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Leituras de Dezembro de 2020

Depois de assinar com a Editora Bandeirola para escrever um guia de pesquisa e leitura de ficção científica brasileira, logo mergulhei na leitura do material que deve ser tratado no livro. Muitos desses trabalhos eu tenho comigo há décadas, esperando a chance de serem apreciados sistematicamente. Outros, reli buscando uma familiaridade maior. 

 

Espaço: Série Projeto Barnard, de G. Carmo. São Paulo: Ibrasa, 1984, 108 páginas. Texto de Orelha de Gumercindo Rocha Dorea. Arte de capa e ilustrações internas não creditadas. Brochura. Comprei este livro em Campinas, na saudosa livraria Papirus, provavelmente perto do ano de lançamento. Dei uma olhada, mas o guardei por achar que não seria do agrado. Chegou a hora de terminar a leitura e refletir sobre os objetivos de G. Carmo. Talvez típico de uma FC das décadas de 1960 e 70 no Brasil, este opúsculo em prosa poética empresta imagens e situações do gênero para expressar preocupação e desencanto com a humanidade. A narrativa, dividida em três “livros”, propõe ser o relatório de três ETs — os astronautas X1, X2 e X3 — vindos da Estrela de Barnard para investigar a Terra. Tratando (com algum conhecimento de ciência) da formação do universo, do Sistema Solar e da Terra como preâmbulos, discute, no primeiro livro, o amor; no segundo, a evolução humana e o seu fracasso ético; no terceiro, as mazelas sociais e a guerra. Há praticamente um parágrafo, numerado na lógica do relatório, por página. O cristianismo de Carmo aparece na página 73, em que o eu lírico pretende para si uma trajetória heroico-prometeana como a de Cristo: “pelo bem que fiz me condenaram à morte, em recompensa…” Em muitos momentos, o lado FC desaparece dos tópicos, ficando a poesia convencional:

 

“15. A estrelas estão no céu e as areias estão no mar… pode o tempo passar o tempo que quiser, mas nada há de mudar do céu que está na terra… pode o tempo mudar as minhas faces, pode o tempo mudar os arvoredos, pode o tempo mudar o curso d’água, mas não irá mudar o doce encanto, a loucura infinita de te amar… o teu amor tudo pode, pode criar o fascínio, pode criar a beleza, pode criar o mistério, amor que é amor tudo vence, todo constrói, tudo pode… amor que é chama invisível, amor que é flor tão suave, amor que é vida, emoção, amor que é noite de estrelas… que é poesia e canção.” —G. Carmo. Espaço: Série Projeto Barnard, página 37.

Mesmo sendo prosa poética singela e sem sofisticação, alcança uma certa força final pela eloquência e pelo sentimento. A elogiosa orelha de Gumercindo Rocha Dorea testemunha que ele ainda se associava à FC brasileira, antes de conhecer o Clube de Leitores de Ficção Científica em 1987 e retomar a publicação do gênero. Espaço tem como sequência Odisséia no Planeta Terra: Série Projeto Barnard 2 (1989) e Terra, o Planeta Poluído: Série Projeto Barnard 3 (1993). Uma trilogia que começou antes da Trilogia Padrões de Contato (1985 a 1991), de Jorge Luiz Calife, mas terminou depois.

 

Arte de capa de Graciela Rodriguez.

O Dia das Lobas, de Nilza Amaral. São Paulo: Editora Escrita, 1984, 70 páginas. Arte de capa de Graciela Rodriguez. Prefácio de Uilcon Pereira. Brochura. Outro livro da mesma época, do mesmo ano, que eu havia deixado passar. Esta noveleta venceu o concurso Prêmio Escrita de Ficção 1984, organizado pela editora de Wladyr Nader, autor da coletânea de FC Lições de Pânico (1968), lá atrás na Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira. No ano anterior, Nader havia promovido o concurso Conto Paulista, que revelou outra autora de FC da Segunda Onda, Finisia Fideli, com o seu conto agora clássico, “Exercícios de Silêncio”. No júri do Prêmio Escrita 1984 estiveram o próprio Nader, o escritor Roniwálter Jatobá, muito ativo na época, e o professor de Filosofia Uilcon Pereira, então na Universidade de São Paulo. No prefácio “Milhares de Anos-Luz à Frente da Prosa Comercial”, Pereira louva o caráter vanguardista da narrativa.

O Dia das Lobas cairia bem no Ciclo ou Onda de Utopias e Distopias: trata de um futuro distópico em que existe apenas ensino à distância por meio de microcomputadores que também atualizam os membros da sua sociedade arregimentada quanto às leis sempre variantes, e no qual até mesmo as neuroses mais profundas estão articuladas aos interesses do Estado. No topo da pirâmide social — em que as classes parecem ser mais definidas por comportamento do que pela renda — estão os sociólogos, categoria que faz as vezes do sempre atacado tecnocrata das distopias brasileiras. Assim como em “O Casamento Perfeito” (1966), de André Carneiro, e em Adaptação do Funcionário Ruam, de Mauro Chaves (1975), os computadores estabelecem os casais. A ambientação é urbana, a história ocorre em um futuro indefinido, certamente próximo por todos os índices quotidianos reconhecíveis ao leitor. O texto tem formatação incomum, “experimental” ou “formalista”, com diálogos isolados na mancha de texto, e parágrafos ora com tabulação, ora sem (como em, por exemplo, Piscina Livre de Carneiro, livro de 1980). De saída, não acho que seja um recurso efetivo. O ponto de vista narrativo salta de um personagem a outro sem transições marcadas.

Uma mulher que se define como “loba” encontra um homem no metrô, e eles vão ao prédio dela. O contexto é de degradação ambiental e social, com um clima agravado — talvez herdado do anterior Não Verás País Nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão. O fato mais estranho desse futuro é um calendário em que as pessoas têm a liberdade de ventilar seu desassossego sob a forma de violência coletiva (clichê da ficção científica visto, por exemplo, no recente Uma Noite de Crime, filme de James DeMonaco lançado em 2013). Essa é a providência pública, mas há uma secreta: a “Organização” (o regime) separou uma espécie de reserva de caça e um dia licenciado para as “lobas” do título atacarem incautos pré-selecionados, no metrô da cidade. Os temas da violência e do sexo reprimidos também estão em uma jovem telepata que precisa se acorrentar para não dar vasão a esses fatores. O lado distópico é reforçado por um sociólogo ocupado em organizar para o Estado a campanha do “dia de matar bandido”. Uma novela com índices da ficção urbana que logo iria imperar na Geração 90 da ficção mainstream nacional: encontros e desencontros, sexualidade reprimida e violência, e alguma dose de absurdismo. Um texto melhor organizado teria ajudado, mesmo porque o leitor se acostuma com as idiossincrasias da diagramação e passa a ler sem estranhamento. No século 21, Nilza Amaral publicou Expulsão do Paraíso (2012).

