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Leituras de Dezembro de 2020

Depois de assinar com a Editora Bandeirola para escrever um guia de pesquisa e leitura de ficção científica brasileira, logo mergulhei na leitura do material que deve ser tratado no livro. Muitos desses trabalhos eu tenho comigo há décadas, esperando a chance de serem apreciados sistematicamente. Outros, reli buscando uma familiaridade maior. 

 

Espaço: Série Projeto Barnard, de G. Carmo. São Paulo: Ibrasa, 1984, 108 páginas. Texto de Orelha de Gumercindo Rocha Dorea. Arte de capa e ilustrações internas não creditadas. Brochura. Comprei este livro em Campinas, na saudosa livraria Papirus, provavelmente perto do ano de lançamento. Dei uma olhada, mas o guardei por achar que não seria do agrado. Chegou a hora de terminar a leitura e refletir sobre os objetivos de G. Carmo. Talvez típico de uma FC das décadas de 1960 e 70 no Brasil, este opúsculo em prosa poética empresta imagens e situações do gênero para expressar preocupação e desencanto com a humanidade. A narrativa, dividida em três “livros”, propõe ser o relatório de três ETs — os astronautas X1, X2 e X3 — vindos da Estrela de Barnard para investigar a Terra. Tratando (com algum conhecimento de ciência) da formação do universo, do Sistema Solar e da Terra como preâmbulos, discute, no primeiro livro, o amor; no segundo, a evolução humana e o seu fracasso ético; no terceiro, as mazelas sociais e a guerra. Há praticamente um parágrafo, numerado na lógica do relatório, por página. O cristianismo de Carmo aparece na página 73, em que o eu lírico pretende para si uma trajetória heroico-prometeana como a de Cristo: “pelo bem que fiz me condenaram à morte, em recompensa…” Em muitos momentos, o lado FC desaparece dos tópicos, ficando a poesia convencional:

 

“15. A estrelas estão no céu e as areias estão no mar… pode o tempo passar o tempo que quiser, mas nada há de mudar do céu que está na terra… pode o tempo mudar as minhas faces, pode o tempo mudar os arvoredos, pode o tempo mudar o curso d’água, mas não irá mudar o doce encanto, a loucura infinita de te amar… o teu amor tudo pode, pode criar o fascínio, pode criar a beleza, pode criar o mistério, amor que é amor tudo vence, todo constrói, tudo pode… amor que é chama invisível, amor que é flor tão suave, amor que é vida, emoção, amor que é noite de estrelas… que é poesia e canção.” —G. Carmo. Espaço: Série Projeto Barnard, página 37.

Mesmo sendo prosa poética singela e sem sofisticação, alcança uma certa força final pela eloquência e pelo sentimento. A elogiosa orelha de Gumercindo Rocha Dorea testemunha que ele ainda se associava à FC brasileira, antes de conhecer o Clube de Leitores de Ficção Científica em 1987 e retomar a publicação do gênero. Espaço tem como sequência Odisséia no Planeta Terra: Série Projeto Barnard 2 (1989) e Terra, o Planeta Poluído: Série Projeto Barnard 3 (1993). Uma trilogia que começou antes da Trilogia Padrões de Contato (1985 a 1991), de Jorge Luiz Calife, mas terminou depois.

 

Arte de capa de Graciela Rodriguez.

O Dia das Lobas, de Nilza Amaral. São Paulo: Editora Escrita, 1984, 70 páginas. Arte de capa de Graciela Rodriguez. Prefácio de Uilcon Pereira. Brochura. Outro livro da mesma época, do mesmo ano, que eu havia deixado passar. Esta noveleta venceu o concurso Prêmio Escrita de Ficção 1984, organizado pela editora de Wladyr Nader, autor da coletânea de FC Lições de Pânico (1968), lá atrás na Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira. No ano anterior, Nader havia promovido o concurso Conto Paulista, que revelou outra autora de FC da Segunda Onda, Finisia Fideli, com o seu conto agora clássico, “Exercícios de Silêncio”. No júri do Prêmio Escrita 1984 estiveram o próprio Nader, o escritor Roniwálter Jatobá, muito ativo na época, e o professor de Filosofia Uilcon Pereira, então na Universidade de São Paulo. No prefácio “Milhares de Anos-Luz à Frente da Prosa Comercial”, Pereira louva o caráter vanguardista da narrativa.

O Dia das Lobas cairia bem no Ciclo ou Onda de Utopias e Distopias: trata de um futuro distópico em que existe apenas ensino à distância por meio de microcomputadores que também atualizam os membros da sua sociedade arregimentada quanto às leis sempre variantes, e no qual até mesmo as neuroses mais profundas estão articuladas aos interesses do Estado. No topo da pirâmide social — em que as classes parecem ser mais definidas por comportamento do que pela renda — estão os sociólogos, categoria que faz as vezes do sempre atacado tecnocrata das distopias brasileiras. Assim como em “O Casamento Perfeito” (1966), de André Carneiro, e em Adaptação do Funcionário Ruam, de Mauro Chaves (1975), os computadores estabelecem os casais. A ambientação é urbana, a história ocorre em um futuro indefinido, certamente próximo por todos os índices quotidianos reconhecíveis ao leitor. O texto tem formatação incomum, “experimental” ou “formalista”, com diálogos isolados na mancha de texto, e parágrafos ora com tabulação, ora sem (como em, por exemplo, Piscina Livre de Carneiro, livro de 1980). De saída, não acho que seja um recurso efetivo. O ponto de vista narrativo salta de um personagem a outro sem transições marcadas.

Uma mulher que se define como “loba” encontra um homem no metrô, e eles vão ao prédio dela. O contexto é de degradação ambiental e social, com um clima agravado — talvez herdado do anterior Não Verás País Nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão. O fato mais estranho desse futuro é um calendário em que as pessoas têm a liberdade de ventilar seu desassossego sob a forma de violência coletiva (clichê da ficção científica visto, por exemplo, no recente Uma Noite de Crime, filme de James DeMonaco lançado em 2013). Essa é a providência pública, mas há uma secreta: a “Organização” (o regime) separou uma espécie de reserva de caça e um dia licenciado para as “lobas” do título atacarem incautos pré-selecionados, no metrô da cidade. Os temas da violência e do sexo reprimidos também estão em uma jovem telepata que precisa se acorrentar para não dar vasão a esses fatores. O lado distópico é reforçado por um sociólogo ocupado em organizar para o Estado a campanha do “dia de matar bandido”. Uma novela com índices da ficção urbana que logo iria imperar na Geração 90 da ficção mainstream nacional: encontros e desencontros, sexualidade reprimida e violência, e alguma dose de absurdismo. Um texto melhor organizado teria ajudado, mesmo porque o leitor se acostuma com as idiossincrasias da diagramação e passa a ler sem estranhamento. No século 21, Nilza Amaral publicou Expulsão do Paraíso (2012).

 

A Grande Guerra Nuclear, de Mário Sanchez. São Paulo: Editora Lance, 1973?, 116 páginas. Brochura. Embora publicado no começo do Ciclo de Utopias e Distopias (1972-1982), A Grande Guerra Nuclear se conecta mais ao período anterior, a Primeira Onda. A preocupação com a Guerra Fria e a ameaça nuclear é característica do período, assim como o desejo de Mário Sanchez de explorar as convenções e o dialeto próprio do gênero. As mesmas preocupações fizeram parte da Onda de Utopias e Distopias, mas o aspecto pulp é diluído pelas estratégicas formais da ficção pop brasileira. Sanchez já havia publicado, em 1959, Além da Curvatura da Luz, obra de especulação filosófica. Assim como o fez José Maria Doménech T., em O Terceiro Milênio, Sanchez se associa ao futurista Alvin Toffler, pelo menos na orelha do livro, que também afirma: “Ninguém mais pode negar que a ficção científica entrou na vida de todos nós, com os computadores eletrônicos, reatores nucleares, mísseis espaciais. televisão, revistas e jornais.” A introdução, por outro lado, é quase um manifesto pacifista contra a ameaça da guerra termonuclear global entre as superpotências EUA e URSS.

Nessa novela, um “território” indeterminado (possível representação velada de Cuba) passa por uma revolução, e o seu grande líder barbudo abriga uma elite de cientistas determinada a impor a sua concepção de paz, depois de singrar os mares do mundo em uma espécie de Náutilus. Essa figura da elite de cientistas é anterior, óbvio, remontando talvez ao romance de H. G. Wells, The Shape of Things to Come (1933), filmado como Daqui a Cem Anos (Things to Come) em 1936 (direção de William Cameron Menzies). Na época da escrita do livro de Sanchez, a série alemã Perry Rhodan já havia apresentado uma “terceira potência” humana que põe em cheque a Guerra Fria e evita o conflito nuclear. Com Sanchez, a sociedade de cientistas rechaça a invasão de tropas patrocinadas por potências armamentistas, e, depois que o quadro geopolítico global se deteriora, tenta uma tecnologia de captura de mísseis atômicos no ar (o autor não compreendeu a tecnologia das ogivas múltiplas de reentrada, introduzidas em 1970). Mas os cientistas haviam construídos abrigos subterrâneos (como nos filmes de 007, caríssimas instalações secretas abundam sem deixar o menor rastro financeiro) e se refugiam nele com parte da população do país revolucionário, para ressurgir e repovoar a Terra, cem anos depois.

A narrativa, que é intermeada por poemas, tem muitos diálogos e o dispositivo didático de um repórter que chega aos cientistas ao investigar os segredos do regime revolucionário, para desaparecer da narrativa subsequentemente. Assim como Jeronymo Monteiro, o autor se dedica a uma crítica moralizante dos azares da humanidade, em uma época em que eles estavam escancarados, mas seu pacifismo não resiste ao impulso de dramatizar o apocalipse atômico. Não obstante as ingenuidades científicas, políticas e narrativas, o livro guarda uma certa energia pulp que faz o leitor chegar à sua conclusão.

 

Arte de capa de Chico Coelho.

Encontro Inesperado na Terceira Lua, de Rosana Rios. São Paulo: Editora Scipione, Série Diálogo, 2002 [1996], 112 páginas. Arte de capa de Chico Coelho, ilustrações internas de Getúlio Delphim. Brochura. Premiada autora de livros para crianças e roteirista de televisão, Rosana Rios é um dínamo prolífico e agregador, criadora do Grupo de Estudos de Literatura Fantástica. Aqui ela ataca com esta rara space opera sob a forma de uma espécie de “Romeu e Julieta no espaço”, dirigida ao leitor pré-adolescente. Curiosamente, seu livro também abre com um manifesto pacifista. Ela, porém, teve mais sorte no desfecho, talvez por ter se apoiado em toques de qualidade mítica, uma das suas especialidades como pesquisadora.

A história se passa em um sistema com 26 planetas, dois deles em perpétuo conflito, Argh e Zarg. Trata do jovem casal Ariel e Zahira, destinados a harmonizar as coisas. A narrativa alterna capítulos, quase sempre curtos, em primeira pessoa, ora na voz de Ariel, ora na de Zahira, com outros em terceira pessoa e compostos quase que apenas de diálogos. Os dois protagonistas se encontram quando a pesquisadora Zahira penetra em território arghiano. Ao invés de entregá-la às autoridades, o vigia Ariel passa a atuar com ela, depois que ela lhe conta sobre sua busca por dois braceletes lendários, de poderes curativos e que facultam aos seus usuários comandarem poderes fabulosos que os tornam capazes de se teletransportar de um mundo a outro. Enquanto o casal busca os objetos mágicos (ou hipertecnológicos), travam contato com outros povos e suas lendas e conhecimentos, orientados por uma antiga profecia, e são perseguidos pelas duas forças em conflito.

A autora criou uma história dinâmica e divertida, escrita com precisão e devendo algo ao filme épico de fantasia científica de Peter Yates, Krull, de 1983. As ótimas ilustrações em preto e branco de Getúlio Delphim, com traço enérgico e figuras elegantes como as de Alex Raymond, ampliam os conteúdos de FC e de referência. A capa de Chico Coelho não está à altura.

 

O Terceiro Milênio: Um Sonho no Espaço, de José Maria Doménech T. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2.ª edição, 1972 [1971?], 454 páginas. Prefácio de Ronaldo Rogério de Freitas Mourão. Posfácio de Rose Marie Muraro. Brochura. Doménech Tarafa, pode muito bem ter escrito o primeiro romance brasileiro de FC hard, O Terceiro Milênio. Na Primeira Onda (1957 a 1972), autores como Rubens Teixeira Scavone e Jeronymo Monteiro tinham tentado, mas erraram no tom ou no conteúdo científico. O conteúdo e o projeto editorial — que incluiu duas edições em 1972, uma delas ilustrada e a outra pela Editora Vozes, conhecida pela sua linha de sociologia, outra pelo Círculo do Livro (1974), uma adaptação em quadrinhos pela EBAL, e publicação nos Estados Unidos e em Portugal (1975) — expressavam o projeto desse autor catalão radicado no Brasil de se alinhar ao futurismo de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke (autores citados por ele na introdução) e de Alvin Toffler (a chamada da capa, “perspectiva de ficção científica para receber sem trauma o violento impacto do futuro”, inspira-se no conceito de Toffler do “choque do futuro”). Seu interesse pelo futurismo era antigo: sua tese “Oikospolis”, defendida em 1936 na Universidade de Barcelona, desenhava uma sociedade utópica do futuro.

A ambição, porém, é temperada por declarações como esta, no prefácio: “Este livro não é um tratado de futurologia e também não deve ser consultado como monitor científico, muito embora o que nele se descreve possa vir a acontecer em futuro mais ou menos próximo […].” Ao contrário da crítica à ciência embutida nas distopias inimigas da tecnocracia e do regime militar de então, o romance se alinha com a postura redentora de Asimov e Clarke, ao declarar: na “era supertecnológica que se aproxima em que todos os poderes” serão outorgados à humanidade, “inclusive o do controle remoto de sua própria genética, [haveremos de] galgar os últimos degraus que a separam ainda da plenitude total e da suprema felicidade, abolindo definitivamente da face da Terra a miséria, a ignorância, a doença e a maldade […].” Pesado em seu pendor ensaístico, o livro apresenta personagens e situações apenas no capítulo XVII, e a primeira linha de diálogo no capítulo XXXII. Propõe uma expedição extra-solar a vários planetas candidatos a colônia humana, dando pano para a comunicação de conhecimentos de astronomia e exobiologia. Mas a dilatação temporal faz com que a tripulação retorne — desapontada com os resultados — após uma avassaladora guerra nuclear, leitmotif herdado da Primeira Onda mas também na ordem do dia do novo momento.

O interesse da solução do autor está no retorno da tripulação levando-a a uma humanidade reformulada como sociedade de bem-estar e deleite. Mulheres liberadas, vivendo em uma colônia marciana, os recebem de braços abertos, situação que aponta para a revolução sexual. Por outro lado, se no ciclo chistoso de contos de FC do início do século 20 o recurso do “foi tudo um sonho” protege o autor da pecha de visionário louco, em O Terceiro Milênio (toda a exploração da guerra nuclear era um sonho do comandante da expedição extra-solar) ele mina o autor justamente da convicção do futurista.

Há pouco de Brasil no romance, e a ausência de um material subsequente pelo autor (o livro seria o primeiro de uma série) sugere que o seu projeto de assumir o manto de Asimov, Clarke e Toffler entre nós não progrediu. Seu vasto conhecimento científico-tecnológico e a propensão hedonista expressa nos capítulos finais encontram eco na figura de Jorge Luiz Calife, adepto da FC hard, autor de romances marcantes como Padrões de Contato (1985) e Horizonte de Eventos (1986), mais imaginativos do que a mera dimensão futurista e com um quê brasileiro, carioca, Bossa Nova, na proposição de uma sociedade espacial livre, amigável e harmoniosa.

