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Leituras de Julho de 2020

Em julho, prossigo com minha investigação da space opera, relendo romances de Jack Vance, mas também examinando a antologia brasileira Space Opera II, de Hugo Vera & Larissa Caruso.

 

Arte de capa de Raul Rangel e Milton Silva.

Star King: A Saga dos Príncipes-Demônios (Star King), de Jack Vance. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1980 [1964], 208 páginas. Tradução de Marina Leão Teixeira Viriato de Medeiros. Arte de capa de Raul Rangel e Milton Silva. Brochura. Cá estou, relendo mais uma space opera das antigas, publicada no Brasil em 1980 e parte de uma série que ainda chama a atenção, misturando FC e ficção de crime pela verve singular de Jack Vance (que escreveu os dois gêneros). De uma série de cinco romances publicados, a importante coleção Mundos da Ficção Científica lançou dois: este Star King (1964) e A Máquina de Matar (1964). O autor da Geração GRD Fausto Cunha foi o coordenador da coleção. Anos depois, na década de 1990, a coleção — agora Novos Mundos da Ficção Científica e com Sylvio Gonçalves como coordenador — publicou um terceiro: O Palácio do Amor (1967). Dentro da primeira coleção, Antonio Jeremias foi o capista mais prolífico e competente. A capa de Raul Rangel & Milton Silva certamente está aquém.

A série acompanha o jovem Kirth Gersen, treinado por seu avô para ser o vingador da destruição da sua colônia planetária por cinco alienígenas capazes de se passar por humanos, e que, a partir dali, criaram os seus respectivos impérios criminais pela galáxia de Vance, o universo do Oikumene. Os cinco são os “Príncipes Demônios”. Cinco bandidos, cinco romances, com Gersen dando cabo de um após o outro. Por alguma razão, Vance terminou a série com a publicação de The Book of Dreams apenas em 1981. (Atualmente, o escritor canadense Matthew Hughes trabalha em um sexto volume, autorizado pelos herdeiros.) Pseudo-excertos de publicações, depoimentos, relatórios do futuro distante imaginado por Vance expandem o sentido da narrativa do romance, somando à textura elogiada e influente que caracterizou a obra desse autor. A intriga do primeiro livro apresenta Gersen na cola de Attel Malagate, que, aos poucos, ele descobre estar disfarçado de dirigente do principal instituto de exploração planetária do Oikumene. O próprio Gersen emprega o disfarce de explorador. A intriga tem como principal premissa propulsora (“MacGuffin”) um planeta singular, muito rico e edênico, descoberto por um explorador de fato, assassinado no início do romance. A questão é apropriar-se do sensor com as coordenadas desse mundo, interessar o conselho coordenador do instituto, e criar um mise-en-scène que facultasse ao herói identificar Malagate, entre o grupo de suspeitos.

No processo, que inclui vários movimentos e truques da ficção de detetive hard-boiled, Gersen coopta uma das várias mulheres que cruzam o seu caminho na série, a bela, vivaz e inocente Pallis Atrode, a quem Vance reserva um destino de abuso nas mãos de um perverso associado de Malagate. O herói Kirth Gersen não tem a personalidade mais vibrante nem a caracterização mais aprofundada, mas as mulheres de Vance na série possuem invariavelmente um encanto misterioso, já que também não são objeto de uma grande dedicação do autor. Já o planeta edênico tem uma ecologia em que espécies diferentes se “metamorfoseiam” em outras, antecipando algo do planeta Lusitânia no meu favorito Orador dos Mortos (1986), de Orson Scott Card. Enfim, como chefões do crime, os príncipes-demônios ou “reis das estrelas” são seres guiados não apenas pela emulação não apenas da forma humana, mas das suas realizações, e a oportunidade de direcionar uma nova raça deve ser irresistível a Malagate. Nesse detalhe, os príncipes-demônios parecem ser uma representação do arrivismo que impulsiona tantos criminosos — e políticos, como vemos no atual governo de arrivistas que está no poder no Brasil. A mistura de ficção de crime, ficção científica e evocação mítica de Vance neste primeiro volume soa inquietante, traz cores vivas e estimula o pensamento.

 

Drive (Drive), de James Sallis. São Paulo: Editora LeYa, 2012 [2005], 160 páginas. Tradução de Amanda Orlando. Brochura. Com quantos livros se faz um subgênero de ficção de crime? No caso em questão, talvez apenas três: The Getaway Man, de Andrew Vachss, que eu li em 2008; este Drive, de James Sallis; e O Motorista (The Wheelman), de Duane Swierczynski, que está na fila. O trio já rendeu um artigo de Eric Beetner, e compõe o subgênero “piloto de fuga”. Apenas o livro de Vachss não foi traduzido no Brasil. James Sallis escreve fantasia contemporânea e frequenta as páginas da The Magazine of Fantasy & Science Fiction. Este seu Drive virou um filme muito bom, estrelado por Ryan Gosling (aí na capa) e Carey Mulligan, dirigido por Nicolas Winding Refn.

O livro é um romance curto de texto minimalista e capítulos breves. O protagonista é chamado apenas de “Piloto”. É um especialista em livrar assaltantes armados da perseguição da polícia. Sua história abre com um momento crucial, também visto no filme, em que ele é emboscado, junto com a cúmplice Blanche, em um motel. A narrativa, porém, logo mergulha em um longo flashback que conta, capítulo a capítulo, as suas origens e como ele chegou até ali, usado pelo pai em arrombamentos ainda quando criança, como fugiu de casa e foi para Los Angeles e se tornou piloto de façanhas em filmes. A recuperação das trajetória do protagonista se reencontra com aquela cena central no capítulo 9, mas a estratégia dos flashbacks retorna imediatamente após, agora centrada em como ele entrou no mundo do crime.

Um toque de Sallis que não está no filme é o relacionamento do Piloto com Manny, um escritor de roteiros que fornece alguns comentários sobre o mundo literário e suas desilusões. (Manny também é responsável pela ironia final.) Fora dos flashbacks, a situação central é do Piloto, baleado, fazendo uso dos serviços de um médico de bandido, especialista em remover projéteis e costurar buracos de bala. E então como o herói se recupera da emboscada, sai da cidade, se reorganiza e dá a volta por cima contra os operadores locais da máfia italiana, usando suas habilidades específicas atrás do volante — no que se assemelha um pouco com o romance de Vachss. Também na caracterização do Piloto, que, como o herói de Vachss, tem algum déficit de inteligência ou de empatia, possível neurodivergência que sugere ser por isso que ele é um savant na mecânica e na pilotagem. O texto minimalista e emocionalmente apartado reforça essa impressão, ao mesmo tempo em que insere o livro dentro da ficção de crime pós-modernista.

 

Arte de capa de Raul Rangel.

A Máquina de Matar (The Killing Machine), de Jack Vance. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1980 [1964], 192 páginas. Tradução de Luís Corção. Arte de capa de Raul Rangel. Brochura. O segundo livro da série Saga dos Príncipes Demônios vê o herói Kirth Gersen à caça de Kokkor Hekkun, o príncipe-demônio conhecido como “Máquina de Matar”, cuja trilha leva a um mundo de fantasia científica, Thamber, um planeta oculto das autoridades do Oikumene. A única pista de Thamber é uma cantiga folclórica. Raul Rangel retorna como capista em arte de cores aguadas e uma representação da máquina de matar que parece um esboço inacabado. Ilustradores estrangeiros também preferiram representar a estranha centopeia blindada, encomendada por Hekkun a uma empresa de engenharia — mimetizando uma criatura do tal planeta —, e não os personagens.

Gersen descobre que Hekkun busca levantar uma grana para resgatar uma mulher, Alusz Iphigenia, que se refugiou na matriz de um esquema quase industrial de sequestros e cobrança de resgate, colocando-se voluntariamente em cativeiro sob um resgate bilionário, para proteger-se do vilão. O herói então consegue o patrocínio de uma autoridade do instituto cujos filhos foram sequestrados, e infiltra o cativeiro para ter contato com ela, dona da única pista do paradeiro de Hekkun. Como Gersen obtém a soma absurda para resgatá-la é muito anacrônico para o leitor do século 21: ele forja dinheiro usando uma oficina de arte e laborterapia para os cativos… Chegar a Hekkun depende derradeiramente não apenas da ajuda de Alusz Iphigenia, mas do herói assumindo o controle do projeto da tal máquina assassina encomendada pelo príncipe-demônio.

Alusz Iphigenia é outra das mulheres estranhamente atraentes de Vance, mas quando ela e Gersen chegam a Thamber ela perde algo do interesse, conforme o enredo envereda para situações de fantasia heroica, com a cooptação de grupos tribais pela dupla e o conflito entre esses grupos até que a dupla chegue ao castelo de Hekkun — que nesse mundo cunhou para si uma persona heroica, como se o planeta fosse o seu parque temático privado. Novamente, o príncipe-demônio busca para si mais do que uma distinção como criminoso. E novamente, o herói precisa aparecer com um truque para tirá-lo do seu disfarce humano, aqui, em uma revelação particularmente tétrica. Para além de grotesco, Hekkun assume uma face trágica que nos parece singularmente romântica (talvez mesmo aristocrática) e humana:

“— Ele era um homem em que a imaginação era um dom e uma maldição. Uma única vida não lhe bastava. Ele sentia a necessidade de beber em todas as fontes, de conhecer todas as experiências e viver em todos os extremos. Em Thamber ele encontrou um mundo bem a seu gosto e temperamento. Nas suas diferentes entidades ele criava suas próprias epopéias.” —Jack Vance. A Máquina de Matar.

 

Arte de capa de Hugo Vera.

Space Opera: Jornadas Inimagináveis em uma Galáxia Não Muito Distante, de Hugo Vera & Larissa Caruso, eds. São Paulo: Editora Draco, 1.ª edição, 2012, 380 páginas. Introdução de Gerson Lodi-Ribeiro. Arte de capa de Hugo Vera. Brochura. Romantismo epopeico, épico, exótico e sempre maior que a vida é a província da space opera. Minha noveleta das Lições do Matador, “A Alma de um Mundo”, apareceu nesta antologia de Vera & Caruso, a segunda da sua vitoriosa série de três, as primeiras antologias nacionais dedicadas à space opera. A lista de participantes é grande: Vera e Caruso, Octavio Aragão, Fábio Fernandes, Marcelo Augusto Galvão, Lidia Zuin, Tibor Moricz e Carlos Orsi. Todas as histórias são relativamente longas e sempre movimentadas, e a capa de Hugo Vera é provavelmente a melhor que ele fez para a sua série de antologias originais.

“Obliterati”, de Fernandes, começa in media res, em uma alternância de situações aceleradas, amparadas pela narrativa no tempo presente e em primeira pessoa, mais tarde sucedidas por reflexões descritivas do contexto ficcional, e toques de perda pessoal e de grandes conceitos científicos que apontam para a new space opera. “Tudo por Causa dela”, de Caruso, também é muito movimentado e também inclui um relacionamento passional em seu núcleo (olha o título!), mas com um twist envolvendo um implante cerebral. “Jowjow, Jungermaid e a Deusa de Luz”, de Tibor Moricz, talvez inadvertidamente nos lembra que a expressão “space opera” surgiu para designar uma “faroeste no espaço” — o componente de western (também presente no romance de Moricz, O Peregrino, de 2011) é bastante evidente na aventura de planetary romance do caça-prêmio Jowjow e seu cavalo-robô, acompanhados de uma heroína local na busca por uma importante joia mitológica, a Deusa da Luz. “Rainha das Estrelas — Dias de Sangue na Área Vermelha”, de Octavio Aragão, imagina, em narrativa com muitos movimentos, um império galáctico em futuro distante, repleto de intrigas palacianas e crueldades absolutistas que sugerem a influência de Duna (1965), de Frank Herbert. “Viva Muito, Morra Jovem”, de Lidia Zuin, é relativamente curto, se comparado com a maioria das demais histórias da antologia, e nele a autora mais conhecida por seus contos cyberpunks empresta a sua pena para substanciar a série criada por Hugo Vera, representada no livro pela novela “As Filhas de Cassiopeia — A Ofensiva Draconiana”, outra space opera exóticaA história de Zuin é circunscrita a um único lugar e envolve uma devoradora de homens, parte de uma espécie assexuada mas que se apresenta como fêmea e cujos feromônios ela usa para atrair suas vítimas. De Marcelo Augusto Galvão, “Inferno de Dantes” é uma ágil space opera militar sobre fuzileiros espaciais em um sítio xenoarqueológico no qual procuram um artefato supertecnológico, e lutam contra monstros cheios de tentáculos e um traidor entre eles. Galvão revela familiaridade com o subgênero, com um estilo consistente, ideias de FC formando uma boa textura e alguma ironia e tuckerismos (menções a colegas do mundo da FC brasuca). A já mencionada novela de Hugo Vera rivaliza com a de Aragão como narrativa mais longa do livro, em um universo de space opera exótica que sugere a influência de Duna e de séries de TV como Babylon 5, e de videogames como Mass Effect. Quase um romance, implora expansão para esse formato, para colocar mais substância em suas situações de guerra galáctica e piratas espaciais, agentes secretos e guerreiras determinadas. Mais curto, “No Vácuo Você Pode Ouvir o Espaço Gritar”, de Carlos Orsi, tem ideias científicas mais ricas e também explora o tema de artefatos deixados à deriva por supercivilizações anteriores, além de descreve hábitos culturais do futuro distante, e uma trepidante colaboração entre humanos e uma outra potência espacial, na investigação de um desses objetos. É um dos textos brasileiros que mais se aproxima da new space opera, em tom e em tema, e recebeu o Prêmio Argos, do Clube de Leitores de Ficção Científica, em 2013.

 

Arte de capa de Bruce Jensen.

Divergência: Livro Dois de O Universo dos Construtores (Divergence: Book Two of The Heritage Universe), de Charles Sheffield. Rio de Janeiro: Editora Record, 1994 [1991], 286 páginas. Tradução de Ronaldo Sérgio de Biasi. Arte de capa de Bruce Jensen. Brochura. A bela arte de capa de Jensen revela novos artefatos xenoarqueológicos abandonados pelos Construtores na galáxia humana, e caçados pela especialista Darya Lang, uma erudita de tais objetos, e seu companheiro mais rústico, Hans Rebka. O romance abre introduzindo um novo e excêntrico personagem, C. Indigo Tally, um androide com um supercomputador no lugar de cérebro, e que é ativado e colocado em movimento com a missão de investigar o ocorrido uma semana antes, no planeta binário que foi palco das situações de Maré de Verão (1990), o primeiro da série. Tally está a par com outros personagens talvez britanicamente excêntricos, criados por Sheffield para esta série. Onde vai, ele enche a paciência das pessoas e, depois de cortado, insiste: “Posso falar?” A investigação do propósito dos Construtores leva os vários curiosos até as imediações do gigante gasoso Gargântua (presente aí na colorida capa de Bruce Jensen), onde a equipe de heróis se depara com objetos que se pensava serem asteroides, mas que de fato são novas construções xenoarqueológicas.

A praia de Sheffield (desencarnado em 2002 de um tumor cerebral) era a ficção científica hard desenvolvida quase sempre com uma qualidade de estilo áspero mas plena de ideias de superciência e, às vezes, um toque pulp explícito de filme B. Em Divergência, esse toque está no cenário de labirinto de testes de inteligência armado por um representante cibernético dos Construtores, para avaliar as qualidades das civilizações que acabam chegando até ele, numa variação complexa do leitmotif da arena, na ficção científica. O teste para os heróis humanos e seus parceiros alienígenas inclui uma grupo de belicosos alienígenas com a forma de polvos ou medusas gigantes e que produzem, aos montes, bebês carnívoros insaciáveis. Todas essas qualidades da composição do romance exigem, digamos, um gosto adquirido por parte de um leitor que deve se esbaldar com aquilo que a FC realiza e que poucos ou nenhum outro gênero teria o interesse em reproduzir. Composta de cinco livros (Maré de Verão, Divergência, Transcendence, Convergence e Ressurgence), todos apresentado o mesmo grupo de exploradores idiossincráticos, no Brasil a série parou por aí, talvez por questão de gosto do público leitor, mais provavelmente vítima da crise econômica (hiperinflação, início do Plano Real). A própria Isaac Asimov Magazine, editada por de Biasi, havia terminado em 1993.

 

Quadrinhos

Arte de capa de J. Scott Campbell.