 

A Grande Guerra Nuclear, de Mário Sanchez. São Paulo: Editora Lance, 1973?, 116 páginas. Brochura. Embora publicado no começo do Ciclo de Utopias e Distopias (1972-1982), A Grande Guerra Nuclear se conecta mais ao período anterior, a Primeira Onda. A preocupação com a Guerra Fria e a ameaça nuclear é característica do período, assim como o desejo de Mário Sanchez de explorar as convenções e o dialeto próprio do gênero. As mesmas preocupações fizeram parte da Onda de Utopias e Distopias, mas o aspecto pulp é diluído pelas estratégicas formais da ficção pop brasileira. Sanchez já havia publicado, em 1959, Além da Curvatura da Luz, obra de especulação filosófica. Assim como o fez José Maria Doménech T., em O Terceiro Milênio, Sanchez se associa ao futurista Alvin Toffler, pelo menos na orelha do livro, que também afirma: “Ninguém mais pode negar que a ficção científica entrou na vida de todos nós, com os computadores eletrônicos, reatores nucleares, mísseis espaciais. televisão, revistas e jornais.” A introdução, por outro lado, é quase um manifesto pacifista contra a ameaça da guerra termonuclear global entre as superpotências EUA e URSS.

Nessa novela, um “território” indeterminado (possível representação velada de Cuba) passa por uma revolução, e o seu grande líder barbudo abriga uma elite de cientistas determinada a impor a sua concepção de paz, depois de singrar os mares do mundo em uma espécie de Náutilus. Essa figura da elite de cientistas é anterior, óbvio, remontando talvez ao romance de H. G. Wells, The Shape of Things to Come (1933), filmado como Daqui a Cem Anos (Things to Come) em 1936 (direção de William Cameron Menzies). Na época da escrita do livro de Sanchez, a série alemã Perry Rhodan já havia apresentado uma “terceira potência” humana que põe em cheque a Guerra Fria e evita o conflito nuclear. Com Sanchez, a sociedade de cientistas rechaça a invasão de tropas patrocinadas por potências armamentistas, e, depois que o quadro geopolítico global se deteriora, tenta uma tecnologia de captura de mísseis atômicos no ar (o autor não compreendeu a tecnologia das ogivas múltiplas de reentrada, introduzidas em 1970). Mas os cientistas haviam construídos abrigos subterrâneos (como nos filmes de 007, caríssimas instalações secretas abundam sem deixar o menor rastro financeiro) e se refugiam nele com parte da população do país revolucionário, para ressurgir e repovoar a Terra, cem anos depois.

A narrativa, que é intermeada por poemas, tem muitos diálogos e o dispositivo didático de um repórter que chega aos cientistas ao investigar os segredos do regime revolucionário, para desaparecer da narrativa subsequentemente. Assim como Jeronymo Monteiro, o autor se dedica a uma crítica moralizante dos azares da humanidade, em uma época em que eles estavam escancarados, mas seu pacifismo não resiste ao impulso de dramatizar o apocalipse atômico. Não obstante as ingenuidades científicas, políticas e narrativas, o livro guarda uma certa energia pulp que faz o leitor chegar à sua conclusão.

 

Arte de capa de Chico Coelho.

Encontro Inesperado na Terceira Lua, de Rosana Rios. São Paulo: Editora Scipione, Série Diálogo, 2002 [1996], 112 páginas. Arte de capa de Chico Coelho, ilustrações internas de Getúlio Delphim. Brochura. Premiada autora de livros para crianças e roteirista de televisão, Rosana Rios é um dínamo prolífico e agregador, criadora do Grupo de Estudos de Literatura Fantástica. Aqui ela ataca com esta rara space opera sob a forma de uma espécie de “Romeu e Julieta no espaço”, dirigida ao leitor pré-adolescente. Curiosamente, seu livro também abre com um manifesto pacifista. Ela, porém, teve mais sorte no desfecho, talvez por ter se apoiado em toques de qualidade mítica, uma das suas especialidades como pesquisadora.

A história se passa em um sistema com 26 planetas, dois deles em perpétuo conflito, Argh e Zarg. Trata do jovem casal Ariel e Zahira, destinados a harmonizar as coisas. A narrativa alterna capítulos, quase sempre curtos, em primeira pessoa, ora na voz de Ariel, ora na de Zahira, com outros em terceira pessoa e compostos quase que apenas de diálogos. Os dois protagonistas se encontram quando a pesquisadora Zahira penetra em território arghiano. Ao invés de entregá-la às autoridades, o vigia Ariel passa a atuar com ela, depois que ela lhe conta sobre sua busca por dois braceletes lendários, de poderes curativos e que facultam aos seus usuários comandarem poderes fabulosos que os tornam capazes de se teletransportar de um mundo a outro. Enquanto o casal busca os objetos mágicos (ou hipertecnológicos), travam contato com outros povos e suas lendas e conhecimentos, orientados por uma antiga profecia, e são perseguidos pelas duas forças em conflito.

A autora criou uma história dinâmica e divertida, escrita com precisão e devendo algo ao filme épico de fantasia científica de Peter Yates, Krull, de 1983. As ótimas ilustrações em preto e branco de Getúlio Delphim, com traço enérgico e figuras elegantes como as de Alex Raymond, ampliam os conteúdos de FC e de referência. A capa de Chico Coelho não está à altura.

