dorea, Enquanto Houver Natal… (1989), com “Pode Acontecer com você na Noite de Natal”. Mais tarde, Dorea incluiu a sua coletânea O Fruto Maduro da Civilização (1993), com 19 textos, na mesma coleção Ficção Científica GRD. O livro ressurgiu em 2019 como parte deste volume completado por O Éter Inconsútil, a segunda coletânea do autor. Em nenhum lugar do novo livro há a menção da sua publicação anterior pelas Edições GRD — exatamente o tipo de coisa que tem enfurecido Dorea ao longo de seis das suas nove décadas de vida.

O Fruto Maduro da Civilização abre com o “Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira” (primeiro publicado no Somnium em 1988), texto que merece ser sempre revisitado para um entendimento da Segunda Onda e do tupunipunk (cyberpunk tupiniquim). Com sua evocação de misticismo hindu e de uma contracultura nacional, “Ananda: O Homem que Purpurava” é um dos contos do livro que também se qualifica como tupinipunk. Assim como o conto-manifesto “O Caipora Capira”, importante para entendermos como as ideias do manifesto casam com a proposta estilística e as intenções satíricas do autor, além das suas influências modernistas e tropicalistas. No plano do estilo, é um dos mais ousados de um livro de narrativas experimentais e intenções vanguardistas. Os premiados “Pela Valorização da Vida” e “A Derradeira Publicidade do Hebefrênico Alfredo” são alegorias modernistas da alienação das relações e da comodificação da vida humana que ampararam manipulações consumistas que vão além da publicidade. Num plano oposto ao da denúncia aberta, narrativas anedóticas como “O Tempo É um Carrasco Impiedoso” satirizam as formulações mais clichês da FC anglo-americana, outro tópico do manifesto. “Solange Súcuba Salva Sibarita Sexual” e “O Robô que Era Chato de se Ouvir e Todo Mundo Evitava sua Frequência” são poemas rimados, muito sarcásticos, e a poesia também invade outros textos, como “T-Vírus”. Fecha o primeiro livro o notável “O Fruto Maduro da Civilização”, mais curto que a média e extremamente contundente na denúncia do homem moderno e sua falta de volição e degradação física causadas pelo nosso estilo de vida. Eu o incluí na minha antologia Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica: Fronteiras (Devir Brasil; 2010).

A introdução de Karina Vásquez, da University of Alabama, em O Éter Inconsútil, vincula a abordagem de Regina ao neobarroco latino-americano e elogia a sua postura crítica. A coletânea traz 31 textos, um punhado visto antes em antologias. É interessante que, décadas depois, haja remissões claras a textos anteriores: “O Filho do Caipora Caipira” e “Ananda Comes Back”, além de “A Volta do Robô que Era Chato”, em diálogo com aquelas primeiras explorações fundadoras do Movimento Antropofágico da FC Brasileira. “Pequena História do Passado”, do mesmo modo, torna a explorar uma escala de neurose como definidora da experiência da modernidade vista antes em “A Derradeira Publicidade do Hebefrênico Alfredo”. A tendência anedótica e o melodrama pós-modernista reaparecem em “Amor de Lata Não Mata”, em que um robô desorientado vira babá de bebês na nave colonizadora que inesperadamente os gerou a partir do seu banco de embriões. “Balada do Cárcere de Celulose” é uma novidade: conto mainstream, curto, intimista e sombrio, ensaio de uma voz narrativa sólida e livre de experimentalismos. “Pode Acontecer com você na Noite de Natal” está neste livro, assim como “Rosa dos Ventos de Luz” (1998), este um conto ufológico, delicado, místico e, novamente, resgatando uma contracultura nacional expressiva, pacata e associada a uma das influências de Regina: a Tropicália (também presente em obras tupinipunks como Silicone XXI, de Alfredo Sirkis). “A Oportunidade Perdida por uns É a Oportunidade Ganha por Outros” é outra narrativa irônica, menos experimental ou formalista, na qual se expressam melhor influências como Robert Sheckley e Philip K. Dick. Algo semelhante se dá com “Aliens Deliriuns”, “Amarelo e Vermelho” (combinando FC da Golden Age com medicina alternativa, e dedicado à escritora Finisia Fideli), “Jairzinho” e a assemblage “Letters from Tomorrow”, colagem de vários textos, alguns vistos previamente. “Negro Laranja” é outra novidade: irônico conto de fantasia, com direito a um cerco medieval e a dragões, também em primeira pessoa como outras narrativas no livro. “O Último dos Bagos Roxos” incorpora outros procedimentos ao arsenal pós-modernista de Regina: o sexo explícito e a prosa brutalista de “mundo cão”, em uma caracterização de mesquinha figura política (tomada a partir de uma expressão “folclórica” de Fernando Collor de Mello) que remete tanto à ficção pop nacional da década de 1970, e à atual ficção pós-Mensalão de desencanto político e social. A brincadeira com o sexo também está em “O Centro Estelista”, uma sátira sexual de “Flores para Algernon” (1959), de Daniel Keyes, e mais um exercício de irreverência e iconoclastia (outro tópico do manifesto). “Ressuscitol”, escrito como uma bula de remédio, retorna à veia experimentalista e irônica, assim como “Clonaram el Rei” — um sketch de ventriloquismo com diálogos rimados. Destaques do livro são “Sete Vezes Homem, Sete Vezes Besta”, outra assemblage que explora fragmentos de épocas e lugares diferentes no mundo, e “Manduruvá É o Pai de Todos”, talvez delírio paranoico do narrador, mas com imagens inquietantes que reforçam a condenação comum em Regina, dos descaminhos da sociedade. Paradoxalmente positivo, “MOMA: Minha Organização Mundial de Animais” dá voz a sete espécies da Terra, o Homo sapiens sendo só uma delas, e termina com um comentário metaficcional que ampara outro ponto comum no autor: a conclamação para a mudança. Um favorito, “Teviterone” também é metaficcional e com uma sugestão de auto-refente (além de um toque de paródia do V’ger de Jornada nas Estrelas: O Filme): um poeta em futuro próximo acaba encontrando um robô-redator automático, o The Writer One, programado para escrever pulp fiction barata e que, ao ganhar consciência, assume uma prosa existencialista, com o poeta assumindo o seu manto de pulp writer depois da eutanásia do aparelho. Está lá com peças metaficcionais que expressam a tensão entre o enfoque modernista e o popular entre nossos autores de FC: “Pequenas Histórias do Tempo” (1994) e “Paperback Writer” (1994), de Braulio Tavares, e “Director’s Cut” (2008), de Fábio Fernandes.