 

A Cidade Proibida, de Álvaro Cardoso Gomes. São Paulo: Editora Moderna, 1997, 190 páginas. Prefácio de Carlos Felipe Moisés. Brochura. Tive aulas de Literatura Portuguesa com Álvaro Cardoso Gomes na FFLCH/USP. Era um professor meio áspero, com a mania de chamar os alunos de “mancebo” e as alunas de “santinha”… Não terminei o curso com ele. Mas fui atrás de adquirir esta novela, misto de FC e de ficção religiosa, e até peguei o autógrafo. Certamente, eu era melhor fã de ficção científica do que aluno.

No prefácio, Carlos Felipe Moisés associa o livro às HQs e RPGs, e aventa que seria “a primeira obra punkdark-gótica exclusivamente literária, em nosso idioma”. Se quis dizer algo próximo do cyberpunk, não se trata da primeira, evidentemente. De saída, a nota do autor diz que é um futuro distante, posterior a várias guerras nucleares e ao aquecimento global do planeta. Vivendo nesse cenário distópico, o protagonista sintomaticamente se chama Jó.

No plano do detalhe, a ambientação urbana e degradada lembra as imagens de Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão. As encrencas de Jó começam quando ele aceita guardar um objeto de um “pássaro” (gíria para homossexual) alvo de um abaixo-assinado exigindo a sua expulsão do condomínio onde vivem os dois, e que Jó se recusara a assinar. Na sequência, é atacado pelo síndico, e mais tarde testemunha o pássaro ser assassinado. Na metrópole meio cyberpunk, com chuva ácida e tudo, outdoors convocavam o público a visitar “o País da Cocanha” — onde, em Blade Runner, eram as colônias foramundo. Jó se confessa a um padre cético, e então vai à torre da Golden Yoshitame Corporation, onde trabalhar em um laboratório. Lá, protege uma cobaia gigante à qual se afeiçoou. Libertar a cobaia expressa seus próprios desejos libertários, mas o enredo ainda não chegou ao seu núcleo. Isso ocorre quando Jó vai ao bairro oriental, travando contato com um samurai que é alvo do desejo velado de Jó por transcendência — ele busca o vislumbre de um “anjo” que o redima. Mas o que o samurai faz é tomá-lo por membro da gangue rival de Solozzo, e o conduz ao líder local da Yakuza. O texto inclui diálogos enigmáticos, uma jovem chinesa entregue a Jó, a revelação do interesse do chefão por um certo talismã, a fuga de Jó e a garota para os esgotos da cidade, onde o herói reencontra a cobaia libertada por ele. Desembocam nos braços da máfia, desta vez. Solozzo extrai deles os meios de invadir a fortaleza da Yakuza. Surge uma gangue de motoqueiros punks. A partir daí, a narrativa se aproxima do tupinipunk, com um festival sincrético que conta com a presença de um “Papa Dalai Olodum” e a busca por um orgasmo espiritual. Gomes sai momentaneamente do território de Brandão e entra no de Fausto Fawcett. Mais situações cyberpunk se alternam rapidamente, o texto apenas tocando a superespecifidade característica do subgênero, mantendo-se sempre ligeiro e alusivo ao transcendente — concentrado na figura do talismã, que não poupa o livro de um final pálido.

A Cidade Proibida é exemplo de cyberpunk não tupinipunk, juntamente com A Ordem dos Futuros (1993),de Ricardo Gouveia, um livro para o leitor jovem; Megalópolis (2006), de Júlio Emílio Braz (idem); Cyber Brasiliana (2010), de Richard Diegues; e Rio: Zona de Guerra (2014), de Leo Lopes. Melhor sucedido é Pantokrátor (2020), de Ricardo Labuto Gondim.

 

Arte de capa de Cirton Genaro.

Atentado em Itaipu, de Martins de Oliveira. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1983, 184 páginas. Arte de capa de Cirton Genaro. Brochura. Li esta novela para saber se ela se enquadrava no subgênero da FC conhecido como guerra futura (negativo), já que a premissa é a de um atentado terrorista na barragem de Itaipu, visando causar uma guerra entre Brasil e Argentina. A mesma premissa foi usada muito positivamente por Henrique Flory em sua noveleta de FC “A Pedra que Canta” (1991).

No meio da abertura política, o romance aborda dois complôs, um do comunismo revolucionário liderado por um militante brasileiro (talvez moldado em cima do famigerado terrorista internacional venezuelano Carlos, o Chacal), e o outro conduzido pelos linha-dura da ditadura militar de então. Por um lado, uma guerra entre Argentina e Brasil para desestabilizar e humilhar dois governos militares; do outro, a persistência da ditadura brasileira. O suspense em torno desses dois fatos negativos, separados pela linha ideológica que marcou a Guerra Fria, garante o interesse da leitura, apesar da falta de um herói central ou de interesse humano maior. É claro, com o fim da ditadura marcado para as eleições presidenciais de 1984, este romance de intriga política estava no calor do momento.

Médico de formação, Martins de Oliveira começou sua carreira em 1966 com Outono Vermelho, romance no mesmo gênero. Em 1982, publicou Os Vinte e um Dias de Outubro. O crítico e cientista político Marcello Simão Branco abordou Atentado em Itaipu no site Almanaque de Arte Fantástica Brasileira, achando-o interessante e coerente com o quadro político de então. Incluiu-o em sua lista de “Ficções da Abertura”, um conceito de 2013. O romance por certo chama a atenção pela premissa e pelo retrato político. É escrito com firmeza e uma prosa jornalística que nunca absorve o leitor, mas ao mesmo tempo se esquiva do recurso buscado pela maioria absoluta dos thrillers e romances de intriga internacional, que é o de não abandonar o olhar contemporâneo e “salvar o dia”, reestabelecendo o equilíbrio das coisas que a tensão do atentado ameaçava destruir. Trabalhando com um futuro brevíssimo, se podemos ver assim, Oliveira tem a coragem de, no fim do livro, acionar o detonador.

 

Arte de capa de Carlos Rocha.

Shiroma: Phoenix Terra, de Roberto Causo. São Paulo: Malean Studio/Selo Miskdo, 1.ª edição eletrônica, 27 de dezembro de 2020, 10.984 KB. Arte de capa de Carlos Rocha. Ilustrações internas de Eduardo Brasil. E-book Kindle. Graças ao fabuloso trabalho de Taira Yuji, a minha noveleta Shiroma: Phoenix Terra existe agora como e-book. A primeira narrativa do segundo ciclo das aventuras de Shiroma, ela já havia aparecido em março na revista Universo GalAxis Anual 2019. Shiroma, agora sem o jugo de Tera e Tiago, o casal que a havia raptado ainda criança, precisa de recursos financeiros. Ela já foi caçada pelo principal empregador de Tera e Tiago, a organização criminosa interestelar Associação Céu e Terra da Era Galáctica. A única estratégia de longo prazo que Shiroma enxerga é investigar essa organização e prejudicar ao máximo a sua capacidade de ação.

Ela vai ao planeta Phoenix Terra, na Zona 3 de Expansão Humana, para se consultar com Torgo Borkien, um especialista em arte xenoarqueológica, visando vender algumas das peças que encontrou no planeta renegado, que herdou com a morte de Tera e Tiago. Valiosas por expressarem o ápice tecnológico de uma misteriosa civilização perdida, essas peças do que tem sido chamado de weirdcraft podem alcançar um preço alto no mercado. Mas o que Shiroma encontra no estranho planeta Phoenix Terra é mais conflito e violência. Embutida no suspense e na aventura, há uma reflexão crítica sobre o mercado da arte. Destaca-se nessa edição de Shiroma: Phoenix Terra, a deslumbrante ilustração de capa de Carlos Rocha, as atraentes ilustrações internas de Eduardo Brasil, e a diagramação de Taira Yuji. Este último elemento prova que o e-book pode ser muito mais elegante e criativo do que temos visto nos últimos anos.

 

Arte de capa de Italo Bianchi.

A Filha do Inca, de Menotti del Picchia. São Paulo: Martins/Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1980, 254 páginas. Arte de capa de Italo Bianchi. Brochura. Esta é a minha segunda leitura de A República 3000 ou A Filha do Inca (1930), referência de romance de mundo perdido dentro da FC brasileira, sendo que a primeira foi na infância. Apresenta uma utopia supertecnológica e socialista literalmente circundada pela selva do Brasil Central, montada ali por refugiados da Ilha de Creta que chegaram ao continente milhares de anos antes dos portugueses. Protegida por um campo elétrico que mata todo que o toca, tenta controlar o passado aprisionando a princesa inca do título; e o futuro, por meio de uma emigração em massa para as estrelas, onde deverá fundar uma nova utopia. Os habitantes também existem em um estado intermediário — entre o ser humano e a máquina. São ciborgues de corpos metálicos de hélices integradas às costas, e um olho só na cabeça em formato de capacete.

A cidade perdida é descoberta por uma expedição brasileira, agredida por indígenas. O drama que se instala perante os sobreviventes, Capitão Fragoso e Cabo Maneco, é o do cativeiro e da morte, prisioneiros da terrível inflexibilidade dos cidadãos da república: também estão lá prisioneiros há séculos os membros da realeza inca Capac e Raymi — esta, chamada pelos locais de “o monstro”, e por quem Fragoso se apaixona imediatamente —, mantidos vivos e jovens há séculos pelos cidadãos como lembrete do seu triunfo sobre os nativos do continente. São descendentes diretos de Manco Capac, o fundador do império inca no século 13. Um erro de Capac, atrelado às grandes máquinas que suprem a república de energia e mantêm a fronteira elétrica, condena-o à morte. O arbítrio capital é racionalizado pelos cidadãos da república como um ato de respeito à cultura dos incas derrotados por eles, séculos antes. A Fragoso e Maneco caberá substituí-los como símbolo do triunfo e como mão de obra no controle das máquinas.

A ciência da República 3000 seria mil anos mais avançada do que a do restante da humanidade. É predominantemente elétrica, com a transmissão sem fio pelo ar por meio de ondas, e com processos, que chamaríamos de “parapsíquicos”, de visão e audição à distância que permitiam aos seus sábios se manterem inteirados dos conhecimentos internacionais. Além disso, realizavam uma espécie de comunicação e hipnose à distância, pela “telenergia, de irradiação pessoal”. Muitas histórias de mundo perdido podem ser apenas nominalmente FC, por imaginarem geografias ou processos históricos desconhecidos, mas todas estas especulações de superciência reforçam a inserção do romance dentro do gênero, por mais ligeiras que possam ser. Mais do que a tecnologia imaginária, enfoca uma questão central para a FC: a evolução humana. O darwinismo é mencionado pelos ciborgues da república, e os restos encontrados na barreira elétrica testemunham, de modo confuso e anacrônico, a evolução animal e humana no continente. Para além da evolução passada, o romance olha para a evolução futura dos ciborgues pós-humanos da República 3000. Estão à beira de uma descoberta que vai lhes permitir dominar a “energia pura” do universo e “condicionar a lei da gravidade”, facultando aos ciborgues emigrarem do planeta em uma grande arribação que fornece o deus ex-machina para a escapada dos quatro prisioneiros. Esse momento de clímax é efetivo, mesmo que enfraqueça a agência dos heróis — algo comum na ficção científica nacional do período, tendo como exceção o clássico 3 Meses no Século 81 (1947), de Jeronymo Monteiro, e o ótimo O Rei do Mundo Perdido (1933), de Hamilcar de Garcia.

A compressão evolutiva presente na visão do passado, materializada nos restos da barreira elétrica, ao mesmo tempo que é falha fornece um contraponto à compressão evolutiva da visão especulativa futura, que a revoada dos cidadãos da república representa. Na utopia dos cretenses isolados no Brasil, a evolução para longe da condição humana é presentificada, torna-se visível, e o salto evolutivo testemunhável. Trata-se, é claro, de um conceito de evolução intermediada pela tecnologia — algo que a FC internacional iria trabalhar incansavelmente na segunda metade do século XX, em especial após o advento do Movimento Cyberpunk na década de 1980.

 

Arte de capa de Lila Galvão Figueiredo.

Xisto no Espaço, de Lúcia Machado de Almeida. São Paulo: Editora Brasiliense, Coleção Jovens do Mundo Todo, 8.ª edição, 1972 [1967], 76 páginas. Arte de capa de Lila Galvão Figueiredo. Muito republicada na década de 1970 e 80, Lúcia Machado de Almeida (1910-2005) marcou época nos gêneros ficção de crime (O Escaravelho do Diabo) e ficção científica (Spharion) para crianças. Este Xisto no Espaço, sequência de Aventuras de Xisto (1957), uma fantasia, foi ganhador do Prêmio Jabuti. Nisso, chegou antes da FC nacional adulta.

Reizinho do planeta Terra, Xisto recebe uma mensagem com uma ameaça interplanetária: “CASO XISTO NÃO VENHA ATÉ MINOS, ATACAREMOS VOSSO PLANETA QUANDO ESTE SAIR DE SEU EIXO. INÚTIL REAGIR. RUTUS, O QUE NÃO TEM SANGUE, SENHOR DE MINOS.” Xisto e seu sidekick trapalhão Bruzo logo embarcam em um foguete, provido de um bom suprimento de pastéis de queijo (o favorito do herói). O início do capítulo II testemunha o quanto a mecânica do lançamento de foguetes haviam penetrado na cultura brasileira. Os heróis saem do alcance do Cinturão de Van Allen e cruzam nuvens de estrôncio-90 [sic], para pousar no planeta Nívea, que, obviamente, não faz parte do Sistema Solar e onde encontram insetos gigantes — como no conto de Lúcia Benedetti (que também escreveu para crianças), “Correio Sideral” (1961). Nesse mundo, conhecem Kibrusni, o invisível “menino do espaço”, parte de uma espécie que já nasce falando. O pai dele é o grande sábio local, que explica as coisas a Xisto, a respeito de Rutus e o planeta Minos. Nívea é atacado por uma arma biológica disparada por Minos, a “gelatina da morte”, que destrói boa parte da vida no planeta. Um momento apocalíptico — novamente, reflexo da ameaça nuclear de então.

Em Minos, enfim, Xisto e seus amigos encontram um morcego gigante, o raio da morte, e um mundo cinzento e morto. O contrário do jardim em ponto grande visto em Nívea. Eles também descobrem a verdade sobre o vilão Rutus — um homem artificial criado por dois cientistas locais, um anão e um altão, ambos focados em destruir a infância e dominar todos os planetas que puderem. Por trás do technobabble hiperativo e da ilogicidade que, dizem os especialistas, encanta as crianças brasileiras em nossa literatura infantil, a descrição de Minos e dos cientistas aponta para o mesmo temor da desumanização e da agressão à natureza e à vida promovidas pelo cientificismo, que marcou tanto da Geração GRD.

 

Quadrinhos

Sargento Rock: Entre a Morte e o Inferno (Between Hell and a Hard Place), de Joe Kubert & Brian Azzarello. São Paulo: Opera Graphica Editora, 2005, 144 páginas. Prefácio de Joe Kubert. Tradução de Roberto Guedes. Capa dura. Salvo erro de memória, adquiri há anos esta vistosa edição especial em uma das minhas visitas à loja Terramédia — hoje Omniverse Hobby Store. Quando eu tinha entre 11 e 12 anos, fui um fã do Sgt. Rock, incomum personagem de ficção militar da DC Comics. Ainda possuo meus exemplares do 1 ao 41, com algumas lacunas e várias duplicatas, da edição publicada no Brasil pela EBAL na década de 1970.

Lançado originalmente pelo agora extinto (em 2020) selo Vertigo, da DC, Entre a Morte e o Inferno dá oportunidade da arte solta e vibrante de Joe Kubert encontrar uma expressão nova. O roteiro de Brian Azzarello, porém, começa com um clichê da ficção militar (e da experiência militar americana na II Guerra Mundial), que me soou estranho às histórias do Sgt. Rock: a hostilidade dos veteranos às tropas de reposição. Outra coisa difícil para um fã do personagem é ver a Companhia Moleza (Easy Company, igual a da série Band of Brothers) contemplando crimes de guerra. Claramente, Azzarello busca o Santo Graal dos quadrinhos americanos, desde o advento do romance gráfico na década de 1980: a transformação dos quadrinhos em uma arte reconhecidamente adulta.