Marvel Saga: Espetacular Homem-Aranha Volume 1, de J. Michael Straczynski & John Romita, Jr. Barueri-SP: Panini Comics, 2020, 210 páginas. Apresentação de Fernando Lopes. Tradução de Mário Luiz C. Barroso. Arte de capa de J. Scott Campbell. Capa dura. Ainda estou perseguindo a escrita de quadrinhos de J. Michael Straczynski, o renomado roteirista de televisão e cinema, conhecido criador da série de space opera Babylon 5. A Panini resolveu facilitar minha vida colocando nas bancas uma coleção dedicada apenas aos roteiros dele, para as aventuras do meu super-herói favorito, o Homem-Aranha. Esse mesmo volume já havia saído antes como parte da coleção Marvel Graphic Novels, da Salvat do Brasil (nome oficial: “Ultimate Marvel Graphic Novel Collection”), edição 21, O Espetacular Homem-Aranha: De volta ao Lar (2013).

Na apresentação, o editor Fernando Lopes fala de como a vida do Aranha foi bagunçada nas páginas dos gibis de 1990, e de como o chefão da Marvel, Joe Quesada, chamou o editor Alex Alonso (ex-DC Comics) para pôr ordem nessa zona aracnídea. Straczynski vinha de uma experiência bem-sucedida com a sua criação Rising Stars para a Top Cow Publications. A mão sempre discreta e humana do escritor mostra um Peter Parker quebrando o galho com professor de ensino médio na mesma escola em que entrou em cena como adolescente supernerd, em 1962. Está envolvido com a comunidade, interessado no futuro dos seus alunos de baixa renda — o que eu acho muito importante nos super-heróis novaiorquinos, como o Demolidor e Luke Cage. Também está separado de Mary Jane Watson, que deu um tempo no casamento para perseguir sua carreira em Hollywood.

Como Aranha, ele é abordado por um tal de Ezekiel Sims, megaempresário que tem habilidades semelhantes às suas. O herói é alertado de que vem aí um caçador de superpoderes, e que é melhor fugir. Ezekiel também dá à origem do Aranha (e dos seus semelhantes, como Ezekil) um fundo místico animista que diverge da mitologia original do personagem, embora não proponha uma revisão total. Além disso, o confronto com o sombrio supervilão Morlun leva a uma das sovas mais duras já sofridas pelo herói — e, com isso, Tia May descobrindo o que o sobrinho apronta nas horas vagas: outra ousadia de Straczynski. Eu sempre demoro a entrar no espírito da arte estilizada de John Romita Jr., mas de qualquer modo, é a escrita de Straczynski o ponto forte do livro, seu modo de trabalhar as características conhecidas do personagem, e a narrativa propriamente. O máximo, para mim, é como — tendo ao fundo e com oposição conceitual o misticismo de Ezekiel e de Morlun — a ciência é que derradeiramente salva a vida do herói. (Especialmente depois de como o lado nerd dele foi tão diminuído nos filmes.)

 

Arte de capa de Lorenzo de Felici.

Oblivion Song Volume Dois: Entre Dois Mundos (Oblivion Song Volume Two), de Robert Kirkman (texto) & Lorenzo de Felici (arte). Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2020 [2019], 136 páginas. Tradução de Fernando Scheibe. Arte de capa de Lorenzo de Felici. Brochura. O primeiro desta série, discuti aqui em abril de 2019. Eu já dizia que a criação de Kirkman parecia ajustada para despertar o interesse de produtores de séries audiovisuais que ainda estivessem à procura do novo Lost (2004-2010), mesmo depois de The 4400 (2004-2007), Les Revenants (2012-2015), The Leftovers (2014-2017) e, mais recentemente, Manifest (2018-2021) e a norueguesa Beforeigners (2019- ). O determinante é o tema de FC e fantasia que poderíamos chamar de “transferência” (chamado exatamente assim, na história) — de uma dimensão a outra, de um mundo a outro, de uma ecologia a outra; ou de lugares estranhos para o nosso mundo. No pacote, estão a figura do cientista atormentado pelo experimento que levou à tragédia, o tema muito americano dos irmãos estranhados, e também paranoia governamental e monstros lovecraftianos. Tudo isso, amparado pela “estética do feio” presente no desenho de Lorenzo de Felici.

O ponto focal deste episódio é o retorno de Ed, irmão do cientista atormentado, Nathan Cole. Antes de ser transferido para o mundo paralelo, ele era um perdidão viciado em drogas — mas lá ele é o líder de uma comunidade que se firma em uma nova fronteira. Tem-se aí outro tema muito americano: o espírito pioneiro, a expansão territorial contra as uma natureza e a noção adjacente de que os obstáculos e a luta forjam o caráter e determinam a essência de um povo. Obviamente, seja neste ou no outro mundo, há um marcante conflito de interesses entre os irmãos. Um ponto forte deste volume são as cores de Annalisa Leoni.

Roberto Causo

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Leituras de Setembro de 2019

Na cesta de setembro, western, ficção militar e mainstream, não ficção sobre psicologia militar, poesia, livro para crianças e jovens, ficção científica de space opera em literatura e em quadrinhos. E mais…

 

The Bounty Hunters, de Elmore Leonard. Nova York: HarperTorch, abril de 2002 [1953], 324 páginas. Paperback. Antes de se tornar um consagrado escritor de ficção de crime, admirado por gente do mainstream literário por conta da sua excepcional habilidade com diálogos, Elmore Leonard começou escrevendo westerns. Oito desses livros foram publicados no Brasil, pela Editora Rocco. Tive chance de ler antes os ótimos Valdez Vem aí (Valdez Is Coming), adaptado para o cinema num filme com Burt Lancaster, e o meu favorito, Hombre, um filme com Paul Newman. O primeiro é um livro muito duro sobre um guarda civil veterano das escaramuças contra os apaches, que descarrilha as pretensões de ascensão de um rancheiro arrogante e violento. O segundo é uma joia a respeito da incomensurabilidade do Outro cultural (o herói anglo foi sequestrado e criado como apache), e que deveria ser ensinado nas faculdades de Letras. O crítico americano B. R. Myers afirmou que os westerns de Leonard estavam entre os seus melhores escritos, e lamenta a transição para uma ficção de crime supostamente sem a mesma força ou honestidade intelectual. Este The Bounty Hunters foi o romance de estreia de Leonard, e também está na coleção da Rocco, como Os Caçadores de Recompensas.

Os caça-prêmios aí são na verdade americanos caçadores de escalpos atacando apaches no México — e camponeses mexicanos morenos, na falta dos primeiros. O romance nos conta que o governo mexicano pagava 100 pesos por indígena morto, o escalpo sendo usado como prova. Um terrível relato da violência histórica da América Latina. O agenciador dessa canalhada é um oficial mexicano dos rurales, uma polícia militar dos rincões. Ele tem o nome sugestivo de Lama Duro — autoridade militar corrupta, de pés de barro. Os heróis, por sua vez, são o batedor Daniel Flynn e o Tenente Bowman, da cavalaria. Os dois deram azar de estarem servindo sob um coronel que se comportou de maneira covarde durante a Guerra da Secessão. São enviados pelo comandante ao território índio no México, oficialmente para encontrar um líder apache chamado Soldado Viejo — na verdade, para saírem do caminho do coronel, preferivelmente sendo mortos. O romance tem as qualidades que esperamos de Leonard, a prosa dura, a simpatia direta ou indireta pela cultura mexicana, os diálogos ríspidos e brilhantes. Mas o enredo e as situações parecem um pouco titubeantes. Sem dúvida, Hombre e Valdez Is Coming são narrativas mais fortes e seguras. Nos momentos finais, há uma correria para amarrar as pontas, trazendo o coronel cagão para o enfrentamento duplo entre apaches e caçadores de escalpos. Moralmente, o romance tem que se equilibrar na corda bamba para apresentar algum efeito conciliatório possível, diante das atrocidades que enumera. Leonard faleceu em 2013.

 

Arte de capa de Cathie Bleck.

A Farewell to Arms, de Ernest Hemingway. Nova York: Scribner, 1.ª edição, 1995 [1929], 332 páginas. Arte de capa de Cathie Bleck. Trade paperback. É notável que Hemingway tenha escrito este que é o seu segundo romance, seguindo a O Sol Também se Levanta (The Sun Also Rises), aos 30 anos de idade. Ele havia testemunhado a Primeira Guerra Mundial como tenente chefe de equipe de padioleiros, junto ao exército italiano. Foi ferido, passou tempo em hospitais. Muito dessa experiência ele explora no romance, assim como a de conhecidos e companheiros de armas. O tema do americano expatriado, convivendo com tipos diferentes de pessoas em territórios distantes, é uma constante em seus romances e contos. Em A Farewell to Arms, que existe no Brasil em várias edições como Adeus às Armas, Frederick Henry, um comandante de ambulância junto ao exército italiano durante aquele conflito convive com um padre e um oficial médico na retaguarda do front. As coisas começam a crescer na direção do fio principal do romance quando Henry conhece uma enfermeira inglesa, Catherine, por quem se apaixona e conquista, embora um dos seus amigos estivesse interessado nela.

Ferido enquanto aguardava entrar em ação no front, Henry vai parar em um hospital italiano e, em seguida, num recém-montado hospital inglês. É o primeiro paciente a chegar, e logo se instala como se fosse dono do seu quarto, onde recebe amigos e a amante, e onde esconde uma variedade de garrafas de bebida. Hemingway dá atenção à operação que ele sofre para curar o ferimento em seu joelho. Também à “vida de casado” com Catherine. Recuperado, Henry é mobilizado novamente, mas não chega ao front. Ele e sua ambulância são pegos em meio a uma retirada. A prosa esparsa de Hemingway mal disfarça a atmosfera pesada, de “tudo pode acontecer”. Em um episódio especialmente dramático, o herói, ainda em território italiano, é capturado por uma espécie de “milícia da vergonha”, que seleciona, interroga e julga sumariamente suspeitos de covardia perante o combate, executando-os ali mesmo. Situação que certifica Hemingway como influência sobre autores premiados como Cormac McCarthy e Charles Frazier (que tem milícia e episódios semelhantes em Montanha Gelada, ambientado na Guerra da Secessão). Depois do incidente, Henry consegue se evadir do conflito e reencontrar-se com Catherine, agora grávida dele, em um local neutro. A narrativa assume então aspectos mais costumeiro das narrativas de expatriados, como a de O Sol Também se Levanta (1926). Nesse ponto, o suspense surge em torno do parto eminente de Catherine.

A Farewell to Arms não fornecesse um panorama do conflito, pouco da suas peculiaridades, quase nada da vida da caserna ou da psicologia do militar. Também oferece poucas reflexões de um cunho mais filosófico. É o projeto literário do autor, de fazer recuar ou embutir aspectos emocionais ou reflexivos na ação e na descrição. O efeito retentivo explode com uma força cumulativa, quando reflexões como a seguinte surgem:

“Se as pessoas trazem coragem demais a este mundo o mundo tem que matá-las pra quebrá-las, então é claro que ele as mata. O mundo quebra a todos e depois disso muitos ficam fortes nos lugares partidos. Mas aqueles que não de deixam quebrar ele mata. Mata os muito bons e os muitos gentis e os muito corajosos imparcialmente. Se você não é nenhum desses pode ter certeza de que ele vai te matar também mas sem nenhuma pressa em especial.” —Ernest Hemingway, A Farewell to Arms.

Apesar das questões acima, com respeito à sua representação do conflito bélico, o romance é considerado um dos melhores a tratar da Primeira Guerra Mundial. Acredito que isso se deve mais às suas qualidades literárias e trágicas. Se o romance é uma tragédia e Frederick Henry um herói trágico, o leitor é convidado a imaginar onde está a sua “falha trágica”. Supor que esteja no fato de ele ter engravidado Catherine quando obviamente não devia parece fácil demais. Ele ter atirado em um desertor durante a retirada soa como uma complicação mais interessante. Por essa lógica, o herói trágico convidou a vida a quebrá-lo não por um excesso de coragem ou de bondade, mas por ter assumido a morte como trivial demais, mesmo no contexto da guerra.

 

Ernest Hemingway em Milão (1918).

 

Psicologia Militar: Aplicações Clínicas e Operacionais (Military Psychology: Clinical and Operational Applications), de Carrie H. Kennedy & Eric A. Zillmer. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, Coleção General Benício, 2009 [2006], 472 páginas. Tradução de Geraldo Alves Portilho Junior. Brochura. O estande da Biblioteca do Exército Editora é uma parada obrigatória para mim, sempre que vou à Bienal do Livro. Esta antologia de ensaios acadêmicos é resultado de uma dessas visitas, feita em 2018. “Psicologia militar” aqui não se trata da psicologia do militar, mas do exercício da psicologia no meio militar, e ainda, do know-how da psicologia militar em outras esferas. Um livro fascinante, mais ainda considerando o quanto a psicologia moderna deve ao conhecimento reunido e acumulado ao longo daquela cadeia de grandes conflitos bélicos que vão da Primeira Guerra Mundial até a Guerra do Golfo e a “guerra contra o terror”, passando pela Guerra da Coreia e a do Vietnã. Reiteradamente, os editores e os colaboradores assinalam a importância da psicologia militar para a prática da psicologia moderna, especialmente a dos Estados Unidos. Adquiri o livro porque me pareceu grande oportunidade para fundamentar melhor esse lado da vida militar, inevitável considerando o quanto o conflito armado produz resultados psicológicos adversos, nas minhas histórias das Lições do Matador. Por exemplo, em “Anjos do Abismo” (o inédito terceiro romance da série) há dois incidentes definidos como de saúde mental.

O subtítulo de Psicologia Militar menciona aplicações clínicas, que visam melhorar a vida do militar que apresenta problema de saúde mental, curá-lo, prevenir suicídio ou abuso de substâncias e de jogo; e aplicações operacionais, que visam manter o militar capacitado a realizar a missão. O livro traz um esboço histórico da psicologia militar, seguido dos ensaios, agrupados em duas partes: “Prática Clínica no Meio Militar” e “Psicologia Operacional”. Na primeira, abre o artigo “Introdução à Psicologia Militar Clínica”, que acentua como aspectos desse serviço se diferenciam da prática civil da psicologia:

“Há características únicas e específicas na prática da psicologia clínica em ambiente militar e que diferem das posturas tradicionais. Elas incluem diferenças distintivas no treinamento de residentes e membros, oficiais em funções provedoras, na influência do posto ou graduação no relacionamento terapêutico, em limites distintivos da confidencialidade, no inevitável dilema ético dos relacionamentos múltiplos e nas específicas necessidades de treinamento multicultural.” —Frank C. Budd & Carrie H. Kennedy, “Introdução à Psicologia Militar”.

O artigo seguinte traz histórico e características das avaliações de aptidão para o serviço militar, uma questão que vai além do momento do recrutamento, e sobre a qual a saúde mental tem implicações diretas — no Ciclo Pós-Retração Tadai, das Lições do Matador, por exemplo, o Almirante Túlio Ferreira não permite que Jonas Peregrino passe por uma avaliação psicológica, que poderia levar ao seu afastamento ou transferência. O serviço militar, especialmente num império como o americano, é uma atividade peripatética, que leva o profissional a diferentes localidades, e prevê a mobilização (o entrar em ação) como possibilidade constante. O artigo “A Psicoterapia Breve no Meio Militar nos Estados Unidos” explora como essas circunstâncias moldaram a necessidade de terapias de curta duração, enquanto “Psicologia de Saúde Clínica e Medicina Comportamental em Organizações Militares de Saúde” explora questões como o fumo, o controle de peso, e o gerenciamento de dor crônica e insônia. “A Prática Neuropsicológica no Meio Militar” nos lembra que o combate (e o treinamento para o combate) incorre no risco de traumas cerebrais, mas um dos seus tópicos é a neuropsicologia aeroespacial militar, que trata de pilotos de aeronaves de alto desempenho e sua seleção. Outros pontos de interesse discutem o uso de estimulantes e o mistério da Síndrome da Guerra do Golfo. Central no contexto de hoje, “Prevenção do Suicídio no Meio Militar” mostra como esse meio passou a se preocupar com o problema do suicídio — embora não mencione que entre 18 e 22 militares veteranos se suicide todos os dias nos EUA, mortalidade maior do que as baixas de combate incorridas durante as intervenções americanas no Afeganistão e Iraque e outros pontos quentes da “guerra contra o terror”. A teoria do “ferimento moral” também não é abordada no livro. O artigo seguinte aprofunda a questão da luta contra o abuso de substâncias e jogos de azar. É o último da primeira seção.

