Page 102 - Universo GalAxis Anual 2019
P. 102
ROBERTO CAUSO
sas — de todos os valores do artista ou artistas. Talvez Se era esse o passo que essa pessoa ou pessoas que-
da civilização mesma da qual faziam ou fizeram parte. riam dar nesse momento, que papel Borkien teria em
Essa civilização representava um grande mistério. Até seus planos? Ele certamente tinha um nome na Zona 3.
o momento na aventura da humanidade pela galáxia, a Mas o ideal para a obtenção dos melhores preços seria
pujante xenoarqueologia conduzida por humanos ainda oferecê–los diretamente na Zona 1 — o Sistema Solar —,
não havia se deparado com nada mais que possuísse as que concentrava as maiores fortunas e os colecionado-
características desses artefatos. Seu material era um res e experts mais famosos. O fato de o procurarem em
“metal estranho”, em que pares de partículas subatô- Phoenix Terra era evidência clara de um desejo de dis-
micas entrelaçados se combinavam com outros pares, crição. Ou talvez quisessem trabalhar ainda mais o mer-
formando uma rede. A assinatura da rede dos objetos cado, semeando aqui e ali rumores de que uma grande
também era única no universo conhecido. Além disso, a quantidade de objetos de weirdcraft teria vindo à su-
sua aparência mineral e orgânica cuidadosamente cul- perfície. Sem dúvida, a Zona 3 era muito mais exótica
tivada nada tinha de um look industrial, hipertecnológico. e misteriosa aos olhos dos colecionadores do Sistema
Um paradoxo, já que a produção do metal estranho exi- Solar, o que ajudaria a deixá–los salivando...
gia alta tecnologia. Borkien acreditou mais nessa segunda hipótese. Signi-
As teorias em torno de tais peças haviam se agluti- ficava que a jogada ainda estava nos seus lances iniciais.
nado em dois conjuntos principais. No primeiro, como o E isso, por sua vez, significava que ele poderia contrapor
entrelaçamento nesses objetos exigia um grande dis- os seus próprios lances.
pêndio de energia para um simples efeito artístico, isso A garota era a chave. Por sua aparência, por ser tão
indicaria uma civilização tão autossuficiente que tinha jovem, devia ser marionete de outro alguém ou de um
energia para esbanjar e nenhum valor monetário atre- grupo, como ele suspeitava que acontecera das outras
lado a ela. Talvez fosse a sede de um grande império do vezes em que o weirdcraft aparecera.
passado distante; ou, no segundo conjunto de hipóteses, Borkien reclinou–se e passou a mão lentamente em
teria sido uma civilização técnica extremamente capaz, seu suntuoso cavanhaque sempre bem aparado. Pediu
com uma economia centralizada e disposta a qualquer ao seu robô doméstico que lhe preparasse chá e bis-
sacrifício para produzir tais peças. Uma civilização sem coitos, e na sequência mergulhou em mais pesquisas.
nada a perder com o sacrifício. Primeiro, quem seria Doris Shiro... Depois, novamente,
Borkien fez uma rápida pesquisa nas redes interna- o histórico do surgimento do weirdcraft na galáxia hu-
cionais de xenoarqueologia: menos de uma vintena de mana. Dessa vez, olharia cada detalhe, cada minúcia, em
peças semelhantes tinha aflorado nos últimos dezoito busca das pistas para compor a narrativa do que estaria
Terraanos, nas três zonas de expansão. E em planetas de fato acontecendo.
diferentes, por vendedores diferentes, homens e mu- *
lheres — desconsiderando as revendas registradas. Shiroma passava o tempo no hotel flutuante da rede
Nunca em quantidade maior que quatro, com preços que Soroyan, acima da cidade de Eporia. Fazia parte do dis-
iam do ingênuo ao extorsivo. Nenhum dos vendedores farce. Ninguém viaja a outro planeta pela primeira vez
jamais revelara a procedência das peças. Mesmo assim, apenas para gastar um dia ou dois resolvendo uma
no todo, uma fortuna havia sido comercializada. única questão comercial, e então partia dele sem olhar
Instalado no seu console multiuso, Borkien tamborilou para trás. Por outro lado, não podia passar muito tempo
os dedos e refletiu. Certamente, havia uma demanda por vagabundeando em Eporia, enquanto a sua nave acu-
esse material, atraindo várias pessoas que incidental- mulava a taxa de acoplagem em Blue Flame, a estação
mente haviam tropeçado nos objetos, galáxia afora. Ou espacial em órbita. Quem fizesse qualquer uma das duas
não? Parte de ser um especialista na valoração e com- coisas levantaria suspeitas — especialmente se, durante
pra e venda de artefatos arqueológicos alienígenas es- a sua breve passagem, um crime fosse cometido. Não
tava em entender os esquemas e subterfúgios comuns que matar Torgo Borkien fosse sua intenção. Conhecia
no ramo. Uma possibilidade, portanto, era que alguém o suficiente dos podres do homem, para conseguir co-
detivesse uma quantidade apreciável dos objetos, e, com optá–lo sem dificuldades.
muito cuidado e discrição, viesse trabalhando o mer- Tinha chegado a Phoenix Terra há apenas dois Ter-
cado, desovando uma quantidade mínima e instigando a radias. Usava o nome “Doris Shiro”. Havia empregado
curiosidade dos colecionadores. De fato, um burburinho esse alias em sua missão no planeta Argos, no siste-
abafado circulava entre marchands e colecionadores, ma dominado pela gigante amarela Carinæ K, parte da
em torno do misterioso “weirdcraft” impossível de ser constelação de Carinæ e a cerca de 223 anos–luz do
falsificado. Talvez o responsável ou responsáveis acre- Sistema Solar. Phoenix Terra também ficava na Zona 3,
ditassem que agora a demanda estava madura o bas- mas quase que no vetor oposto ao de Argos. Ela ainda
tante para a oferta de um lote substancial. Um lote que se lembrava da conversa com o xenoarqueólogo Yoshio
representaria a independência financeira. Teh, executado cruelmente por um grupo de terroristas
102