Nesta narrativa que persegue o mistério de um assassinato triplo no meio da guerra, e que inclui duas ou três sequências de várias páginas sem balões de diálogo, Azzarello foi claramente bem-sucedido. Personagens sombrios agem heroicamente ou testemunham o heroísmo de figuras antes apagadas, o amor possessivo emerge no meio do ódio entre combatentes, um estupro coletivo é lembrado, clichês marciais são tratados com devastadora ironia. E no auge do combate a Moleza tem que se virar sem o seu líder, ao mesmo tempo em que se reconcilia com a sua liderança moral. Com tantas área cinzentas na narrativa, Kubert, que também assina o prefácio, escolheu abrir mão da cor e desenvolver tudo com uma aguada em sépia — e preservando o vigor do seu traço. Uma linda edição, na qual faltou apenas um capricho maior na tradução, que comete vários falsos cognatos.

 

Outras Leituras

Scientific American Brasil Ano 19, N.º 212, outubro de 2020, Nastari Editores, 66 páginas. A Scientific American surgiu em 1845 e veio a adotar um modelo em que textos de divulgação científica são em geral escritos por cientistas, mas editados inhouse. A edição especial dos 175 anos da revista foi marcado pela coragem de avaliar os erros da publicação desde a época em que chauvinismo sexual e racial eram a norma, o darwinismo social saudado como natural e correto, e a eugenia era considerada um conceito positivo e politicamente desejável. Tais revisões acontecem na seção especial 175 Anos de Descoberta, que abre com o curto artigo “Reconhecendo os nossos Erros”, de Jen Schwartz & Dan Schlenoff. O próximo, “Nosso Lugar no Universo”, de Martin Rees, cobre a expansão do entendimento das proporções do universo, enquanto “A Nossa Origem”, de Kate Wong, faz o mesmo quanto ao conhecimento da evolução humana. “Os Piores Momentos da Terra”, de Peter Brannen, aborda as extinções em massa que atingiram o planeta no passado, e, fechando a seção especial, “Os Manipuladores a Informação”, de Naomi Oreskes & Erik M. Conway, trata da inovação tecnológica e seu impacto. Nas seções fixas, o ensaio “A Pesquisa e as Más Companhias”, de Naomi Oreskes, reconhece os erros do presente, tendo como estudo de caso o relacionamento infeliz entre o mercador de sexo adolescente Jeffrey Epstein e a Universidade de Harvard. O brasileiro Salvador Nogueira trata da possibilidade de haver vida em Vênus, a partir da controversa descoberta de fosfina na atmosfera do nosso vizinho mais próximo.

—Roberto Causo

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Leituras de Outubro de 2020

Mais space opera neste mês, e também a interessante experiência de ler o brasileiro Ivan Carlos Regina, um dos pilares da Segunda Onda da FC Brasileira, seguido do brilhante autor americano Harlan Ellison. Histórias em quadrinhos de super-heróis e de ficção de crime completaram a dieta de outubro.

 

Capa de Stephanie Marino.

O Par: Uma Novela Amazônica, de Roberto de Sousa Causo. São Paulo: Agência Magh, 1.ª edição eletrônica, outubro de 2020. Prefácio de Osvaldo Ceschin, posfácio de Roberto Causo. Arte de capa de Stephanie Marino. A primeira edição eletrônica da minha novela de ficção científica premiada no Projeto Nascente 11 (da pró-Reitoria de Cultura da USP) no ano 2000, saiu da pré-venda e foi distribuída pela Amazon em 9 de outubro.

A nova edição conta com o posfácio original do Prof. Osvaldo Ceschin, da Universidade de São Paulo, feito para a edição da Editora Humanitas em 2008. Além disso, apresenta um posfácio feito especialmente para esta edição da Agência Magh, com comentários meus sobre as questões da Amazônia Brasileira e sua mística torta junto aos militares e políticos nacionais.

A história acompanha um soldado que, após se indispor com os companheiros de armas, deserta e passa a vagar por uma Amazônia basicamente isolada do restante do mundo por uma estranha invasão alienígena. Após o encontro imediato com uma das naves alienígenas, ele testemunha o retorno à vida, da companheira morta em um acidente. Após muitas andanças do casal, o ápice da novela se dá quando eles vão parar em uma comunidade de pessoas que não atenderam à evacuação, ou que foram cooptadas para continuar trabalhando na floresta por um oligarca local, um predador da natureza crente nos clichês nacionais de progresso e prosperidade. O estilo é mais minimalista e áspero do que o meu habitual.

 

The Man-Kzin Wars, de Larry Niven com Poul Anderson & Dean Ing. Londres: Orbit, 1.ª edição, 1989 [1988], 290 páginas. PaperbackA série Man-Kzin Wars é o “universo de aluguel” de Larry Niven, pertencente ao seu universo ficcional e história do futuro “Espaço Conhecido” (Known Space). Mais explicitamente space opera, do que, por exemplo, o romance clássico Ringworld (1970), surgiu de um conto de Niven intitulado “The Warriors” (1966) . Na introdução desta que foi a primeira antologia original de histórias do rented universe, Niven conta que a ideia para ele surgiu em uma viagem de táxi partilhada pelo editor Jim Baen, da Baen Books, que a sugeriu a ele. Incluído na antologia, o conto de Niven fala do encontro de uma nave humana com os belicosos kzin — os gatões que aparecem na vibrante capa do artista não creditado da edição inglesa. O problema é que a humanidade havia abandonado as armas e os próprios instintos guerreiros, após algumas gerações de treinamento psicológico. Para que a tripulação sobreviva aos predadores alienígenas, ela precisa contornar seus bloqueios e improvisar uma arma efetiva, com a tecnologia existente a bordo.

“Iron” é a contribuição do veterano e renomado Poul Anderson (1926-2001), uma movimentada aventura de FC hard sobre uma expedição privada a um sistema planetário pobre em ferro e regido por uma anã vermelha que pode ser tão antiga quanto o universo. A história propriamente abre com o herói Richard Saxtorph sobrevivendo ao ataque de um kzin, em uma estação espacial humana reconquistada desses alienígenas. Ele e a esposa Dorcas comandam a expedição, que inclui um especialista em kzin e burocrata da exploração espacial, que insiste em acompanhá-los. Uma vez no sistema, eles se deparam com uma nave kzin e precisam dividir a tripulação. Alguns são capturados e interrogados, em uma intriga que inclui tortura e a traição do burocrata, um colaboracionista protofascista que admira a cultura de violência e autoritarismo dos aliens predadores. Em outra linha, um casal que descobre o amor refugia-se na superfície de um planeta, em que são prontamente ameaçados por uma massa de protoplasma — constituído de uma única molécula sedenta de metal, formada nos bilhões de anos em que o planeta coletou átomos simples no espaço intergaláctico. A volta por cima dos humanos sobre os kzin se dá com uma dramática atividade extra-veicular conduzida por Dorcas. Com 150 páginas, a novela de enredo complexo e rico resulta na leitura própria de um romance. A imaginação de Anderson está em grande forma aqui, em um texto empolgante que se lê como uma deliciosa mistura de FC antiga e moderna.

“Cathouse”, de Dean Ing, é a novela que fecha o livro, mais restrita na ambientação, igualmente interessante quanto a sua exploração do universo dos kzin: um etologista é feito prisioneiro pelos aliens e deixado em um estranho planeta — zoológico espacial com vários habitats lacrados por um campo de força. Naquele destinado aos kzinti, ele encontra um grupo deles preservado em um campo de stasis. Precisando de um colaborador, “descongela” uma fêmea que imediatamente dá em cima dele. A relação que se estabelece entre os dois é divertida e, ao mesmo tempo, alarga alguns dos sentidos da série: assim como em outros momentos do universo Known Space, de Niven, as fêmeas alienígenas são animalizadas. Mas Kit e as amigas que ela libera mais tarde do campo de stasis são de uma era anterior às manipulações dos machos da espécie, e reivindicam bastante. Tantas fêmeas em volta do humano permitem a brincadeira com o título (gíria para “prostíbulo” ou “zona”, como diríamos no Brasil), mas a verdade é que a história se concentra no humor e na aventura (quando os militares kzinti retornam ao habitat para dar um destino ao prisioneiro). Kit acaba sendo uma personagem especial. Gostei do livro como um todo.

 

Arte de capa de Jim Burns.

Night Train to Rigel, de Timothy Zahn. Nova York: Tor Books, 2006 [2005], 326 páginas. Arte de capa de Jim Burns. Paperback. Timothy Zahn, a quem já tive a oportunidade de entrevistar, é conhecido no Brasil pela Trilogia Thrawn, de romances originais atrelados a Star Wars, mas ele teve antes uma carreira associado à revista Analog. Cedo, fez a transição para a FC de aventura e space opera, mas uma série de space opera militar como a sua série Cobra (inédita aqui) não é necessariamente incompatível com a FC hard.

Antes de pegar a Trilogia Thrawn, resolvi ler este romance de conceito diferente, que brinca com o elemento mobilidade da space opera: a tecnologia que conecta os mundos de uma comunidade galáctica futura não são naves espaciais que viajam mais rápido que a luz, mas um trem que percorre um caminho entre as dimensões. Ao mesmo tempo, evoca as histórias de suspense do tipo Assassinato no Expresso do Oriente (1934), de Agatha Christie. A história, inclusive, abre como o protagonista Frank Compton, um agente secreto com um passado meio desastrado, tropeçando em um assassinato, antes de embarcar no trem interestelar. A sidekick de Compton é uma jovem especialista na cultura das Spiders que controlam o transporte. Também presente na arte de Burns na capa, o sujeitinho peludo à esquerda é um alienígena de uma cultura que tem a arma manual como símbolo social máximo (talvez um cowboy animalizado, para efeito de sátira ao apego americano pelas armas de fogo?). No comboio que não permite armas, eles usam réplicas inertes — exceto pelo fato de que atentados acontecem e investigações tentam descobrir quem deseja impedir o trabalho de Compton. A trilha leva à descoberta de um contrabando de caças estelares, para emprego em um conflito que deve ser evitado a todo custo. Nesse ponto, é preciso desembarcar do trem e chegar a algum lugar. Neste caso, um planeta em que existe um fungo inteligente e manipulador de vontades, a ameaça maior por trás do conflito. Outra ideia bem pulp, que remete àquela FC de aventuras da era de ouro da FC americana. A história só teria a ganhar se os protagonistas tivessem um pouco mais de vibração ou carisma, ou se a atmosfera de fato replicasse algo do charme do romance de Christie. Outra doação de Alfredo Keppler.

 

O Fruto Maduro da Civilização + O Éter Inconsútil, de Ivan Carlos Regina. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, 2019, 220/364 páginas. Introduções do autor e de Karina Elizabeth Vázquez. Texto de orelha de Luiz Bras. Capas de Teo Adorno. Brochura. Ivan Carlos Regina é uma das figuras centrais da Segunda Onda da FC Brasileira. Sócio fundador do Clube de Leitores de Ficção Científica, foi muito ativo no fanzine Somnium. Publicou profissionalmente pela primeira vez na antologia de Gumercindo Rocha Dorea, Enquanto Houver Natal… (1989), com “Pode Acontecer com você na Noite de Natal”. Mais tarde, Dorea incluiu a sua coletânea O Fruto Maduro da Civilização (1993), com 19 textos, na mesma coleção Ficção Científica GRD. O livro ressurgiu em 2019 como parte deste volume completado por O Éter Inconsútil, a segunda coletânea do autor. Em nenhum lugar do novo livro há a menção da sua publicação anterior pelas Edições GRD — exatamente o tipo de coisa que tem enfurecido Dorea ao longo de seis das suas nove décadas de vida.

O Fruto Maduro da Civilização abre com o “Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira” (primeiro publicado no Somnium em 1988), texto que merece ser sempre revisitado para um entendimento da Segunda Onda e do tupunipunk (cyberpunk tupiniquim). Com sua evocação de misticismo hindu e de uma contracultura nacional, “Ananda: O Homem que Purpurava” é um dos contos do livro que também se qualifica como tupinipunk. Assim como o conto-manifesto “O Caipora Capira”, importante para entendermos como as ideias do manifesto casam com a proposta estilística e as intenções satíricas do autor, além das suas influências modernistas e tropicalistas. No plano do estilo, é um dos mais ousados de um livro de narrativas experimentais e intenções vanguardistas. Os premiados “Pela Valorização da Vida” e “A Derradeira Publicidade do Hebefrênico Alfredo” são alegorias modernistas da alienação das relações e da comodificação da vida humana que ampararam manipulações consumistas que vão além da publicidade. Num plano oposto ao da denúncia aberta, narrativas anedóticas como “O Tempo É um Carrasco Impiedoso” satirizam as formulações mais clichês da FC anglo-americana, outro tópico do manifesto. “Solange Súcuba Salva Sibarita Sexual” e “O Robô que Era Chato de se Ouvir e Todo Mundo Evitava sua Frequência” são poemas rimados, muito sarcásticos, e a poesia também invade outros textos, como “T-Vírus”. Fecha o primeiro livro o notável “O Fruto Maduro da Civilização”, mais curto que a média e extremamente contundente na denúncia do homem moderno e sua falta de volição e degradação física causadas pelo nosso estilo de vida. Eu o incluí na minha antologia Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica: Fronteiras (Devir Brasil; 2010).

A introdução de Karina Vásquez, da University of Alabama, em O Éter Inconsútil, vincula a abordagem de Regina ao neobarroco latino-americano e elogia a sua postura crítica. A coletânea traz 31 textos, um punhado visto antes em antologias. É interessante que, décadas depois, haja remissões claras a textos anteriores: “O Filho do Caipora Caipira” e “Ananda Comes Back”, além de “A Volta do Robô que Era Chato”, em diálogo com aquelas primeiras explorações fundadoras do Movimento Antropofágico da FC Brasileira. “Pequena História do Passado”, do mesmo modo, torna a explorar uma escala de neurose como definidora da experiência da modernidade vista antes em “A Derradeira Publicidade do Hebefrênico Alfredo”. A tendência anedótica e o melodrama pós-modernista reaparecem em “Amor de Lata Não Mata”, em que um robô desorientado vira babá de bebês na nave colonizadora que inesperadamente os gerou a partir do seu banco de embriões. “Balada do Cárcere de Celulose” é uma novidade: conto mainstream, curto, intimista e sombrio, ensaio de uma voz narrativa sólida e livre de experimentalismos. “Pode Acontecer com você na Noite de Natal” está neste livro, assim como “Rosa dos Ventos de Luz” (1998), este um conto ufológico, delicado, místico e, novamente, resgatando uma contracultura nacional expressiva, pacata e associada a uma das influências de Regina: a Tropicália (também presente em obras tupinipunks como Silicone XXI, de Alfredo Sirkis). “A Oportunidade Perdida por uns É a Oportunidade Ganha por Outros” é outra narrativa irônica, menos experimental ou formalista, na qual se expressam melhor influências como Robert Sheckley e Philip K. Dick. Algo semelhante se dá com “Aliens Deliriuns”, “Amarelo e Vermelho” (combinando FC da Golden Age com medicina alternativa, e dedicado à escritora Finisia Fideli), “Jairzinho” e a assemblage “Letters from Tomorrow”, colagem de vários textos, alguns vistos previamente. “Negro Laranja” é outra novidade: irônico conto de fantasia, com direito a um cerco medieval e a dragões, também em primeira pessoa como outras narrativas no livro. “O Último dos Bagos Roxos” incorpora outros procedimentos ao arsenal pós-modernista de Regina: o sexo explícito e a prosa brutalista de “mundo cão”, em uma caracterização de mesquinha figura política (tomada a partir de uma expressão “folclórica” de Fernando Collor de Mello) que remete tanto à ficção pop nacional da década de 1970, e à atual ficção pós-Mensalão de desencanto político e social. A brincadeira com o sexo também está em “O Centro Estelista”, uma sátira sexual de “Flores para Algernon” (1959), de Daniel Keyes, e mais um exercício de irreverência e iconoclastia (outro tópico do manifesto). “Ressuscitol”, escrito como uma bula de remédio, retorna à veia experimentalista e irônica, assim como “Clonaram el Rei” — um sketch de ventriloquismo com diálogos rimados. Destaques do livro são “Sete Vezes Homem, Sete Vezes Besta”, outra assemblage que explora fragmentos de épocas e lugares diferentes no mundo, e “Manduruvá É o Pai de Todos”, talvez delírio paranoico do narrador, mas com imagens inquietantes que reforçam a condenação comum em Regina, dos descaminhos da sociedade. Paradoxalmente positivo, “MOMA: Minha Organização Mundial de Animais” dá voz a sete espécies da Terra, o Homo sapiens sendo só uma delas, e termina com um comentário metaficcional que ampara outro ponto comum no autor: a conclamação para a mudança. Um favorito, “Teviterone” também é metaficcional e com uma sugestão de auto-refente (além de um toque de paródia do V’ger de Jornada nas Estrelas: O Filme): um poeta em futuro próximo acaba encontrando um robô-redator automático, o The Writer One, programado para escrever pulp fiction barata e que, ao ganhar consciência, assume uma prosa existencialista, com o poeta assumindo o seu manto de pulp writer depois da eutanásia do aparelho. Está lá com peças metaficcionais que expressam a tensão entre o enfoque modernista e o popular entre nossos autores de FC: “Pequenas Histórias do Tempo” (1994) e “Paperback Writer” (1994), de Braulio Tavares, e “Director’s Cut” (2008), de Fábio Fernandes.