Regina deu a entender que a trajetória do protagonista de “Teviterone” seria semelhante à sua, da prática poética radical, vanguardista, a uma abertura ao narrar mais natural, e realmente me encantou a emergência de uma prosa literária sólida, brasileira, elegante e inteligente presente nesse e em outros contos. Mas não se deixe enganar — em O Éter Inconsútil ainda há muito experimentalismo e os elementos buscados por ele desde a década de 1980, expressos no “Manifesto Antropofágico”. Um dos principais lançamentos de 2019 e o resgate da obra de um autor que merece consideração crítica aprofundada e maior reconhecimento.

 

Arte de capa de Bob Pepper.

Ellison Wonderland, de Harlan Ellison. Nova York: Signet, 1974 [1962], 178 páginas. Arte de capa de Bob Pepper. Paperback. Esta é uma das primeiras coletânea de contos de Ellison, doada por Alfredo Keppler. Na introdução, o renomado autor inglês, muito vinculado à televisão e ao cinema, conta que foi para Hollywood com uma mão na frente e outra atrás, e a venda deste livro teria sido um refresco necessário naquele momento. Lembra ainda como uma resenha de Dorothy Parker na The New Yorker alterou o rumo de sua carreira. São 16 histórias de FC e fantasia pulp publicadas em revistas menos conhecidas, como Fantastic Universe, Rogue Magazine, Infinity Science Fiction, Science-Fantasy Magazine e Space Travel Magazine. Umas poucas apareceram em Amazing Stories e If: Worlds of Science Fiction — testemunho, na verdade, de um autor prolífico e singular.

Na primeira história, “Commuter’s Problem”, um cara comum da nossa realidade, meio sem opções na vida, começa a enxergar uma outra realidade que se cruza com a nossa, seguindo as pistas que aparecem e indo parar em um outra planeta que usa secretamente o nosso como colônia de férias e válvula de pressões sociais. Ao ser descoberto, é que os seus problemas começam — para não ser morto, precisa convencer as autoridades locais de poderia ter lugar nessa outra sociedade. “Do-It-Yourself” tem uma mulher insatisfeita fazendo uso de uma empresa especializada em eliminar cônjuges, por meio de um kit entregue a domicílio. Um conto meio Além da Imaginação, com tipo de conceito visto em Richard Matheson e Stephen King, explicitando a falta de valores da sociedade moderna. “The Silver Corridor” apresenta outra empresa especializada em morte — a organização de duelos, neste caso —, mas no futuro. Os duelistas são dois cientistas rivais em um jogo de xadrez mortal, numa história de imagens inquietantes, com um final irônico e violento. “All the Sounds of Fear” tem um ator de imersão como protagonista, um homem que vai parar em um sanatório mental, culpado de um crime de morte. É uma história de horror sobre dissociação de identidade. “Gnomebody”, por sua vez, é um conto de humor — sobre um gnomo atrapalhado e de sotaque irlandês, é claro. “The Sky Is Burning” é uma FC de fim de mundo, com alienígenas que vem morrer na Terra, perante o fim do universo — escrita com seriedade e brevidade. Ambientado em uma nave espacial, “Mealtime” é bem mais irônico, sobre um planeta como aquele de Poul Anderson em “Iron”, que rejeita os humanos da sua tripulação, como alimento — contraponto a toda uma conversa de chauvinismo humano, de alguns deles. Em “The Very Last Day of a Good Woman” um sujeito descobre que o holocausto nuclear vem aí, e vai à caça de uma mulher, que encontra em um bar, resultando em um final estranhamente terno, e irônico, é claro. “Battlefield” mostra um futuro em que as guerras são disputadas na Lua. As descrições épicas e tecnológicas mascaram a verdadeira natureza, mesquinha e pequena, do conflito, em outro conto que satiriza valores distorcidos. Em “Deal from the Bottom” um prisioneiro no corredor da morte aguardando sua execução, faz um incomum trato com o diabo. “The Wind Beyond the Mountains” é uma FC de exploração espacial com tripulantes de uma nave que se aproximam demais do alienígena que capturaram para levar à Terra, na esperança de justificarem o seu empreendimento exploratório. “Back to the Drawing Boards” narra como um robô abusado em seus direitos acaba adquirindo o suficiente para comprar o governo da Terra e virar o jogo — história com reviravolta final, como várias outras no livro. “Nothing for my Noon Meal” é outra FC sobre húbris e de como a aventura humana em outro planeta não triunfa. Mais curto, “Hadj” tem um sentido semelhante, quando uma delegação da Terra vai ao planeta dos Mestres do Universo. “Rain, Rain, Go Away” tem um burocrata massacrado às voltas com um novo dilúvio. Fechando a coletânea, o ambientado em Marte “In Lonely Lands” é mais filosófico.

