Page 110 - Universo GalAxis Anual 2019
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ROBERTO CAUSO
segurança no interior da tenda. Não localizou nenhuma está na infindável novidade de outros mundos, novas
em posição elevada. paisagens, contatos culturais inquietantes e a presen-
— Eu soube que você esteve com o Doutor Yoshio Teh, ça humana em lugares nunca antes visitados. — Ele riu
nas escavações dahomey, em Argos? — o homem inqui- brevemente. — Recupera–se a figura do artista ao ar
riu, sondando–a por outro ângulo. livre com o seu cavalete, tela e estojo de pintura, ou ci-
— Sim... — ela balbuciou, sem precisar fingir a dor da berequipamento semelhante, mas sob um céu alienígena
lembrança. — Foi horrível. Ele foi... e diante de alguma paisagem impossivelmente exótica.
— As agências de notícias disseram que você foi a úl- Inclusive, mesmo na era máxima da exploração cien-
tima pessoa a falar com ele — Borkien a interrompeu. tífica, vemos o retorno da arte naturalista e do artista
“...Morto diante de mim”, ela completou mentalmente. viajante ou explorador.
Mas apenas disse: — Acho que o figurativismo nunca esteve completa-
— Estávamos discutindo a crise das antigas teleolo- mente fora do escopo do artista — ela disse.
gias, o que ele chamava de “síndrome das teleologias — Sim, é claro — Borkien admitiu, com um sorriso de
ameaçadas”. E também qual teria sido o destino final das condescendência. Definitivamente, ele não se comportava
dahomeys de Argos, quando Stasinopoulos chegou com com a equanimidade profissional demonstrada por Yoshio
suas terroristas armadas. Teh. — Mas entenda que são tantos os desenvolvimentos
— Teh foi uma sumidade no seu campo — Borkien afir- na nossa época, que se torna quase impossível acompa-
mou. — Uma perda inestimável... Imagino que foi uma nhar todos eles e determinar valores como originalidade,
grande oportunidade, falar com ele... ruptura e redirecionamento das tendências da arte.
— Infelizmente, não foi uma conversa longa. Mas algo — Isso soa um pouco como a ideia da crise das teleo-
que ainda acalenta o meu coração, foi como ele me tra- logias, do Professor Teh — ela observou.
tou como uma igual e discutiu suas ideias sem o menor Borkien assentiu lentamente com a cabeça.
traço de paternalismo. — Shiroma fez uma pausa. O pro- — Ele tinha talvez um afeto excessivo por essa ideia
pósito ali era saber se de fato ela estivera com Yoshio — disse. — Mas podemos dizer que sim. É um cansaço
Teh, discutindo assuntos da área. Um modo de Borkien humano, talvez daí um dos desdobramentos de maior
avaliar se ela falava a verdade ao procurá–lo. — Para interesse seja o Retratismo Alien. Retratos de membros
Teh, ao contrário de Cybelle Stasinopoulos, as alieníge- de espécies alienígenas sencientes, nos quais o artista
nas dahomeys eram um grande mistério. busca capturar emoções e estados de espírito dos alie-
— A utopia monossexual feminina — Borkien disse. — nígenas, frequentemente em conjunto ou em oposição
Muitas teorias a respeito. Talvez Teh tivesse razão. Às irônica a paisagens, ambientes ou objetos alienígenas
vezes nos deixamos levar demais pelas teorias como ou humanos, procurando romper fronteiras ou limites
narrativas coerentes, esquecendo que precisam estar percebidos da alteridade.
lastreadas em fatos e evidências. — Ele fez uma pausa e Shiroma especulou consigo mesma se essa necessi-
fincou os olhos nela. — No caso do weirdcraft que você dade de usar o alienígena para fecundar o mundo das
me mostrou, por exemplo. Que teorias podem ser elabo- relações humanas também não estaria por trás do de-
radas, se não sabemos nada sobre sua origem? sejo de Cybele Stasinopoulos de se identificar com as
— Antes de discutir origem e proveniência — ela disse dahomeys de Argos.
—, existe chance de uma primeira avaliação? O número — Mas você deve estar se perguntando o que o mer-
inicial de peças de que disponho é de cinco unidades... cado de arte tem a ver com a xenoarquelogia — Borkien
— Proveniência e história do artista ou do seu contexto dizia. — O figurativismo é amplamente acessível a todos
social e histórico são essenciais neste campo — Borkien os mercados de arte nas quatro Zonas de Expansão Hu-
respondeu, com firmeza. mana, e à sensibilidade e à compreensão das pessoas,
Shiroma não disse nada. Mais uma vez, fez uma rápida atravessando fronteiras regionais, de classe, de for-
checagem de tudo em torno. Mais adiante na bancada, mação intelectual e mesmo entre espécies sencientes.
havia ferramentas e bandejas de plástico com amos- Esse estado de coisas levou a uma situação em que,
tras de solo e fragmentos já selecionados. Nos fundos, para afirmar o acesso exclusivo, a xenoarqueologia tor-
os instrumentos não haviam alterado as suas luzes de nou–se a melhor resposta entre colecionadores de arte
controle. Os robôs e Elayne Reisbaum ainda estavam das elites abastadas, especialmente focados em objetos
no mesmo lugar, mas ela tamborilava impacientemente manufaturados de civilizações extintas ou que denotam
com os dedos da mão direita na coxa volumosa. avanços civilizatórios ou tecnológicos superiores ao hu-
Borkien disse, em outro tom: mano, com peças de períodos pré–humanos alcançando
— A arte na Era das Zonas de Expansão Humana pela os valores mais elevados.
galáxia passa por um momento bastante complicado. Em — Imagino que o material que eu mostrei se qualifique
grande parte, isso ocorre porque a arte se voltou mais — ela disse, com cautela. Mantinha–se dentro do papel. —
uma vez para a representação figurativa. A razão disso A que faixa de preço o senhor acredita que ele pertença?
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