Aquela destinada à psicologia operacional inicia com um artigo introdutório específico, cuja abertura já nos conduz ao assunto das operações psicológicas (psyops) e da psicologia como amparo às ações e mobilizações de grande alcance:

“A global war on terrorism — GWOT (guerra global ao terrorismo) oferece à psicologia militar um tremendo desafio e a oportunidade de demonstrar a significativa contribuição que é prestada pelos psicólogos operacionais. … Isso ressalta a natureza variável do que é denominado ‘guerra assimétrica’, e o desafio que ela proporciona ao comandante e aos que vão liderar em combate … É na esfera desse desafio que psicólogos operacionais podem oferecer seu conhecimento e entendimento do comportamento humano a fim de auxiliar o comandante a ‘penetrar no círculo do sistema decisório do inimigo’ … Isso se torna ainda mais evidente na guerra assimétrica, na qual a tomada de decisão militar e as atividades de psicologia operacional podem ocorrer a centenas de quilômetros de distância, de forma semelhante, em certos aspectos, à época [sic] em que nossas Forças Armadas conduziam veículos pilotados remotamente para cumprir suas missões.” —Thomas J. Williams, James J. Picano, Robert R. Roland & L. Morgan Banks, “Introdução à Psicologia Operacional”.

Toca-se na questão dos interrogatórios e treinamento para prisioneiro de guerra, temor de armas de destruição em massa, e os autores não se esquivam de tocar na tortura e dos casos de Abu Ghraib e Guantánamo, embora rapidamente. É muito interessante o capítulo sobre “Estresse de Combate” e a história da terminologia. Não é brincadeira, e pode levar a baixas substanciais (incapacitação para o combate), até de uma baixa para cada cinco feridos em ação. Muito se recorda da guerra do Vietnã nesse capítulo, mas também se discute o choque cultural com civis no teatro de ação. Novamente, é conspícua a ausência do conceito do ferimento moral. O próximo capítulo, sobre treinamento de sobrevivência e evasão, recorda o célebre “Experimento de Stanford”, enquanto o seguinte, muito interessante, trata da psicologia dos terroristas, tratando-os sem pátina de condenação moral, lembrando que sua determinação os transforma em “um formidável inimigo”. O terrorismo de estado é lembrado, com o nazismo como estudo de caso (Hannah Arendt é mencionada). É interessante que o grupo Baader-Meinhof ainda seja o paradigma do terrorismo político, nesse artigo, enquanto o seguinte, “A Psicologia dos Terroristas da Al-Qaeda”, contextualiza muito bem as bases histórico-ideológicas desse grupo tão determinante no século 21. Também são interessantes os capítulos “Os Efeitos Psicológicos das Armas de Destruição em Massa”, “Crises e Negociações de Reféns” e “Intervenções Psicológicas Depois de Desastres ou Traumas”, com muito material a substanciar thrillers de ficção científica, histórias de fim de mundo e de pós-apocalipse. Para a FC, porém, o penúltimo capítulo, “Avaliação e Seleção de Pessoal Operacional de Alto Risco”, é especialmente interessante: trata de pilotos de caça e soldados de forças especiais. Vale lembrar que as operações especiais se tornaram a espinha dorsal da estratégia americana na guerra contra o terror, daí o capítulo figurar nesta seção do livro. Como as FE são secretas, o modo que os articulistas encontraram de se aproximar do perfil desses militares de elite foi recorrer aos perfis de astronautas.

“[Q]ualidades como inteligência, independência, adaptabilidade, flexibilidade, motivação, estabilidade emocional e falta de impulsividade eram necessárias para o sucesso. Mais tarde [identificou-se] 10 atributos necessários par ao sucesso em missões longas ou curtas: questões familiares (habilidade para lidar com longas separações da família), desempenho sobre condições estressantes, habilidade de viver com grupo (adaptabilidade multicultural e humor), habilidade de trabalho em equipe, autorregulação (estabilidade emocional), motivação, julgamento e tomada de decisões, consciência (realização, ordem e integridade), habilidades comunicativas (interpessoais, de apresentação e diplomáticas) e capacidade de liderança (determinação, flexibilidade e habilidade de motivar outros).” —James J. Picano, Thomas J. Williams & Robert R. Roland, “Avaliação e Seleção de Pessoal Operacional de Alto Risco”.

É só uma lista de qualidades, mas pode alertar o escritor brasileiro de FC a fugir daquele clichê dos “babacas no espaço” (dorks in space) tão típico de filmes e livros americanos, mais extrapolação das relações entre rapazes do high-school ou do college, do que expressão das exigências reais dos astronautas. Um dos ápices dessa tendência é o romance de Larry Niven, World of Ptaavs (1966), com um protagonista que é um piadista de fraternidade universitária… Em resumo, Psicologia Militar é um livro que cobre um terreno vasto e que pode embasar um tratamento psicológico mais sólido do soldado ou do astronauta, além de informar o leitor da complexa problemática do ambiente militar.

 

O Livro do Cemitério (The Cemetery Book), de Neil Gaiman. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2010 [2008], 346 páginas. Ilustrações internas de Dave McKean. Tradução de Ryta Vinagre. Brochura. Eu certamente não leio Neil Gaiman tanto quanto gostaria — e deveria. Afinal, fui muito influenciado nos primeiros momentos da minha atividade como escritor pelo tipo de fantasia contemporânea que chamo de “Além da Imaginação”, evidenciado por essa série de TV criada por Rod Serling, e Gaiman é um dos nomes principais da fantasia contemporânea hoje. Sinto muita falta de tornar a escrever esse tipo de narrativa, e ler Gaiman e alguns outros poderia muito bem me inspirar. Seus romances e livros de contos vão se empilhando aqui, esperando a hora e a vez.

Aqui, tem-se uma fantasia sombria para crianças e jovens. Como Gaiman costuma fazer, ele nos engana sutilmente quanto ao formato e a estrutura das suas narrativas. Inicia com um crime bárbaro, em que um assassino chamado “Jack” mata quase toda uma família. “Quase” porque o membro mais improvável da família é o sobrevivente: um bebê de um ano e meio, que, sem a supervisão dos pais mortos, foge do berço, do quarto e da casa, até chegar ao cemitério vizinho. Lá, é adotado por um casal de fantasmas — e pela comunidade de fantasmas, com a bênção, inclusive, da Morte (definida como uma bela mulher montada em um cavalo). O menino cresce ali, recebendo cuidados e instrução da população do lugar, e tendo como mentor um sujeito sombrio, entre vivo e morto, chamado Silas. O menino também vive como alguém entre essas condições. Tanto que é chamado de Ninguém Owens (“Nobody Owens”, que soa muito como “ninguém possui”) e assume poderes normalmente associados aos fantasmas, como desaparecer e atravessar matéria sólida. Muitos dos “habitantes do lugar” são tipos ingleses, como um poeta romântico, uma bruxa morta pela peste no século XIII, e até mesmo o guardião de uma tumba celta. Gaiman costura a caracterização do povo do cemitério e do romance como um conjunto de citações da história e da mitologia britânicas — desde a mística de Jack, o Estripador, à evocação de entidades imemoriais, a deusa celta do submundo (Epona? Rhiannon?) e sociedades secretas de esoteristas malévolos em luta contra uma equipe de justiceiros sobrenaturais. Com uns cinco anos, Ninguém faz amizade com uma menina próxima a ele em idade, e que, ao crescer, se convence de que ele fora um “amigo imaginário”. Adolescente, ela volta ao lugar e se reencontra com ele, para viver as aventuras finais do livro. Há um twist amargo no final, que tem muito a dizer sobre a natureza humana. O que parecia uma narrativa basicamente episódica adquire uma estrutura mais sólida, com o seu aspecto biográfico sendo o motivo da confusão inicial. Ao mesmo tempo, o horror parece ceder ao divertido e ao maravilhoso, para então retornar no final.

A infância melancólica é uma constante na obra de Neil Gaiman, desde sua estreia com o romance gráfico de 1987 Violent Cases (publicado no Brasil pela Editora Aleph), e alcançando um certo ápice criativo e atmosférico com O Oceano no Fim do Caminho (2013). Neste livro, ele trilha caminhos antes traçados por Ray Bradbury, mas onde Bradbury fazia uma releitura poética da imagética dos filmes B de Hollywood, Gaiman o faz em cima da cultura britânica. E onde a linguagem de Bradbury voava, Gaiman permanece mais sombrio e melancólico. De qualquer modo, temos em O Livro do Cemitério uma bonita celebração da solidariedade e da vida, por meio do tema da morte.

 

Cem Sonetos de Amor (Cien sonetos de amor), de Pablo Neruda. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2019 [1959], 122 páginas. Tradução de Carlos Nejar. Livro de Bolso. Meu filho Roberto Fideli me fez comprar este livro para ele quando fomos pegar o autógrafo de Fábio Kabral para o seu romance A Cientista Guerreira do Facão Furioso (2019). Leu e o deixou aqui em casa, e eu o peguei, disposto a conhecer mais da literatura latino-americana, com a finalidade de reforçar os aspectos culturais da minha série As Lições do Matador. O chileno Pablo Neruda (1904-1973) ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1971.

O livro e o seu conteúdo são dedicados a sua esposa Matilde Urrutia, e é dividido em períodos do dia: manhã, meio-dia, tarde e noite. Os sonetos aqui não são rimados e têm, todos, duas estrofes de quatro versos, seguidas de duas estrofes de três versos (tercetos). Evocam um clima litorâneo de Isla Negra, onde o casal viveu, e mencionam muitas vezes o sul do Chile. As imagens muitas vezes parecem opostas, mas se fundem com habilidade e engenhosidade, reforçando a relação de amor e ausência de amor que parece ter existido. As imagens que aparecem com maior frequência são mel, farinha, sinos, frio, Sul, mar, amor, pelos, mulher, cabelos negros. Por trás do enigmático e da evocação complexa, muitas vezes surgem imagens especialmente límpidas.

 

Arte de capa de Paul Lehr.

Trader to the Stars, de Poul Anderson. Nova York: Berkley Medallion, 1966 [1964], 160 páginas. Arte de capa de Paul Lehr. Paperback. O escritor americano de origem escandinava Poul Anderson criou na Technic Civilization Saga uma história do futuro com vários heróis, entre eles o militar e agente secreto Dominic Flandry, e o comerciante interestelar Nicholas van Rijn — protagonista deste livro que reúne três histórias em uma espécie de romance fix-up. A primeira, “Hiding Place”, o mercador do espaço é perseguido por piratas até uma região pouco conhecida do espaço, onde encontra uma nave desconhecida. Com avarias na sua própria nave, van Rijn precisa da ajuda dos tripulantes alienígenas para retornar em segurança. Mas eles se esconderam em meio à carga — um verdadeiro zoológico de animais alienígenas. É portanto de uma espécie de problem story em que o enigma é descobrir os tripulantes em meio à bicharada. O outro componente de interesse é a interação entre o patrão e os seus próprios tripulantes humanos, que inclui uma jovem curvilínea.

Van Rijn é descrito como um homem grande, obeso, glutão, beberrão e que fala um inglês macarrônico cheio de expressões coloridas e de erros criativos, que vê as mulheres como seres apenas decorativos, e nutrindo outras opiniões politicamente incorretas. É quase o contrário do aristocrático, atlético e artístico Flandry. Van Rijn é também um capitalista convicto, e na segunda história, “Territory”, tem chance de expressar o seu desprezo pelos governos e, especialmente, pelo altruísmo promovido pelos governos, em situação em que ele, sozinho, resgata uma cientista (também curvilínea) presa no choque entre bandos de nativos em conflito, enquanto ela dirigia uma empreitada de terraformação para prevenir que o planeta em que vivem passe por uma era glacial destruidora. Van Rijn emprega a sua astúcia, ajustada para um senso comum rasteiro e darwinista social, para garantir que os dois saiam vivos e que ele tenha lucros substanciais tirando os nativos da sua cultura original e jogando-os num capitalismo industrial e de troca de bens básicos.

Arte de capa de Antonio Jeremias, para a edição brasileira pela Livraria Francisco Alves Editora (1981).

O excerto de um livro fictício chamado “Margem de Lucro”, que explica como a liga dos mercadores se tornou a principal força de desenvolvimento da Technic Civilization, dentro de um ponto de vista estritamente libertariano. Na última história, “A Chave Mestra”, o mise-en-scène é asimoviano: van Rijn e um grupo de personagens conversam enquanto bebem, e dois deles narram suas aventuras em um planeta dominado por duas espécies inteligentes existindo em estranha cooperação. A noveleta se desenrola portanto como uma sequência de diálogos, com a questão central sendo a razão do ataque traiçoeiro aos humanos. Aqui, van Rijn (e provavelmente Poul Anderson) ventilam o seu darwinismo social libertariano, já que o mercador divide os dois povos alienígenas entre “animais selvagens” e “animais domesticados”. E também a humanidade, com os únicos humanos verdadeiramente livres sendo os comparados aos animais selvagens, e o resto a escravos/animais domesticados. Salgado demais para o meu gosto, que rejeita o darwinismo social.

Comecei a ler este livro na edição brasileira de 1981, pela Francisco Alves e a sua saudosa coleção Mundos da Ficção Científica, coordenada pelo escritor e crítico Fausto Cunha. Desisti porque cansei da pontuação excessiva do tradutor José Eduardo Ribeiro Moretzsohn. A capa de Antonio Jeremias feita para O Viajante das Estrelas (ao lado) é uma das com mais cara de ficção científica que o prolífico capista fez, mas tem mais de FC hard do que de space opera. Já a fabulosa arte original de Paul Lehr ilustra especificamente a primeira história, “Hiding Place”, evocando o exotismo do gênero sem representar nenhum elemento tecnológico, centrando-se na distorção da forma de animais conhecidos. O paperback que li pertenceu à biblioteca de Clóvis Garcia, um autor da Primeira Onda da FC Brasileira.

 

Arte de capa de Walter Ono.

The Big Debate, de Walter Ono (texto & arte). São Paulo: Edições da Lua, 2018, 32 páginas. Arte de capa de Walter Ono. Traduzido para o inglês por Helena Soares Hungria. Capa dura. Taira Yuji me passou este simpático livro do seu amigo Walter Ono, um conhecido ilustrador e escritor nipo-brasileiro de livros infantis, que já trabalhou com Flávia Muniz, Ruth Rocha e Ana Maria Machado. Traduzido para o inglês, foi produzido aqui no Brasil. Baseia-se em uma fábula zen sobre a personalidade dos debatedores influenciando a qualidade da comunicação. O protagonista é um leão que, como ocorre no mundo natural, cedeu o seu reino a um leão mais jovem e é forçado a vagar pelo mundo como um pensador solitário, de modos de aristocrata britânico, até que se instala em uma pousada na qual só podem entrar quem vencer um debate com ele.

O homem que aparece na capa é o caçador do leão, que o perseguia e que acabou contratado por ele para ser o gerente da pousada. O ratinho com o cajado é o Viajante de Terras Distantes. São eles os debatedores da história, já que, cansado, o Rei Leão deixou seu gerente debater por ele. Sua única condição era que debatessem em silêncio, para não perturbar seu repouso. Um se prova filosófico, e o outro, ignorante por trazer o debate para o próprio ego. O desenho de Ono, puxado para o cartoon, tem personalidade, é divertido, moderno, colorido e expressivo. Suas cores combinam o esmaecido e tons mais fortes, quando contribuem para o delineamento da forma. Eu achei o inglês aquém do desejado.

 

Looking Out for Alice, de Walter Ono. São Paulo: Edições da Lua, 2018, 32 páginas. Arte de capa de Walter Ono. Capa dura. Mais um livro em inglês de Walter Ono, este mais interessante para o leitor adulto e conceitualmente mais rico. Apoiado em As Aventuras de Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland; 1865) e Alice do Outro Lado do Espelho (Alice through the Looking Glass; 1871), de Lewis Carroll (Charles Lutwidge Dodson; 1832-1898), Ono convoca a Alice histórica, a morena Alice Pleasance Liddell (1852-1934), inspiradora da loura Alice das histórias, para protagonizar o seu inventivo livro. Alice Liddell é a mocinha que aparece na capa… Na criação de Ono, ao invés de ir para atrás do espelho, a moleca vai parar no mundo digital da internet. É desenhada a grafite, representando a inocência e ingenuidade do mundo real ao qual a personagem pertenceu. Já tudo o mais no mundo imaginário em que se encontra é produzido digitalmente, com grandes cabeçalhos pixelizados, diálogos em ziguezague conforme Charles Dodson tenta fazer contato com ela, e blocos de texto em scrolling. Tem algo da estética visual cyberpunk de primeira geração…

Há no livro elementos concretistas, jogos de palavras usando o jargão de internet, fotos, QR-code e clip-art tratadas para se harmonizar com a estética colorida das páginas, fechando com o famoso poema acróstico escrito por Carroll para a Srta. Liddell, e reproduzido, é claro, em inglês. Há alguns probleminhas com essa língua, que não deviam ter passado na revisão, já que o livro depende tanto das palavras. No todo, porém, Looking Out for Alice é um grande exercício de criatividade metalinguística, inteligente e divertido, do qual gostei muito.