 

O Terceiro Milênio: Um Sonho no Espaço, de José Maria Doménech T. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2.ª edição, 1972 [1971?], 454 páginas. Prefácio de Ronaldo Rogério de Freitas Mourão. Posfácio de Rose Marie Muraro. Brochura. Doménech Tarafa, pode muito bem ter escrito o primeiro romance brasileiro de FC hard, O Terceiro Milênio. Na Primeira Onda (1957 a 1972), autores como Rubens Teixeira Scavone e Jeronymo Monteiro tinham tentado, mas erraram no tom ou no conteúdo científico. O conteúdo e o projeto editorial — que incluiu duas edições em 1972, uma delas ilustrada e a outra pela Editora Vozes, conhecida pela sua linha de sociologia, outra pelo Círculo do Livro (1974), uma adaptação em quadrinhos pela EBAL, e publicação nos Estados Unidos e em Portugal (1975) — expressavam o projeto desse autor catalão radicado no Brasil de se alinhar ao futurismo de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke (autores citados por ele na introdução) e de Alvin Toffler (a chamada da capa, “perspectiva de ficção científica para receber sem trauma o violento impacto do futuro”, inspira-se no conceito de Toffler do “choque do futuro”). Seu interesse pelo futurismo era antigo: sua tese “Oikospolis”, defendida em 1936 na Universidade de Barcelona, desenhava uma sociedade utópica do futuro.

A ambição, porém, é temperada por declarações como esta, no prefácio: “Este livro não é um tratado de futurologia e também não deve ser consultado como monitor científico, muito embora o que nele se descreve possa vir a acontecer em futuro mais ou menos próximo […].” Ao contrário da crítica à ciência embutida nas distopias inimigas da tecnocracia e do regime militar de então, o romance se alinha com a postura redentora de Asimov e Clarke, ao declarar: na “era supertecnológica que se aproxima em que todos os poderes” serão outorgados à humanidade, “inclusive o do controle remoto de sua própria genética, [haveremos de] galgar os últimos degraus que a separam ainda da plenitude total e da suprema felicidade, abolindo definitivamente da face da Terra a miséria, a ignorância, a doença e a maldade […].” Pesado em seu pendor ensaístico, o livro apresenta personagens e situações apenas no capítulo XVII, e a primeira linha de diálogo no capítulo XXXII. Propõe uma expedição extra-solar a vários planetas candidatos a colônia humana, dando pano para a comunicação de conhecimentos de astronomia e exobiologia. Mas a dilatação temporal faz com que a tripulação retorne — desapontada com os resultados — após uma avassaladora guerra nuclear, leitmotif herdado da Primeira Onda mas também na ordem do dia do novo momento.

O interesse da solução do autor está no retorno da tripulação levando-a a uma humanidade reformulada como sociedade de bem-estar e deleite. Mulheres liberadas, vivendo em uma colônia marciana, os recebem de braços abertos, situação que aponta para a revolução sexual. Por outro lado, se no ciclo chistoso de contos de FC do início do século 20 o recurso do “foi tudo um sonho” protege o autor da pecha de visionário louco, em O Terceiro Milênio (toda a exploração da guerra nuclear era um sonho do comandante da expedição extra-solar) ele mina o autor justamente da convicção do futurista.

Há pouco de Brasil no romance, e a ausência de um material subsequente pelo autor (o livro seria o primeiro de uma série) sugere que o seu projeto de assumir o manto de Asimov, Clarke e Toffler entre nós não progrediu. Seu vasto conhecimento científico-tecnológico e a propensão hedonista expressa nos capítulos finais encontram eco na figura de Jorge Luiz Calife, adepto da FC hard, autor de romances marcantes como Padrões de Contato (1985) e Horizonte de Eventos (1986), mais imaginativos do que a mera dimensão futurista e com um quê brasileiro, carioca, Bossa Nova, na proposição de uma sociedade espacial livre, amigável e harmoniosa.

 

A Cidade Proibida, de Álvaro Cardoso Gomes. São Paulo: Editora Moderna, 1997, 190 páginas. Prefácio de Carlos Felipe Moisés. Brochura. Tive aulas de Literatura Portuguesa com Álvaro Cardoso Gomes na FFLCH/USP. Era um professor meio áspero, com a mania de chamar os alunos de “mancebo” e as alunas de “santinha”… Não terminei o curso com ele. Mas fui atrás de adquirir esta novela, misto de FC e de ficção religiosa, e até peguei o autógrafo. Certamente, eu era melhor fã de ficção científica do que aluno.

No prefácio, Carlos Felipe Moisés associa o livro às HQs e RPGs, e aventa que seria “a primeira obra punkdark-gótica exclusivamente literária, em nosso idioma”. Se quis dizer algo próximo do cyberpunk, não se trata da primeira, evidentemente. De saída, a nota do autor diz que é um futuro distante, posterior a várias guerras nucleares e ao aquecimento global do planeta. Vivendo nesse cenário distópico, o protagonista sintomaticamente se chama Jó.

No plano do detalhe, a ambientação urbana e degradada lembra as imagens de Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão. As encrencas de Jó começam quando ele aceita guardar um objeto de um “pássaro” (gíria para homossexual) alvo de um abaixo-assinado exigindo a sua expulsão do condomínio onde vivem os dois, e que Jó se recusara a assinar. Na sequência, é atacado pelo síndico, e mais tarde testemunha o pássaro ser assassinado. Na metrópole meio cyberpunk, com chuva ácida e tudo, outdoors convocavam o público a visitar “o País da Cocanha” — onde, em Blade Runner, eram as colônias foramundo. Jó se confessa a um padre cético, e então vai à torre da Golden Yoshitame Corporation, onde trabalhar em um laboratório. Lá, protege uma cobaia gigante à qual se afeiçoou. Libertar a cobaia expressa seus próprios desejos libertários, mas o enredo ainda não chegou ao seu núcleo. Isso ocorre quando Jó vai ao bairro oriental, travando contato com um samurai que é alvo do desejo velado de Jó por transcendência — ele busca o vislumbre de um “anjo” que o redima. Mas o que o samurai faz é tomá-lo por membro da gangue rival de Solozzo, e o conduz ao líder local da Yakuza. O texto inclui diálogos enigmáticos, uma jovem chinesa entregue a Jó, a revelação do interesse do chefão por um certo talismã, a fuga de Jó e a garota para os esgotos da cidade, onde o herói reencontra a cobaia libertada por ele. Desembocam nos braços da máfia, desta vez. Solozzo extrai deles os meios de invadir a fortaleza da Yakuza. Surge uma gangue de motoqueiros punks. A partir daí, a narrativa se aproxima do tupinipunk, com um festival sincrético que conta com a presença de um “Papa Dalai Olodum” e a busca por um orgasmo espiritual. Gomes sai momentaneamente do território de Brandão e entra no de Fausto Fawcett. Mais situações cyberpunk se alternam rapidamente, o texto apenas tocando a superespecifidade característica do subgênero, mantendo-se sempre ligeiro e alusivo ao transcendente — concentrado na figura do talismã, que não poupa o livro de um final pálido.