Regina deu a entender que a trajetória do protagonista de “Teviterone” seria semelhante à sua, da prática poética radical, vanguardista, a uma abertura ao narrar mais natural, e realmente me encantou a emergência de uma prosa literária sólida, brasileira, elegante e inteligente presente nesse e em outros contos. Mas não se deixe enganar — em O Éter Inconsútil ainda há muito experimentalismo e os elementos buscados por ele desde a década de 1980, expressos no “Manifesto Antropofágico”. Um dos principais lançamentos de 2019 e o resgate da obra de um autor que merece consideração crítica aprofundada e maior reconhecimento.

 

Arte de capa de Bob Pepper.

Ellison Wonderland, de Harlan Ellison. Nova York: Signet, 1974 [1962], 178 páginas. Arte de capa de Bob Pepper. Paperback. Esta é uma das primeiras coletânea de contos de Ellison, doada por Alfredo Keppler. Na introdução, o renomado autor inglês, muito vinculado à televisão e ao cinema, conta que foi para Hollywood com uma mão na frente e outra atrás, e a venda deste livro teria sido um refresco necessário naquele momento. Lembra ainda como uma resenha de Dorothy Parker na The New Yorker alterou o rumo de sua carreira. São 16 histórias de FC e fantasia pulp publicadas em revistas menos conhecidas, como Fantastic Universe, Rogue Magazine, Infinity Science Fiction, Science-Fantasy Magazine e Space Travel Magazine. Umas poucas apareceram em Amazing Stories e If: Worlds of Science Fiction — testemunho, na verdade, de um autor prolífico e singular.

Na primeira história, “Commuter’s Problem”, um cara comum da nossa realidade, meio sem opções na vida, começa a enxergar uma outra realidade que se cruza com a nossa, seguindo as pistas que aparecem e indo parar em um outra planeta que usa secretamente o nosso como colônia de férias e válvula de pressões sociais. Ao ser descoberto, é que os seus problemas começam — para não ser morto, precisa convencer as autoridades locais de poderia ter lugar nessa outra sociedade. “Do-It-Yourself” tem uma mulher insatisfeita fazendo uso de uma empresa especializada em eliminar cônjuges, por meio de um kit entregue a domicílio. Um conto meio Além da Imaginação, com tipo de conceito visto em Richard Matheson e Stephen King, explicitando a falta de valores da sociedade moderna. “The Silver Corridor” apresenta outra empresa especializada em morte — a organização de duelos, neste caso —, mas no futuro. Os duelistas são dois cientistas rivais em um jogo de xadrez mortal, numa história de imagens inquietantes, com um final irônico e violento. “All the Sounds of Fear” tem um ator de imersão como protagonista, um homem que vai parar em um sanatório mental, culpado de um crime de morte. É uma história de horror sobre dissociação de identidade. “Gnomebody”, por sua vez, é um conto de humor — sobre um gnomo atrapalhado e de sotaque irlandês, é claro. “The Sky Is Burning” é uma FC de fim de mundo, com alienígenas que vem morrer na Terra, perante o fim do universo — escrita com seriedade e brevidade. Ambientado em uma nave espacial, “Mealtime” é bem mais irônico, sobre um planeta como aquele de Poul Anderson em “Iron”, que rejeita os humanos da sua tripulação, como alimento — contraponto a toda uma conversa de chauvinismo humano, de alguns deles. Em “The Very Last Day of a Good Woman” um sujeito descobre que o holocausto nuclear vem aí, e vai à caça de uma mulher, que encontra em um bar, resultando em um final estranhamente terno, e irônico, é claro. “Battlefield” mostra um futuro em que as guerras são disputadas na Lua. As descrições épicas e tecnológicas mascaram a verdadeira natureza, mesquinha e pequena, do conflito, em outro conto que satiriza valores distorcidos. Em “Deal from the Bottom” um prisioneiro no corredor da morte aguardando sua execução, faz um incomum trato com o diabo. “The Wind Beyond the Mountains” é uma FC de exploração espacial com tripulantes de uma nave que se aproximam demais do alienígena que capturaram para levar à Terra, na esperança de justificarem o seu empreendimento exploratório. “Back to the Drawing Boards” narra como um robô abusado em seus direitos acaba adquirindo o suficiente para comprar o governo da Terra e virar o jogo — história com reviravolta final, como várias outras no livro. “Nothing for my Noon Meal” é outra FC sobre húbris e de como a aventura humana em outro planeta não triunfa. Mais curto, “Hadj” tem um sentido semelhante, quando uma delegação da Terra vai ao planeta dos Mestres do Universo. “Rain, Rain, Go Away” tem um burocrata massacrado às voltas com um novo dilúvio. Fechando a coletânea, o ambientado em Marte “In Lonely Lands” é mais filosófico.

Além de Robert Sheckley e Philip K. Dick, Harlan Ellison é outro autor que partilha uma identidade programática com o nosso Ivan Carlos Regina, na crítica mordaz aos azares humanos, sem se esquivar de um certo moralismo incisivo e necessário.

 

Duelo dos Mundos, de Paul Koenig. Rio de janeiro: Tecnoprint, Série Futurâmica N.º 1, s.d., 140 páginas. Livro de bolso. Na grupo do Facebook “Edições de Ouro-Tecnoprint“, Pedro Lucas Silva Santana levantou a possibilidade deste livro ter sido escrito por um brasileiro, sob pseudônimo. Dioberto Souza invocou Quim Thrussel, um especialista em quadrinhos e edições populares nacionais, muito ativo na blogosfera e no Facebook, e este me pediu para opinar. Como eu tinha o livro aqui, doado pelo filho do escritor da Primeira Onda, Clóvis Garcia, resolvi ler e tirar a prova. O livro apresenta um futuro em que a humanidade, pela aplicação do ensino hipnótico e de uma língua universal criada artificialmente, apresenta-se política e culturalmente unificada. O meio de transporte interplanetário são discos voadores e a civilização humana é ameaçada por naves marcianas esféricas, situação de guerra interplanetária que ecoa, inclusive no título, a novela de H. G. Wells, A Guerra dos Mundos (1897). O enredo envolve o herói, um agente secreto chamado Meneson, sendo capturado pelos marcianos e conhecendo uma garota chamada Mari Silvan, para participar marginalmente de um deus ex-machina apocalíptico — que torna inútil toda a missão do herói, de fundamentar a construção de um raio da morte chamado “calorato”; a humanidade queda sob o controle marciano. O objetivo dos alienígenas: usar os humanos como cobaias em um experimento de aceleração evolutiva da mente, o que soa surpreendentemente positivo. Em toda a novela, a ação é confusa e a ciência ginasial ou ausente.

Não há menções a Koenig nas enciclopédias de FC anglo-americana e francesa mais conhecidas, e a internet não revela nada. A principal pista de que se trata de pseudônimo de um autor brasileiro está no artifício de, na sua variação do esperanto, terminar os nomes masculinos substituindo (ou somando) alguma sílaba ou letra final pela desinência “-on”, e os femininos por “-an”. Desse modo: Meneson (Meneses?), Pradon (Prado), Machadon (Machado), Campon (Campos), Nuneson (Nunes), Teleson (Teles) e Silvan (Silva). Segundo o Catálogo de Ficção Científica em Língua Portuguesa: 1921-1993 (1994), de R. C. Nascimento, Paul Koenig também é autor de Os Piratas de Vênus, na mesma coleção. Um brasileiro publicado na Série Futurâmica, com o seu próprio nome, foi Orígenes Lessa, com A Desintegração da Morte. Também foi publicado na Coleção Fantastic, da mesma Tecnoprint/Ediouro.

 

Quadrinhos

Arte de J. Scott Campbell & Tim Thowsend.

Marvel Saga: Espetacular Homem-Aranha: A Vida e a Morte das Aranhas, de J. Michael Straczynski (texto) & John Romita Jr. (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2020, 232 páginas. Arte de capa de Scott Campbell & Tim Thowsend. Capa dura. No terceiro volume da coleção dedicada à passagem de Straczynski pela Marvel, Peter Parker sonha com o Dr. Estranho — que o informa das consequências do seu encontro anterior com uma aranha mítica, em outra dimensão. Ele mal tem tempo de respirar, e surge uma espécie de vespa negra com forma de mulher e chamada Shathra, para matá-lo, forçando-o a lutar e a fugir. A criatura assume a identidade de uma jovem chamada Sharon, que se dedica a difamar a figura do Homem-Aranha, afirmando-se uma ex-amante dele. Com esta situação base, o autor não só expande a sua nova mitologia do herói, como explora a questão contemporânea da difamação e da sede de fofocas dos tabloides — impressos ou televisivos. Os toques de Straczynski são sempre fabulosos, como o Aranha detonado pela vespa indo se refugiar em uma exposição de “aracnomania” num museu de história natural. Quando o empresário Ezekiel Sims intervém, a aventura vai parar na África, em uma alusão à deusa-aranha Anansi, aquela mesma do romance de Neil Gaiman, e, na mitologia de Straczynski, a origem das características do Homem-Aranha.

Em outra aventura presente no volume, Peter vai a Los Angeles atrás de Mary Jane, mas se depara, ainda no aeroporto, com uma encrenca de muita ambiguidade moral envolvendo o Dr. Destino e o Capitão América. Logo depois, a história “O Escavador” combina um monstro mutante com a máfia italiana, em mais um roteiro divertido e inteligente, que parece muito verdadeiro em suas reflexões sobre crime e família, nas mãos de Straczynski — que é de Nova Jersey, não esqueçamos. Muito bom.

 

J. Kendall: Aventuras de uma Criminóloga N.º 148. São Paulo: Mythos Editora, setembro/outubro de 2020, 258 páginas. Tradução de Júlio Schneider. Brochura. Na primeira história deste volume duplo, “Carne de Açougue”, desenhada por Ernesto Michelazzo, a criminologista Julia Kendall atende ao apelo de uma amiga de infância, abusada fisicamente pelo marido açougueiro. Contudo, o caso logo se transforma em uma investigação de assassinato, que revela a vida dupla do marido e um inesperado e trágico triângulo amoroso, que, como de hábito nesta série, expressa uma ironia cortante quanto à violência, e sonda o caráter surpreendente e inesperado da vida.

“Atrás das Grades”, desenhada por Antonio Marinetti, faz a heroína se infiltrar, sob disfarce de prisioneira, em uma penitenciária para desbaratar as atividades da viúva de um chefão das drogas. Isso acontece depois que uma corajosa detetive disfarçada é morta ao ser descoberta. Em conjunto, as duas narrativas exploram a capacidade da mulher de cometer crimes, mas carregando consigo questões e dramas próprios da condição feminina — incluindo momentos de lesbianismo e da problemática da prisioneira que é mãe. Se a primeira história aborda a carência de valores da classe média, a segunda desce ao submundo da mulher no crime. Os escritores Giancarlo Berardi e L. Calza e Maurizio Mantero incorporam a reflexão social na sua ficção de crime com ambiguidade e inteligência, fazendo, por exemplo, uma abusiva carcereira salvar o dia.

Roberto Causo

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Leituras de Julho de 2019

Ficção científica brasileira e traduzida foram a tônica em um mês de leituras não muito numerosas. Mas o horror e a não ficção também tiveram o seu espaço, assim como as histórias em quadrinhos de fantasia e de Star Wars, com destaque para o álbum francês Aurora.

 

Arte de capa de Jim Burns.

Armor, de John Steakley. Nova York: DAW Books, 1984, 426 páginas. Arte de capa de Jim Burns. Paperback. Tropas Estelares (Starship Troopers; 1959), de Robert A. Heinlein, é um marco da ficção científica militar que influenciou outros romances de peso que vieram dialogar com ele. Disponíveis no Brasil estão, por exemplo: A Guerra Eterna (The Forever War; 1974), de Joe Haldeman, e O Jogo do Exterminador (Ender’s Game; 1985), de Orson Scott Card. Armor, do texano Steakley, é outro exemplo, inédito aqui. Seu autor parece ter rejeitado o lado filosófico e político de Tropas Estelares, buscando os seus opostos: o lado visceral, naturalizado e aleatório do combate.

A narrativa acompanha o soldado Felix, que, misteriosamente e sem explicações, sobrevive vez após vez aos combates contra alienígenas insetoides, em um planeta de geografia e atmosfera hostis. Felix tem um comportamento quase psicótico, nutrindo um estado mental que chama de “o motor” — mecanismo que o isola emocionalmente dos companheiros em torno, das mortes e mutilações, e o faz reagir prontamente às exigências do combate. O comportamento bate com crônicas de guerra em que soldados sobreviventes de ações muito intensas reportam terem se comportado com grande eficiência ao sentirem que não havia saída e que já estavam praticamente mortos. Aos poucos, porém, a sombra da “culpa do sobrevivente” vai se instalando dentro de Felix.

A certa altura, Felix sai de cena e entra uma narrativa em primeira pessoa que segue as ações de Jack Crow, famoso pirata espacial e assassino por conveniência. Ele foge de uma prisão de trabalhos forçados, mata o tripulante de uma nave pirata e o substitui, ganha as graças do cruel capitão — que o seleciona para a tarefa de conseguir combustível em um planeta privado, onde está instalada uma base científica. Ele se mete entre os cientistas e ganha a confiança do genial cientista-chefe. Para isso, leva com ele a armadura (daí o título) negra de combate propulsado (conceito apresentado no romance de Heinlein) que era usada como enfeite pelo capitão da nave pirata. Quando o cientista imagina um método para reaver os registros da armadura, ele e Crow descobrem que ela pertencera a Felix, e revivem as suas experiências de combate emocionalmente excruciantes. Com isso, o leitor também descobre que o soldado fizera parte da elite da guarda palaciana de uma rica monarquia, e que havia se alistado no impulso suicida de livrar-se do tormento de um amor proibido: um toque de space opera exótica — e de Beau Geste (1924), o famoso romance de ficção militar de P. C. Wren sobre a Legião Estrangeira, que trata dos horrores do combate de maneira semelhante: a guerra contra um inimigo indistinto, e uma escalada de mortes até o afunilamento final levando ao drama dos sobreviventes.