 

Quadrinhos

Arte de capa e Frank Cirocco.

Série Graphic Novel 15: Legião Alien (Alien Legion), de Alan Zelenetz (texto) e Frank Cirocco & Terry Austin (arte). São Paulo: Abril Cultural, setembro de 1989, 66 páginas. Arte de Capa de Frank Cirocco. Álbum. Space opera! Space opera! Space opera! O sucesso da primeira trilogia de Star Wars (1977, 1980 e 1983) transformou esse subgênero da ficção científica em uma constante no cinema, na TV, nos games e nos quadrinhos. Esquadrão Atari, por exemplo, foi uma HQ que me cativou por um momento, lá mesmo na longínqua década de 1980. Outro exemplo é este Legião Alien, criado por Carl Potts e escrito por Alan Zelenetz.

O objetivo da criação de Potts é mais uma vez empregar à mística da Legião Estrangeira da França. Na ficção científica literária, o americano William C. Dietz buscou o mesmo filão na série Legion of the Damned, como já vimos aqui. A Legião Estrangeira é uma força de infantaria de elite, que aceita gente de toda parte, com ou sem passado e sem fazer perguntas. É fácil entender, portanto, o apelo visual e narrativo em se projetar a mesma lógica para um contexto galáctico com uma tropa composta de alienígenas de todo tipo. A história “Um Dia para Morrer” abre com um prólogo em que novos recrutas visitam o museu da Legião para celebrar as suas velhas glórias. A história propriamente começa com uma simulação virtual de combate que explicita uma relação de mentor e discípulo entre o Capitão Sarigar, um alienígena dotado de uma cauda enorme e nenhum membro inferior, e o Tenente Torie Montroc III, de família aristocrática forçado por seu pai a ingressar na Legião para “virar homem”. Sarigar é um implacável líder de combate, enquanto Montroc ainda tem escrúpulos morais a serem esmagados pela dura realidade da guerra. O restante a equipe de Montroc inclui um telepata de quatro braços, um ex-gladiador, um ladrão e trapaceiro, e um magoado E.T. que perdeu a namorada para outro. Depois de uma pancadaria num bar, essa turma se oferece como voluntária para uma missão que incomoda Montroc na sua moralidade — assassinar o líder dos tecnoides, um grupo que abdica da condição biológica  para assumir corpos robóticos. Uma vez no planeta dos tecnoides, Montroc fica sem sua equipe, capturada por esses pós-humanos. Enquanto seus homens são torturados e lutam para escapar, o oficial precisa decidir se fará o atentado sozinho ou não. O clímax está não apenas na fuga dos legionários, mas no confronto entre Sarigar e o seu antigo mestre, transformado no líder do inimigo. Claramente, a situação da Legião é a de ser usada cinicamente pelas autoridades, e enquanto Sarigar se conforma e dedica toda a sua lealdade à Legião, o seu antigo mestre revoltou-se. A única coisa que resta aos legionários é cuidarem apenas da honra e da mística da sua corporação, no plano miúdo da honra entre os companheiros, e no plano maior, do comprometimento da própria Legião. A arte de Cirocco é muito boa, ágil e arejada. Os trajes da Legião devem algo ao traje de assalto de Cody Starbuck, de Howard Chaykin, e às armaduras dos stormtroopers de Star Wars. Tanto na estética quanto na dureza da história, Legião Alien lembra as HQs inglesas da revista Ano 2000, que também foi vista no Brasil na década de 1980.

Mês passado eu já havia falado da Série Graphic Novel da Abril. Este número 15 eu adquiri em bom estado em um sebo na Rua Riachuelo, Centro Velho de São Paulo e perto de onde minha esposa Finisia Fideli trabalha.

 

Arte de capa de Mathieu Bablet.

Shangri-La, de Mathieu Bablet. São Paulo: SESI-SP Editora, 2018 [2016], 224 páginas. Tradução de Fernando Paz. Arte de capa de Mathieu Bablet. Formato grande. Meu filho adquiriu com desconto este livrão de quadrinhos, do tamanho de um livro de arte, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, e o deixou largado aqui em casa. Como se trata de uma ficção científica europeia, eu o peguei por curiosidade, já que não tinha referência alguma a respeito. Acabou sendo uma das minhas leituras de quadrinhos mais interessantes, em anos recentes.

A narrativa acontece em um futuro relativamente distante. A humanidade abandonou uma Terra devastada pela guerra e pela degradação climática. A população se aglomera em uma gigantesca estação espacial, a USS Tianzhu — nome da empresa que controla a vida de todos a bordo, atrelando trabalho a consumo e consumo a lazer. É portanto de uma distopia, com a sociedade arregimentada em níveis profundos, vigilância dos cidadãos e formas de extravasamento violento integradas à sua estrutura. Nossos animais domésticos, cães e gatos, foram elevados e formam uma subclasse, os “animaloides”, que concentra o ressentimento e a agressividade social humana. John, um cão animaloide, é o principal símbolo desse estado de coisas. Um dos heróis, Scott Peón, é símbolo da arregimentação do trabalho: é um engenheiro e astronauta que se contenta em realizar os desígnios do regime, um convicto “peão” que rejeita os questionamentos do seu irmão Virgílio, de quem está estranhado. O líder rebelde Sunshine representa a revolta ajustada ao sistema, e ele mesmo (ou ela mesma) sabe disso. Um dos pontos mais interessantes está na economia baseada no comércio de smartphones e tablets, de modo que esta FC me pareceu ser uma das primeiras a tratar dessa terrível combinação que vivemos hoje, de alienação por via da tecnologia de redes sociais, e da exploração internacional do trabalho marcada pela “economia híbrida” da China deste nosso século 21. Daí, certamente, o nome Tianzhu Enterprises, da empresa controladora da humanidade. Conforme Scott vai derivando na direção dos rebeldes e da reconciliação com Virgílio, ele se depara com uma encrenca em particular: a utilização de antimatéria pelos cientistas do projeto Homo stellaris, que se empenha em criar um ser humano capaz de começar do zero na superfície de Titã, a lua de Saturno. “Tianzhu” significa “Senhor dos Céus” ou “Deus” em chinês, e o que temos aí é o ser humano, frustrado com o seu destino até aqui, bancando Deus. Bablet tem um desenho que se esmera nas representações de ambientes tecnológicos, máquinas, robôs e naves, ao mesmo tempo em que sua figura humana é altamente estilizada. Daí as comparações com o mangá, os quadrinhos japoneses, embora a estilização dos personagens cause mais estranhamento do que se vê no mangá. A denúncia do hubris em torno da criação da vida pela ciência lembra aquela de Akira de Katsuhiro Otomo. Também como os japoneses — e eu penso especificamente em Tsutomu Nihei —, Bablet não tem problemas em deixar muitos quadros e até páginas sem balões, em uma ação muda. Ao mesmo tempo e ao contrário da maioria das HQs americanas, seus personagens às vezes se dedicam a longos monólogos e se mostram capazes de filosofar. O enredo certamente é rico e interessante, mas a parte científica, que colocaria Shangri-La mais próximo da FC hard, me soou problemática: não entendi a necessidade da exploração da antimatéria, para o projeto do Homo stellaris. Física de partículas e engenharia genética não se casam muito bem aqui, embora a questão da antimatéria seja essencial para o sub-enredo envolvendo Scott e Virgílio. Conforme a ação segue acelerada rumo à catástrofe, o destino dos humanos criados para viver em Titã sugere que a humanidade, mesmo a artificial, criada para ser perfeita, nunca será capaz de lidar com a questão da vida e da morte, os limites da condição humana. Shangri-Lá é uma ficção científica dura e pessimista, mas que fornece uma experiência de leitura forte e envolvente, e muita matéria para reflexão.

 

Príncipe Valente 1943, de Hal Foster. Editora Planeta deAgostini, 2019, 62 páginas. Tradução de Carlos Henrique Rutz. Introdução de Pablo Kurt Rettschalg Guerrero. Capa dura. Neste volume, o tempo que Valente passou combatendo os hunos com táticas de guerrilha lhe serve bem nas ações contra os vikings no norte do reino, acompanhados dos cavaleiros do Rei Arthur. Vitorioso, ele troca o sorriso sarcástico de faca  nos dentes pelo seu lado romântico, saudoso do fantasma que assombra o seu coração — a visão da loura princesa Aleta. Novamente em busca de orientação, ele retorna aos pântanos de sua infância, e consulta-se uma vez mais com a bruxa que o havia amaldiçoado com aventuras sem descanso e sem amor amor ou felicidade. A tentativa subsequente de visitar o Mago Merlin resulta nele sendo presa de várias armadilhas do conselheiro do rei — humilhação que devolve em dobro em um episódio cômico e explosivo. Em Camelot, encontra um Sir Gawain entregue ao mau comportamento, o que o faz se afastar rumo a Thule, o reino do seu pai. Nas páginas seguintes, ele livra o countryside bretão de um bando de ladrões liderados por um falso frei. A violência desse trecho dá lugar a um episódio terno em que Val e seu escudeiro elevam o moral de um menino camponês e de um cachorro de três patas. Valente chega ao litoral e, após alguns encontros resolvidos na ponta da espada, embarca em um navio e conhece novos companheiros, entre eles um mercador tunisiano, um bocudo guerreiro saxão, e uma donzela assediada por um nobre arrogante. Na viagem, flertes, um duelo, mar revolto, um incêndio a bordo e o naufrágio. A catástrofe revela pontos fracos e fortes dos passageiros, e a aventura desvela emoções um pouco mais profundas e situações dramáticas mais sinceras.

Algo que este volume evoca é uma elegância artística e narrativa. Ela só tropeça lá pelo meio do volume, pouco antes do encontro com uma lula gigante. Mais tarde, ao chegar a Thule, Val traz notícias das más intenções de Valgrind, que se dirige ao reino sob o falso pretexto de realizar um acordo de paz. É a astúcia do rapaz que remove a pele de carneiro do vilão. O restante do volume se dedica a descrever como a jovem aristocrática Ingrid tortura emocionalmente o companheiro saxão que Val conheceu no navio, Eric — o casal se mostrando como personagens especialmente humanos nessa sequência. Enfim, o volume fecha com novas encrencas se avizinhando, e Valente sofrendo um acidente de caça, que o coloca, ferido, nas mãos de uma loura e alta caçadora.

—Roberto Causo

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Leituras de Fevereiro de 2019

Só livros de brasileiros lidos em fevereiro, quando resolvi atacar a pilha de títulos aguardando leitura, alguns há um bom tempo. Inclui ficção científica, fantasia, horror e poesia de cordel. Há também um brasileiro na minha leitura de quadrinhos nesse mês.

 

Sob o Trópico de Capricórnio, de Pedro Carcereri. Belo Horizonte: Letreramento, 2018, 98 páginas. Brochura. Nelson de Oliveira me passou este romance curto do roteirista e cineasta Pedro Carcereri. É uma ficção científica dentro do subgênero distopia, muito em voga na literatura dos millennials e muito significativo hoje em dia, diante do quadro político atual. Mas aqui temos, rascunhado em traços rápidos e num estilo mais introspectivo, fusão de preocupações atuais e o tom das distopias brasileiras da década de 1970 — o Ciclo de Utopias e Distopias, dentro da ficção científica nacional. Isso provavelmente é mais resultante das escolhas pessoais de Carcereri, do que de uma pesquisa ou leitura prévia de trabalhos de autores como Ignácio de Loyola Brandão, Ruth Bueno, Silveira Júnior ou Mauro Chaves.

Também é interessante que o autor empregue temas bastante recentes e relevantes, nestes tempos de globalização: alimentos transgênicos por toda parte e a proibição estrita do plantio de qualquer coisa que o governo centralizado desaprove; o cultivo de plantas e a criação de animais não-transgênicos, como meio de resistência político-econômica. O premiadíssimo The Windup Girl (2009), de Paolo Bacigalupi, aborda tema nessa linha, projetado para um futuro de construção mais rica. A ideia de “vales” em que comunidades agrícolas guardam um princípio utópico está em Sob o Trópico de Capricórnio e também no romance tupinipunk do político verde Alfredo Sirkis, Silicone XXI (1985). A novela de Carcereri começa na Zona Oeste de São Paulo (exatamente a região em que eu moro), com o protagonista Daniel sendo sequestrado por um desses grupos de resistência. Ele acaba cooptado por eles para realizar uma ação em particular, e o grupo se move pelas ruas de Sampa para realizá-la, mas com o aparelho repressor em cima deles. A história tem muito movimento, com os personagens viajando por São Paulo Capital e Interior, como na novela pós-apocalíptica A Terceira Expedição (1987) de Daniel Fresnot. Mas o final é abrupto, como se o livro fosse a primeira instância de um trabalho maior ou de uma série a ser desenvolvida.

 

Quatro Soldados, de Samir Machado de Machado. Porto Alegre: Não Editora, 2013, 320 páginas. Brochura. O escritor gaúcho Samir Machado de Machado me enviou este seu romance um ou dois anos depois do seu lançamento. Com três leitores compulsivos na casa, o livro acabou passando de mão em mão e desapareu. Ano passado, Christopher Kastensmidt me recomendou o livro om muita ênfase, e passei várias semanas procurando-o sempre que surgia um momento livre. Como acontece invariavelmente nesses casos, achei o livro quando não o procurava. Valeu muito a leitura, de qualquer modo. De fato, este é um romance que, com vênia para o fato de ele poder ser lido como uma apropriação histórica ficcional muito própria da ficção pós-modernista, pode ser visto com um marco da fantasia brasileira. Fantasia histórica, é claro, por ser ambientado no Sul do Brasil do século 18.

Há três coisas meio que obrigatórias, na ficção pós-modernista que se estabelece na segunda metade do século 20, e que a gente encontra no romance de Machado de Machado: metaficção (a ficção que comenta a ficção), um espírito brincalhão ou iconoclasta, em torno da forma ou do assunto, e a fragmentação da narrativa. O romance é divido em quatro livros ou partes. Longas epígrafes precedem cada uma dessas partes. Em outros trechos, há uma reprodução da dicção e da grafia arcaica do português de então. O primeiro soldado foi abandonado pelo pai e acabou recrutado. A caminho de uma missão jesuíta, são perseguidos por uma criatura monstruosa até um labirinto. Desaparecidos, são seguidos pelo seu comandante, que tem melhor sorte contra o monstro. A narrativa corta então para contar o que houve com o jovem sobrevivente, que foi abrigado por um inventor e erudito que apresenta a ele a obra de Shakespeare — e um discurso literário elitista. O segmento termina com a chegada do oficial pronto para o resgate. Na segunda parte, o soldado resgatado encontra-se com mais um erudito, mas livre-pensador, irônico, boêmio e com a característica incomum de enxergar melhor no escuro do que a maioria das pessoas. O elemento fantástico surge como um novo monstro, que os dois enfrentam em subterrâneos lovecraftianos de clima pesado e descrições arrepiantes. Na terceira parte, o oficial que aparece na primeira é tratado com mais profundidade, na narrativa que investiga a sua infância e juventude, enquanto ele se coloca no caminho de um assassino psicopata em missão secreta dos poderes coloniais, num episódio com direito à aparição da versão gaúcha do anhangá. Na parte final, ficamos sabendo mais sobre o psicopata, e retornam o homem dos olhos especiais e um enredo de mistério criminal. A força da criação de Samir Machado de Machado está na textura e na evocação, no toque transformador do estranho e do sobrenatural, e na estrutura narrativa engenhosa. Mesmo tendo em mente que esta edição do seu romance se beneficiaria de mais um polimento, Quatro Soldados vai para a mesma prateleira com O Caçador de Apóstolos (2010), de Leonel Caldela, e A Bandeira do Elefante e da Arara (2016), de Christopher Kastensmidt, dos romances brasileiros de fantasia mais destacados dos últimos anos.

 

Arte de capa de Mozart Couto.