A Cidade Proibida é exemplo de cyberpunk não tupinipunk, juntamente com A Ordem dos Futuros (1993),de Ricardo Gouveia, um livro para o leitor jovem; Megalópolis (2006), de Júlio Emílio Braz (idem); Cyber Brasiliana (2010), de Richard Diegues; e Rio: Zona de Guerra (2014), de Leo Lopes. Melhor sucedido é Pantokrátor (2020), de Ricardo Labuto Gondim.

 

Arte de capa de Cirton Genaro.

Atentado em Itaipu, de Martins de Oliveira. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1983, 184 páginas. Arte de capa de Cirton Genaro. Brochura. Li esta novela para saber se ela se enquadrava no subgênero da FC conhecido como guerra futura (negativo), já que a premissa é a de um atentado terrorista na barragem de Itaipu, visando causar uma guerra entre Brasil e Argentina. A mesma premissa foi usada muito positivamente por Henrique Flory em sua noveleta de FC “A Pedra que Canta” (1991).

No meio da abertura política, o romance aborda dois complôs, um do comunismo revolucionário liderado por um militante brasileiro (talvez moldado em cima do famigerado terrorista internacional venezuelano Carlos, o Chacal), e o outro conduzido pelos linha-dura da ditadura militar de então. Por um lado, uma guerra entre Argentina e Brasil para desestabilizar e humilhar dois governos militares; do outro, a persistência da ditadura brasileira. O suspense em torno desses dois fatos negativos, separados pela linha ideológica que marcou a Guerra Fria, garante o interesse da leitura, apesar da falta de um herói central ou de interesse humano maior. É claro, com o fim da ditadura marcado para as eleições presidenciais de 1984, este romance de intriga política estava no calor do momento.

Médico de formação, Martins de Oliveira começou sua carreira em 1966 com Outono Vermelho, romance no mesmo gênero. Em 1982, publicou Os Vinte e um Dias de Outubro. O crítico e cientista político Marcello Simão Branco abordou Atentado em Itaipu no site Almanaque de Arte Fantástica Brasileira, achando-o interessante e coerente com o quadro político de então. Incluiu-o em sua lista de “Ficções da Abertura”, um conceito de 2013. O romance por certo chama a atenção pela premissa e pelo retrato político. É escrito com firmeza e uma prosa jornalística que nunca absorve o leitor, mas ao mesmo tempo se esquiva do recurso buscado pela maioria absoluta dos thrillers e romances de intriga internacional, que é o de não abandonar o olhar contemporâneo e “salvar o dia”, reestabelecendo o equilíbrio das coisas que a tensão do atentado ameaçava destruir. Trabalhando com um futuro brevíssimo, se podemos ver assim, Oliveira tem a coragem de, no fim do livro, acionar o detonador.

 

Arte de capa de Carlos Rocha.

Shiroma: Phoenix Terra, de Roberto Causo. São Paulo: Malean Studio/Selo Miskdo, 1.ª edição eletrônica, 27 de dezembro de 2020, 10.984 KB. Arte de capa de Carlos Rocha. Ilustrações internas de Eduardo Brasil. E-book Kindle. Graças ao fabuloso trabalho de Taira Yuji, a minha noveleta Shiroma: Phoenix Terra existe agora como e-book. A primeira narrativa do segundo ciclo das aventuras de Shiroma, ela já havia aparecido em março na revista Universo GalAxis Anual 2019. Shiroma, agora sem o jugo de Tera e Tiago, o casal que a havia raptado ainda criança, precisa de recursos financeiros. Ela já foi caçada pelo principal empregador de Tera e Tiago, a organização criminosa interestelar Associação Céu e Terra da Era Galáctica. A única estratégia de longo prazo que Shiroma enxerga é investigar essa organização e prejudicar ao máximo a sua capacidade de ação.

Ela vai ao planeta Phoenix Terra, na Zona 3 de Expansão Humana, para se consultar com Torgo Borkien, um especialista em arte xenoarqueológica, visando vender algumas das peças que encontrou no planeta renegado, que herdou com a morte de Tera e Tiago. Valiosas por expressarem o ápice tecnológico de uma misteriosa civilização perdida, essas peças do que tem sido chamado de weirdcraft podem alcançar um preço alto no mercado. Mas o que Shiroma encontra no estranho planeta Phoenix Terra é mais conflito e violência. Embutida no suspense e na aventura, há uma reflexão crítica sobre o mercado da arte. Destaca-se nessa edição de Shiroma: Phoenix Terra, a deslumbrante ilustração de capa de Carlos Rocha, as atraentes ilustrações internas de Eduardo Brasil, e a diagramação de Taira Yuji. Este último elemento prova que o e-book pode ser muito mais elegante e criativo do que temos visto nos últimos anos.

 

Arte de capa de Italo Bianchi.

A Filha do Inca, de Menotti del Picchia. São Paulo: Martins/Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1980, 254 páginas. Arte de capa de Italo Bianchi. Brochura. Esta é a minha segunda leitura de A República 3000 ou A Filha do Inca (1930), referência de romance de mundo perdido dentro da FC brasileira, sendo que a primeira foi na infância. Apresenta uma utopia supertecnológica e socialista literalmente circundada pela selva do Brasil Central, montada ali por refugiados da Ilha de Creta que chegaram ao continente milhares de anos antes dos portugueses. Protegida por um campo elétrico que mata todo que o toca, tenta controlar o passado aprisionando a princesa inca do título; e o futuro, por meio de uma emigração em massa para as estrelas, onde deverá fundar uma nova utopia. Os habitantes também existem em um estado intermediário — entre o ser humano e a máquina. São ciborgues de corpos metálicos de hélices integradas às costas, e um olho só na cabeça em formato de capacete.

