Page 98 - Universo GalAxis Anual 2019
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ARTIGO
Não foi fácil aos organizadores atrair escrito- raptada e levada da Terra por um casal de merce-
res de três nacionalidades dispostos a enfrentar nários para ser treinada e transformada em mata-
as exigências que o tema impunha. Alguns autores dora de aluguel.
bem que aceitaram o mister, mas os seus trabalhos Em “A Locução Final”, a adolescente convertida
— malgrado de boa qualidade — não puderam ser em assassina — fruto de experimentos secretos
aproveitados, eis que não se adequaram àquelas com uma tecnologia que permite ao corpo humano
rigorosas balizas. criar avançados sistemas cibernéticos — envolve–
Porém, nem tudo foi dificuldade. se numa trama em que o que está em jogo é a recu-
O primeiro autor que convidei para participar da peração dos dados cerebrais de Demetrius Perard,
coletânea foi Roberto Causo. Não o fiz por acaso. um gângster recém–assassinado. Mas a chave para
Não é preciso dizer que, como autor, ele é mestre a aquisição dos preciosos dados mentais reside
num gênero difícil, que requer não apenas habili- num inusitado elemento não computacional: o cé-
dade narrativa e prodigiosa imaginação, mas, so- rebro vivo de uma brilhante linguista, que jaz em
bretudo, o domínio de assuntos que ordinariamente estado cataléptico, para entrelaçamento com o do
transcendem a matéria–prima criativa de um es- falecido Perard. Todavia, o ladino criminoso toma-
critor comum. Em minha palestra em Santiago de ra, em vida, alguns cuidados para evitar a captura
Compostela, chamei a atenção dos ouvintes para o post–mortem de suas memórias comprometedo-
profundo conhecimento do autor em temas de di- ras... Não direi mais. “A Locução Final” também está
fícil abordagem — se se quer ser verossimilhante no livro Shiroma, Matadora Ciborgue (Devir Brasil,
—, como a estratégia militar aplicada a exércitos 2015), e, portanto, acessível aos leitores brasileiros.
interestelares. Também me referi à engenhosa Segundo Roberto, a narrativa, originariamente
solução encontrada por Roberto para desatar o escrita para a coletânea A Voz dos Mundos, “acabou
nó górdio dos autores de FC: viajar distâncias es- sendo um conto central para o arco narrativo que
telares em tempo diminuto, às vezes infinitesimal. dá forma ao primeiro livro de Shiroma”. Algo que,
Mas não apenas: Roberto é um profundo estudioso para nós organizadores, é motivo de grande e jus-
da literatura fantástica em geral e, em especial, da tificável orgulho.
FC. A leitura de sua tese de doutorado Ondas nas Uma curiosidade: na coletânea A Voz dos Mun-
Praias de um Mundo Sombrio: New Wave e Cyber- dos, para estabelecer a ordem de apresentação dos
punk no Brasil é indispensável a todos aqueles que contos, os organizadores socorreram–se do “mé-
se propõem a conhecer em profundidade a ficção todo Stephen King” de ordenação de narrativas em
pós–modernista, sobretudo a de origem popular. coletâneas, descrito na antologia Tudo É Eventual,
Creio que poucos organizadores de antologia mas com algumas adaptações. Utilizaram–se cartas
tiveram tanta sorte quanto a que lograram Paulo de um baralho representando os contos, numeri-
Soriano e Valentim Fagim: a contribuição de Rober- camente associados àquelas, conforme a ordem de
to calhou como uma luva. Quando li o original de “A encaminhamento dos textos pelos autores. Emba-
Locução Final”, pensei comigo mesmo: “Melhor, im- ralhadas as cartas, estas foram retiradas. A ordem
possível!” Havíamos acertado na mosca. inversa em que apareceram as cartas tornou–se
O conto de Roberto, que engrandeceu extraordi- a das narrativas presentes em A Voz dos Mundos.
nariamente a antologia, é protagonizado por Shiro- Roberto, que foi o último a ser “tirado”, veio, biblica-
ma, personagem há dez anos conhecida do público mente, a ser o primeiro. Foi uma sorte grande para
brasileiro e, mais recentemente, dos leitores gale- nós: foi muito bom abrir a coletânea — e, portanto,
gos de ficção científica. “fisgar” de cara o leitor — com o excelente conto da
Shiroma é, sem dúvida, um personagem fas- saga de Shiroma.
cinante: é ela uma matadora ciborgue, um protó-
tipo dos super–humanos do futuro. Ágil, inteligen-
te, destemida — mas, ao mesmo tempo, sensível e
nostálgica —, a jovem heroína, quando criança, fora
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