Quando os piratas enfim descem para realizar o seu ataque e, mais do que obterem combustível, conquistarem o planeta, Crow já havia conhecido o criminoso chefe local, o bêbado “dono” do planeta, e a mulher que se tornaria a sua amante. Quando ele escolhe apoiar os habitantes locais, há algo do faroeste Shane (1949), de Jack Schaefer. Outros momentos também são situações de western adaptadas para o gênero, algo que às vezes a FC americana exagera. Um exemplo está em Santiago: A Myth of the Far Future (1986), de Mike Resnick, e quando Felix ressurte no final do romance de Steakley com proporções mitológicas para salvar o dia, fica claro que o autor também forçou a mão em tais referências. Outro ponto que me incomodou especialmente na linha narrativa de Crow foram os seus encontros com mulheres dispostas a ter sexo com ele depois de espancadas. Se Tropas Estelares é um romance juvenil e idealizado, Armor quer ser adulto, perverso e cínico, mas perde o equilíbrio e às vezes soa forçado. Apesar disso, a intensidade da narrativa e a disposição do autor em firmar seus efeitos não importando o quê, tornam a leitura memorável. A bela arte de capa do inglês Jim Burns investe na textura e no protagonismo da armadura, alcançando com poucos elementos composicionais, a sugestão mítica.

 

Fractais Tropicais: O Melhor da Ficção Científica Brasileira, de Nelson de Oliveira, ed. São Paulo: Editora SESI-SP, 2018, 496 páginas. Brochura. Ganhadora de três prêmios (até o momento em que escrevo estas anotações), Fractais Tropicais é uma realização de Nelson de Oliveira no nível de suas antologias da Geração 90. É a mais importante antologia retrospectiva da ficção científica brasileira. Fez mais pela ideia, muitas vezes rejeitada por fãs e pesquisadores, da divisão dos períodos da nossa FC em “ondas”, do que anos de discussões e polêmicas. Nelson dá a sua inclinação pessoal na organização e estruturação do livro de várias maneiras, a começar pela contagem regressiva em termos das ondas: a primeira seção do livro apresenta autores da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira (2004 ao presente), e a Primeira é a que encerra o livro. Só por aí, a antologia garante fechar em grande estilo. Ficaram de fora outros períodos da nossa história: o Período Pioneiro (1857 a 1957) e o Ciclo de Utopias e Distopias (1972 a 1982). A seleção priorizou histórias com efeitos surrealistas, experimentais e irônicos, e de estilos pouco convencionais, dentro das preferências estéticas do organizador. No conto de abertura, “Além do Invisível”, de Cristina Lasaitis, os protagonistas transitam pela paisagem abstrata da realidade virtual, enquanto “O Templo do Amor”, de Ana Cristina Rodrigues, um assassino contratado avança pelo cenário indefinido do lugar do título, para matar a sacerdotisa. “Cão 1 Está Desaparecido”, de Lady Sybylla, é uma movimentada FC militar com imagens que lembram videogames e animes, e que partilha com Rodrigues o mergulho na ação.

A história seguinte, “Menina Bonita Bordada de Entropia”, de Cirilo Lemos, muda o tom e leva o leitor ao terreno da inquietação, da violência explosiva e do bizarro, talvez dentro do foco do New Weird. Já “Metanfetaedro”, de Alliah, trata de um experimento de arte e geometria que leva o leitor a uma paisagem surrealista. Me fez lembrar a engenhosidade conceitual de Ted Chiang. “Da Astúcia dos Amigos Improváveis”, de Santiago Santos, é uma space opera desenvolvida em segmentos curtos, em narrativa ao mesmo tempo exótica e introspectiva. Assim como o texto de Santos, “O Apanhador do Tempo”, de Márcia Olivieri, é um longo depoimento — aqui, prestado em tribunal por um homem que descobriu um processo de retardo de envelhecimento. “Aníbal”, de Andréa del Fuego, é narrado por um alienígena que recebe um humano para desenvolver no interior do seu corpo. No conto, muitas ideias de FC como consumo de informações e nanotecnologia são encadeadas pelo seu poder sugestivo, em uma prosa quase poética, levemente irônica. “A Última Árvore”, de Luiz Bras, dá título a um livro de contos do autor, e se desenvolve como linhas de diálogo, apresenta crime e favelas com muita ironia e índices claros de tupinipunk (cyberpunk tupiniquim). Nisso, lembra o admirável romance do autor, Distrito Federal (2014), um dos marcos da Terceira Onda. Segue-se “Quinze Minutos”, de Ademir Assunção, num texto fragmentado, enigmático e com parágrafos de prosa poética. Outro conto com uma aura surrealista é “Cibermetarrealidade”, de Tibor Moricz, originalmente publicado na minha antologia Contos Imediatos (Terracota Editorial, 2009), e que mergulha, com um estilo inventivo, no ponto de vista da máquina e de uma hipertrofia da sua presença em uma monstruosa megalópole. “Los Cibermonos de Locombia”, de Ronaldo Bressane, reproduz um sarcástico depoimento em espanhol (e em primeira pessoa) sobre cibermacacos criados para a indústria pornô. É o último texto da seção dedicada à Terceira Onda.

Braulio Tavares, um dos melhores autores da Segunda Onda (1982 a 2015), abre a nova seção com a noveleta “O Molusco e o Transatlântico”, que começa com um pique de thriller de FC e se torna mais uma história de um prisioneiro narrando por experiências estranhas. “Paradoxo de Narciso”, de Ivanir Calado, é um conto de viagem no tempo em que o viajante se dedica ao sexo com ele próprio — interessantemente, escrito em terceira pessoa. A noveleta “Visitante”, de Carlos Orsi, retorna à primeira pessoa e racionaliza elementos espirituais em termos tecnocientíficos. Outra história longa, “Ostraniene”, de Lucio Manfredi, em primeira pessoa, traz ação tensa numa versão do ciberespaço. “Galimatar”, de Fábio Fernandes, é uma noveleta que abre com uma espécie de ensaio sobre uma linguagem bioquímica na forma de alimentos, antes de seguir para a ação. Ataíde Tartari contribui com “A Máquina do Saudosismo”, conto em terceira pessoa incluído no seu livro 17 Histórias, sobre um homem que viaja por meios criogênicos ao mundo do século 23. Logo depois, Finisia Fideli contribui com dois contos curtos, o poético “Estrela Marinha no Céu” e o fluído e surreal “As Múltiplas Existências de Áries”. “A Coleira do Amor”, de Gerson Lodi-Ribeiro, é uma narrativa longa, em primeira pessoa, sobre um homem implantado com um “chip de amor eterno” que o leva a confundir a cunhada com sua esposa morta, com consequências trágicas. Jorge Luiz Calife, o Pai da FC Hard Brasileira, está no livro com “As Sereias do Espaço”, space opera que integra o seu famoso Universo da Tríade. A space opera também comparece com o meu “Tempestade Solar”, parte da série Shiroma, Matadora Ciborgue. Ivan Carlos Regina está na antologia com dois textos curtos marcados por gráficos e tabelas: “Acúmulo de Skinnot em Megamerc”, uma crítica ao consumismo, e “Quando Murgau A.M.A. Murgau”, alegórica defesa do amor livre. De Octávio Aragão, “O Dia em que Vesúvia Descobriu o Amor” narra em terceira pessoa o encontro amoroso de duas cidades imaginárias — uma heterotopia (termo do crítico Brian McHale) exuberante em estilo e com imagens e neologismos que homenageiam o colega Braulio Tavares. A torrente verbal tupinipunk em parágrafo único de Fausto Fawcett, “Caro Senhor Armageddon”, fecha a seção.

Fractais Tropicais é um ambicioso monumento à FC brasileira, contendo vários livros em um. O último, dedicado à Primeira Onda (1957 a 1972), abre com “O Grande Mistério”, de André Carneiro, parte da sua enigmática série Anarquia Sexual (com os romances Piscina Livre e Amorquia) mas de uma fase tardia (reunida no livro A Máquina de Hyerónimus e Outras Histórias, de 1997) que merece ser lembrada. A metaficcional noveleta “A Ficcionista”, de Dinah Silveira de Queiroz, é uma seleção importante — uma das primeiras narrativas metaficcionais da FC nacional que sustenta relação com a New Wave britânica (assim como vários contos de Carneiro). “Chamavam-me de Monstro”, de Fausto Cunha, saiu das páginas da sua sempre lembrada coletânea As Noites Marcianas (1960); narrativa de visita de um E.T. à Terra (obviamente, em primeira pessoa). “O Elo Perdido”, do pioneiro Jeronymo Monteiro, é noveleta que acompanha uma criança nascida com morfologia e comportamento recessivos, um mutante que responde por momentos cômicos e trágicos. A seção e a antologia fecham com o introspectivo “Morte no Palco”, de Rubens Teixeira Scavone, conto que deu título à terceira coletânea do autor (1979), um mestre da FC literária, psicológica e humanista.

Não há como enfatizar mais a importância da realização de Nelson de Oliveira com Fractais Tropicais, em como esse volume dá testemunho da diversidade, vigor e expressividade da nossa ficção científica, em sua jornada evolutiva desde a década de 1960. Imagino que a fama da antologia só fará crescer com os anos. Talvez daqui a cinco ou dez, ela reapareça, quem sabe dividida em três volumes com novas apresentações, para sublinhar ainda mais a sua importância. Fica a sugestão.

 

Prime Evil, de Douglas E. Winter, ed. Nova York: Signet Books, 1988, 382 páginas. Paperback. Não sei se os jovens fãs de Stranger Things se deram conta, mas a ficção de horror da década de 1980 foi especial. Basta atentar para os nomes presentes nesta antologia original montada por Douglas E. Winter só com gente graúda: Stephen King, Clive Barker, Peter Straub, Whitley Strieber, David Morrell, Ramsey Campbell, Thomas Tessier, M. John Harrison, Jack Cady, Charles L. Grant, Paul Hazel, Dennis Etchison e Thomas Ligotti. O livro é dividido em seções, com direito a epígrafes específicas, que agrupam histórias com algo em comum. A primeira é “In the Court of the Crimson King”, e é uma noveleta de Stephen King que a abre: “The Night Flyer”, que de algum modo e no ápice surpreendente, parece capturar algo da lustfulness do horror como gênero literário e cinematográfico naquela década. Foi visto aqui na coletânea Pesadelos e Paisagens Noturnas. “Having a Woman at Lunch”, de Hazel, é conto sobre um grupo de funcionários blasé de uma empresa de implementos domésticos envolvidos com uma jovem funcionária recém-contratada, que pode ou não ter sido devorada por eles, no final ambíguo. Em “The Blood Kiss”, Etchison emprega sua experiência como roteirista para criar uma intriga em torno de um roteiro sobre zumbis, prestes a ser roubado por um produtor de série de TV, e o esforço confuso de sua jovem assistente, de impedir essa injustiça. Metaficcional, combina a narrativa com trechos do script — em fusão mal diagramada mas sugestiva. O horror aqui é por associação, com a jovem se metendo em uma situação inesperada, perto do fim.

A seção seguinte se chama “Turn to Earth” e abre com “Coming to Grief”, do autor best-seller Clive Barker, que nos apresenta outra heroína, uma jovem que retorna à sua cidade natal para o funeral da mãe, e projeta suas inquietações psicológicas sobre uma trilha escura em uma pedreira abandonada, onde ela, quando criança, imaginava a presença do Bicho-Papão. Uma das joias do livro, a noveleta tem ótima cadência e imersão psicológico, brincando com a possibilidade de um terror estritamente subjetivo alcançando uma concretude arrepiante no final. Com um tom mais irônico, “Food”, de Tessier, acompanha um homem solitário e metódico que acompanha a sua amizade com uma jovem encantadora a seu modo, mas muito obesa. Ele aos poucos se dá conta de que a ama, e fantasia mudar seus hábitos pelo amor. O final, contudo, reserva a ela uma metamorfose em criatura quase lovecraftiana, sublinhando as tensões entre o seu conteúdo humano, irônico e politicamente incorreto. Certamente, o horror deve ser a última resistência ao politicamente correto, já que o gênero costuma crescer com essa tensão. “The Great God Pan”, de Harrison, um nome associado tanto à New Wave quando ao New Weird, faz o narrador se reencontrar com uma amiga peripatética, aparentemente porque ela é acompanhada de um casal de amantes homúnculos, vívida alucinação que é apenas uma de várias que acompanham um grupo de amigos que convergem para uma figura cínica que teria conduzido um experimento misterioso com eles, no passado.

“Orange is for Anguish, Blue for Insanity” abre a seção “Secrets”. O autor é David Morrell, um astro do dark suspense da época. Narrada em primeira pessoa, essa noveleta explora a história da arte: dois amigos discutem o trabalho de um obscuro pintor holandês do século 19, espécie de versão terrorífica de Van Gogh e cuja obra poderia contaminar os seus admiradores com a loucura que acometera o pintor. Narrativa densa, sólida e muito efetiva. A ela sucede “The Juniper Tree”, de Straub, novela que, à moda de um Harlan Ellison, enfoca a magia do cinema para apresentar o horror do flagelo da pedofilia. A figura do monstro aí é a do abusador. Uma narrativa ao mesmo tempo envolvente e incômoda, realista e assustadora, de boa lembrança no campo da ficção do horror, finalista do Prêmio Bram Stoker. Por si só, vale a leitura da antologia. “Spinning Tales” é a nova seção, iniciada com “Spinning Tales with the Dead”, de Grant: pai e filho se sentam à beira de um lago para contar lorotas e parodiar situações da cultura popular, enquanto uma mulher misteriosa, obviamente morta, faz movimentos na água, pontuando a narrativa. Uma discreta aura absurdista sublinha a sugestão de culpa e luto, pelo crime praticado pelo pai. O cultuado Thomas Ligotti, um autor sofisticado e marcante, comparece com “Alice’s Last Adventure” — a narradora, uma escritora de livros infantis sombrios, que recorda (a memória é uma das tônicas da antologia) seus pais, família, livros e estranhas aparições que a importunam ao longo da vida. O título e alguns pontos do enredo remetem a Alice no País das Maravilhas. Outra história sobre escrita e escritores é “Next Time You’ll Know Me”, de Ramsey Campbell, autor inglês que, assim como Ligotti, tem uma conexão com a aura da escrita de H. P. Lovecraft. Aqui, porém, apresenta texto humorístico sobre um pretensioso jovem aspirante a escritor, um tanto alienado, que vê partes de suas histórias inéditas aparecendo nas obras de outros autores. Ele sempre exige satisfações, em um crescendo que o coloca numa bela encrenca. “By Reason of Darkness” é a seção final, iniciada com o perturbador “The Pool”, do polêmico ficcionista e ufólogo “contactado” Whitley Strieber. A história mais curta da antologia, narra a angústia de um pai cujo filho pequeno assume um comportamento muito mais maduro do que a sua idade — e a disposição inamovível de terminar a própria existência. Fecha o livro a novela “By Reason of Darkness”, de Jack Cady (1932-2004), autor de boa reputação nos EUA, cuja narrativa trilha a linha tênue entre o realismo e o absurdismo, na tentativa de representar o absurdo da guerra do Vietnã. É o mesmo terreno de um Thomas Pynchon ou, mais especificamente, de Tim O’Brien e o seu premiado romance do Vietnã Going after Cacciatto (1978). Não obstante, a narrativa patina bastante e parece desconjuntada e sem foco. É pena que esta robusta antologia termine assim, mas sua leitura conserva muitos momentos especiais.

 

Arte de capa de Julio Zartos.

