Page 75 - Universo GalAxis Anual 2019
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tes. O pivô das mortes é uma estranha forma de vida   a catástrofe.” Márquez não se convence e argumenta
                 marciana, simbiótica, formada de micro–organismos   que as associações formadas teriam de continuar
                 coletivizados e capazes de um comportamento coe-  competindo entre si. Diante disso, ele responde: “Acho
                 rente e complexo. A certa altura, a heroína, a bióloga   que tudo depende de como competição ou coopera-
                 Julia, declara aos colegas — uma mulher que não pode   ção, desconfiança ou confiança, entram na ideologia.
                 partir sozinha depois de perder os colegas, e qua-  Até os substantivos na língua deles costumam ser
                 tro tripulantes que não podem decolar em sua nave   compostos... Enquanto nós tivermos que lidar com
                 avariada — que não estão enfrentando um impasse   darwinismo social, disputa ideológica, competição
                 marciano, e sim “uma solução marciana”.  Julia ela-  entre as nações, divisão em castas e luta de classes,
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                 bora: “De certo modo, é uma solução da velha Terra.   o Povo de Riv escolheu outra base para o seu pen-
                 Antes que as forma multicelulares que usam oxigê-  samento.”  A declaração evoca o relativismo cultu-
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                 nio elevassem as apostas competitivas, as anaeróbi-  ral no pensamento pós–modernista, para o qual não
                 cas usavam um sistema diferente. Bem, na verdade   existem absolutos culturais nem imperativos deter-
                 ainda usam. Bactérias confrontadas com um veneno   ministas. Mas ao mesmo tempo, o argumento sobre o
                 no seu meio ambiente não têm que esperar por uma   Povo de Riv preserva uma lógica evolucionária.
                 mutação aleatória que as ajude. Elas apenas pegam   Até mesmo a guerra, ápice do conflito e, como
                 um gene útil de uma outra bactéria. E não só de ou-  “continuidade da política por outros meios” (nas pa-
                 tras cepas da mesma espécie, mas até de espécies   lavras de Carl von Clausewitz), da competição entre
                 não relacionadas estreitamente. [...] Só estou dizendo   as nações, tem sido analisada por uma perspectiva
                 que as anaeróbicas trabalham juntas em vez de em   que nega os imperativos do darwinismo social. Ryan
                 propósitos contrários. Ao invés de competirem com   levanta o caso da cidade antiga de Caral, descoberta
                 organismos diferentes em uma corrida para chegar   em 1994 no território do Peru e datada como pos-
                 na frente, elas todas avançam juntas. Acho que é isso   suindo algo como cinco mil anos — “de longe, a cidade
                 que [a forma de vida marciana] tem feito. É isso o que   mais antiga encontrada em qualquer lugar das Amé-
                 também estamos fazendo.” 17              ricas”. A ausência de evidências de qualquer conflito
                   Na série  As Lições do Matador, em duas ins-  armado em grande escala em Caral deixou perplexo
                 tâncias eu questiono o darwinismo social quase que   o arqueólogo Jonathan Haas, “o maior proponente do
                 abertamente: em “Descida no Maelström” (2009), e   conflito como a força central por trás das origens
                 em “A Alma de um Mundo” (2012). Na primeira dessas   das cidades, [que] encontrou mecanismos baseados
                 duas noveletas, Jonas Peregrino discute com o Almi-  na agressão onde quer que olhasse, das cidades da
                 rante Otterholm, da Aliança Transatlântico–Pacífico,   América Central ao Egito, Mesopotâmia, Índia e Chi-
                 a atitude de genocídio por atacado dos tadais. Ele é   na.” Isso o fez “avançar a teoria de que o medo do
                 forçado a ouvir isto de Otterholm: “Mas veja que uma   conflito forçara pequenos grupos a se juntar, bus-
                 estratégia como essa faz sentido, Peregrino, e per-  cando proteção mútua”.  Sem achar evidências de
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                 tence à experiência humana. É a lógica da competição   conflito ou de violência em Caral, mas apenas de
                 levada à escala galáctica...”            comércio, Haas admite: “Você precisa mudar todo o
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                   Na segunda, Peregrino discute com a Capitã Leyla   seu pensamento sobre o papel da guerra naquelas
                 Márquez a ênfase dada à cooperação pelos aliení-  sociedades. Parece que a troca emerge agora como
                 genas conhecidos como o Povo de Riv. O planeta dos   a teoria mais efetiva que temos hoje para explicar
                 alienígenas não possuía luas que estabilizassem o   como esse sistema se desenvolveu.” 21
                 seu eixo de rotação: “Uma das principais estraté-  Além do exemplo espantoso de Caral, uma repor-
                 gias de sobrevivência das espécies no planeta seria,   tagem recente na Scientific American Brasil — “Por
                 quando o ecossistema se alterava com a oscilação do   que nós Lutamos”, de R. Brian Fergusson — resume a
                 eixo, a associação com outras espécies. Cooperação   polarização existente em torno da questão do surgi-
                 e até simbiose. Cada vez que ocorria uma mudança   mento da guerra: “Em uma [posição], a guerra é uma
                 no eixo de rotação, as espécies se reagrupavam, re-  inclinação resultante da evolução para eliminar qual-
                 fazendo ou criando novas associações pra enfrentar   quer concorrente em potencial. Segundo esse cená-



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