Além de Robert Sheckley e Philip K. Dick, Harlan Ellison é outro autor que partilha uma identidade programática com o nosso Ivan Carlos Regina, na crítica mordaz aos azares humanos, sem se esquivar de um certo moralismo incisivo e necessário.

 

Duelo dos Mundos, de Paul Koenig. Rio de janeiro: Tecnoprint, Série Futurâmica N.º 1, s.d., 140 páginas. Livro de bolso. Na grupo do Facebook “Edições de Ouro-Tecnoprint“, Pedro Lucas Silva Santana levantou a possibilidade deste livro ter sido escrito por um brasileiro, sob pseudônimo. Dioberto Souza invocou Quim Thrussel, um especialista em quadrinhos e edições populares nacionais, muito ativo na blogosfera e no Facebook, e este me pediu para opinar. Como eu tinha o livro aqui, doado pelo filho do escritor da Primeira Onda, Clóvis Garcia, resolvi ler e tirar a prova. O livro apresenta um futuro em que a humanidade, pela aplicação do ensino hipnótico e de uma língua universal criada artificialmente, apresenta-se política e culturalmente unificada. O meio de transporte interplanetário são discos voadores e a civilização humana é ameaçada por naves marcianas esféricas, situação de guerra interplanetária que ecoa, inclusive no título, a novela de H. G. Wells, A Guerra dos Mundos (1897). O enredo envolve o herói, um agente secreto chamado Meneson, sendo capturado pelos marcianos e conhecendo uma garota chamada Mari Silvan, para participar marginalmente de um deus ex-machina apocalíptico — que torna inútil toda a missão do herói, de fundamentar a construção de um raio da morte chamado “calorato”; a humanidade queda sob o controle marciano. O objetivo dos alienígenas: usar os humanos como cobaias em um experimento de aceleração evolutiva da mente, o que soa surpreendentemente positivo. Em toda a novela, a ação é confusa e a ciência ginasial ou ausente.

Não há menções a Koenig nas enciclopédias de FC anglo-americana e francesa mais conhecidas, e a internet não revela nada. A principal pista de que se trata de pseudônimo de um autor brasileiro está no artifício de, na sua variação do esperanto, terminar os nomes masculinos substituindo (ou somando) alguma sílaba ou letra final pela desinência “-on”, e os femininos por “-an”. Desse modo: Meneson (Meneses?), Pradon (Prado), Machadon (Machado), Campon (Campos), Nuneson (Nunes), Teleson (Teles) e Silvan (Silva). Segundo o Catálogo de Ficção Científica em Língua Portuguesa: 1921-1993 (1994), de R. C. Nascimento, Paul Koenig também é autor de Os Piratas de Vênus, na mesma coleção. Um brasileiro publicado na Série Futurâmica, com o seu próprio nome, foi Orígenes Lessa, com A Desintegração da Morte. Também foi publicado na Coleção Fantastic, da mesma Tecnoprint/Ediouro.

 

Quadrinhos

Arte de J. Scott Campbell & Tim Thowsend.

Marvel Saga: Espetacular Homem-Aranha: A Vida e a Morte das Aranhas, de J. Michael Straczynski (texto) & John Romita Jr. (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2020, 232 páginas. Arte de capa de Scott Campbell & Tim Thowsend. Capa dura. No terceiro volume da coleção dedicada à passagem de Straczynski pela Marvel, Peter Parker sonha com o Dr. Estranho — que o informa das consequências do seu encontro anterior com uma aranha mítica, em outra dimensão. Ele mal tem tempo de respirar, e surge uma espécie de vespa negra com forma de mulher e chamada Shathra, para matá-lo, forçando-o a lutar e a fugir. A criatura assume a identidade de uma jovem chamada Sharon, que se dedica a difamar a figura do Homem-Aranha, afirmando-se uma ex-amante dele. Com esta situação base, o autor não só expande a sua nova mitologia do herói, como explora a questão contemporânea da difamação e da sede de fofocas dos tabloides — impressos ou televisivos. Os toques de Straczynski são sempre fabulosos, como o Aranha detonado pela vespa indo se refugiar em uma exposição de “aracnomania” num museu de história natural. Quando o empresário Ezekiel Sims intervém, a aventura vai parar na África, em uma alusão à deusa-aranha Anansi, aquela mesma do romance de Neil Gaiman, e, na mitologia de Straczynski, a origem das características do Homem-Aranha.

Em outra aventura presente no volume, Peter vai a Los Angeles atrás de Mary Jane, mas se depara, ainda no aeroporto, com uma encrenca de muita ambiguidade moral envolvendo o Dr. Destino e o Capitão América. Logo depois, a história “O Escavador” combina um monstro mutante com a máfia italiana, em mais um roteiro divertido e inteligente, que parece muito verdadeiro em suas reflexões sobre crime e família, nas mãos de Straczynski — que é de Nova Jersey, não esqueçamos. Muito bom.

 

J. Kendall: Aventuras de uma Criminóloga N.º 148. São Paulo: Mythos Editora, setembro/outubro de 2020, 258 páginas. Tradução de Júlio Schneider. Brochura. Na primeira história deste volume duplo, “Carne de Açougue”, desenhada por Ernesto Michelazzo, a criminologista Julia Kendall atende ao apelo de uma amiga de infância, abusada fisicamente pelo marido açougueiro. Contudo, o caso logo se transforma em uma investigação de assassinato, que revela a vida dupla do marido e um inesperado e trágico triângulo amoroso, que, como de hábito nesta série, expressa uma ironia cortante quanto à violência, e sonda o caráter surpreendente e inesperado da vida.