As Horripilantes Narrativas Alimentares do Clube Canibal, de Júlio Emílio Braz. São Paulo: Devir Brasil, 2018, 96 páginas. Arte de capa de Mozart Couto. Brochura. O autor mineiro Júlio Emílio Braz começou escrevendo roteiro de quadrinhos para revistas e fanzines na década de 1980. (Mozart Couto, o artista da capa, é um dos mais experientes e respeitados desenhistas de quadrinhos do Brasil.) Eu tava lá, eu vi. Ele teve uma experiência escrevendo westerns de bolso, sob pseudônimo, para a Cedibra, depois fez o salto para a literatura infanto-juvenil, onde encontrou fama e sucesso como um autor afro-brasileiro respeitado nacional e internacionalmente, ganhando um Jabuti com o seu livro de estreia em 1988. Mesmo nos seus livros para jovens, ele costuma ser bastante duro. Este livro sobre canibalismo certamente não passaria como literatura juvenil.

O título e os textos de abertura dão a entender que as histórias reunidas no livro formam um conjunto coeso em torno do tema do clube canibal. Como as histórias são ambientadas em Porto Alegre, é possível que Júlio Emílio tenha se inspirado no caso dos “Crimes da Rua do Arvoredo” naquela capital, ocorridos entre 1863 e 1864 e envolvendo um trio de assassinos e o açougue de um deles. Meu pai costumava citar esse caso para embasar a sua pouca fé no ser humano…

A falta de um índice com os contos reforça a ideia de que o livro deveria ser lido como uma espécie de novela fix-up. Na minha leitura, porém, não é o que acontece e os seis textos ficcionais acabam tendo uma individualidade maior do que o necessário para isso, mesmo com todos eles narrados na primeira pessoa. Em uma das histórias, por exemplo, uma mulher traída serve ao marido a amante dele — mas nada do clube. Na história seguinte, sim; um serial killer é contratado para abastecer a associação. No próximo conto, o narrador cínico cede ao narrador horrorizado ao descobrir que seu noivado com uma aristocrata rural de origem germânica vai ser celebrado com um terrível ritual, mas aí não se trata do mesmo clube. O mesmo acontece na última história, narrada por um agente funerário que se envolve com uma família de canibais, mas não germânica e sim espanhola. De qualquer modo, o livro é efetivo tanto em criar um clima pesado apropriado ao gênero, quanto em evocar o horror do canibalismo. Há também uma atmosfera de sordidez urbana brasileira que casa muito bem com o projeto. Júlio Emílio Braz teve um conto incluído ano passado na antologia As Melhores Histórias Brasileiras de Horror (Devir Brasil), editada por Marcello Simão Branco & Cesar Silva.

 

A Eva Mecânica e Outras Histórias de Ginoides, de Daniel I. Dutra. Praia Grande-SP: Editora Literata, 2013, 126 páginas. Prefácio de Gerson Lodi-Ribeiro. Brochura. Conheci Daniel Dutra na Odisseia de Literatura Fantástica de 2013, onde adquiri seu livro de contos com o tema da fembot ou ginoide (o feminino de “androide”). As histórias dialogam com os contos do pioneiro da FC brasileira Berilo Neves (1899-1974), best-seller no seu tempo com contos e crônicas publicadas em revistas e jornais e reunidas em livro. Neves frequentemente brincava com o que a tecnologia faria em termos de alteração do comportamento sexual e social humano, se, por exemplo, homens e mulheres artificiais fossem inventados, ou uma encubadora que permitisse a reprodução fora do útero.

Com mais sofisticação, Dutra tenta examinar que transformações a introdução das ginoides trariam à sociedade humana. No prefácio, Gerson Lodi-Ribeiro conta que tudo começou com a publicação de “A Mulher Imperfeita” na antologia de histórias originais organizada por ele, Erótica Fantástica 2 (Editora Draco, 2012). Mas obviamente Dutra já visava um livro com o tema, pois submeteu ao todo quatro histórias para a antologia. As quatro estão no livro, junto com outras quatro. “A Eva Mecânica” é relativamente curto, narrado em primeira pessoa, e conta como o narrador recorreu a um contrabandista para garantir a sua ginoide, já que não se qualificava para possuir uma. No fim, descobre que depositara o seu afeto em um produto falsificado. Há uma certa ironia aí, de que a valorização da mulher mecânica não passa de projeção do macho da espécie. O conto parece estar aí mais para apresentar o histórico da inovação tecnológica sobre o qual o livro especula. Vem então “A Substituta”, também em primeira pessoa: o narrador mata a esposa em uma briga de casal, confessa a um amigo que revela ter substituído sua mulher por uma ginoide, e oferece a ele essa possibilidade, com resultados trágicos. Há aí ecos do romance de Ira Levin, As Possuídas (The Stepford Wives, 1972), segundo Lodi-Ribeiro assinala no prefácio. A terceira história, “Ela, a Ginoide”, abre com as Leis da Robótica de Isaac Asimov, e narra como uma ginoide-babá foge dessas leis — “enlouquecida”, mata a todos os que lhe parecem ameaçar sua protegida. “A Mulher Imperfeita” é mais filosófico e explora os sentimentos que levariam um homem comum a priorizar a mulher artificial sobre a natural, e também outras situações de relacionamentos poliamorosos por causa do excedente de humanas disponíveis, agora que elas têm de concorrer com as máquinas. “Veronica Lake Fake” satiriza um movimento pelo “amor cibernético”, contrário à proibição das ginoides; “A Casa da Dor” se apresenta como um depoimento colhido no julgamento de um homem que descarrega secretamente seus impulsos sádicos nas mulheres artificiais; e em “Sabine”, uma mulher idosa usa um aparato de realidade virtual para experimentar uma vida mais jovem como uma ginoide. A noveleta “A Última Mulher da Terra” dialoga diretamente com o conto de Berilo Neves, “A Última Eva”, que Braulio Tavares incluiu na sua antologia Páginas de Sombra: Contos Fantásticos Brasileiros (Casa da Palavra, 2003).

Imagino que exista uma variedade de modos em que se pode assumir uma postura crítica feminista na literatura, para além da representação positiva ou idealizada da mulher. Histórias que expõem as ilusões ou vícios do comportamento masculino, por exemplo — como “A Mulher Imperfeita” e outros momentos em que os homens não estão bem na foto, nos contos de Dutra. E também histórias que expõem as ilusões ou vícios do comportamento feminino — como “A Última Mulher da Terra”, em que a última mulher, salva de uma cápsula criogênica secreta na Amazônia, é uma bisonhona cheia de ilusões sobre seu apelo perante homens que vivem há séculos só com ginoides. Lendo suas histórias depois das histórias de Angry Candy, do qual tratei mês passado, me ocorreu que Harlan Ellison também usa dispositivos semelhantes para revelar os azares dos relacionamentos humanos. Falta a Dutra, porém, menos adesão às fôrmas alegóricas das suas especulações, e justamente mais ironia para temperar as narrativas. Parte da produção contística de Berilo Neves cabia no tema da “guerra dos sexos”, que também apareceu na noveleta “Éden 4” (2001), de Alexandre Raposo, na qual um astronauta é revivido milhares de anos no futuro, quando não existem mais homens na Terra.

 

Os Domínios do Rei Peste, de Evaristo Geraldo. Fortaleza: Edição do Autor, junho de 2015, 16 páginas. Folheto. Evaristo Geraldo foi outro cordelista a quem Braulio Tavares me apresentou no maravilhoso estande do IMEPH na Bienal do Livro de São Paulo, em 2018. Assim como Rouxinol do Rinaré fez com o seu A Sombra do Corvo, Evaristo Geraldo se inspira em um texto de Edgar Allan Poe, desta vez um conto de horror, “O Rei Peste” (“King Pest: A Tale Containing an Alegory, 1835). Na história, que não é uma das mais famosas do celebrado escritor americano, dois marinheiros malandros vão parar em um bairro de Londres que concentrava os doentes da peste. Inadvertidamente, a dupla, descrita como um cara muito alto e o outro um anão, deparam-se com uma bizarra cena que se desenrola em uma funerária. O poeta brasileiro desenvolve um certo humor, até que o clima de horror se fixa nessa cena em especial, muito bem expressa no poema.

O cordel é completado por um segundo poema narrativo de Evaristo Geraldo, “O Camponês Ganancioso”.

 

 

Arte de capa de Maércio Siqueira.

A Árvore de Todos os Frutos (Lenda Indígena), de Evaristo Geraldo. Alto Santo-CE: Edição do Autor, setembro de 2017, 12 páginas. Arte de capa de Maércio Siqueira. Folheto. Evaristo Geraldo retorna aqui usando uma lenda indígena como inspiração para o seu cordel, representada na xilogravura de Máercio Siqueira. Um elogio à cultura indígena abre o poema narrativo, que conta do amor da Lua pelo Sol. Um eclipse possibilitou a união amorosa dos dois corpos celestes. Um curumim foi o fruto desse encontro, Macunaíma, incumbido de proteger uma árvore que dava todos os frutos encontrados na floresta. O herói mágico distribuía os frutos aos homens e mulheres dos Macuxis, de acordo com sua sabedoria — registro lendário daquilo que os antropólogos chamam de “chiefdom“, o domínio do chefe que exerce esse direito a partir de um capital simbólico que o autoriza a organizar a sociedade. Mas o povo ganancioso passa por Macunaíma e ataca a árvore pensando em plantar um pomar a partir dos seus ramos. Mas ela morre, privando o povo da sua magia e fazendo o herói reagir com uma fúria que incendeia a mata e transforma trechos da floresta em rochedos estéreis. O tom do poema é mais solene e captura bem a lógica lendária dos mitos.

 

Quadrinhos

 

Arte de capa de Marini.

Arte de capa de Marini.

Batman: O Príncipe Encantado das Trevas, Volume 2 (Batman: The Dark Prince Charming Volume 2), de Marini. Barueri-SP: Panini Books, 2018. Arte de capa de Marini. Álbum capa dura. A investida do artista francês Enrico Marini na mitologia de Batman, criado por Bob Kane & Bill Finger, termina com este segundo volume. A qualidade da arte e da narrativa se mantém, enquanto a luta de Bruce Wayne para resgatar a menina Alina, que pode ser sua filha, das garras do Coringa engata a terceira marcha. Como Batman, Wayne patrulha as ruas, ataca uma gangue de motoqueiros tietes do Coringa. Mas é o supervilão, descrito como um psicopata que mata em rompantes, quem precipita as ações, e enquanto não assassina seus colaboradores como alívio de tensão. Ele aborda o multibilionário Wayne para que ele adquira um colar de diamantes — sonho de consumo da sua namorada Arlequina (Harley Queen). No meio do caminho, a joia vai parar nas mãos da ladrona Mulher-Gato, que mais tarde segue Batman até o local do desenlace da história. O interessante dessa sequência final é como, feito um malabarista habilidoso, Marini faz com que todos os personagens participem da ação: Batman, Coringa, o mordomo Alfred, a Mulher-Gato, Arlequina, o palhaço anão e suicida Archie, e a própria Alina. A menina, em particular, demonstra ser cheia de recursos. Isso não só traz maior interesse para o desfecho da minissérie, como também funciona como prenúncio do final surpresa — que sugere que ela pode não ser de fato filha de Bruce Wayne. O desenho e o uso de cor e tonalidade por Marini continua deslumbrante, mesmo que neste segundo volume ele não tenha realizado painéis duplos de tirar o fôlego, como no primeiro. Em sua aventura dentro da mitologia de Batman, Marini levou algo da dualidade da sua série Gypsy, cujo herói hiperviolento faz o que for necessário para proteger uma menina inocente — irmã menor, em Gypsy; suposta filha, aqui.

 

Arte de capa de Darrick Robertson.

Astronauts in Trouble: Live From the Moon, de Larry Young (texto), Charlie Adlard e Matt Smith (arte). San Francisco, CA: AIT/Planet Lar, 2.ª edição, 2001 [1999], 144 páginas. Introdução de Warren Ellis. Arte de capa de Darrick Robertson. Trade paperback. Folheei este livro de quadrinhos várias vezes na loja Terramédia (hoje Omniverse), e o desenho que empresta recursos do autocontraste nunca me passou muita confiança. Me convenci a comprá-lo por causa da recomendação de Warren Ellis, no seu livro de não-ficção Come in Alone. Ellis assina a introdução do livro, onde reafirma a sua paixão pela astronáutica, algo também presente na sua ótima HQ Ministério do Espaço (Devir Brasil).

A história criada por Larry Young, primeiro publicada em 1999, é ambientada em 2019, quando o pouso da Apollo 11 na Lua faz cinquenta anos. Nela, uma equipe de telejornalismo é envolvida na fuga de um megaempresário para o satélite natural da Terra, depois que as suas indústrias são atacadas por supostos ecoterroristas. Aos poucos, o empresário se mostra uma espécie de supervilão como um Dr. No, de 007, pronto para chantagear o mundo depois de conquistar o derradeiro terreno elevado — a Lua. Ele até patrocinara a suposta organização terrorista contra si mesmo, para lhe dar a desculpa para fugir para o satélite, sem supervisão governamental. Embora apareçam senadores corruptos na história, o executivo do governo americano nunca é acionado. Num truque narrativo estranho e bizarro, é uma espécie de máfia que lança uma trinca de misseis contra a Lua. O ápice da de Astronauts in Trouble divide-se entre o empresário e a equipe televisiva, tentando escapar do ataque. A narrativa é irônica e divertida, com muitas referências à cultura popular em diálogos extensos, mas é às vezes confusa e eclíptica. O fato do artista Matt Smith ter abandonado o trabalho nas páginas finais, assumidas por Adlard, não ajudou. De qualquer modo, passado o estranhamento inicial, a arte acaba sendo envolvendo o bastante. Fecha o livro uma história independente da narrativa principal, em que macacos tripulando cápsulas em voos-teste dão espaço para o humor sarcástico de Larry Young. O livro reitera a importância da iniciativa privada nas histórias de FC de viagem interplanetária, algo firmado pelo escritor Robert A. Heinlein e pelo editor John W. Campbell, Jr. O ano de 2019 com o cinquentenário da Apollo 11 está aí, e o megaempresário Elon Musk já anunciou seu desejo de chegar à Lua “o mais cedo possível”.

 

Ate de capa de Danilo Beirut.

Astronauta: Entropia, de Danilo Beyruth. Barueri, SP: Panini Books, 2018, 98 páginas. Arte de capa de Danilo Beiruth. Álbum. Mais astronautas pra nóis, no quarto álbum da série criada por Danilo Beiruth para a Maurício de Sousa Produções, em sua linha de “graphic novels“. O terceiro, eu discuti aqui em junho de 2017. Nele, o Astronauta foi apresentado à uma versão dele mesmo e de sua família, formada em um universo paralelo, e acaba ficando com a filha adolescente, Isabel.

Os dois estão perdidos em uma região inexplorada da galáxia, sem contato com a agência espacial do Astronauta, a BRASA. Isabel sugere que eles busquem sinais de civilizações alienígenas que possam lhes dizer onde estão. Encontram um sinal e chegam a um aglomerado de naves espaciais, o Sargaço, habitado por náufragos e piratas em conflito. Os dois são pegos nessa guerra e acabam separados. Astronauta faz um trato com a liderança dos piratas, e vai com a bela alien Shie’r — que mais tarde se revela como protótipo beyruthiano da personagem Cabeleira Negra, vista em histórias anteriores do personagem. A ideia de uma estação espacial habitada por uma subclasse de desclassificados também pode ter surgido da pena de Heinlein, para se tornar um clichê absurdo que chegou a alcançar até as séries Babylon 5. Mas Beyruth lida bem com essa parte da trama, e o caótico desenho de Sargaço faz homenagem a várias naves da FC, incluindo aquelas de Star Trek. A HQ investe nas qualidades da cooperação e da luta contra a tirania, e seu final deixa um gancho para complicações futuras, num quinto volume. Já neste ponto, Astronauta é uma série de álbuns vitoriosa dentro do campo dos quadrinhos nacionais de ficção científica. Algo que o próprio Mauricio de Sousa celebra no introdução.

—Roberto Causo

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Leituras de Março de 2018

Março foi um mês de leituras diversificadas, mas com destaque para o inquietante romance de ficção científica Kindred: Laços de Sangue, de Octavia E. Butler, e para a polêmica avaliação das deficiências morais da literatura brasileira, feita por Martim Vasques da Cunha no estudo A Poeira da Glória.

 

Arte de capa de Dennis Beauvais.