Nightflyers (Nightflyers), de George R. R. Martin. Rio de Janeiro: Suma, 2019 [1981, 2018], 140 páginas. Tradução de Alexandre Martins. Arte de capa de Julio Zartos. Ilustrações internas de David Palumbo. Capa dura. George Martin foi parar no colo da Suma, que, além de relançar os livros das Crônicas de Gelo e Fogo, publicou esta novela de ficção científica, ganhadora do Prêmio Locus 1981 de Melhor Novela, e transformada em filme em 1987. Ao ler, notei que a história não me era estranha, e me pergunto se não vi o filme em VHS ou algo assim. Mas pode ser a semelhança com Alien: O Oitavo Passageiro, que é de 1979 e pode ter inspirado Martin a escrever esta novela de suspense sobre um bando de cientistas sendo mortos um a um dentro de uma nave interestelar. Martin foi para Hollywood circa 1985 (ainda me lembro com afeto da série A Bela e a Fera, de 1989), mas a leitura de Nightflyers sugere que ele cortejava a Fábrica de Sonhos antes disso. Mais recentemente, a novela virou minissérie no SyFy.

O objetivo da expedição é localizar uma espécie alienígena mitológica, que existe apenas em naves espaciais subluz transitando cegamente no espaço interestelar. A espaçonave que os persegue tem apenas um tripulante, o capitão, que telecomanda tudo de algum lugar onde permanece incógnito. A heroína, presente na capa, é uma mulher negra, trans-humana e hiper-sexualizada, mas inteligente e capaz. Entre os cientistas há dois telepatas, e a telecinesia também possui uma participação importante. Não foi difícil prever quem é o vilão — e nisso Alien também dá uma pista ao leitor. Apesar da previsibilidade e dos personagens antipáticos e inconsistentes como cientistas, o suspense me fisgou e li a novela com prazer. Esta edição da Suma vai no rastro de uma edição de 2018 da Bantam Books, com ilustrações internas de David Palumbo, coloridas, realistas mas com uma mancha muito artística. A arte de capa do brasileiro Julio Zartos puxa um pouco para o juvenil, mas está dentro da história e apresenta um traje espacial de look mais moderno.

 

The Revenge of Gaia: Why the Earth Is Fighting Back – And How We Still Can Save Humanity, de James Lovelock. Londres: Penguin Books, 2007 [2006], 222 páginas. Prefácio de Sir Crispin Tickell. Fotos e gráficos. Paperback. O aquecimento global e o consequente agravamento do clima é uma realidade cientificamente irrefutável, que está aí há algum tempo, sendo denunciada por cientistas e ficcionistas (como Bruce Sterling, com Tempo Fechado, de 1994, publicado aqui pela Devir Brasil). Este livro de não ficção, com uma capa que lembra cartaz de filme de catástrofe, fez a denúncia em 2006, quando foi best-seller no Reino Unido. Seu autor é conhecido pelo conceito de Gaia (batizado assim pelo romancista inglês William Golding, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura e autor do clássico da FC, O Senhor das Moscas), metáfora de uma “Terra viva”, usada para tratar do planeta como um sistema auto-sustentado, do qual a vida faz parte e dá caráter a fenômenos antes considerados independentes dela, como a atmosfera e a geografia.

O conceito é antigo (1979), e cruzei com ele ainda criança pelos jornais e revistas da época. Este livro bem posterior fornece uma infinidade de insights e dados sobre Gaia e o aquecimento global e suas consequências desastrosas. O capítulo “What Is Gaia?” descreve o conceito e como Lovelock chegou a ele, sua relação com teoria relativamente recente da emergência (de “emergir”) ou complexidade (e de como o entrelaçamento quântico pode fundamentá-la), assim como as reações do mundo científico a Gaia, além da importância da temperatura e da química necessária à vida, no sistema autorregulatório da Terra como sistema auto-sustentado. “The Life History of Gaia” fornece mais substância à teoria, a partir da evolução da vida e da geologia do planeta. A evidência mais recente estaria no ciclo de eras do gelo, que leva o autor a supor que a própria biodiversidade seria uma resposta da Terra aos desafios representados por essa ciclo. “Forescasts for the Twenty-First Century” argumenta contra a posição infame de Michael Crichton e outros questionadores dos modelos da mudança climática, e parece ter previsto o agravamento acelerado que temos visto nos últimos anos, no que já vem sendo chamado de crise climática. Já “Sources of Energy” faz uma polêmica defesa da energia nuclear para evitar as emissões a partir do carvão, petróleo e destruição de vegetação com as hidroelétricas. Para isso, Lovelock minimiza os efeitos danosos de acidentes nucleares como os de Chernobyl. Ele não confia em fontes alternativas nem na mudança de hábitos de consumo como solução. Só o que posso dizer sobre isso é que de lá (2007) para cá, as fontes eólica e solar aumentaram em muito a sua eficiência e difusão — como atesta o caso da Escócia. A partir daí e dos capítulos seguintes — “Chemicals, Food and Raw Materials” e “Technology for a Sustainable Energy” —, Lovelock deriva para uma crítica do ambientalismo, que para ele mais atrapalhava do que ajudava, ao interferir, com sua condenação da energia nuclear e da poluição de alimentos, com medidas de otimização que ajudariam a diminuir a derrubada de florestas e a emissão de gases de efeito estufa. A bronca dele culmina em “A Personal View of Environmentalism”.

Para um socialista verde como eu, os argumentos contra o ambientalismo parecem uma ação contra quem está próximo — ambientalistas e proponentes da alimentação orgânica — e portanto acessível, já que o verdadeiro problema se mostra inacessível ao autor: o negacionismo climático, a atividade industrial e agropecuária sem regulação, a ganância do sistema financeiro internacional. Ele não vê qualquer sinergia entre esses movimentos e a luta contra o aquecimento global, ao mesmo tempo em que não explora a sinergia presente e danosa, dos fatores adversários. É também culpado de dirigir-se em demasia ao público precípuo do seu livro, o leitor inglês, quando o problema exige uma visão bem mais global. Ainda assim, The Revenge of Gaia funciona  bem como advertência contra o terrível caminho suicida que tomamos como espécie.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Ken Kelly.

Star Wars: Boba Fett: Inimigo do Império (Star Wars: Boba Fett: Enemy of the Empire), de John Wagner (texto) e Ian Gibson & John Nadeau (arte), e Cam Kennedy (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2015, 146 páginas. Arte de capa de Ken Kelly. Brochura. Este livro reúne uma minissérie de quatro fascículos e uma história solo do caça-prêmios Boba Fett, sendo que na minissérie ele se confronta com Darth Vader. São dois dos maiores vilões de Star Wars, e Fett, que apareceu primeiro no desenho animado embutido no The Star Wars Holyday Special (1978). Depois vimos, no filme Star Wars Edição Especial (t.c.c. Star Wars Episode IV: A New Hope), que ele estivera em uma cena cortada do filme que inaugurou a franquia, em 1977.

Um relacionamento entre Vader e Fett certamente seria algo sombrio, e o escritor John Wagner o pinta mergulhando em situações que estariam bem situadas na revista Kripta ou na EC Comics. Wagner é um dos criadores do Juiz Dredd na saudosa revista 2000 A. D., e trouxe a Star Wars aquela inclinação para a violência mais explícita e para efeitos de humor negro. Na minissérie em questão, Vader procura Fett pessoalmente para que ele capture um oficial desertor do Império. Ao mesmo tempo, o vilão coloca um quarteto de assassinos na cola do caça-prêmios. A trilha leva a uma espécie de monastério localizado em um planeta remoto, ocupado por uma ordem de monges pessimistas, cruelmente explorados com fins humorísticos por Wagner. Diz respeito a um “artefato” capaz de prever o futuro. Vader quer esse objeto, e nesse local ele se defronta com Fett. Algo que ele descobre é que precisará do caça-prêmios no futuro (de O Império Contra-Ataca, certamente). A arte da dupla Ian Gibson & John Nadeau tenta encostar na de Cam Kennedy (que havia trabalhado com Wagner desenhando o Juiz Dredd), mas é caricata. Kennedy, que eu conhecia pela minissérie A Guerra de Luz e Trevas (1988) e por uma outra HQ de Star Wars, Dark Empire (1992 e 1994), comparece ele mesmo na última história, “Caça a Bar-Kooda”. Nela, Fett persegue, a mando dos Hutts, um criminoso espacial conhecido por devorar os artistas de entretenimento de cuja apresentação ele não gostou. A chave para chegar a Bar-Kooda é um mágico baixote e resignado. Também escrita por Wagner, a história é igualmente sombria e irônica, mas melhor desenhada e com uma virada “canibal”. O capista Ken Kelly deve ser familiar aos leitores de A Espada Selvagem de Conan.

 

Arte de capa de Kerascoët.

Aurora nas Sombras (Jolies ténêbres), de Fabien Vehlmann & Kerascoët (Marie Rommepuy & Sébastien Cosset). Rio de Janeiro: DarkSide, 2019 [2009], 96 páginas. Tradução de Maria Clara Carneiro. Arte de capa de Kerascoët. Álbum capa dura. Uma menina morre na floresta, a caminho da escola ou de um passeio solitário. Nesse instante, criaturas do seu mundo imaginário deixam o cadáver, para viverem uma existência liliputiana e esquálida nas vizinhanças do corpo em decomposição. São seres simplificados como bonecas e crianças, meninos e meninas, princesas e bailarinas de ilustração de livros infantis. Assim como os contos de fadas na origem, a fome e o choque das ilusões infantis com a essência bruta e implacável do mundo natural assombram as suas andanças e festejos pueris. Aurora, a protagonista, é a mocinha loira e de vestido de bolinhas que aparece na capa. Lembra tanto Alice quando Poliana, na sua solidariedade e positividade inicial. Esse espírito não sobrevive à dureza da vida no bosque e às mesquinharias que aparecem cada vez mais no comportamento dos seres imaginários. O que emerge é a crueldade, o egoísmo e o lado autocentrado da criança, que muitas vezes as brincadeiras e a fantasia infantis mascaram. Assustada e magoada com tudo, Aurora se refugia na cabana (como o povo pequeno das lendas sobre hobgoblins e lucharacháin) de um homem solitário, e na qual a presença de uma boneca quebrada parece sugerir que ele pode ter algo a ver com a morte da menina. A nêmesis de Aurora é a arrogante princesa Zélia, que, a certa altura, afirma que o problema de Aurora é que “ela nunca foi muito maligna… todo o problema está aí”. Mas Aurora já completou o seu processo de brutalização e resolve a rivalidade de um modo que faz o leitor recordar o fantasma das atrocidades nazistas na Europa. Só isso já bastaria como um final aterrorizante, mas a conclusão do livro escrito pelo francês Fabien Vehlmann e desenhado pelo casal Marie Rommepuy & Sébastien Cosset (que assinam “Kerascoët”) guarda para Aurora um traço de inocência e idealização que, no contexto, é ainda mais assustador.

O livro andou aqui em casa trazido por meu filho, Roberto Fideli, que o tomou emprestado de sua amiga Isabella Lubrano. (Mais tarde, adquirimos um exemplar.) Agradeço aos dois pela chance de ler o livro lançado pela DarkSide este ano, com um acabamento luxuoso. Meu filho me entregou o livro com o alerta de que era de causar pesadelos. E de fato, escrevo estas notas depois de despertar de um desses pesadelos. Fique avisado.

—Roberto Causo

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Leituras de Junho de 2019

O mês de junho concentrou a leitura de ficção científica brasileira e japonesa recentes, além de fantasia celta e história em quadrinhos do Batman e de fantasia heroica.

 

Arte de capa de Patricia Highsmith.

Os Gatos, de Patricia Highsmith. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2011, 120 páginas. Arte de capa de Patricia Highsmith. Tradução de Petrucia Finkler. Livro de bolso. Mês passado, terminei estas anotações com a leitura de uma história de bichos, a fábula O Lobo, de Joseph Smith, e neste mês começo com este livro centrado na figura do gato. O livrinho da famosa escritora de ficção de crime Patricia Highsmith (autora dos romances de Ripley), com três contos, três poemas e vários desenhos, tem todo o jeito de ter sido montado no Brasil, de material retirado de outra obra da autora. (Não tem nota de copyright de um título reunindo todos os textos, por exemplo.)

“Presentinho de Gato” é a primeira história, uma noveleta, em que, durante uma reunião social, um gato traz para casa um dedo humano, com uma aliança ainda presa nele. Isso leva o casal dono do gato a investigar o caso, chegando até o perpetrador — e a uma decisão surpreendente, sobre o que fazer com ele. A segunda história, “A Maior Presa de Ming”, é um conto de suspense que pode ser lido como horror e não ficaria mal em uma série de antologia como Galeria do Terror (1969-1973) ou em um filme do tipo antologia, como Creepshow: Arrepio de Medo (1982). Nessa noveleta, o gato do título, odiado pelo namorado fisicamente abusivo da sua dona, dá um jeito de “acidentalmente” (vai saber…) tirar o sujeito da vida dele e da moça. Finalmente, “A Casa de Passarinhos Vazia” mostra uma mulher que vislumbra um bichinho na propriedade rural em que vive, e cuja presença furtiva passa a incomodá-la acentuadamente. Ela passa a chamar o animal de “filhote de yuma”, e faz o marido emprestam uma gata da vizinha, para caçar o bicho, mas o conto revela que a criatura é símbolo de uma inquietação íntima, referente ao filho que ela abortou intencionalmente. Uma inquietação que pode ter se transferido ao marido, mesmo depois do “yuma” ter sido morto pela gata. É um suspense psicológico, portanto. Seguem-se então três poemas sobre a vida do gato: gatinho, gatão e velhão. O livro fecha com o ensaio “Sobre Gatos e Estilos de Vida”, observando como a beleza e a tranquilidade do gato combinam com a vida do escritor. O ensaio e os poemas, bem mais do que as histórias, que podem ser lidas pelo seu fator suspense ou crime, é que tornam este um livro para amantes de gatos, assim como, por exemplo, O Gato por Dentro (1986), de William Burroughs.

 

Arte de capa de George Amaral.

A Telepatia São os Outros, de Ana Rüsche. São Paulo: Monomito Editorial, Coleção Universo Insólito, 2019, 118 páginas. Apresentação de Enéias Tavares. Texto de Orelha de Jana Bianchi. Arte de capa e ilustrações internas de George Amaral. Livro de Bolso. Esta novela de Ana Rüsche abre a Coleção Universo Insólito da Editora Monomito, voltada para FC, fantasia e o fantástico. É uma excelente obra de abertura para uma coleção, considerando as suas qualidades literárias e representacionais. (Um embrião, sob a forma de conto, apareceu antes na revista eletrônica Mafagafo, de Jana Bianchi.) A narrativa acompanha a aventura de Irene, uma mulher brasileira, afro-descendente e de meia-idade que acaba no Chile, fazendo uma oficina de práticas de meditação. Lá, toma contato com uma beberragem capaz de induzir a comunicação telepática, e se une a uma comunidade que explora essa fabulosa habilidade.

A bebida já está na mira de um empresário americano que se infiltrou no grupo antes da brasileira chegar, e que pretende turbinar a internet com uma tecnologia bioquímica de transmissão do pensamento. A premissa lembra a intriga de fundo do romance Interferências (2018), de Connie Willis, no qual a telepatia poderia fundamentar uma revolucionária expansão da tecnologia de comunicação móvel. Ao mesmo tempo, o cenário translatino-americano coloca o livro junto com Na Eternidade Sempre é Domingo (2016), de Santiago Santos, e Escalpo (2017), de Ronaldo Bressane. É uma tendência bem-vinda, e eu mesmo expresso minhas ansiedades de contato com a América Latina na série As Lições do Matador. Mas, assim como no livro de Bressane, a novela de Ana Rüsche lembra a violência da ditadura militar brasileira, ao evocar a ditadura chilena. Rüsche faz bom uso de um recurso incomum na composição literária — o portento (um terremoto andino, no caso). Ela também compôs uma prosa literária discreta, muito próxima do estilo dominante na literatura mainstream brasileira e latino-americana, o que aproxima ainda mais forma e conteúdo. É um estilo sensível aos estados mentais da protagonista e a como ela se relaciona com a galeria de personagens que desfilam em A Telepatia São os Outros, uma das melhores novelas surgidas neste momento tardio da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira.