“Atrás das Grades”, desenhada por Antonio Marinetti, faz a heroína se infiltrar, sob disfarce de prisioneira, em uma penitenciária para desbaratar as atividades da viúva de um chefão das drogas. Isso acontece depois que uma corajosa detetive disfarçada é morta ao ser descoberta. Em conjunto, as duas narrativas exploram a capacidade da mulher de cometer crimes, mas carregando consigo questões e dramas próprios da condição feminina — incluindo momentos de lesbianismo e da problemática da prisioneira que é mãe. Se a primeira história aborda a carência de valores da classe média, a segunda desce ao submundo da mulher no crime. Os escritores Giancarlo Berardi e L. Calza e Maurizio Mantero incorporam a reflexão social na sua ficção de crime com ambiguidade e inteligência, fazendo, por exemplo, uma abusiva carcereira salvar o dia.

Roberto Causo

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“O Par: Uma Novela Amazônia”, de Roberto Causo, Ganha Nova Edição

A ficção científica O Par: Uma Novela Amazônica, de Roberto Causo, tem a sua primeira edição como e-book publicada pela Agência Magh, de Gabriela Colicigno e Sol Coelho.

A nova edição traz prefácio do Prof. Osvaldo Ceschin e posfácio do autor.

 

Isolamento e violência: é o que toda invasão costuma invocar. OVNIs se apropriam do espaço aéreo brasileiro, trazendo consigo estranhos fenômenos. Oscar Feitosa é só mais um entre os vários homens do Exército Brasileiro destacados para isolar as fronteiras amazônicas contra tropas estrangeiras. Quando se vê exilado da sua tropa, sozinho no coração do Amazonas, Oscar vai reencontrar muitas coisas: velhos pesadelos e um antigo amor, agora tão estranhamente parecido com ele próprio. Esse estranho par peregrina em busca de algo…

O Par foi vencedor do concurso Projeto Nascente 11, da pró-Reitoria de Cultura da Universidade de São Paulo, e segue vivo na atualidade de suas questões.

 

Capa de Stephanie Marino

 

“Muito bom. Ótima fabulação, português seguro, madura técnica narrativa.”
Roberto Pompeu de Toledo, colunista da revista Veja (jurado do Projeto Nascente 11)

“Uma narrativa que envolve amor e aventura sem lugar-comum, sem atenuação. Com naturalidade e energia a história enreda situações e ações que não deixam antever os desfechos. O resultado final é imprevisível.”
Osvaldo Ceschin, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

O Par cumpre, de forma brilhante, um dos fundamentos da ficção científica, ao levantar uma das mais delicadas polêmicas nacionais e, ainda que não tenha a pretensão de apontar as soluções, apresentar uma visão crua das várias forças envolvidas nessa questão, que não deve, nem pode, ser preterida pelos brasileiros.”

Cesar Silva, Almanaque de Arte Fantástica Brasileira

“Uma aula de escrita e narrativa. Imergi na floresta. E entendi — antes do posfácio e muito claramente — a ‘instrumentalização’ de Lem e Conrad. Muito contemporâneo.”

Ricardo Labuto Gondim, autor premiado do romance Corrosão

[Ao ler O Par] me rendi às evidências e a um critério que oblitera qualquer outro: a excelência da história.”

Marcello Simão Branco, Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica

 

Disponível agora na Amazon.

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Leituras de Maio de 2018

Maio foi um mês de muitas atividades, inclusive eventos que fui assistir ou participar. Fiquei meio que sem o tempo habitual de leitura, e acabei lendo poucos livros e mais histórias em quadrinhos.

 

Science Fiction, de Adam Roberts. Londres & Nova York: Routledge, The New Critical Idiom, 2003 [2000], 204 páginas. Trade paperback. Em maio, fui convidado pelo editor Adilson Silva Ramachandra, da Editora Jangada, para falar com Cláudia Fusco no lançamento de A Verdadeira História da Ficção Científica: Do Preconceito à Conquista das Massas, de Adam Roberts. Achei então este Science Fiction na pilha de livos que meu filho uso na sua pesquisa de mestrado, e que ele tinha deixado aqui em casa. Eu já havia consultado o livro para as minhas próprias pesquisas, mas era hora de terminar a leitura para me preparar para o bate papo. O livro saiu em uma série muito interessante, The New Critical Idiom, da qual eu já havia lido outros dois títulos, um sobre metaficção e outro sobre mito. Ela se dedica justamente a atualizar o ambiente universitário em língua inglesa, com introduções substanciais a diversos assuntos que vinham entrando nessa esfera, da década de 1980 em diante.

O enfoque de Roberts provavelmente surge da crítica pós-modernista e das questões de identidade que ela incorpora. Lembra especialmente Scott McCracken no seu Pulp: Reading Popular Fiction (1998), ótimo livro que tem a ficção científica como apenas um de seus assuntos — juntamente com a ficção de detetive e a de histórias de amor, e o horror gótico. Isso porque Roberts, a partir da discussão do teórico Darko Suvin do novum (os elementos na FC que parecem novos e dissonantes em relação ao entendimento convencionado da realidade) e do estranhamento cognitivo, reposiciona o encontro com a alteridade como aspecto central do gênero:

“Em outras palavras, a função simbólica-chave do novum da FC é precisamente a representação do encontro com a diferença, o Outro, a alteridade.” —Adam Roberts, Science Fiction (2000).