Aliens Book 1: Earth Hive, de Steve Perry. Nova York: Bantam Spectra, 1992, 280 páginas. Capa de Dennis Beauvais. Paperback. Conheço Steve Perry da coluna que ele tinha no fanzine de Orson Scott Card, Short Form, em 2015 li um livro de sua filha, S. (de Stephani) D. Perry, Aliens: Criminal Enterprise — também parte dos tie-ins originais inspirados nas situações surgidas com o filme Aliens (1984, de James Cameron). Pai e filha têm uma escrita dura e feroz, como o assunto exige. Este romance, em particular, é inspirado pelo filme, cujas situações ele cita: um cabo veterano dos Colonial Marines e uma garota institucionalizada são os únicos sobreviventes de um surto dos aliens. Quando os militares decidem organizar uma expedição de coleta de espécimes em um mundo infestado por eles, o cabo é convocado e, no caminho, resgata a jovem do hospício. Ao mesmo tempo, na Terra um laboratório militar já trabalha no estudo dos organismos xenomorfos, quando uma seita fanática de adoradores dos alienígenas resolve invadi-lo e espalhar a infecção pelo nosso planeta. Só pelo resuminho dá pra sentir que a narrativa salta de uma situação para outra, o que resulta, quase que obrigatoriamente, numa certa superficialidade. Nem por isso o livro deixa de passar a impressão de retratar uma humanidade que, por razões militares, comerciais ou religiosas, caminha célere na direção do apocalipse alien. Há aí aquele problema de escancarar de um modo um pouco frugal a falência daquilo que os primeiros filmes tinham como objetivo maior: impedir que essa forma de vida infecciosa alcançasse o planeta Terra. E como vieram muitos outros romances originais de Aliens depois — eu li dois em 2015, para entrar no clima de terra devastada e de um confinamento claustrofóbico que tentei realizar no inédito “Mestre das Marés”, o segundo romance da série As Lições do Matador —, fica a sensação de que Steve Perry teria se precipitado ao entregar as joias da coroa tão cedo aos alienígenas.

De onde vem o interesse pelo universo criado por Dan O’Bannon e Ridley Scott, com Alien: O Oitavo Passageiro (1979)? Em grande parte, em razão do adversário da humanidade ser uma forma de vida que age cegamente, sem intenções, malícia ou razões estratégicas ou geopolíticas. Nem sequer uma civilização ela possui. A outra coisa é uma representação da humanidade atirada na galáxia arrastando consigo seus vícios e azares. Com Aliens: O Resgate (1986), Cameron introduziu o tema da FC militar e sublinhou ainda mais o cinismo criminoso da Companhia. Daí o naturalismo duro e cínico que predomina na série e nos livros e histórias em quadrinhos, destacando esse universo ficcional da idealização e do lado plástico e juvenil que temos em Star Wars, Star Trek, Guardiões da Galáxia e outras franquias. Os personagens parecem estar sempre espremidos entre o darwinismo brutal dos aliens, e o darwinismo social, empresarial, de uma humanidade que deveria ter aprendido alguma coisa de cá (o presente) pra lá (o futuro interestelar). São pontos de uma atitude crítica que vale tanto hoje, quanto valia em fins da década de 1970 ou durante a década de 1980. Talvez até mais.

P.S.: No Facebook, o tradutor Carlos Angelo lembrou que este livro é novelização da minissérie de quadrinhos Aliens: Outbreak, escrita por Mark Verheiden com arte de Mark A. Nelson e Ron Randall.

 

Sonetos do Amor Obscuro e Divã do Tamarit (Sonetos del amor oscuro; Divan del Tamarit), de Federico García Lorca. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Folha Literatura Íbero-Americana vol. 2, 2012, 88 páginas. Capa dura. Tradução e apresentação de William Agel de Mello. Falta poesia na minha dieta literária. Para diminuir essa deficiência, peguei outro dia este livro do celebrado Federico García Lorca, que oferece uma leitura rápida e intrigante, num livro de capa dura gostoso de manipular. Também dramaturgo, Lorca foi o poeta número um da Espanha no século 20, a vítima mais famosa do regime da facção anti-republicana da Guerra Civil Espanhola. O volume em questão abriga alguns dos seus últimos poemas escritos, distribuídos em dois livrinhos juntados aqui sob uma mesma capa. Consta que o primeiro, Soneto del amor oscuro (1936) só foi publicado parcialmente, por ter um conteúdo homossexual explícito. É um livro bilíngue.

O que salta aos olhos é a riqueza de imagens poéticas, às vezes de um certo hermetismo, e a intrusão o tema da morte e da violência no soneto de amor, de saudação do objeto de amor e de desejo. Há uma ironia dissonante aí, frente a doçura do soneto, e que compõe o principal efeito dos poemas. O mesmo teor persiste em Divan del Tamarit (1936), variando apenas os formatos de versificação — que incluem o gazel, uma forma de poema lírico-amoroso; e a casida, uma forma herdada da poesia árabe. Dessa última, “Da Mulher Estendida” se tornou minha favorita.

 

A Poeira da Glória, de Martim Vasques da Cunha. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015, 628 palavras. Brochura. Ser um observador da ficção científica e outras formas de ficção de gênero no Brasil, como eu me imagino, significa também prestar alguma atenção a como a literatura brasileira se enxerga, se desenvolve e sente o papel da ficção popular. São poucos, é claro, os livros que realizam uma sondagem mais profunda e crítica da nossa literatura — e mais raros ainda aqueles que se debruçam sobre a ficção popular. Das minhas leituras, dá para citar exemplos como A Aventura Literária: Ensaios sobre Ficção e Ficções, de José Paulo Paes; O Espírito da Prosa: Uma Autobiografia Literária, de Cristóvão Tezza; e Muitas Peles, Luiz Bras.

Um modo de abordar a questão maior de onde se posiciona a ficção de gênero nacional nas nossas letras, é identificar e reconhecer as insuficiências da literatura brasileira como um todo, e confrontá-las com as faltas da literatura popular conforme percebidas pela crítica mainstreamA Poeira da Glória é um ensaio sobre o caráter da literatura brasileira, do século 19 ao presente, castigando suas tendências ao esteticismo e à falta de firmeza moral e do foco na liberdade interior da pessoa. É escrito num tom meio autocongratulatório e agressivo, mas o livro ainda é válido pelo que afirma e expõe. Cunha insiste que carece à literatura brasileira o foco em um eu íntegro que se expressa por um “fundo insubornável do ser”, expressão que ele toma do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, para indicar autor e personagem que rejeitam a postura do “quietismo político” e do “estetização da realidade”. Ele também condena aquela crença de que apenas a literatura salva o brasileiro da penúria existencial do país, mesmo enquanto ela se esquiva de encarar de frente a dura realidade da vida. No processo, acusa Machado de Assis de “dissimulado” e adepto do “quietismo político”; Lima Barreto de apegado ao “esteticismo”; e Mário e Oswald de Andrade de, a partir e obras omo Macunaíma (1928) e Serafim Ponte Grande (1933), terem colocado a literatura brasileira em um “beco sem saída”. O que não dá para negar, até por ser uma afirmativa feita antes, em linhas gerais, por gente como José Paulo Paes, é que as práticas modernistas instauram

“o divórcio entre o leitor e o escritor, a separação entre os intelectuais que deveriam produzir uma obra para aprimorar a nossa imaginação moral e o público comum que gostaria de entendê-la, justamente para compreender a si próprio.

“Esse divórcio de sensibilidades nasce em definitivo com o Modernismo, mas se tornaria uma espécie de método nos anos posteriores, até chegar ao ápice na obra de Guimarães Rosa. E acontece algo mais, algo que já não percebemos porque esta cisão está impregnada em nossa visão de mundo: no anseio de escrever numa ‘língua brasileira’, esquecemos que a literatura é antes de tudo uma forma de comunicação entre os nossos semelhantes — e trocamos os dilemas morais da condição humana, os que nos transformam em pessoas, por um lugar, por este ente abstrato, que nem sequer tem uma identidade nacional, chamado Brasil.” —Martim Vasques da Cunha, A Poeira da Glória.

Cunha isola alguns nomes que escapam da tendência que ele condena: Cecília Meireles, Nelson Rodrigues, Otto Lara Resende e outro punhado. Sua análise vem até momentos mais recentes, e aborda gente como Raduan Nassar, Daniel Galera e Bernardo Carvalho. Cunha é Mestre em Filosofia e seu enfoque parte desse campo do conhecimento, de modo que nem sempre a terminologia crítica bate com o que estou acostumado. A discussão se baseia na concepção platônica e aristotélica do Bom, o Verdadeiro e o Belo, trindade expressa na obra de arte. Por aí, a beleza deve conduzir às dimensões mais profundas do ser. Segundo Cunha, na literatura brasileira a ênfase estaria apenas no Belo, com o esteticismo levando ao desprezo pelo Bom e o Verdadeiro, e expressando aí a superficialidade da conjuntura cultural brasileira. Mas como entender a questão do “fundo insubornável do ser”? É o eu profundo do sujeito, que resiste aos julgamentos e às pressões do meio social. A leitura de Os Intelectuais e as Massas (1992) , de John Carey, me vacinou contra Ortega y Gasset, mas é possível chegar a uma aproximação via self-reliance — o apoiar-se em si mesmo de Ralph Waldo Emerson e outros Transcendentalistas da Nova Inglaterra. Mesmo porque a cultura popular está cheia de exemplos do homem self-reliant — em filmes de western como Da Terra Nascem os Homens (The Big Country; 1958), e em personagens como o detetive Philip Marlowe ou o astronauta Perry Rhodan. O conceito soa mais democrático do que Ortega y Gasset e os tons apocalípticos do seu pensamento modernista, e certamente vem me guiando nos meus próprios escritos. Daí minha simpatia pela coragem de Martim Vasques da Cunha em afirmar essa carência da literatura e da cultura intelectual brasileira, mesmo que eu não tenha tanta certeza quanto a sua extrapolação desse quadro para o contexto da militância intelectual de esquerda, simbolizada, para ele, pela figura do crítico Antonio Candido. É claro, nem de longe quero sugerir que Cunha encontraria na cultura popular uma alternativa possível para o quadro que ele expõe.

 

O Lobo do Espaço, de Fausto Cunha. Rio de Janeiro: Ciranda dos Livros, 1984, 80 páginas. Ilustrado. Brochura. A ficha catalográfica desta novela de ficção científica é de 1977, o que não deixa de compor uma advertência para os apressados escritores de hoje. Fausto Cunha é um dos três ou quatro grandes nomes da FC brasileira da Primeira Onda, junto com André Carneiro, Dinah Silveira de Queiroz e Rubens Teixeira Scavone. Ramiro Giroldo estudou a sua obra na tese de doutorado “Alteridade à Margem: Estudo de As Noites Marcianas, de Fausto Cunha” (2012). Ele andou morando nos Estados Unidos e se metendo com a NASA. Nesse sentido, tanto esta novela quanto a fabulosa noveleta “Última Stella” (1981) demonstram que ele poderia ter sido um dos mais significativos autores nacionais de FC hard, se tivesse sido mais produtivo nessa área. Um dos aspectos interessantes da sua abordagem, é que, como conhecedor do gênero, Cunha não abria mão das lições da New Wave.

Uma concessão que O Lobo do Espaço faz à literatura juvenil é embutir aquilo que é basicamente uma história de aventura espacial como uma narrativa que um avô (o Capitão Argo) faz ao seu netinho, contando como foi uma expedição em particular, nos bons e velhos tempos em que ele pertenceu a uma organização explorador anônima, como parte da tripulação internacional da nave O Cão Prateado. A aventura se passa fora da Via Láctea, na galáxia Messier 101, a 20 milhões de anos-luz da Terra. Em um planeta em particular, eles descobrem uma agressiva forma de vida que se pendura como móbiles na atmosfera. São seres luminescentes que manipulam a luz para, por exemplo, destruir o módulo de pouso do herói e seus companheiros. Depois de tentar um contato com uma máquina telepática que projeta conceitos, o Capitão Argo deduz que qualquer tentativa de comunicação teria de se basear menos em ideias e mais em imagens, em cores. Eles descobrem que as criaturas recuam diante da cor amarela, e mais tarde se escondem no fundo do mar, protegidos por uma camada de plâncton vermelho. A partir da manipulação das cores, uma operação de resgate é organizada. É esse truque em particular que parece dar o toque de New Wave à aventura pulp da novela. A arte de capa é creditada a Guilherme Camarinha Martins, “sobre uma concepção de Fausto Cunha”, e tem cara de ser uma colagem a partir de ilustrações apanhadas em revistas da época. O livro é ilustrado com desenhos não-creditados, de estilos diferentes, mostrando astronautas, sondas e satélites artificiais, que também parecem ser resultado de apropriações semelhantes.

 

Kindred: Laços de Sangue (Kindred), de Octavia E. Butler. São Paulo: Editora Morro Branco, 2017 [1979], 446 palavras. Capa dura. Tradução de Carolina Caires Coelho. Um dos principais lançamentos do ano passado no Brasil, certificado pelos jornais O Estado de S. Paulo e Quatro Cinco Um, que o incluíram nas suas listas dos melhores lançamentos literários de 2017. Essa distinção, somada ao fato de ser um romance original de 1979, também puxa a orelha daqueles fãs que eternamente reclamam das editoras por publicarem clássicos da FC ao invés das novidades. Assim como O Livro do Juízo Final, de Connie Willis, é uma história de viagem no tempo, violenta e dedicada a expressar o nosso despreparo em lidar com a dura realidade do passado. As diferenças estão no fato de que, no livro de Willis, a viagem no tempo é algo muito institucionalizado e científico, enquanto que em Butler ela é involuntária e sem explicação. A escritora já havia aparecido no Brasil com um par de histórias na Isaac Asimov Magazine, e a Editora Arte & Ciência do escritor de FC Henrique Flory já havia tentado publicar Kindred aqui, no começo do século. Meu exemplar foi comprado na feira do livro da USP, ano passado.

O romance é narrado por uma mulher afro-americana de 1976, Dana, que, por esse processo misterioso, é projetada no passado anterior à Guerra da Secessão. Isso acontece toda vez que um garoto branco chamado Rufus se encontra em perigo mortal. O livro abre com ela retornando acidentadamente em uma dessas viagens, para perder o braço em uma parede — como no conto do brasileiro Jeronymo Monteiro, “Um Braço na Quarta Dimensão” (1964). Antes disso acontecer, Dana salva Rufus seguidamente. Ela passa semanas e meses em uma época em que a cor de sua pele a tornava vulnerável ao arbítrio dos brancos, mas, quando ela mesma está em perigo, retorna ao seu presente para descobrir que pouco tempo havia se passado. Em algumas ocasiões,  viaja com o marido Kevin, um caucasiano. Os dois acabam separados, e quando se reencontram no passado, retornam a 1976 juntos. Mas Dana ainda tem missões a cumprir no perigoso século 19. Butler é sensível não apenas ao sofrimento da sua heroína, mas também à desorientação de Kevin, que tem dificuldade para se readaptar ao presente, depois de passar anos no passado. O centro do romance, porém, é a relação dela com Rufus, uma pessoa que, mesmo enquanto reconhece a importância de Dana em sua vida, está tão ciente do poder que a ordem escravagista lhe dá, que não hesita em usá-la para obter o que deseja: Alice, a outra antepassada da heroína. A protagonista que colabora, de maneiras diferentes, embora a contragosto, em situações sexuais envolvendo outras pessoas também está presente na série Xenogenesis de Butler (cujo primeiro livro, Dawn, saiu em Portugal como Madrugada). Espelha, certamente, a situação dos escravos submetidos a um contexto de casamentos arranjados pelos senhores. Por tudo isso, o romance, embora não narre cenas tão fortes e degradantes quanto aquelas de The Underground Rairoad, de Colson Whitehead, e nem se dedique a uma panorâmica do escravismo nos Estados Unidos, é emocionalmente escruciante, com uma tensão presente página a página, resultando em uma narrativa de força rara e até superior ao premiado livro de Whitehead.