A cidade perdida é descoberta por uma expedição brasileira, agredida por indígenas. O drama que se instala perante os sobreviventes, Capitão Fragoso e Cabo Maneco, é o do cativeiro e da morte, prisioneiros da terrível inflexibilidade dos cidadãos da república: também estão lá prisioneiros há séculos os membros da realeza inca Capac e Raymi — esta, chamada pelos locais de “o monstro”, e por quem Fragoso se apaixona imediatamente —, mantidos vivos e jovens há séculos pelos cidadãos como lembrete do seu triunfo sobre os nativos do continente. São descendentes diretos de Manco Capac, o fundador do império inca no século 13. Um erro de Capac, atrelado às grandes máquinas que suprem a república de energia e mantêm a fronteira elétrica, condena-o à morte. O arbítrio capital é racionalizado pelos cidadãos da república como um ato de respeito à cultura dos incas derrotados por eles, séculos antes. A Fragoso e Maneco caberá substituí-los como símbolo do triunfo e como mão de obra no controle das máquinas.

A ciência da República 3000 seria mil anos mais avançada do que a do restante da humanidade. É predominantemente elétrica, com a transmissão sem fio pelo ar por meio de ondas, e com processos, que chamaríamos de “parapsíquicos”, de visão e audição à distância que permitiam aos seus sábios se manterem inteirados dos conhecimentos internacionais. Além disso, realizavam uma espécie de comunicação e hipnose à distância, pela “telenergia, de irradiação pessoal”. Muitas histórias de mundo perdido podem ser apenas nominalmente FC, por imaginarem geografias ou processos históricos desconhecidos, mas todas estas especulações de superciência reforçam a inserção do romance dentro do gênero, por mais ligeiras que possam ser. Mais do que a tecnologia imaginária, enfoca uma questão central para a FC: a evolução humana. O darwinismo é mencionado pelos ciborgues da república, e os restos encontrados na barreira elétrica testemunham, de modo confuso e anacrônico, a evolução animal e humana no continente. Para além da evolução passada, o romance olha para a evolução futura dos ciborgues pós-humanos da República 3000. Estão à beira de uma descoberta que vai lhes permitir dominar a “energia pura” do universo e “condicionar a lei da gravidade”, facultando aos ciborgues emigrarem do planeta em uma grande arribação que fornece o deus ex-machina para a escapada dos quatro prisioneiros. Esse momento de clímax é efetivo, mesmo que enfraqueça a agência dos heróis — algo comum na ficção científica nacional do período, tendo como exceção o clássico 3 Meses no Século 81 (1947), de Jeronymo Monteiro, e o ótimo O Rei do Mundo Perdido (1933), de Hamilcar de Garcia.

A compressão evolutiva presente na visão do passado, materializada nos restos da barreira elétrica, ao mesmo tempo que é falha fornece um contraponto à compressão evolutiva da visão especulativa futura, que a revoada dos cidadãos da república representa. Na utopia dos cretenses isolados no Brasil, a evolução para longe da condição humana é presentificada, torna-se visível, e o salto evolutivo testemunhável. Trata-se, é claro, de um conceito de evolução intermediada pela tecnologia — algo que a FC internacional iria trabalhar incansavelmente na segunda metade do século XX, em especial após o advento do Movimento Cyberpunk na década de 1980.

 

Arte de capa de Lila Galvão Figueiredo.

Xisto no Espaço, de Lúcia Machado de Almeida. São Paulo: Editora Brasiliense, Coleção Jovens do Mundo Todo, 8.ª edição, 1972 [1967], 76 páginas. Arte de capa de Lila Galvão Figueiredo. Muito republicada na década de 1970 e 80, Lúcia Machado de Almeida (1910-2005) marcou época nos gêneros ficção de crime (O Escaravelho do Diabo) e ficção científica (Spharion) para crianças. Este Xisto no Espaço, sequência de Aventuras de Xisto (1957), uma fantasia, foi ganhador do Prêmio Jabuti. Nisso, chegou antes da FC nacional adulta.

Reizinho do planeta Terra, Xisto recebe uma mensagem com uma ameaça interplanetária: “CASO XISTO NÃO VENHA ATÉ MINOS, ATACAREMOS VOSSO PLANETA QUANDO ESTE SAIR DE SEU EIXO. INÚTIL REAGIR. RUTUS, O QUE NÃO TEM SANGUE, SENHOR DE MINOS.” Xisto e seu sidekick trapalhão Bruzo logo embarcam em um foguete, provido de um bom suprimento de pastéis de queijo (o favorito do herói). O início do capítulo II testemunha o quanto a mecânica do lançamento de foguetes haviam penetrado na cultura brasileira. Os heróis saem do alcance do Cinturão de Van Allen e cruzam nuvens de estrôncio-90 [sic], para pousar no planeta Nívea, que, obviamente, não faz parte do Sistema Solar e onde encontram insetos gigantes — como no conto de Lúcia Benedetti (que também escreveu para crianças), “Correio Sideral” (1961). Nesse mundo, conhecem Kibrusni, o invisível “menino do espaço”, parte de uma espécie que já nasce falando. O pai dele é o grande sábio local, que explica as coisas a Xisto, a respeito de Rutus e o planeta Minos. Nívea é atacado por uma arma biológica disparada por Minos, a “gelatina da morte”, que destrói boa parte da vida no planeta. Um momento apocalíptico — novamente, reflexo da ameaça nuclear de então.

Em Minos, enfim, Xisto e seus amigos encontram um morcego gigante, o raio da morte, e um mundo cinzento e morto. O contrário do jardim em ponto grande visto em Nívea. Eles também descobrem a verdade sobre o vilão Rutus — um homem artificial criado por dois cientistas locais, um anão e um altão, ambos focados em destruir a infância e dominar todos os planetas que puderem. Por trás do technobabble hiperativo e da ilogicidade que, dizem os especialistas, encanta as crianças brasileiras em nossa literatura infantil, a descrição de Minos e dos cientistas aponta para o mesmo temor da desumanização e da agressão à natureza e à vida promovidas pelo cientificismo, que marcou tanto da Geração GRD.