Novamente, algo semelhante está em McCracken, mas Roberts transforma a constatação em uma espécie de método crítico e de valoração, saudando alguns autores quando eles representam um encontro positivo com a alteridade, e condenando outros por sua deficiência em fazê-lo. Se por um lado, isso o leva a cometer alguns excessos interpretativos, por outro o coloca mais no centro, quinze ou dezoito anos depois, das ansiedades atuais em torno de celebração da diferença e da diversidade, e das qualidades subversivas que a FC pode desenvolver. É interessante ainda observar que neste livro Roberts não é muito simpático à ideia da proto ficção científica (ocorrências de precursores do gênero anteriores ao século 19), ou, na sua definição, pré-Romantismo:

“Eu considero a FC como sendo moderna, não antiga; e como ‘moderna’ eu quero dizer pós-romântica; o que é o mesmo que dizer que ela vem com a reavaliação da cultura e metafísica associada ao período romântico […]” —Adam Roberts, Science Fiction (2000).

O curioso aí é que a discussão da proto FC torna-se central justamente para a original hipótese seu novo livro, A Verdadeira História da Ficção Científica: a tese de que a reforma protestante teria sido essencial para o surgimento da mentalidade necessária à produção da ficção científica.

 

Ate de capa de Donato Giancola.

The Ordinary, de Jim Grimsley. Nova York: Tor Books, 1.ª edição, 2004, 368 páginas. Capa de Donato Giancola. Hardcover. Este é um romance de ficção científica e fantasia de um autor que já ganhou o Lambda Award, focado em assuntos LGBT. Traz uma linda capa do mestre da pintura a óleo Donato Giancola. O autor Jim Grimsley andou sendo publicado na Asimov’s Science Fiction e já foi comparado a Ursula K. Le Guin — comparação que, além da capa, me motivou a conferir este seu trabalho. Faz parte de um universo ficcional que Grimsley vem desenvolvendo, mas com aquela liberdade que caracterizou o universo Hainish de Le Guin.

The Ordinary segue, em sua maior parte, uma linguista chamada Jedda, que, parte de uma delegação diplomática/comercial de um mundo de alta tecnologia, vai a um outro, medievalesco e estranho por ser um mundo plano, Irion. O meio para a visita é um portal mágico que une os dois mundos. A delegação está lá sob falsos pretextos. Os falsos pretextos visam dar uma desculpa, tipo “Golfo de Tonquim” (que disparou a guerra do Vietnã), para a invasão do lugar. A sociedade tecnológica está em guerra, no espaço, com robôs, e precisa dos recursos que Irion possui. Mas o poder mágico desse mundo resulta em uma derrota avassaladora para eles, momento que é um dos melhores, do livro. Jedda fica para trás depois que a delegação é expulsa, e acaba sendo apresentada ao grande mago que controla Irion. Jedda é bissexual. Ela é atraída pelo mago, mas acaba gravitando na direção de uma mulher que irá herdar o poder mágico desse mundo. Até certo ponto, a heroína parece estar sendo treinada pelo homem para se aproximar da mulher, Malin. Salvo pelo tom sofisticado, interiorizado mas ao mesmo tempo descritivo da narrativa, o principal efeito do romance está na viagem no tempo que coloca uma no caminho da outra. E a mudança correspondente, do ponto de vista narrativo, que migra de Jedda para Malin. Aparentemente, Malin precisa de uma dimensão emocional mais profunda, para galvanizar os seus poderes mágicos e o seu caráter como dirigente. Falta ao livro, porém, uma pegada mais forte para a narrativa propriamente dita e mais situações de tensão envolvendo Jedda e Malin. Na ausência, acaba sendo menos do que memorável.

A exuberante arte de capa do ítalo-americano Donato Giancola é uma pintura a óleo de elementos sinuosos, sensuais, que expressam a fusão do orgânico como a super-ciência, própria  da mistura de FC e fantasia que o romance oferece. Giancola é um dos três ou quatro principais artistas de ficção científica da atualidade, com um sóbrio virtuosismo em todos os elementos da pintura clássica, com textura e luz renascentistas e detalhamento pré-rafaelita.

 

O Menino da Rosa, de Tony Monti. São Paulo: Editora Hedra, 2008, 48 páginas. Texto de orelha de Marcelino Freire. Brochura. Tony Monti é um colega de graduação em Letras na USP, e o ganhador do Projeto Nascente de Melhor Texto (realização da pró-Reitoria de Cultura da Universidade de São Paulo e do Grupo Abril de Comunicações) um ano depois que o meu O Par: Uma Novela Amazônica ganhou esse concurso. Tony se aproximou da Geração 90 em termos de estilo e abordagem literária, e participou da antologia de Nelson de Oliveira, Geração Zero Zero: Fricções em Rede (2011). De modo que é natural a presença de um dos grandes nomes da Geração 90, Marcelino Freire, assinando o texto da orelha. Li mais um livro dele, O Mentiroso, uma reunião de contos lançada pela 7 Letras, do Rio de Janeiro. Este O Menino da Rosa também é anunciado como livro de contos, mas imagino que o mais apropriado seria chamar seu conteúdo de crônicas.

O tema é a infância, desenvolvido em textos curtos de uma ou duas páginas cada. Como está implícito que se trata da infância do próprio autor, acho que é possível chamar o livro de “autoficção” — uma das tendências atuais do mainstream. Os textos são marcados pela delicadeza de situações de descoberta, perplexidade e confusão, encontros, desencontros e reencontros, com sutis toques de ironia. Nesse tipo de literatura, os efeitos precisam estar concentrados e aparecerem com precisão, que Tony parece alcançar com facilidade.

 

Arte de capa de Lais Dias.

O Ovo do Elefante, de Tiago de Melo Andrade. São Paulo: Melhoramentos, 2010, 128 páginas. Capa e ilustrações internas de Lais Dias. Brochura. Os assuntos afrofuturismo e cultura afro estão crescendo no ambiente da ficção científica e fantasia, mas esta novela de fantasia para crianças, que adquiri em um dos Fantasticons organizados por Silvio Alexandre, lembra a gente de que no Brasil a literatura infantil e juvenil já vinha trilhando essa estrada há algum tempo. Antes de Tiago de Melo Andrade, Simone Saueressig tem no seu O Palácio de Ifê (1989) um outro exemplo.