Assim como o conto em tom de crônica da brasileira Zora Seljan, “O Carnaval do Ano 2170” (1978), Kindred nos lembra de que a única máquina do tempo disponível para a humanidade é o aparelho reprodutor feminino, que conecta passado, presente e futuro. Essa viagem temporal está sujeita a todas as vicissitudes da condição humana. Como eu mesmo me dei conta, ao escrever meu romance A Corrida do Rinoceronte (2006), sobre um afro-descendente brasileiro que vai trabalhar nos EUA, onde se depara com a política racial local, é duro nos darmos conta de que, para estarmos aqui, foi preciso que uma mulher fosse abusada em algum momento do passado histórico e familiar. Butler enfrenta essa dura realidade de frente, como a sua heroína. Mas ela também se lembra da lição dos contos de Richard Wright (1908-1960), de que a violência contra o opressor é o primeiro sinal de que não se está completamente subordinado. A melhor leitura que fiz neste ano, até o momento.

 

Jean Nouvel, de Marco Casamonti. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Folha Grandes Arquitetos Vol. 8, 2011, 80 páginas. Capa dura. Tradução de Marcos Maffei. Minhas leituras sobre arquitetura não pararam no mês passado. Com este perfil do arquiteto francês Jean Nouvel, elas caem por completo no futurismo/pós-modernismo, com uma conexão, apontada pelo autor Marco Casamonti, com a abordagem historicista de Le Corbusier, em que o arquiteto retorna constantemente às soluções do passado para encontrar inspiração para seus projetos. Esteticamente, é um dos mais ricos exemplos, com um pendor para o detalhe que filtra a luz e colore o ambiente interno e a fachada externa de tons, reflexos pontilhistas e texturas — como se vê pela sugestão mourisca dos painéis externos do Instituto do Mundo Árabe, em Paris (e na capa do livro). Os interiores da ampliação do Centro de Arte Reina Sofia também são um grande exemplo, assim como a cúpula da Torre Agbar, ambiente de ficção científica no topo de um arranha-céu bem feio por fora. As fotos do Museu do Quai Branly, em Paris, sugerem uma concepção desarticulada, mas as do Teatro Guthrie (EUA) e as do Auditório Danish Radio (Dinamarca) comunicam a aura de projetos inspirados, em que há uma dança de planos e de subtons que impressiona. As concepções artísticas de alguns projetos — como o do Centro de Espetáculos de Seul e o da Filarmônica de Paris — lembram o toque surrealista do artista de FC Paul Lehr, enquanto o do Louvre de Abu Dhabi parece um disco voador pousado sobre um espelho d’água. A seção “O Pensamento” é composta de excertos do seu “Manifesto Lousiana” (2005), que evoca a física do macro e do micro, e denuncia que

“a arquitetura está aniquilando os lugares, banalizando-os e violando-os.” —Jean Nouvel, “Manifesto Louisiana” (2005).

Ao mesmo tempo, Nouvel clama por uma arquitetura que transcenda ao revelar geografias, histórias, cores, paisagens e horizontes. Palmas.

—Roberto Causo

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Leituras de Agosto de 2017

Este foi um mês de novas leituras de fantasia e de ficção científica, mas com espaço para não-ficção, quadrinhos e ficção literária.

 

Arte de capa de Kevin Murphy.

Adiamante, de L. E. Modesitt, Jr. Nova York: Tor Books,1998 [1996], 312 páginas. Capa de Kevin Murphy. Paperback. Assim como Jack McDevitt, comentado mês passado, Modesitt é um escritor que se repete muito mas sempre entrega um trabalho consistente, despretensioso e, muitas vezes, instigante. É o caso deste Adiamante, obra de impacto que se expressa como exercício de filosofia moral numa ficção científica de futuro distante. Nesse futuro, a humanidade se dividiu em três grupos: os demi[gods], os cyb[orgs] e os draffs. Num passado indeterminado, o cybs se insurgiram e foram expulsos da Terra. No tempo do romance, eles retornam com uma esquadra de naves superpoderosas feitas com a substância mais resistente que a tecnologia humana é capaz de produzir: o “adiamante” do título.

Uma das características do autor é narrar na primeira e na terceira pessoas. Aqui o livro acompanha, na maior parte, a narrativa do protagonista, Ecktor. Ele é o Coordenador planetário da Velha Terra, indicado quando os cybs ressurgem. A sociedade que representa e fundada no respeito ao indivíduo, no aproveitamento energético (até a classe dirigente tem que prestar serviços à comunidade, quando consome energia com caprichos) e na recuperação ambiental. Ecologia é um tema de Modesitt — o primeiro livro dele que li foi um ecothrillerThe Green Progression, escrito com Bruce Scott Levinson. Em Adiamante, a humanidade, escolada em guerras e poluição em escala planetária, aprendeu as lições da história. Os demis adotaram um código estrito de conduta ética e integraram a própria ideia da resistência pacífica aos seus genes — exatamente dentro da conclusão de Reinhold Niebuhr em Moral Man and Immoral Society (1930), que discuti aqui em julho. A maior parte do intenso suspense que surge do romance vem de sabermos o tempo todo que os demis têm poder para destruir os cybs (Ecktor tem um pedaço de adiamante como peso de papel), mas evitam fazê-lo até que as intenções dos invasores, por seus próprios atos, fiquem claras. A única coisa que eles jamais farão, é um ataque preventivo, coisa que virou doutrina oficial americana durante a administração George W. Bush.

“Poder sem moralidade é o desastre; moralidade sem poder é inútil.” —L. E. Modesitt, Jr. Adiamante.

Além disso, a impossibilidade de comunicação quando os sistemas de valores são opostos também é marcada ao longo da narrativa, com Ecktor padecendo de um isolamento moral em relação aos cybs, que é partilhado por toda a coletividade de demis. Esse grupo escolhe o sacrifício de grande dos seus quadros, para que não cometessem um ato que iria corromper e destruir as bases da sua sociedade — eles têm sua própria versão da “psico-história” de Asimov, com previsões de alta percentagem indicando isso. Uma escolha tão singular, que só encontrei exemplos semelhantes em duas outras ocasiões, nas minhas leituras: na novela “Zanzalá” (1938), do brasileiro Afonso Schmidt (mas em tom farsesco), e no romance Pastwatch: The Redemption of Cristopher Columbus (1996), de Orson Scott Card. A FC costumava ser assim… romances compactos que dramatizavam com engenhosidade conceitos éticos e sociais caros à civilização. Esta foi uma das minhas melhores leituras neste ano, até aqui. A capa de Kevin Murphy é simples mas busca o tipo de textura de materiais que o mestre inglês Jim Burns costuma realizar.

“Apesar de todas as nossas redes, de todas as nossas comunicações, os humanos — cybs ou demis — são alienígenas, alienígenas uns para os outros, e para o universo, e é por isso que devemos ter confiança.” —L. E. Modesitt, Jr. Adiamante.

 

Arte de capa de Paola Giometti.

O Chamado dos Bisões, de Paola Giometti. São Paulo: Andross Editora, 2017, 144 páginas. Capa e ilustrações internas de Paola Giometti. Brochura. Ramo talvez recursivo da fantasia — hipótese enfatizada pela série Redwall do escritor inglês Brian Jacques (1939-2011) —, a fábula de animais é um pouco rara no Brasil. Eu gosto de bichos, e desse tipo de fábula desde que li uma num livro da Disney, quando era menino. Por sorte, tenho feito a preparação de texto da série de fábulas sobre animais norte-americanos escrita por Paola Giometti, e que inclui O Destino do Lobo (2014) e O Código das Águias (2016). Todos têm a mesma moldura: um jovem que viaja da cidade para zonas mais ermas, florestas e montanhas, onde ouve fábulas de animais importantes para a cultura nativo-americana, pela boca do seu sábio bisavô. O bicho deste terceiro volume é o bisão americano, e o tema é a migração como rito de passagem na formação de uma pequena bisonte que se separou da mãe e do rebanho. Quem conhece os volumes anteriores é premiado com aparições de personagens que viveram as aventuras precedentes. Todos os livros da trilogia tratam dos atritos muito ambíguos entre os animais e os seres humanos. Há um leve toque místico, no culto aos antepassados, pelas várias espécies. Parte da diversão desse tipo de fábula é como os animais são humanizados — aqui, com a inclusão de atitudes e modos de falar dos jovens. A função moralizante da fábula é explicitada pelas reações do jovem que ouve a história contada pelo avô. Com este livro, lançado em 12 de agosto na Biblioteca Viriato Corrêa, a série Fábulas da Terra se completa como uma trilogia. O lançamento contou com convidados muito especiais, duas corujas e uma águia-chilena mantidas pelo grupo de criadores Turma do Gavião, sendo que a águia Ragnar e a coruja Sansão aparecem como personagens no livro. (Minha esposa Finisia Fideli adorou ver os bichos e conversar com os criadores.) Giometti, que escreve com graça e vivacidade, e ilustra os próprios livros, pretende escrever agora narrativas de realismo mágico.

 

Arte de capa de Steve Stone

Dragon Haven: Volume Two of the Rain Wilds Trilogy, de Robin Hobb. Nova York: EOS, 1.ª edição, 2010, 508 páginas. Capa de Steve Stone. HardcoverEste é o segundo livro da tetralogia Rain Wild Chronicles, de Robin Hobb. E parte de uma longa série muito maior, iniciada com a Trilogia Farseer, conhecida no Brasil como Trilogia do Assassino. Hobb é o pseudônimo de Megan Lindholm, que apareceu na Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Científica com esse nome. Hobb/Lindholm é uma das melhores autoras de fantasia que conheço. Seu vasto mundo secundário é complexo e humano. A Trilogia Liveship Traders termina com o retorno de um dragão aos céus desse mundo. Um número de serpentes marinhas consegue se instalar no Rio Rain Wilds, onde criam casulos que vão chocar os dragões. Na Trilogia Tawny Man, dois personagens marcantes da Trilogia Farseer, Fitz e o Bobo, integram expedição a terras distantes e geladas, em busca de um dragão congelado. O Bobo diz que o seu objetivo na vida é trazer os dragões de volta ao mundo — uma loucura, na visão de Fitz. Para quê trazer feras destruidoras, famintas e arrogantes de volta? Para equilibrar a arrogância humana. Um projeto que tem a minha simpatia, e é a razão não religiosa mais abstrata possível para o preservacionismo ambiental.

No primeiro livro das Rain Wilds Chronicles, Dragon Keeper (2010), um grupo de dragões mal-formados emerge dos casulos. Eles não se viram sozinhos, e o Conselho de Comerciantes da cidade de Trehaug não quer pagar pelo seu sustento. Para se livrar dos dragões, montam uma expedição à cidade perdida de Kelsingra, em algum lugar subindo o rio. Jovens indesejados de Trehaug são convertidos em tratadores de dragões, e enviados com os bichos. A garota Thymara é um deles, e a expedição conta ainda com a aristocrata de Bingtown (a cidade da Trilogia Liveship Traders) Alise Kincarron, uma erudita no estudo dos dragões, que vai acompanhada de seu amigo de infância Sedric Meldar — o amante secreto do marido de Alise, Hest Finbok. Dragon Haven discute o quanto o secretismo em torno da homossexualidade leva a comportamentos esquivos: Sedric deseja comercializar partes de dragão, de alto valor de junto aos salcedeanos, uma das nações mais canalhas do mundo secundário criado por Hobb. Seu objetivo é enriquecer o bastante para viver com Hest sem precisar esconder o relacionamento. O livro também enfoca o sexo e os custos da gravidez adolescente, considerando que, por viverem no Rio Rain Wilds, os tratadores sofrem de deformidades que limitam sua chances de reprodução. Nem sempre eles entendem isso, e Thymara, em particular, é pressionada a escolher um parceiro para evitar atritos entre os rapazes. De personalidade forte, ela resiste. Os percalços do enredo incluem uma cabeça d’água que causa baixas na expedição; as ideias utópicas do tratador Greft, de criar sua própria sociedade livre em Kelsingra, fazendo uma guinada na direção de O Senhor das Moscas, de William Golding; o conflito entre os expedicionários, fomentado por traficantes de partes de dragões, infiltrados entre eles; e a maturação violenta dos próprios dragões, que começam a transformar fisicamente seus tratadores, como fizeram no passado na civilização desaparecida dos elderlings. Hobb é mestre em encontrar o timing preciso entre os diversos pontos do enredo, e quando o seu discurso sobre sexo e gravidez adolescente parece estar enchendo a paciência, ela põe em cena os mais terríveis argumentos. Sua sensibilidade a faz também relativizar o papel desagregador de Greft, e o retrato da homossexualidade que vinha construindo — achando um namorado honesto e dedicado para Sedric. Os elementos do gênero romance, combinados com a fantasia, estão mais claros no relacionamento apimentado de Alise com Leftrin, capitão da barcaça que acompanha a expedição. Um homem rude, mas que a aprecia mais do que o arrogante Hest jamais o faria.

Os dragões são um interesse à parte, na sua arrogância e pomposidade, e na interação com os jovens tratadores. Ao contrário daqueles de Game of Thrones, eles falam e também se comunicam telepaticamente. A ilustração de capa de Steve Stone tem uma bonita tonalidade, mas qualquer fã de fantasia vai dizer que seus dragões são um completo engano.

 

Arte de capa de Carlos Chagas.

Céu Vermelho, de Júlio Emílio Braz. Rio de Janeiro: Editora Ao Livro Técnico, 1995, 56 páginas. Capa e ilustrações internas de Carlos Chagas. O ano de 1995 foi aquele em que as coleções Novos Mundos da Ficção Científica (Francisco Alves) e Ficção Científica GRD (Edições GRD) deixaram de circular. A publicação de FC no Brasil, que já era esporádica, minguou ainda mais — situação que só se reverteu oito ou dez anos depois. A área juvenil sempre foi mais rica, mas nela também a FC tinha uma presença incerta. O colega Júlio Emílio Braz, um dos poucos afro-brasileiros trabalhando no campo da FC, foi roteirista de quadrinhos e escritor de livros de western para a Editora Escala, sob pseudônimo e vendidos em banca de jornal. Quando se instalou no campo infantojuvenil, ganhou fama e foi publicado no exterior. Imagino o quanto este Céu Vermelho — que encontrei outro dia numa arrumação — não representa um momento de transição do Júlio Emílio. Tem muito de faroeste, com perseguição a ladrões de cavalos, circo de horrores, duelo em saloom e confronto final entre herói e vilão. A palavra “xerife” conseguiu se enfiar no texto, inclusive…

Mas é ficção científica. Do tipo ufológica com direito a OVNIs e “ufonautas tipo 1”: um alienígena sinistrado na Terra acaba se integrando à família do militar que o abriga. Isso, num canto do Sul do Brasil chamado Cerros Bravos, na segunda metade do século 19. Lembra aí “Um Moço Muito Branco” (1962), de Guimarães Rosa, passado em Minas Gerais em 1872, com um alien abandonado acidentalmente nos rincões do lugarejo Serro Frio… O E.T. de Céu Vermelho conquista as crianças do lugar, manipulando a matéria e curando um guri com poliomielite, mesmo enquanto o padre local (que tem um não explicado neto) quer organizar um grupo de linchamento contra ele. Mas é um bando de bandoleiros que o ameaça de fato, capturando-o para a dona de um mafuá de passagem pela região. Li outros livros juvenis de Júlio Emílio (que li quando meu filho estudava no Colégio Notre Dame aqui perto de casa, onde conhecemos o escritor numa feira de livros dentro da escola). Neles, nota-se que o autor não é fã de finais felizes. Este não é exceção. O conto de Rosa tem no “estilo roseano” a marca maior, a novela de Júlio Emílio, também ela com um léxico rico, talvez devedor de Erico Verissimo, é marcada pelos elementos de aventura que ele combinou.

A Editora Ao Livro Técnico é responsável pela publicação do primeiro livro de arte de FC lançado no Brasil, Naves Espaciais: 2000 a 2100. Sua edição de Céu Vermelho deixou a desejar na revisão, mas a capa e as cinco ilustrações internas (em preto e branco) de Carlos Chagas são um plus. Chagas está lá com Manuel Victor como um dos grandes da ilustração de livros para crianças no Brasil, e embora aqui ele não explore muito os elementos de FC, suas artes remetem à pintura brasileira dos tipos regionais (tipo José de Ferraz Almeida Junior), reforçando a mistura sugestiva que o escritor criou. Há pelo menos mais um livro de FC juvenil pela editora, Os Semeadores da Via Láctea, de Paulo Rangel. Também com arte de Chagas.

 

Romance com Pessoas: A Imaginação em Machado de Assis, de José Luiz Passos. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014 [2007], 400 páginas. Brochura. Ainda envolvido com Machado de Assis, desta vez peguei um estudo a respeito dele, pelo professor universitário e romancista José Luiz Passos. Seu O Sonâmbulo Amador ganhou o Grande Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2013. O foco deste estudo está em como Machado busca na psicologia dos seus protagonistas a exploração da moralidade e das máscaras que usamos para transitar dentro da sociedade. Passos afirma que o nível de penetração psicológica que Machado alcançou seria uma contribuição dele para o romance latino-americano (embora não forneça contra-exemplos).