 

Quadrinhos

Sargento Rock: Entre a Morte e o Inferno (Between Hell and a Hard Place), de Joe Kubert & Brian Azzarello. São Paulo: Opera Graphica Editora, 2005, 144 páginas. Prefácio de Joe Kubert. Tradução de Roberto Guedes. Capa dura. Salvo erro de memória, adquiri há anos esta vistosa edição especial em uma das minhas visitas à loja Terramédia — hoje Omniverse Hobby Store. Quando eu tinha entre 11 e 12 anos, fui um fã do Sgt. Rock, incomum personagem de ficção militar da DC Comics. Ainda possuo meus exemplares do 1 ao 41, com algumas lacunas e várias duplicatas, da edição publicada no Brasil pela EBAL na década de 1970.

Lançado originalmente pelo agora extinto (em 2020) selo Vertigo, da DC, Entre a Morte e o Inferno dá oportunidade da arte solta e vibrante de Joe Kubert encontrar uma expressão nova. O roteiro de Brian Azzarello, porém, começa com um clichê da ficção militar (e da experiência militar americana na II Guerra Mundial), que me soou estranho às histórias do Sgt. Rock: a hostilidade dos veteranos às tropas de reposição. Outra coisa difícil para um fã do personagem é ver a Companhia Moleza (Easy Company, igual a da série Band of Brothers) contemplando crimes de guerra. Claramente, Azzarello busca o Santo Graal dos quadrinhos americanos, desde o advento do romance gráfico na década de 1980: a transformação dos quadrinhos em uma arte reconhecidamente adulta.

Nesta narrativa que persegue o mistério de um assassinato triplo no meio da guerra, e que inclui duas ou três sequências de várias páginas sem balões de diálogo, Azzarello foi claramente bem-sucedido. Personagens sombrios agem heroicamente ou testemunham o heroísmo de figuras antes apagadas, o amor possessivo emerge no meio do ódio entre combatentes, um estupro coletivo é lembrado, clichês marciais são tratados com devastadora ironia. E no auge do combate a Moleza tem que se virar sem o seu líder, ao mesmo tempo em que se reconcilia com a sua liderança moral. Com tantas área cinzentas na narrativa, Kubert, que também assina o prefácio, escolheu abrir mão da cor e desenvolver tudo com uma aguada em sépia — e preservando o vigor do seu traço. Uma linda edição, na qual faltou apenas um capricho maior na tradução, que comete vários falsos cognatos.

 

Outras Leituras

Scientific American Brasil Ano 19, N.º 212, outubro de 2020, Nastari Editores, 66 páginas. A Scientific American surgiu em 1845 e veio a adotar um modelo em que textos de divulgação científica são em geral escritos por cientistas, mas editados inhouse. A edição especial dos 175 anos da revista foi marcado pela coragem de avaliar os erros da publicação desde a época em que chauvinismo sexual e racial eram a norma, o darwinismo social saudado como natural e correto, e a eugenia era considerada um conceito positivo e politicamente desejável. Tais revisões acontecem na seção especial 175 Anos de Descoberta, que abre com o curto artigo “Reconhecendo os nossos Erros”, de Jen Schwartz & Dan Schlenoff. O próximo, “Nosso Lugar no Universo”, de Martin Rees, cobre a expansão do entendimento das proporções do universo, enquanto “A Nossa Origem”, de Kate Wong, faz o mesmo quanto ao conhecimento da evolução humana. “Os Piores Momentos da Terra”, de Peter Brannen, aborda as extinções em massa que atingiram o planeta no passado, e, fechando a seção especial, “Os Manipuladores a Informação”, de Naomi Oreskes & Erik M. Conway, trata da inovação tecnológica e seu impacto. Nas seções fixas, o ensaio “A Pesquisa e as Más Companhias”, de Naomi Oreskes, reconhece os erros do presente, tendo como estudo de caso o relacionamento infeliz entre o mercador de sexo adolescente Jeffrey Epstein e a Universidade de Harvard. O brasileiro Salvador Nogueira trata da possibilidade de haver vida em Vênus, a partir da controversa descoberta de fosfina na atmosfera do nosso vizinho mais próximo.

—Roberto Causo

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Leituras de Setembro de 2017

Uma gripe forte e vários compromissos em setembro derrubaram o meu ritmo de leitura. Mesmo assim, o mês contou com alguns livros interessantes, incluindo o reencontro com um dos meus primeiros amores,  Pat Conroy, e com um dos meus contemporâneos mais reconhecidos, Braulio Tavares.

 

Arte de capa de Bruce Jensen.

For Those Who Fell, de William C. Dietz. Nova York: Ace Books, 2005 [2004], 410 páginas. Capa de Bruce Jensen. Paperback. Este é o sexto romance da série Legion of the Damned, de Dietz, e o primeiro que li. A ficção científica militar tem muitas caras, boa parte delas pouco a ver com o futuro e mais com o passado. Especificamente, momentos históricos aos quais a composição de tecnologia, estrutura e comportamento militar remete, às vezes de modo bem ostensivo: batalhas navais napoleônicas, a guerra de independência ou a guerra civil americana, a guerra do Vietnã e conflitos coloniais. É o caso desta série, já que a tal legião dos desgraçados é a própria Legião Estrangeira da França, lançada a um futuro distante em que uma Confederação de Seres Sencientes usa seus serviços como um sucedâneo de forças armadas nacionais. A intriga diz respeito a uma potência rival coletivista, os ramanthianos, uma espécie insetoide, que descobre em um planeta remoto povoado por colonos humanos e uma espécie nativa, como construir um comunicador mais rápido que a luz. Isso dará uma vantagem determinante para a rainha que comanda os ramanthianos, em sua empreitada expansionista pela galáxia.

