Page 117 - Universo GalAxis Anual 2019
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PHOENIX TERRA
armas de qualquer tipo era crime federal e os agentes robô doméstico de Borkien, que girou as lentes visuais
não tinham o tipo de olhar seletivo e mãos molhadas, dos em sua direção. Darcale ficou junto à parede dos fundos,
policiais municipais de Eporia ou de Benedict. protegendo–se atrás dos móveis exóticos colecionados
Pensar nos federais nessa situação tão estranha o fez por Borkien. Junto à escadaria que levava ao pavimento
temer ter se enfiado em uma encrenca inesperada. Pen- superior, ele parou, observou e escutou. Não havia nada,
sou então em largar tudo, ir para o flutuador estacionado mas as batidas do coração em seu peito falavam do
ao lado da casa e desaparecer. Mas o aparelho pertencia medo que sentia em subir os degraus. Com dedos trê-
a Ulias e Darcale não tinha o cartão–chave... Sem alter- mulos, moveu o seletor de tiro de SEMI para AUTO. Pr’o
nativas, deu outra volta, metendo–se agora no bosque e inferno com a cautela, ele podia precisar de uma rajada
indo por entre as árvores até os fundos da casa. Não enviando uma dezena de projéteis para o alto, se alguém
iria utilizar a câmara da entrada. Quem tinha neutraliza- surgisse lá em cima para agir contra ele.
do Ulias devia estar lá, esperando que ele seguisse seus Darcale fizera parte da polícia militar, nas Forças de De-
passos. Mas havia uma outra câmara nos fundos. fesa da Euro–Rússia. O trabalho era na maior parte ban-
Darcale entrou nela, mas não acionou o sistema de car o carcereiro de soldados em prisão disciplinar, patru-
aspiração dos esporos. Manteve a cibermáscara na lhar espaçoportos, fazer a segurança de bases e garantir
cabeça, e simplesmente abriu a porta usando a com- que as tropas não se excedessem em bares e bordéis.
binação numérica que sabia de cor, das outras vezes Experiência suficiente para que garantisse a sua posição
que estivera ali. tanto entre os contrabandistas, quanto com Elayne.
Torgo Borkien era um sádico. Gostava de tortura ritual Sabia o que fazer, mas nesse momento, hesitava. En-
infligida a moças jovens e em rapazes já com alguma colheu–se atrás da parede que limitava a base da esca-
estrada, às vezes caracterizado de alienígenas, outras da. Olhou em torno. A intensificação luminosa fornecia
exigindo que os flagelados se caracterizassem como ETs nuances simplificados, mas Darcale não precisava de-
— era um leque de interesses engraçado. Às vezes, ele les. Deu–se conta de que conhecia o lugar bem demais.
levava suas fantasias ao extremo de ver sangue der- Era íntimo do que acontecia ali. Especialmente lá embai-
ramado. Darcale e Ulias serviam de segurança nessas xo, nos porões. No calabouço.
sessões de S&M feitas no porão da casa, mas também O lugar todo era grotesco. As formas no enorme espa-
empunhando chicotes e cordas, quando fosse necessá- ço aberto composto pela sala de estar e copa pareciam
rio. Darcale conhecia bem a construção. maculadas por alguma doença invisível, camadas de su-
Ele saiu o vestíbulo de limpeza, fazendo uma pausa jeira que irradiavam doença e maldade. Pensar nisso lhe
junto à porta interna, arma em riste e varrendo a co- trouxe um gosto amargo na boca. O que Borkien fazia ali
zinha e a despensa com o intensificador luminoso. Tudo era errado. A morte testemunhada no porão, apagada
vazio. Darcale correu então para a porta mais distante, de sua memória por anos de esforço, voltou como uma
da cozinha. Ali, considerou suas opções. O coração ba- imagem clara e áspera, à sua mente. Estranho que Dar-
tia contra a parede do seu tórax. Não saber o que se cale só se desse conta agora...
passava com Ulias o deixava nervoso. Ele havia perdido Ele havia afundado demais, ao se aproximar de Borkien
os reflexos adquiridos durante o seu serviço militar. As e de Reisbaum. Teria sido melhor apenas ser segurança
festas na propriedade de Reisbaum e as fantasias de dos contrabandistas. Um serviço mais limpo.
Borkien no seu porão tinham tirado dele aquela energia Mas agora era tarde demais. Ulias era mais importan-
e instinto animais. te do que ele, na hierarquia dos negócios. Não poderia
Talvez Ulias estivesse bem e tentasse se comuni- retornar sem ele.
car com ele nesse mesmo instante. Talvez Reisbaum e Respirando fundo, Darcale empunhou a submetra-
Borkien tivessem feito contato e ele tivesse entrado na lhadora, afastou–se da parede e, com a arma em riste,
casa para responder ao seu chamado no gabinete do começou a subir os degraus.
professor da IEU. Era uma boa hipótese. Havia equipa- Não havia nada diante dele, e Darcale subiu silencio-
mento seguro de comunicação lá. O velho e a mulher ex- samente quase até a metade da escadaria. Fez a mínima
plicariam como o flutuador vazio tinha ido parar lá fora, pausa, seus olhos indo de um canto a outro lá no alto.
e onde eles estavam e o que tinham feito com a garota... Faltava pouco.
Ele quase abriu a boca para gritar por Ulias. Mas não. A agressão do estampido, tão próximo, foi sentida por
Não fazia sentido. Por mais que quebrasse a cabeça, não ele no mesmo instante em que um tremendo impacto o
podia explicar o que o flutuador solitário significava. atingiu na base da garganta.
Mantendo a cautela, o máximo que fez foi ligar o re- Ele só sentiu que caía quando suas costas e a cabeça
ceptor do rádio da cibermáscara. Nada. protegida pela cibermáscara inteiriça atingiram os de-
Darcale respirou fundo três vezes e deixou a cozinha, graus. A arma não estava mais em suas mãos.
a submetralhadora em riste. Chegou sem incidentes à Só o que lhe importava era a dor paralisante na gar-
grande sala de estar. Contornou a figura cilíndrica do ganta. Roubara–lhe o fôlego — e agora ele sentia uma
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