 

Capa de Teo Adorno.

Back in the USSR, de Fábio Fernandes. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, 2019, 224 páginas. Brochura. Nunca fui um beatlemaníaco, embora amigos de infância como Devair Almeida e até a minha mulher sejam grandes fãs dos Beatles. Às vezes, só pra encher o saco da minha esposa, eu me refiro ao grupo como “Os Reis do Iê Iê Iê”, a ridícula alcunha dada pela imprensa brasileira a eles, quando do seu surgimento.

Começo assim o comentário deste que é o segundo romance de Fábio Fernandes porque John Lennon é o seu protagonista. O livro abre a Coleção Futuro Infinito, editada por Luiz Bras (Nelson de Oliveira) para a Editora Patuá, de São Paulo, e é uma história alternativa em que, em fins do século 18, um método de ressuscitação total, conhecido como “Método Frankenstein”, mudou a história do mundo. À revelia, Lennon sofre o procedimento depois de ser assassinado por Mark David Chapman em Nova York. Coagido pela empresa superpoderosa que controla o método, ele vai à Rússia para, a pretexto de fazer um show, contrabandear dados secretos para fora do país e sofrendo com várias reviravoltas, logo a seguir. A premissa relativamente simples é retrabalhada com uma infinidade de referências culturais, eruditas e pop, e especulações divertidas sobre um mundo que venceu (até certo ponto) a maior questão transcendental possível: a morte. O que chama mais a atenção é o quanto a questão da sobrevivência após a morte, transformada em ferramenta de controle e de diferenciação social e política, daria o tom do pensamento filosófico e ideológico ao longo dos séculos. De fato, a estratégia imprime ao livro todas as marcas da ficção pós-modernista, na estrutura fragmentada e com a sua aproximação do popular e da alta literatura. São citados, por exemplo, Mary Shelley, H. P. Lovecraft, Karl Marx, Yoko Ono, George Harrison, Michel Foucault e Erich Maria Remarque — com o trecho de um romance que apresenta Adolf Hitler reduzido a um personagem. Soma-se a ela a paródia de um gênero popular, o thriller internacional, para reforçar essa inserção. O romance surgiu do conto “Para Nunca Mais Ter Medo”, publicado na revista Dragão Brasil em 1995, e agrega como reaproveitamento outros textos em torno do Método Frankenstein. A Coleção Futuro Infinito vai trazer um mix de autores da Segunda e da Terceira Onda, como Braulio Tavares, Claudia Dugim e Marco Aqueiva.

 

Capa de Carol Russ.

The Book of Kells, de R. A. MacAvoy.  Nova York: Bantam Books, 1985, 340 páginas. Arte de capa de Carol Russ. Arte interna de Robert Hunt. Paperback. A escritora americana Roberta A. MacAvoy fez sucesso na década de 1980 e depois deu uma sumida. Uma pesquisa na internet revelou que ela desenvolveu uma doença crônica, controlada recentemente, quando ela voltou a escrever. Este é um romance solo (não fazer parte de uma série) ambientado na Irlanda. Foi por essa razão que eu o adquiri este ano em um sebo da região da Sé, em São Paulo. É que a escrita do romance “Archin” para o Desire entrou em uma fase ambientada na Irlanda do século 13. Dá para chamá-lo de “fantasia celta” e de “fantasia de portal”, já que ele começa na Irlanda contemporânea — para onde vai uma jovem adolescente do século 10, que tenta fugir do massacre da sua vila por um grupo de vikings. Ela surge na casa alugada de um artista canadense que foi levado à Irlanda por sua namorada, uma historiadora, feminista e mulher de ação. De algum modo, as filigranas celtas e uma certa canção que ele ouvia na vitrola criaram um portal que permite a viagem no tempo. A menina foi estuprada e está ferida. O casal contemporâneo cuida dela e, tendo matado a charada, resolve levá-la de volta ao século 10. Lá, descobrem um segundo sobrevivente, um poeta, e ficam sabendo que o portal de retorno foi fechado quando os vikings destruíram uma cruz ornamentada pelos mesmos padrões de filigrana. Os náufragos temporais se tornam os representantes do leitor numa jornada de descoberta da vida e da cultura celta de então — especialmente depois que o grupo determina que devem ir a Dublin exigir do rei uma compensação pelo massacre e pelo estupro da garota. Por todo o caminho eles são perseguidos pelos vikings, liderados por um sacerdote renegado do deus Odin, que escolheu aquela aldeia como sacrifício para o deus nórdico. O sincretismo tanto da cultura celta quanto da nórdica com o cristianismo é uma das marcas do romance, e daquela época. Não apenas o mecanismo de viagem temporal tem papel no enredo, mas também milagres que incluem um fabuloso encontro, ao mesmo tempo divertido e assustador, com a deusa Bridget. O clima é realista e noturno, com uma textura que sustenta a viagem temporal que o próprio leitor experimenta.

É especialmente interessante a caracterização dos personagens: o artista é atrapalhado, sexualmente inibido (o que irrita a sua liberada companheira o tempo todo) e estoico. A historiadora é altiva mas às vezes cede ao peso psicológico do estranhamento da situação, desmaiando ou explodindo com as pessoas. Seu relacionamento com o artista inclui momentos apaixonados, mas é de constante abuso verbal contra ele. Ela acaba se interessando mais pelo poeta local. Ailish, a garota resgatada, é vivaz e determinada — bastante encantadora, por essas e outras qualidades. MacAvoy lida com a caracterização de personagens e do ambiente com um senso quase teatral da dinâmica entre eles, com uma incisividade que admite momentos brutais ou detalhes pouco glamourosos, como pelos corporais nas mulheres, flatulência e uma sexualidade e nudez desinibidas que, o livro me revelou, era próprio da cultura irlandesa de então. Quando o grupo encontra a deusa Bridget, ela se revela como uma mulher idosa, nua e que, agressivamente, abre a vagina (é a figura folclórica de Sheila na Gig) para o incomodado artista — que desmaia! Outro aspecto interessante dele é que seus impulsos eróticos parecem atrelados a fatores estéticos (ele tem ereções persistentes quando desenha).

Um problema de MacAvoy é a adoção do narrador onisciente ilimitado, cujos saltos de um personagem para outro tornam difícil para o leitor saber quem pensa, sente ou mesmo fala o quê. O final do livro é meio que um deus ex-machina, mas funciona suficientemente bem para a conclusão de um romance rico, divertido e com muitos elementos subversivos da fantasia. The Book of Kells é o título de um folio do século 8, caracterizado por exuberantes iluminuras sincréticas. É considerado o maior tesouro medieval da Irlanda. O livro faz uma aparição no romance de MacAvoy, quando o grupo de amigos chega ao monastério onde ele está sendo restaurado por um grupo de monges escribas.

 

A sugestiva arte de Robert Hunt cobre a guarda da capa e a primeira página do livro. Estão nela os personagens e a mistura da cultura celta e a ameaça viking.

 

Arte de capa de Brigid Collins.

The Sleep of Stone, de Louise Cooper. Nova York: DAW Books, 1993 [1991], 174 páginas. Arte de capa de Brigid Collins. Paperback. Esta é uma novela ou romance curto com um ar de conto de fadas que disfarça bem a sua sensibilidade moderna voltada para apontar os desenganos do delírio amoroso. A incomum heroína é uma espécie de gremlin que se apaixona pelo príncipe de uma cidade pesqueira. Ela envolve o moço assumindo a forma de diversos animais (em especial uma foca ou leão-marinho) e oferecendo-lhe a sua amizade. Quando descobre que ele vai se casar com uma princesa de outra cidade, ela elabora o plano de tomar a forma da jovem e consumar o seu amor pelo rapaz. É bem provável que história se baseie em lendas das selkies, comum em ilhas do Mar do Norte, sobre um povo-foca que podia assumir a forma humana, ao trocar de pele. Uma estátua moderna, de Hans Pauli Olsen em Kalsoy, uma das Ilhas Faroe, marca a força dessas lendas.

Para a gremlin de Louise Cooper, as coisas acabam mal. No meio do caminho, Ghysla, a gremlin, acaba matando uma aia do castelo do príncipe, mas essa experiência traumática a leva a hesitar em matar a princesa que deseja substituir. Por isso, resolve apenas sequestrar a moça, levá-la a uma caverna e transformá-la em pedra com um encantamento. Bombasticamente, no final da cerimônia de casamento o noivo não confirma seus votos, dizendo que essa não era a sua noiva, o que é confirmado pela mãe da princesa. Aflita, Ghysla revela sua verdadeira forma, é caçada pelos homens, reage com sua força mágica e acaba encastelada em uma torre. O príncipe percebe que ela representa o único meio de resgatar sua amada, mas para desentocá-la, recorre ao último grande mago conhecido. Com grande relutância, o mago o acompanha de volta ao castelo, e, usando sua forma mágica, convoca Ghysla para uma conversa. Ele descobre que ela não apenas é a última da sua espécie no mundo, como que fez tudo por uma fantasia de amor, em que se convencera de que o príncipe também a amava. Enfim, o mago se revela como fazendo parte da espécie dela — ou uma parte dele, pois é filho do encontro entre uma mulher da raça mágica e um humano. Surpreendentemente, o príncipe ouve tudo e se compadece de Ghysla. Ele e o mago, porém, a convencem a colaborar. Mas existe um preço terrível a ser cobrado: o feitiço do sono da pedra pode apenas ser revertido se quem o lançou também se transformar em pedra. A autora lida muito bem com o mais neutro tom de fábula, e torna sua trágica heroína uma personagem atraente e cativante ao caracterizá-la como adolescente intensa, ingênua e atrapalhada. Cooper também antecipa a especulação mais ousada do leitor para um final diferente, escapando dela com a maior elegância. Há anos que me deparo com livros dessa autora inglesa nos sebos da vida, mas sempre pertencentes a alguma série multivolume, e nunca com o volume um. Livro solo, The Sleep of Stone foi uma ótima oportunidade de conhecer o seu trabalho. A arte de capa de Brigid Collins tem o ar e a composição dos quadros dos pintores pré-rafaelitas, mas parece ser aquarela e não pintura a óleo.

 

A escultura de Hans Pauli Olsen, na Ilha Kalsoy, retrata uma selkie se despindo da sua pele de leão-marinho. Com o dobro da altura de uma pessoa normal, ergue-se em uma extensão rochosa e é capaz de resistir a ondas de até treze metros de altura, interagindo com o mar. Nas lendas, a selkie é forçada a se tornar esposa do homem que tomou a pele de leão-marinho, a chave para a reversão da sua transformação em mulher. No romance de fantasia de Louise Cooper, a gremlin pode assumir muitas formas, e procura a todo custo ganhar o amor do humano que escolheu.

 

your name., de Makoto Shinkai. Rio de Janeiro/Campinas: Verus Editora, 2ª edição, 2019 [2016], 186 páginas. Tradução de Karen Kazumi Hayashida. Comentário de Genki Kawamura. Brochura. Há alguns anos eu me apaixonei pelo filme curto de Makoto Shinkai, O Jardim das Palavras (Kotonoha no Niwa; 2013). Outros filmes anteriores de Shinkai, como 5 Centimeters per Second (Byōsoku 5 Senchimētoru; 2007) e Viagem para Agartha (Hoshi o Ou Kodomo; 2011) não me impressionaram tanto. O comentário do produtor Genki Kawamura ao final da novelização your name., escrita pelo próprio Shinkai, dá a entender que um grupo de produtores se reuniu para dar a Shinkai as condições de produzir a obra-prima que se esperava dele. O anime longa-metragem Your Name foi o filme de animação mais visto na história do Japão, e ganhou prêmios em três continentes. É maravilhoso, já o vi várias vezes, e ele está passando direto na TV a cabo.

Narrado em primeira pessoa mas pelos dois personagens principais — dois colegiais, ele vivendo em Tóquio e ela em uma cidade interiorana ficcional —, o romance tem a ligeireza comum às “novelizações”, mas como é rico em situações e na subjetividade dos personagens, ele encanta e aproxima o leitor da dupla, ampliando a experiência do filme. Shinkai escreveu o livro enquanto dirigia o anime sobre os colegiais que trocam de corpo aleatoriamente, e, apaixonados um pelo outro, se procuram espiralando em torno do evento central, que é o choque do fragmento de um cometa que já havia atingido a mesma cidadezinha, séculos antes. Nessa coincidência e no impacto duplo há aquela sombra perpétua dos ataques atômicos americanos ao Japão na Segunda Guerra Mundial, presente em tanto da cultura popular japonesa. Em tudo isso (e também em uma engenhosa viagem no tempo), a história combina fantasia e ficção científica. O que impressiona é a costura intrincada, mas que parece despretensiosa ao mesmo tempo. No leitmotif da troca de corpos e de gênero sexual, têm-se um comentário sensível e bem-humorado de como o conhecimento do sexo oposto derrubaria barreiras e promoveria uma qualidade maior de relacionamento pessoal. Ao mesmo tempo, oferece a perspectiva de como o desconhecimento atrapalha. É difícil aparecer ficção científica japonesa por aqui, e este livro é uma oportunidade de se ter algum contato com dela. O que o filme e o livro realizam em grande parte é oferecer, com a inteligência e a sensibilidade de Makoto Shinkai, um testemunho da potência da cultura popular japonesa.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Andy Kubert.

Batman e Filho, de Grant Morrison (texto) & Andy Kubert (arte). Cajamar-SP: Planeta DeAgostini Brasil, 2019 [2006, 2007], páginas. Arte de capa de Andy Kubert. Capa dura. Este é o primeiro volume de uma coleção da Planeta DeAgostini dedicada exclusivamente ao Batman. Conta a história de como Bruce Wayne soube que teve um filho com a filha de Ra’s Al Ghul, Talia. Existe, inclusive, uma animação bastante divertida e interessante, com roteiro do escritor de FC e fantasia Joe R. Lansdale, baseada ou inspirada nesta HQ: O Filho do Batman, de 2014.

O Batfilhote é um pequeno assassino com problemas de autoridade, ciúmes do Robin (com quem trava uma luta épica), e a ideia fixa de que matar é a resposta para todo e qualquer problema. Além dos membros da Liga dos Assassinos, Batman e eventualmente também o seu filho, combatem homens-morcegos mutantes criados artificialmente pelo Dr. Kirk Langstrom. A intriga envolve o resgate da esposa do primeiro ministro britânico, raptada quando os homens morcegos entram em cena pela primeira vez — em uma exposição de arte em Londres, para arrecadar fundos para a África. Grant Morrison, um das estrelas dos quadrinhos do século 21, traz um toque metalinguístico interessante com o tema da exposição: a arte pop tipo Roy Lichtenstein, que deve muito à linguagem dos quadrinhos e que por sua vez deve ter influenciado o ângulo camp da série Batman e Robin (Batman), de 1966.

A tentativa de resgate da mulher do primeiro ministro também implica no reencontro da Batman com Talia — e o uso de um batfoguete suborbital. O volume se estende um pouco mais com o cruzado embuçado perseguindo um assassino em série que ataca prostitutas, revelando-se como um gigante mascarado que cobra um duro preço do herói, numa pancadaria em um beco. A arte de Andy Kubert, filho do lendário Joe Kubert, é competente em todos os aspectos da narrativa dos quadrinhos, com alguns momentos muito expressivos.

 

Arte de capa de Andy Kubert.