No tal planeta, um batalhão de legionários acaba se dividindo, precisa formar alianças com os colonos humanos para enfrentar tanto os nativos quanto os ramanthianos, e depois de ligar as duas forças separadas, pôr as mãos do tal hipercomunicador para que haja equilíbrio tecnológico entre as duas potências rivais em batalhas futuras. Boa parte da ação é descrita pelo ponto de vista do Tenente Antonio Santana, veterano de outros volumes da série. O elenco de personagens é grande e a ação se alterna consideravelmente, de personagem em personagem (apesar do narrador onisciente) e de lugar em lugar, incluindo outros mundos. Tudo é muito chão-chão, apesar disso, e o romance não explora muitas ideias científicas. Inclusive, a própria necessidade de capturar fisicamente o hipercomunidor é frágil — não bastaria capturar os dados do projeto? Os próprios romanthianos não precisariam enfrentar tantas perdas para defendê-lo, bastando usar o próprio aparelho para enviar o projeto a algum lugar seguro…

De fins do século 19 até meados do século 20 histórias da Legião Estrangeira foram uma febre na ficção militar e de aventura. Em grande parte, em razão do sucesso do romance inglês Beau Geste (1924), de P. C. Wren, que eu li quando era garoto depois de ver duas ou três versões para o cinema. Mais recentemente, li um conto de H. Bedford-Jones (1887-1949) na brasileira Contos Magazine. Até Mickey e Pateta foram legionários… A mística da Legião na literatura inclui a dinâmica entre soldados de várias origens nacionais e étnicas, as encrencas de criminosos que se escondem nela, e batalhas sangrentas contra inimigos tecnologicamente inferiores, que empilham cadáveres nos perímetros defendidos pelos legionários. Tudo isso a gente vê no livro de Dietz, temperado também pela experiência americana no Velho Oeste e no Vietnã. Essa distância histórica permite ao autor explorar uma ficção militar que seria contrária a sensibilidade atual, caso  escrita com elementos contemporâneos. A arte de Bruce Jensen é muito característica, fundindo elementos bi e tridimensionais — nesta capa apenas sugeridos pela escotilha que cerca a figura da mulher.

 

Arte de capa de Gio Guimarães.

Sketchbook II, de Gio Guimarães. Rio de Janeiro: Bohemian Fox, 2016, 40 páginas. Capa de Gio Guimarães. Brochura. Comprei este sketchbook da artista brasileira Gio Guimarães no dia 23 de setembro, na convenção TrekkerCon, do Trekker Club, que aconteceu nas dependências do SENAC da Liberdade, aqui em São Paulo. O que me cativou foram as ilustrações digitais dela com tema de Star Trek — naves, planetas e personagens — em full color e muita atmosfera e iluminação dramática. O sketchbook, porém, traz uma amostra interessante do trabalho da artista, apenas a nanquim direto, sem qualquer intermediação digital. A qualidade técnica é muito boa, com uma hachura vivaz, uma linha de valores sempre corretos, e personagens que vão do mais acadêmico até o infantil, passando por muitos animais humanizados e situações de fantasia, com direito a dragões e evocações do Oriente Médio e do Japão. Você pode ter uma ideia da versatilidade de Gio Guimarães no blog dela (em português e inglês). Gio está baseada no Rio de Janeiro, mas toda a sua formação aconteceu na Universidade Federal de Minas Gerais, incluindo Belas Artes e Animação para o Cinema. Como este não é um livro que você vá encontrar nas livrarias, é pelo blog que poderá adquiri-lo, se tiver interesse.

Sketchbooks autografados e vendidos em eventos de fãs formam um tipo intrigante de investimento. Este é apenas o meu segundo — o primeiro foi Request (Editora Argonautas, 2014), de Daniel HDR, do qual tratei em um artigo para o site Who’s Geek. Eles certamente promovem e aproximam os artistas do seu público. E são mais pessoais e humanos do que conjuntos de pixels baixados da internet. Tenho alguns estrangeiros que apareceram por aqui na loja Terramédia, com os de Arthur Suydam, The Art of the Barbarian, em dois volumes autografados, e o meu favorito (mesmo sem autógrafo): Jeffrey Jones: Sketchbook. Legal saber que estão chegando a eventos de fãs de Star Trek e de ficção científica.

 

The Literary Mind, de Mark Turner. Nova York/Oxford: Oxford University Press, 1996, 188 páginas. HardcoverApareceu por aqui convite para falar em um painel sobre ficção científica e ciências da cognição. Isso me deu o empurrão para rever minha leitura deste elegante livro de divulgação de Mark Turner, cocriador, com Gilles Fauconnier, da Teoria dos Espaços Mentais e da Mesclagem Conceitual (conceptual blending). Nessa teoria, eles contestam a ideia prevalecente de que a propensão para o desenvolvimento da linguagem e da fala nos humanos se deveria a um órgão desconhecido presente no cérebro. Para eles, e paradoxalmente a princípio, a narrativa (story) vem antes da linguagem — isto é, a mente humana estaria fundamentalmente preparada para enxergar o mundo a partir de pequenas narrativas espaciais, antes mesmo de aprendermos a falar. Isso é contra-intuitivo, mas o argumento de Turner é sólido e soa correto e instigante para mim. Antes da linguagem, percebemos agentes e ações no espaço, no que Turner e outros teóricos chama de esquemas de imagens. Esses esquemas são recombinados constantemente com outros. Quando uma história se projeta sobre outra, tem-se uma parábola, conceito central para Turner, que enxerga nela o elemento cognitivo maior da mente, compondo nossa capacidade de atribuir sentidos. O espaço de percepção que permite a combinação de uma ou mais histórias com outras é o espaço de mesclagem conceitual. Não vou fingir que entendi todos os conceitos da teoria — e vou confessar que, na faculdade, Linguística para mim foi sempre uma tortura. Uma rápida pesquisa que fiz denotou que a teoria de Turner & Fauconnier não parece ter tido um impacto muito amplo, mas de qualquer modo chegou às universidades brasileiras. Soa mais consistente para mim, do que me pareceram as ideias de Noam Chomsky quando passei por elas na faculdade (há um capítulo em que Turner se opõe a Chomsky e outros da mesma linha).

Em literatura e em outras artes narrativas como o cinema e os quadrinhos, muitas vezes há uma posição entre estilo (linguagem) e enredo (narrativa). Estilo/linguagem possui muito mais reconhecimento intelectual. Isso foi reforçado com a chamada “virada linguística” nas ciências humanas, na década de 1960 ou por aí. Eu tinha esperança de que as ideias de Turner e Cia. equilibrassem as coisas para o lado do enredo/narrativa — mas isso seria esperar demais do contexto da cultura do nosso tempo. E, de qualquer modo, não é essa a preocupação de Turner no seu livro.

“A narrativa é um princípio básico da mente. A maioria das nossas experiências, do nosso conhecimento e do nosso pensamento é organizado como narrativas. O escopo mental da narrativa é ampliado pela projeção — uma narrativa ajuda a fazer sentido de uma outra. A projeção de uma narrativa sobre uma outra é a parábola, um princípio cognitivo básico que aparece em todo lugar, de ações simples como ver a hora até criações literárias complexas…” —Mark Turner, The Literary Mind.