Um dado interessante é o quanto Machado teria bebido de William Shakespeare. Isso parece óbvio para quem conhece seus contos e romances, mas Passos foi além e fez um levantamento das ocorrências de Shakespeare, menções e citações, na obra toda de Machado. Há uma listagem no final do livro, com ocorrências majoritárias de peças como Otelo e Hamlet. Muito menos das que tratam da história da Inglaterra, e menos ainda, não pude deixar de notar, daquelas com elementos fantásticos como A Tempestade e Sonho de uma Noite de Verão. A tradução de um romance de Vitor Hugo também pode ter influenciado Machado na adoção das suas estratégias literárias mais características, assim como a obra do russo Ivan Turgueniev. Passos revela que o interesse de Machado pelo realismo teria surgido da sua apreciação do teatro da época, já que foi crítico de teatro e já que o realismo chegou antes às artes brasileiras via teatro, e não pela prosa literária. Aí também tem-se uma pista do privilégio do adultério como tema na sua obra, já que foi um assunto muito visitado por esse teatro pioneiro. O livro tem um estilo acessível e apresenta capítulos relativamente curtos, escritos com leveza e uma certa autonomia. Assim, os argumentos de um reforçam os de outros, mas sem que haja uma lógica de tese universitária amarrando-os — o que é muito positivo. O foco está nos romances de Machado, embora o autor também mencione alguns contos e novelas. Cita muito Antonio Candido e Roberto Schwarz, como seria de se esperar, mas também alguns estrangeiros, e trata ainda da polêmica entre Machado e um dos seus primeiros críticos, Sílvio Romero. Em tudo, expressa a admiração pelo modo como Machado de Assis deu a seus personagens o caráter de pessoas.

“Será que ganhamos algo de fundamental quando consideramos os protagonistas de um romance pessoas, e não meras instanciações simbólicas de qualidades mais abstratas?” —José Luiz Passos. Romance com Pessoas: A Imaginação em Machado de Assis.

 

Dicionário de Pequenas Solidões, de Ronaldo Cagiano. Rio de Janeiro: Língua Geral, Coleção Ponta-de-Lança, 2006, 136 páginas. Texto de orelha de Ignácio de Loyola Brandão. Brochura.  Conheci Ronaldo Cagiano por intermédio do escritor mineiro João Batista Melo, que, como contista, às vezes explora a ficção científica e a fantasia. Quando João Batista vem a São Paulo, costumamos nos reunir os três (às vezes quatro, quando a esposa de Cagiano, a escritora Eltania André, o acompanha) para um papo. Cagiano e eu temos algumas coisas em comum: somos fãs de João Batista; costumamos reclamar muito da situação do mercado editorial; somos os dois oriundos de cidades pequenas, ele de Cataguases-MG, e eu de Sumaré-SP — duas cidades que contribuíram incidentalmente para a ficção científica. Mas ele escreve ficção literária e eu, ficção de gênero.

Alguns dos 14 contos do livro se passam em Cataguases, outros em Brasília, por onde Cagiano também passou. Um deles, “Encontros”, narra a passagem de Franz Kafka (1883-1924) por Cataguases nos idos de 1910, instigado pelo cineasta pioneiro Humberto Mauro (1897-1983) e acompanhado de Max Brod. Por isso talvez possamos classificar o conto como história alternativa… Outros contos falam das angústias da vida brasileira, focados em personalidades constrangidas por experiências de infância ou juventude, como a menina violentada em “O Abuso”, a prostituta assassinada em “Solidão”, o jovem frívolo que herda responsabilidades inesperadas com a morte do irmão em “Juízo Final”, a solidão de uma imigrante georgiana entre seus cachorros em “Pavlov”… Uma coisa que me agrada em Cagiano é o fato de ele se esquivar da prosa minimalista que veio a dominar a literatura brasileira com a Geração 90. Seu estilo é mais rico e remissivo dos momentos da literatura e da cultura brasileira que compõem sua formação como escritor, imagino que aqueles estabelecidos especialmente na década de 1970, bastante críticos da urbanização e desumanização da sociedade brasileira. Esse tipo de enfoque e a prosa literária que advém dele tendem ao mergulho psicológico e a um tom introspectivo, reflexivo, que para ser bem marcado costuma limitar a voz dos personagens ou embuti-la num discurso indireto livre. Dos 14 contos, nenhum deles apresenta situações de diálogos — o que não deixa de ser um tipo de redução… A edição da Língua Geral é muito bonita, com uma capa mais rígida do que o costumeiro, uma cinta emborrachada que a abraça (não aparece no scan acima) e apenas uma orelha, assinada por ninguém menos que Ignácio de Loyola Brandão.

“Quando você abre o livro e começa pelos contos da mulher violentada e a visita de Kafka percebe que está diante de um escritor que sabe o que fazer, sabe para onde vai, como se vai, as conduções que deve tomar … Cagiano é um autor que te prende na primeira página.” —Ignácio de Loyola Brandão.

 

Half Life, de Hal Clement. Nova York: Tor Books, 2000 [1999]. Paperback. Hal Clement (Harry Clement Stubs; 1922-2003) escreveu o clássico da ficção científica Mission of Gravity (1953), importante para a retomada da FC hard americana na década de 1970, com Larry Niven et alii. Ainda na primeira metade da década de 1990, a Editora Aleph contratou esse romance, produziu uma tradução e encomendou uma linda capa feita por Vagner Vargas. Mas o livro acabou não saindo. Assim como Mission of Gravity, este Half Life foi primeiro publicado em partes em uma revista, a Absolute Magnitude, mas como histórias interligadas — um fix-up, portanto.

A aventura se passa em um futuro em que a humanidade e a vida na Terra parecem ter seus dias contados. Uma profusão de doenças degenerativas jogou a expectativa de vida para metade da atual. As ciências exatas foram arregimentadas e militarizadas para concentrar o esforço de salvação da humanidade. Uma nave com uma tripulação de doentes terminais é enviada a Titã, a lua de Saturno. Vai em busca de traços de substâncias ou compostos pré-bióticos (constituintes químicos da vida biológica) que possam lançar luz sobre a formação da vida e, indiretamente, sobre a atual ameaça à vida na Terra. Uma FC hard baseada em microbiologia ou bioquímica, portanto (Clement foi professor da área). Há muita ironia tanto na premissa quanto no modo como o romance é narrado. O narrador onisciente salta de personagem em personagem e levantando os pontos científicos, mesmo que muito se desenvolva por meio de diálogos entre os tripulantes que, de tão doentes, não se comunicam fisicamente. Mais ainda em como as mortes dos homens e mulheres bombardeados da tripulação pontuam os passos e as descobertas da expedição, envolvendo uma substância de aparência betuminosa que corrói superfícies metálicas e trajes espaciais. Daí surge, aliás, um estranho senso de estoicismo que é uma das marcas da narrativa. As mortes e a investigação científica mantêm o suspense até o finzinho. O desfecho, ironicamente nada retumbante, sugere a descoberta de uma pista promissora em torno de enzimas perturbadas pelos metais pesados acumulados na biologia humana e animal. A verve de Clement torna Titã um mundo fascinante, e o destino que ele dá aos adoentados tripulantes é uma saudação à persistência da vontade humana. A arte de capa anônima tem Titã, os anéis de Saturno e um “código de barras genético” (atrás do título), mas não comunica muita coisa e parece indistinta e improvisada.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Chris Bachalos & Tim Towsend.

Star Wars Infinitos: O Império Contra-Ataca (Star Wars Infinities: The Empire Strikes Back), de Dave Land (texto) e Davidé Fabbri (desenho). Barueri-SP: Panini Comics, 2017, 108 páginas. Capa de Chris Bachalos & Tim Towsend. Brochura. Em abril, li o primeiro desta série Infinitos, de narrativas alternativas de Star Wars. O Império Contra-Ataca é o meu favorito dentro da franquia no cinema, e fiquei curioso com este livro de quadrinhos. Infelizmente, tanto o roteiro de Dave Land quanto a arte de Davidé Fabbri são inferiores àquelas de Star Wars Infinitos: Uma Nova Esperança, embora com uns pontos interessantes. Começa que a arte de Fabbri e a colorização de Dan Jackson puxam muito para o infantil.

A história abre com Luke Skywalker sendo morto por dois monstros da neve (e não apenas um, como no filme) no planeta Hoth. Mesmo com o pupilo mortalmente ferido, Ben Kenobi aparece e faz um apelo idiota para que ele vá ao planeta Dagobah instruir-se com Yoda. Depois da escaramuça abreviada com destroiers do Império, Han Solo vai parar em Bespin, onde, na cidade das nuvens e já reunido ao amigo Lando Calrissian, troca sopapos com o caça-prêmio Boba Fett. Quando Han finalmente chega a Dagobah, acompanhado da Princesa Leia, descobre que ela é o Skywalker que pode recolocar a força em equilíbrio. É bom ver Leia valorizada e Yoda outra vez no centro das ações (em O Retorno do Jedi ele morre de velho!), mas faltou desenvolvimento. Esta versão tem como ápice uma longa sequência em Dagobah, muito interessante por ter Yoda usando um recurso da força que eu nunca tinha visto antes: uma memory trip que faz Darth Vader rever seus crimes, desde os tempos de padawan. Tendo acesso aos seis filmes canônicos, Land também convoca para essa sequência Kenobi, Mace Windu e Qui-Gon Jinn, que esfregam sal nas feridas morais de Anakin Skywalker. Ao contrário de Star Wars Infinitos: Uma Nova Esperança, esta versão alternativa de O Império Contra-Ataca deixa o imperador fora da ação — e derradeiramente não faz jus ao ótimo filme de Irvin Kershner. (Que, aliás, não precisa de versões alternativas.) Estranhamente, a Panini deixou de dar crédito aos artistas das outras três capas da edição em partes, que aparecem no miolo do livro.

 

Star Wars: Império Despedaçado (Star Wars: Shattered Empire), de Greg Rucka (texto) e Marco Checchetto, Angel Unzueta e Emilio Laiso (arte). Barueri-SP: Panini Comics, 2016, 108 páginas. Capa de Phil Noto. Capa dura. Este livro surgiu ano passado com o selo Jornada para Star Wars: O Despertar da Força; ou seja, vem pavimentar o terreno entre o episódio VI, O Retorno de Jedi, e o VII. Devo dizer antes de mais nada que a arte do italiano Marco Checchetto chama muito a atenção. Ele também está na revista Star Wars nas bancas, edições 016, 017, 018 e 019, com uma aventura de Obi-Wan Kenobi & Anakin Skywalker num mundo meio steampunk. Pena que Checchetto não pôde desenhar o livro inteiro, mesmo porque a oscilação da arte incomoda.

A história começa na Batalha de Endor, quando Luke Skywalker foge da Estrela da Morte II com o seu moribundo pai. Um caça asa-A dos rebeldes intercepta o shuttle Tyridium que Luke pilota, e o poupa quando ele se identifica, passando a escoltá-lo até a lua de Endor. Quem pilota o caça é uma jovem morena chamada Shara Bey. O leitor passa a segui-la numa sucessão de episódios em que ela acompanha Han Solo, Leia Organa e Luke Skywalker em missões do tipo limpeza ou mop-up, enquanto o Império balança com a notícia do fim de Palpatine. A sequência inicial é bem feita, e não apenas as naves são perfeitamente reproduzidas, como traz as marcas da estrutura narrativa vista os filmes, com muitas comunicações em off e naves se cruzando no espaço. Checchetto também é um bom fisionomista, captando bem as caras dos heróis principais, mesmo enquanto mantém seu estilo. Shara, em especial, é encantadora por ter um rosto jovem de expressão ao mesmo tempo alerta e melancólica. Durante a comemoração triunfal em Endor, ela dá uma escapada com o marido, parte de uma tropa de operações especiais de infantaria. Quando Han chama essa grupo de combate, ela vai junto como piloto. Ao saber que o nome do marido é Kes Dameron, fica evidente que ela é mãe de Poe Dameron. A principal linha trata de como Shara, Leia e uma terceira garota salvam um mundo importante para o passado tanto de Leia quanto de Anakin Skywalker, de uma nova arma destruidora de planetas — via manipulação meteorológica. Esse segmento é ilustrado por outro artista, o espanhol Ángel Unzueta, que carece do charme de Checchetto. Numa espécie de epílogo, Shara reencontra Luke, pilotando para ele numa missão para recuperar duas mudas de uma árvore que antes existira dentro do templo jedi em Corusant (deve constar de algum romance ou HQ do universo expandido, imagino). Muitas aventuras, para uma moça que queria mais que tudo liquidar sua fatura com a Aliança Rebelde e se recolher em um planeta pacífico, com o marido e o filho.

A narrativa de Greg Rucka me pareceu mais complexa do que costumamos ver nessas HQs de Star Wars, mais episódica também. Mas a alternância de artistas acaba prejudicando o fluir do roteiro. A galeria de capas alternativas das revistas que forneceram o material para o livro inclui uma arte do brasileiro Mike Deodato. Essa que aparece na capa da versão em livro, tipo foto de família e  sem muito brilho, é de Phil Noto e não casa bem com o título.

 

Outras Leituras

O ícone do tumbler Brude’s World

Brude’s World, um tumblr de ilustrações. Eu visito muitos tumblrs de ilustração e imagem, em geral meio que sem sistema e normalmente abrindo direto o arquivo e escolhendo de lá as imagens que quero baixar. Mas recentemente encontrei este Brude’s World que me impressionou com uma curadoria sólida que bate bem com o meu gosto: lida com ficção científica, fantasia e horror na literatura, cinema e quadrinhos e a presenta uma boa continuidade entre esse gêneros e campos. Também entre o ontem e o hoje, recuando até imagens da antiguidade clássica e da ilustração e pintura do século 19 (incluindo os pintores pré-rafaelitas), com alguma coisa de erótico aqui e ali. Acho que tem uma das melhores curadorias dos tumblrs que estão por aí. Quem quer que seja o dono ou donos do tumblr, ele(s) conhece(m) a história desses gêneros e sabe(m) quem são os grandes nomes e o que é um desenho e uma arte-final de qualidade. Tem material lá de Frank Frazetta, Virgil Finlay, Frank R. Paul, Ed Emshwiller, Chesley Bonestell, Jack Kirby, Edward Burne-Jones, J. Allen St. John, N. C. Wyeth, Gustave Doré, Barry Windsor-Smith, Bernie Wrightson, Boris Vallejo, Jeffrey Catherine Jones, Drew Struzan, Moebius e Arthur Rackham. De vez em quando aparece algum brasileiro como Henrique Alvim Corrêa, Benício ou Mike Deodato. As postagens são frequentes e incluem ocasionalmente gifs e vídeos, e muitos daqueles posters alternativos — um tipo de arte de fã ou cartão de visitas de artistas ou estúdios, que virou moda nos tumblrs. Seu slogan é: “Poder, paixão, pin-ups e posters. Quadrinhos, belezuras, criaturas e calafrios.”

 

O banner com o logotipo do site Pulp International

Pulp International. Este é um site baseado em San Jose City, nas Filipinas, e quando diz que é internacional, é internacional mesmo. Traz muito material americano, mas também inglês, alemão, francês, australiano, japonês, mexicano, espanhol, indiano e até brasileiro — como esta postagem sobre a série ZZ7 de ficção de espionagem protagonizada por Brigitte Montfort e ilustrada pelo rei das pin-ups brasileiras, Benício. A definição de pulp que o site adota também é muito ampla, compreendendo a literatura e a indústria editorial centrada nela, e revistas pulp de todo tipo, não apenas de ficção mas de crime da vida real, pornografia (soft, na maior parte), cobertura de Hollywood, e os filmes, séries de TV e quadrinhos derivados. As postagens se agrupam em dez por páginas, o motor de busca funciona bem e os comentários muitas vezes são extensos e interessantes. A maior parte do conteúdo é vintage, mas às vezes aparece alguma postagem sobre algo moderno ou contemporâneo. Em agosto, estive lá baixando uma quantidade de capas de paperbacks de ficção de crime hardboiled com ilustrações de automóveis (vá entender…). Fiquem avisados: nesse site às vezes a gente tropeça em alguma coisa realmente de mau gosto. Mas pulp também é isso, não é verdade?

Roberto Causo

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