Em O Ovo do Elefante, a narrativa começa na África e termina no Brasil, ainda em tempos coloniais e portanto, durante a escravatura. Acompanha a menina Badu, uma princesa africana que vê a sua nação devastada pela cobiça despertada por um reino vizinho, quando se descobre que foi desenterrado lá um diamante do tamanho de um “ovo de elefante” (uma figura de linguagem: elefante não põe ovos, mas se pusesse você imagina o tamanho). Levada como escrava, ela encontra alguma simpatia da parte de uma senhora, que a trata bem. Mas os portugueses, que usavam esse reino como fornecedor de escravos, ficam sabendo da existência da pedra e atacam o lugar, capturando Badu uma segunda vez. Tá na cara que o diamante representa uma maldição. A heroína é embarcada em um navio negreiro e vai parar no Nordeste Brasileiro, escrava de uma senhora metida e cruel, casada com o dono de um engenho de açúcar. Lá, é castigada com frequência e chega a ser mutilada. Mas mesmo no Brasil, o diamante dá um jeito de entrar no caminho de Badu, trancado em um navio que acabou vindo encalhar em uma praia próxima, a tripulação comida por um casal de leões que também viajava nele, e que se soltou durante a jornada. Nessa altura da narrativa, a menina reencontra o guerreiro Kamau, que havia comandado o ataque ao povo dela. Por todo o trajeto até ali, Badu ouve a voz de seu pai, que lhe diz que ela precisa usar a riqueza que o diamante traria, para fundar um quilombo na região — com a ajuda de Kamau, mas tendo que enfrentar um implacável capitão do mato. As peripécias desta novela para crianças e jovens são interessantes, e ela parece ter uma pesquisa sólida sobre um assunto tão forte. É com respeito a isso que o livro faz o leitor pensar sobre o casamento entre assunto e narrativa, cujo tom quase-fofo soa leve demais para a gravidade da violência descrita em quase todo as suas páginas. Por outro lado, as ilustrações internas de Lais Dias são muito ricas e evocam com poesia a cultura afro, embora aconteça com ela o mesmo que se deu com a arte de capa de Marco Cena para o livro de Saueressig resenhado aqui mês passado: a arte da capa não tem a mesma força nem a clareza das ilustrações internas.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Bong Dazo e Dan Parsons.

Comics Star Wars 15: Cavaleiros da Antiga República 3, de John Jackson Miller (texto), Bong Dazo e Scott Hepburn (arte). Embu das Artes-SP: Planeta DeAgostini do Brasil, 2015, 232 páginas. Arte de capa de Bong Dazo & Dan Parsons. Capa dura. Há alguns anos que estou acompanhando esta série de quadrinhos de Star Wars desenvolvida a partir de um videogame da franquia, Knights of the Old Republic (2003), ambientada cerca de quatro mil anos antes dos eventos da série vista no cinema. Este é o terceiro volume encadernado que leio. No segundo, que resenhei para o site do Who’s Geek, a aventura termina com o grupo de heróis encontrando a obra de Lorde Adasca, um empreendedor megalomaníaco que armou com hiperpropulsores aqueles vermes gigantes que Han Solo e Leia Organa descobrem em um asteroide, enquanto fogem das naves imperiais, em O Império Contra-Ataca (1980). Uma praga de armas biológicas de destruição em massa. Neste volume aqui, o sujeito está oferecendo a sua obra tanto para os militares já fascistoides da Velha República quanto para invasores mandalorianos.

Os heróis da série são o atrapalhado padawan-ronin Zayne Carrick e a bela Jarael, uma jovem muita capaz, com jeito de elfa. Uma confusão na estação espacial é a chance que precisam para azedarem os planos grotescos de Adasca. Mas no processo acontece o sacrifício do cientista Camper, de que Jarael cuidava zelosamente. Esse trecho do livro é dramático mas o desenho de Bong Dazo tem uma arte-final muito dura e cenas atulhadas, que acabam diluindo a sua força. Dazo está de volta na história seguinte, mas a arte-final de Dan Parsons e as cores de Michael Atiyeh deixam a arte muito mais leve e com um atraente ar europeu. Zayne reencontra o seu sidekick Gryph, um alienígena, nos subterrâneos do planeta Taris, ocupado pelos mandalorianos. Os dois se envolvem com ações da resistência local. Como Zayne é acusado injustamente por uma camarilha jedi de ter assassinado seus colegas padawans, ele é quase morto por uma amiga, irmã de um desses colegas. Enquanto isso, Jarael está às voltas com Alek, o mandaloriano que eles recolheram pelo caminho no volume anterior, e que vem, compreensivelmente, desenvolvendo uma queda pela garota. De volta a Taris, Zayne cumpre uma missão na torre de instalações na superfície, onde é atacado pela jedi Raana Tey, escapando por pouco. Na história seguinte, os desenhos são de Scott Repburn, mais soltos e estilizados, nem sempre adequados para o detalhamento que o universo de Star Wars pede. Nela, Lucien, o chefe dos jedi que caçam Zayne, é informado pela vidente cega Q’anilia de uma visão em que aparecem Darth Vader e Luke Skywalker. Eles discutem pela primeira vez sobre um talismã sith chamado Muur — que se encontra justamente em Taris. Lucien envia uma jovem jedi chamada Celeste Morne para recuperar Muur e acabar com Zayne de uma vez por todas. O que os jedi temem é a profecia de que um padawan iria abrir as portas para o lado negro da força na galáxia, e agora lá está Zayne Carrick, o último sobrevivente dos padawans, no mesmo planeta em que se encontra o amuleto sith… No processo, porém, o objeto cai nas mãos dos mandalorianos, e para recuperá-lo o herói e Celeste enfrentam perigos o suficiente para ela duvidar da justeza da sua missão assassina. Os volumes da coleção não são muito “redondos” em termos de arco narrativo, e claramente nessa história se inicia um novo arco, que fica em suspenso até o próximo livro. Gosto muito do trabalho de John Jackson Miller nesta série, mas há alguns problemas que incluem a separação do núcleo de heróis, com a sempre encantadora Jarael retornando só no final, e uma subtrama com uma praga de zumbis — algo que, na minha opinião, dificilmente funciona bem com ficção científica. E a ideia de um maligno amuleto sith, indutor de loucura e centrando buscas de heróis e vilões parece pinçado diretamente de O Senhor dos Anéis… O final é dramático e contundente, de qualquer modo, e o interesse pelo próximo volume se mantém.