Batman: O que Aconteceu ao Cavaleiro das Trevas? (Batman: Whatever Happened to the Cape Crusader), de Neil Gaiman (texto) & Andy Kubert (arte). Barueri-SP: Panini Books, 2013, 130 páginas. Arte de capa de Andy Kubert. Capa dura. O celebrado Neil Gaiman e o mesmo Andy Kubert criaram uma narrativa metaficcional em que Batman parece acompanhar em espírito vários testemunhos de amigos e inimigos, durante o seu velório. Como Batman morreu é a pergunta que paira, logo dividida com outra pergunta: Batman morreu mesmo? O velório acontece no Beco do Crime, onde a morte do casal Wayne dá início à formação do herói encapuçado que se tornaria o Batman.

Como sempre, o texto de Gaiman é falsamente simples, na verdade rico em situações e em movimentos. Há um componente crucial de dúvida sobre o que se passa na situação-base do velório e seus testemunhos. A Mulher-Gato é a primeira a falar, e conta um história estranha em que teria deixado de socorrer Batman de um ferimento eventual, depois que ele rejeitara construir uma vida com ela. Segue-se uma outra, em que o mordomo Alfred se apresenta como um ator farsante que assumia a identidade de vários supervilões da franquia, para motivar o patrão no seu suposto delírio heroico. A segunda parte da história abre mão do formato inicial de narrativas mais alongadas e contrastantes, para recorrer a uma rápida sucessão de testemunhos da Batgirl, do Coringa, de Robin, e até mesmo do Super-Homem. Num terceiro momento, toda essa pantomima de testemunhos funerários cede a um mergulho na subjetividade do próprio Batman. Memória e subjetividade estão no centro da abordagem literária de Neil Gaiman, e neste tratamento original e instigante da trajetória do herói a sua obsessão com a infância não deixaria de igualmente se manifestar — com direito a uma aparição de Martha Wayne, a mãe de Bruce, a identidade “civil” do Batman. A arte de Kubert dá conta e homenageia discretamente as várias fases do personagem, emprestando elementos de estilo do criador Bob Kane e de desenhistas do passado como Jack Burnley e Jerry Robinson, reforçando o caráter metaficcional da HQ. A história de Gaiman é uma linda homenagem ao imortal cruzado embuçado, tratando-o com admirável verve e sensibilidade. O volume é completado por cinco histórias mais curtas, também de épocas diferentes, incluindo uma em preto e branco por Simon Bisley, esta totalmente metaficção.

 

Arte de capa de Giuseppe Matteoni.

Dragonero: O Caçador de Dragões Nº 1, de Luca Enoch & Stefano Vietti (texto) e Giuseppe Matteoni (arte). São Paulo: Mythos Editora, fevereiro de 2019, 292 páginas. Tradução de Júlio Schneider. Arte de capa de Giuseppe Matteoni. Brochura. Dragonero é uma série mensal de quadrinhos de alta fantasia, publicada originalmente pela Sergio Bonelli Editore em preto e branco, criada na Itália em 2009, pela dupla Enoch & Vietti. Chegou aqui num livrão distribuído em bancas. Traz todos os elementos tradicionais da alta fantasia pós-Tolkien: mapas e glossário de línguas ficcionais; uma cuidadosa e rica construção de mundo bem amparada pelo traço preciso de Giuseppe Matteoni; ameaças que atingem o mundo secundário globalmente, e a formação de uma irmandade que, depois de identificar a natureza completa da ameaça, parte para obter os itens mágicos necessários. O enredo prevê a separação eventual da irmandade em pontos-chave da narrativa, e o sacrifício de algum dos seus membros. O centro da dinâmica entre os personagens é o relacionamento do herói de queixo quadrado Ian Aranill com seu amigo orc, Gmor (que contribui com o alívio cômico), e de Ian com a irmã, Myrva. Há uma ênfase especial nas guildas de magos, aviadores e técnicos, já que a série tem um lado steampunk. Inclusive, Myrva faz parte da ordem dos tecnocratas e integra a irmandade. O desenho claro, de traço robusto e de claro-escuro discreto de Matteoni dá conta de tudo.

O enredo leva o leitor a conhecer paulatinamente os membros da irmandade, o seu mundo secundário e a problemática que eles precisam resolver: um poderoso mago-vilão libera hordas de demônios antes confinados na zona proibida da “Antiga Interdição”. Para reerguer a interdição, é preciso plantar no coração do seu território uma planta mágica que viaja sob a custódia de uma pequena elfa reclamona e relutante, que é o último membro da irmandade a ser recrutado. Na premissa, há algo de J. R. R. Tolkien e de Terry Goodkind. No caminho dos heróis, viagens a terras distantes pela terra e pelo ar, duelos contra velhos desafetos e reencontros com velhos amigos, luta contra demônios cada vez mais numerosos, sacrifícios pessoais, um duelo de magos e, finalmente, um dragão redivivo. O ritmo é excelente, no desdobramento do enredo que pontua o maravilhamento da descoberta desse mundo mágico pelo leitor, e o conteúdo épico da narrativa, com momentos sombrios crescentes. Peter Jackson transformaria isso tudo em um blockbuster definitivo.

 

Príncipe Valente 1940, de Hal Foster. Planeta DeAgostini, 2019, 64 páginas. Introdução de Beatriz C. Montes. Tradução de Carlos Henrique Rutz/Estação Q. Capa dura. Após escapar da tentativa de assassinato do usurpador Piscaro, e de libertar o nobre Cesario, o Príncipe Valente parte, acompanhado de Sir Gawain e de Sir Tristão e com recursos renovados, na missão de deter quatro mil hunos que se aproximam. Logo no início, tem-se uma página com um violento choque de cavalaria. Com a ajuda do seu novo escudeiro, o malandro Slith, Valente bola um plano para derrotar o chefe dos hunos, Karnak, com mais ação clássica de cavalaria pouco adiante na narrativa. No aftermath, Valete socorre um mensageiro ferido, e descobre se tratar de uma garota disfarçada de rapaz. Ela tem origem nobre e, com o disfarce, busca continuar a liderança paterna na resistência aos invasores. Enquanto rola esse pequeno arco romântico, que recupera o leitmotif da moça que assume papel masculino em homenagem à autoridade paterna (que vemos desde Grande Sertão: Veredas, a Mulan), Valente vai pescar sozinho e retorna para se defrontar com uma delegação de nobres de várias regiões demandando que ele os lidere, como um Alexandre, para a vitória sobre um “mar de sangue huno”. Já apontei aqui como o volume anterior apresentou o início do ciclo sobre as guerras dos hunos, marcado pela uma crueldade. Aqui, quando Valente recebe os nobre e generais, ele se nega a liderá-los, indicando um livro com a “história do mundo” (de Plutarco?):

“Aqui, sob a minha mão, está a história do mundo. Jamais encontrarei uma conquista à força que seja duradoura. Alexandre e César, cada um a seu tempo, dominaram o mundo. Mas onde estão suas conquistas agora? O que aconteceu com a Babilônia, a Pérsia e Cartago? Os frutos da conquista são apenas inimizadas amargas. Não, meus nobres senhores, eu empenhei minha espada apenas às causas da justiça e da liberdade!” —Hal Foster. Príncipe Valente.

O trecho não apenas reafirma a mística arturiana de ideais civilizadores, como tempera as aventuras do herói com uma reflexão pacifista a partir da leitura e da ponderação. Assinalando os novos ares da saga, Valente e seus amigos Gawain e Tristão partem para Roma, com o primeiro cavaleiro se metendo em uma série de situações cômicas e desastradas, e com Valente partindo, mais adiante, para livrar uma região do arbítrio de um gigante. Começa um dos arcos que conheci na infância e que é dos mais nostálgicos para mim, pela sua mensagem contra o preconceito. Aí também temos um retorno ao espaço menos histórico e mais mítico da fantasia, embora a figura do gigante seja racionalizada, como outros ícones da fantasia, na crianção de Foster. Quanto ao ciclo dos hunos, ele só termina algumas páginas adiante, quando Valente e seus companheiros conseguem levar a ação até o acampamento principal dos invasores. Mais adiante ainda, Valente resgata um mercador árabe que lhe dá, em reconhecimento, um colar especial que vai tirar o herói de alguns apuros, no futuro. Uma vez, em Roma, mais encrencas aguardam os companheiros, com Valente sendo apanhado no meio de uma intriga do imperador contra o popular General Aécio. Os três são aprisionados, e escapam quando o imperador é alvo de uma revolta. Perseguido pelas montanhas, Valente margeia uma erupção do Vesúvio, e fecha o volume tomando um barco do seu capitão pirata.

 

Príncipe Valente 1941, de Hal Foster. Planeta DeAgostini, 2019, 64 páginas. Introdução de Beatriz C. Montes. Tradução de Carlos Henrique Rutz/Estação Q. Capa dura. Neste ano da publicação da página dominical de Príncipe Valente, importantes personagens secundários aparecem pela primeira vez: o pirata Angor Wrack e o mercador viking Boltar (que chegou a aparecer no filme de 1954). Principalmente, Aleta, a rainha das Ilhas da Bruma e futura esposa de Valente e mãe dos seus filhos. Eu me lembro de ter lido esta sequência há muito tempo, quando era menino, nas edições de capa amarela da Editora Paladino e em formato de livro (N.º 11, 1972).

Resistindo à tentação dos seus tripulantes de se aplicarem à pirataria, Valente termina ironicamente prisioneiro do escravagista Angor Wrack. Ao escapar, ele acaba em um bote à deriva durante dias, até ir parar em uma praia deserta, onde é socorrido momentaneamente por um anjo louro, que se torna sua obsessão. Esse anjo é Aleta, que deixa com o moço um bilhete que afirma que ninguém pode viver, depois de aportar na suas ilhas no Mar Egeu, mas que ele é jovem demais para morrer. Após curtas peripécias, ele vai parar na cidade litorânea de um velho rei que o toma como refém para pedir resgate. Valente encanta as duas filhas do rei, enquanto reúne recursos para a fuga, mas os cede a uma das filhas, para que ela possa fugir com um marinheiro que conquistara o seu coração. É um episódio bonito, e um refresco necessário a todo o sangue e cinismo do ciclo dos hunos. Mas quando Angor Wrack surge no palácio do rei para uma visita, o irritável herói puxa a espada. Nesse ponto, Foster produziu o fabuloso painel com o polvo gigante no fosso em que Valente é atirado, por ter agredido o convidado do rei. Após nova fuga, Wrack, que havia se apoderado da Espada Cantante de Valente, se torna a sua nova obsessão. Mas é no deserto e não no Mediterrâneo, que os dois se reencontram, aprisionados por ladrões enquanto duelam. Valente acaba escravizado na propriedade de um mercador árabe, ganhando parte das suas graças quando sua cultura o torna valioso como escriba. O plano de fuga de Valente envolve seduzir a morena filha do mercador, um padrão que se repete ao longo da saga, e que o herói deve ter emprestado do seu companheiro Gawain, o galanteador. Livre, ele vai parar em outra situação fantástica, desta vez não racionalizada, envolvendo um mago e a sua firme e bocuda esposa — outro momento divertido de observação psicológica, lastreado pela fantasia, do qual eu me recordava com muita afeição. O volume acelera com novo reencontro com Wrack. Agora, a cooperação anterior entre os dois teria funcionado como prova mútua de valor, e eles se tornam amigos — quando a narrativa é forçada a abafar o passado escravista de Wrack, algo pouco harmonizado com os valores da cavalaria e da Távola Redonda do Rei Artur. De novo de posse da Espada Cantante, Valente combate piratas, mas em nova circunstância moralmente ambígua, termina se associando ao pirata viking Boltar, para seguir com novas aventuras.

—Roberto Causo

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Plutão Livros Publica Finisia Fideli e Roberto Causo

A Plutão Livros de André Caniato, uma editora especializada em e-books de ficção científica, publicou em fins de dezembro de 2019 uma série de títulos incluídos na Coleção Ziguezague, voltada para a publicação de FC brasileira sem fronteiras, isto é, obras pertencentes a todos os períodos da evolução da FC no Brasil.

 

A Ziguezague engrossa um outro diferencial que também se afigura como tendência bastante interessante para 2020: a republicação de obras significativas da ficção científica brasileira. Em 2019 nós vimos, por exemplo, duas coletâneas importantes reaparecendo: As Baleias do Saguenay, de João Batista Melo, e O Fruto Maduro da Civilização, de Ivan Carlos Regina.

Esse processo sublinha um fato novo — a aceitação de que o gênero tem história no país. A Ziguezague publica obras de todos os períodos da nossa FC: o Período Pioneiro (1857 a 1957), a Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira (1957 a 1972), o Ciclo de Utopias e Distopias (1972 a 1982), a Segunda Onda (1982 a 2015) e a Terceira Onda (a partir de 2004). Os seus primeiros títulos foram lançados, em rápida sucessão, nos meses finais de 2019: Três Meses no Século 81 (antes publicado como 3 Meses no Século 81), um clássico da FC nacional escrito por Jeronymo Monteiro e publicado anteriormente apenas em 1947; Eles Herdarão a Terra, de Dinah Silveira de Queiroz, uma coletânea de histórias publicada primeiro pelas Edições GRD em 1960; O Ovo do Tempo, noveleta de Finisia Fideli publicada pelas Edições GRD em 1994, na antologia Dinossauria Tropicália; e a noveleta Patrulha para o Desconhecido, de Roberto Causo, publicada primeiro na Isaac Asimov Magazine em 1991, quando foi uma das três finalistas do primeiro concurso nacional de contos brasileiros de FC, o Prêmio Jeronymo Monteiro.

A dinâmica ensaísta e ficcionista Ana Rüsche fez o prefácio da coleção: “A Coleção Ziguezague faz um convite entusiasmado: celebrar a ficção científica brasileira. Esse movimento corajoso inaugura a nova década do século XXI, ressaltando uma literatura que enfatiza os usos possíveis da tecnologia e reflete a respeito das decorrências de alterações técnicas em nosso cotidiano, promovendo uma análise sobre questões éticas, morais e sociais.” Rüsche também acredita que o acesso a alguns desses títulos poderá auxiliar a crescente pesquisa de FC brasileira.

Escrito com vivacidade e humor, O Ovo do Tempo apresenta uma discreta heroína paulistana, a bióloga Mariana. Cercada de sensatez — como outras personagens da autora —, mas sem por isso se esquivar de ir ao fundo de um fenômeno estranho iniciado com a compra de um geodo em particular, em uma loja de cristais apresentada por uma amiga esotérica. A sua busca a conduz a uma viagem até o Sul do Brasil, à procura de uma caverna explorada por empresários inescrupulosos que contrabandeiam itens minerais para fora do país. A preocupação com essa questão contemporâneas é temperada pelo maravilhamento e pela descoberta de fatos fabulosos, incluindo o encontro com um viajante do tempo. A antologia Dinossauria Tropicalia, na qual a noveleta foi primeiro publicado, apareceu no auge da “dinomania” provocada pelo filme de Steven Spielberg, O Parque dos Dinossauros.

A Plutão Livros guarda outra noveleta de Fideli para publicação oportuna, A nós o Vosso Reino, de 1998.

 

 

Narrada em primeira pessoa, a noveleta Patrulha para o Desconhecido apareceu primeiro na Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Científica N.º 14, em 1991, e é uma FC militar em que pracinhas brasileiros metidos na Segunda Guerra Mundial, durante uma patrulha de reconhecimento se deparam com estranhos habitantes isolados em uma vila entranhada nos Montes Apeninos, na Itália. Foi a terceira colocada no Prêmio Jeronymo Monteiro. O posfácio do autor, também presente no livro, traz reminiscências da FC brasileira da época e dos bastidores do concurso.

Roberto Schima foi o primeiro colocado, com o conto “Como a Neve de Maio”, e Cid Fernandez o segundo, com a noveleta de space opera “Lost”. O concurso atraiu a quantidade impressionante de 444 submissões por escritores de 17 estados brasileiros. Os escritores Jorge Luiz CalifeJosé dos Santos Fernandes, com Luiz Marcos da Fonseca, na época presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica, foram os jurados. A publicação dos vencedores marcou o início da participação de textos nacionais de ficção na Isaac Asimov Magazine.

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