 

Arte de capa de Brent Anderson & John Starr.

Rising Stars: Visitations, de J. Michael Straczynski (texto). Los Angeles: Top Cow Publications, 2002, 64 páginas. Capa de Brent Anderson & John Starr. Brochura. Straczynski é o criador da série televisiva de space opera Babylon 5, uma favorita de minha esposa, Finisia Fideli. Depois do fim da série, Straczynski passou um tempo atuando como roteirista de quadrinhos. Nessa área, conheci seu trabalho para a Marvel, com Thor, Homem-Aranha e Doutor Estranho. Fique muito bem impressionado. Tanto que, quando trombo com algum material escrito por ele, minha tendência é adquirir. Foi o que aconteceu com Rising Stars Vol. 2 — que eu deixei pendurado enquanto buscava, na mesma loja em que o adquiri, a Omniverse, o volume 1 ou algum outro produto da mesma série, mas anterior. Há pouco, encontrei na Omniverse este Visitations, que é justamente uma introdução à série.

A premissa não tem muito ineditismo: um meteoro explode nas proximidades de uma cidadezinha americana, e todas as crianças em gestação ou geradas pouco depois, 113 delas, passam a desenvolver superpoderes. São os “Pederson Specials”, a partir do nome da cidade. Ecos aí do clássico britânico de John Wyndham, Aldeia dos Malditos (The Midwich Cuckoos), com a diferença de que as crianças são internadas, todas juntas, em instalações federais. A partir disso a narrativa acompanha, de modo episódico, algumas situações: um palhaço contratado para entreter as crianças no dia do seu internamento, e que mui obviamente está se borrando de medo delas; um menino com o impulso de ajudar outros e que finge ser uma das crianças afetadas, pagando um preço terrível por sua fantasia. Um dos diferenciais é um cientista das instalações, que é pessoa boa e paternal — contrário do clichê do cientista frio ou sádico, a lá Mengele. Esse cientista está no centro da última parte do gibi, em que uma das crianças, agora adulta e transformada em super-herói, faz uma visita para pedir conselhos. Sob a forma de diálogos e flashbacks, o episódio conta do ressentimento entre esse herói e um outro — lembrando que eles todos cresceram juntos e têm muita bagagem. Impressiona como a narrativa se esquiva com sutileza das situações padrão das HQs de super-heróis, que, se são super-humanos, têm nesta HQ uma pungente e acessível exploração do sentimento humano. A marca de Straczynski.

 

Arte de capa de Marco Soldi.

J. Kendall: Aventuras de uma Criminóloga N.º 17, de Giancarlo Berardi & Maurizio Mantero (texto), e Gustavo Trigo, Marco Soldi & Enio (arte). São Paulo: Mythos Editora, 130 páginas. Capa de Marco Soldi. Brochura. Encontrei este número antigo da série da criminóloga Júlia Kendall em uma das minhas visitas à loja Omniverse, em São Paulo. Luis Mauro, o proprietário, descobriu a série há pouco tempo, e disse que Berardi deveria escrever para a televisão. De fato, o roteiro é o destaque da série. O desta aventura é particularmente intrincado e interessante. Começa com Júlia (desenha com os traços de Audrey Hepburn) e um dos seus associados no Departamento de Polícia perseguindo um serial-killer que mata quarentonas e tinha sido posto pra correr por uma policial disfarçada. Capturado ao final de uma dinâmica perseguição, ele informa Júlia e as autoridades que, dos seis crimes atribuídos a ele, um não seria de sua responsabilidade. Depois de trombar com a burocracia jurídica da promotoria criminal, ela vai investigar sozinha, auxiliada por um detetive de seguros que é um dos personagens recorrentes da série: Leo (com a cara do ator Nick Nolte). Isso é central para a ficção de crime hard boiled americana — a figura do investigador solitário que vai além da prática policial e sua obsessão com o carimbo de “caso encerrado”. A investigação leva Júlia e Leo a um clube de sexo S&M e, a seguir, a um artista fracassado, como principal suspeito do assassinato de sua esposa. Há uma combinação interessante aí entre o assunto risqué do submundo do sexo tipo De Olhos bem Fechados, e um argumento, bem rascunhado pela mente arguta e erudita de Giancarlo Berardi, em torno da sublimação sexual na arte. Tudo isso em um gibi! Esta série do criador do western Ken Parker é uma das melhores coisas que podemos encontrar nas bancas, em termos de quadrinhos.

—Roberto Causo

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“Selva Brasil” Ganha Resenha no Blog “Ficção Científica Brasileira”

Selva Brasil (Editora Draco), a novela de história alternativa de Roberto Causo foi resenhada no blog Ficção Científica Brasileira, criado por Luiz Bras. O crítico Ricardo Celestino destacou o fator de imersão que a narrativa proporciona.

 

Arte de capa de Erick Sama.

Publicado pela Editora Draco, de São Paulo, em 2010, Selva Brasil tem ilustração de capa de Erick Sama e vem colecionando resenhas e menções positivas em blogs e redes sociais. Faz parte de um trio bastante distinto de novelas de ficção científica ambientadas na Amazônia brasileira, escritas na década de 1990. As outras duas são Selva Brasil, classificada no III Festival Universitário de Literatura (da revista Livro Aberto e da Xerox do Brasil), e O Par: Uma Novela Amazônica, ganhadora do 11.º Projeto Nascente (da Universidade de São Paulo e do Grupo Abril). Selva Brasil também saiu pela Editora Draco.

O blog Ficção Científica Brasileira foi criado pelo escritor Luiz Bras (um pseudônimo de Nelson de Oliveira) para dar maior visibilidade e promoção à FC nacional.

Na resenha em questão, publicada em março deste ano, o crítico Ricardo Celestino trata primeiro do contexto da novela, em que o plano mirabolante do Presidente Jânio Quadros de invadir as Guianas, na fronteira norte do Brasil, é levado a cabo. A ação tresloucada resulta, décadas depois, em uma tensão permanente na área, com diversos choques militares acontecendo de quando em quando, na floresta amazônica. Sobre a narrativa como ficção científica, Celestino destaca:

“O tempero de ficção científica ao longo do romance não fica só na especulação de uma realidade alternativa. Há também todo um mistério em torno de um experimento militar que pode ser o elo entre a realidade paralela criada pelo autor e a nossa. O arco narrativo é bem construído, a ponto de ficarmos curiosos para saber como seria a vida privada naquela nova realidade de brasileiros um tanto quanto mais críticos e participativos na vida pública e política do país.”

Mais importante, o resenhador recebeu bem a ambientação amazônica e a descrição de uma problemática geopolítica mas também cultural, que frequentemente é tangenciada pela literatura brasileira:

“O que também existe de voz crítica no livro é a reflexão em torno da complexa situação das fronteiras brasileiras na perspectiva geográfica, política e cultural. Enquanto brasileiro, senti ao longo da leitura que perdemos a sensibilidade em relação às etnias indígenas, e desconhecemos as complexidades e as riquezas de sua arqueologia cultural.

“Fui educado pela estética sul-sudeste e Selva Brasil me proporcionou uma imersão inusitada em um território nacional pouco explorado por outras literaturas de ficção científica a que tive contato. Parafraseando Chimamanda Adichie: enquanto leitores críticos, devemos perseguir aquelas obras que nos convidam a fugir das histórias únicas sobre as culturas e as civilizações. Selva Brasil é, sem dúvida, uma ótima opção imersiva para esse exercício.”

O texto completo da resenha está disponível aqui.

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“Selva Brasil”, de Roberto Causo, Ainda Chama a Atenção

Lançado pela Editora Draco em 2010, a novela de história alternativa Selva Brasil, de Roberto Causo, continua chamando a atenção dos blogueiros literários. A Draco tem um trabalho muito bom de divulgação nos blogs, fazendo circular exemplares do livro e resultando em críticas positivas e recomendações, nos últimos dois anos.

 

Arte de capa de Erick Sama.

Selva Brasil foi escrito no início da década de 1990, parte de um trio de novelas de ficção científica ambientadas na Amazônia, e que inclui Terra Verde (também publicada pela Draco) e O Par: Uma Novela Amazônica (ganhadora do Projeto Nascente 11 e publicada pela Editora Humânitas). Erick Sama fez a capa e editou o livro.

A novela imagina o resultado, em 1993, de uma invasão das Guianas, na fronteira norte do país, pelas forças armadas brasileiras, seguindo um plano esboçado pelo Presidente Jânio Quadros no início da década de 1960 — fato que faz parte das “teorias de conspiração” da história do Brasil.

Em dezembro de 2016, Yvens Castro escreveu no blog Saga Literário: “Selva Brasil é uma grata surpresa, pois consegue mesclar elementos de aventura, guerra e ficção científica. O autor traz uma obra eletrizante, apresentando uma linguagem informal, repleta de gírias militares, o que torna a história mais real … Recomendo a obra, principalmente para quem gosta de ficção científica.”

Em janeiro de 2017, Carlos Rocha, no site do Selo Multiverso Editorial, resenhou Selva Brasil e comentou: “Selva Brasil mergulha o leitor num ambiente chuvoso e tenso, onde um conflito de guerrilha se desenrola, e bem referenciado com a terminologia própria utilizada pelos militares do exército brasileiro, gírias, nomes de armamentos e veículos militares … É um livro recheado de ação … Além disso, há um dimensão íntima que surge das dúvidas, memórias e angústias do protagonista na medida em que a trama avança … É uma prosa simples, direta, mas que em alguns trechos alcança um aspecto poético, na descrição de situações, da natureza e da dimensão dos sentimentos.”

Também em janeiro, Paulo Vinicius F. dos Santos resenhou o livro no blog Ficções Humanas, afirmando: “A escrita do autor é fantástica. Quando eu percebi o que ele estava fazendo, meus olhos brilharam … [No] geral o livro é bom e apresenta elementos curiosos como a própria escrita do autor e a ambientação criada na qual ele centra sua trama.”

E em julho, Rodrigo Mozelli discutiu o livro no blog Bio-Livros: “Selva Brasil cumpre o que promete, é leitura rápida … e obrigatória para quem, como eu, gosta de uma boa leitura sobre guerra e, ainda mais, quando mistura este universo com uma boa pitada — na medida certa — de ficção.”

Selva Brasil está disponível em papel e como e-book. Confira no site da Editora Draco.

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