 

Arte de capa de Drew Struzan.

Blade Runner (Do Androids Dream of Electric Sheep?), de Philip K. Dick. Nova York: Del Rey, 2007 [1968], 266 páginas. Capa de Drew Struzan. Posfácio de Paul M. Sammon. PaperbackVem aí o novo filme de Denis Villeneuve, Blade Runner 2049, e Gabriela Colicigno & Roberto Fideli, do Who’s Geek, me pediu um artigo sobre o original de 1982, dirigido por Ridley Scott. No processo, decidi ler pela primeira vez em inglês o romance de Philip K. Dick que deu origem ao filme — até por conta do assunto cognição e ficção científica. Eu tinha lido a tradução de Ruy Jungman, pela Francisco Alves, em 1983. Existe uma nova edição pela Editora Aleph, Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, com tradução de Ronaldo Bressane. Esta aqui foi lançada por ocasião do aniversário de 25 anos do filme, e traz na capa ilustração de Drew Struzan, o famoso cartazista americano, criada para o lançamento da versão “corte do diretor”. Struzan capturou todo o charme melancólico e urbano do filme. O livro é bem diferente: a “Guerra Mundial Terminus” depopulou o planeta, que vive assolado por uma poeira tóxica. Quem pôde, emigrou para Marte e outros planetas. Quem tem saúde ruim ou QI baixo fica na Terra, como um dos personagens-ponto de vista do romance, J. R. Isidore (Sebastian, no filme). Nosso mundo não permite a presença de androides, todos destinados às colônias. Mas oito deles vêm clandestinamente para cá, e o caça-prêmios número 1 se dá mal com um deles, dando chance para que Rick Deckard entre em ação. Mais do que no filme — no qual os androides são chamados de “replicantes” e os caça-prêmios de “blade runners” —, Dick exercita sua marca-registrada, a instauração da dúvida cognitiva a respeito de identidades e relacionamentos. Começa com o status social que o dono de um animal possuí depois que a guerra atômica dizimou a fauna planetária: quem não tem dinheiro para ter um bicho de verdade adquire clandestinamente uma réplica mecânica. O mercerismo, religião baseada num martírio virtual compartilhado por todos os que empregam uma máquina de empatia ao mesmo tempo, transformou o contato com animais num exercício necessário de empatia — à qual os androides são imunes. Quando Deckard entra em ação, depara-se a todo instante com androides fingindo ser policiais como ele. Quer matar os androides para ter dinheiro para comprar um bicho real e elevar seu status. O uso dos bichos para isso é uma “coisificação” da vida; pouco empático, na verdade, e matar seres sencientes por dinheiro também não parece muito empático. Deckard começa a se questionar. Ele, a certa altura, vai parar em uma central de polícia alternativa, desconhecida daquela em que ele trabalhava, e vice-versa. Esse é outro tema que Dick empregou em contos e romances: de onde vem a ação, a autoridade, o protagonismo histórico? Pergunta que fazemos hoje na era da “pós-verdade”…

O trecho final aborda o desmascaramento de Wilbur Mercer, o criador do mercerismo, mas incorpora um momento metafísico muito enigmático que faz o leitor se perguntar o que foi mesmo desmascarado. Do Androids Dream of Electric Sheep? é um romance consistente e realizado dentro de um clima próprio e engenhoso, que faz o leitor coçar a cabeça do começo ao fim. De fato, torna o ato de coçar a cabeça uma experiência de leitura essencial. A ficção científica e as questões de cognição, sobre o que percebemos da realidade, têm uma longa história juntos, desde o século 19. Mas Philip K. Dick foi o autor da FC moderna que mais sistematicamente explorou essa relação. Esta edição, além da deslumbrante ilustração de Struzan, traz um artigo do jornalista Paul M. Sammon sobre a relação do escritor com a produção de Blade Runner, repleto de informações de bastidores sobre como os direitos do livro foram adquiridos e como Dick reagiu aos scripts e às primeiras imagens do filme.

 

Arte de capa de Wendell Minor.

South of Broad, de Pat Conroy. Nova York: Dial Press, 2010 [2009], 526 palavras. Capa de Wendell Minor. Trade paperback. O escritor sulista americano Pat Conroy me interessou desde que, criança, vi na TV o filme Conrack (1974), baseado no seu livro de não ficção The Water is Wide (1972). O primeiro dele que li foi The Prince of Tides (1986), em 1992, que virou o filme premiado O Príncipe das Marés, dirigido por Barbara Streisand. Este South of Broad, é o último romance publicado por Conroy, com a cidade de Charleston na bela aquarela de Wendell Minor na capa. Minor fez toda uma série de capas para os romances de Conroy disponíveis quando do lançamento deste. A edição é para clube de leitura, e traz entrevista com o autor e perguntas essenciais sobre o enredo. Há uma edição brasileira, como A Mansão do Rio, pela Record.

Conroy me conquistou para a ficção sulista americana. Fiquei chocado ao saber da morte dele em 2016 aos 70 anos. Resolvi desencavar este romance e matar as saudades. Quem narra é Leopold Bloom King, batizado assim em homenagem ao protagonista de Ulisses de Joyce, o livro favorito da mãe do personagem. O romance se passa em Charleston, na Carolina do Sul, indo dos anos da integração racial nas escolas, até fins da década de 1980 e a epidemia de AIDS, terminando pouco depois do flagelo do furacão Hugo, que atingiu a cidade em 1989. Traumatizado em criança pela perda do seu irmão mais velho, que cometeu suicídio, Leo passou maus bocados com a mãe e com a justiça. Mas quando um casal de gêmeos se muda para a rua dele, os dois perseguidos pelo pai psicopata e criminoso contumaz, Leo começa a reunir em torno de si os gêmeos, um casal de negros, um casal de irmãos caipiras das montanhas e órfãos, e um trio de aristocratas locais. Juntos eles enfrentam os preconceitos raciais e aristocráticos de Charleston e do Sul, com muito humor e valentia. O Leo adulto, sua mulher Starla (a garota órfã), os gêmeos e outros personagens são pessoas emocionalmente lesadas, que nem sempre alcançam o equilíbrio. Embora incompleto, o grupo se reúne e se fortalece que Sheba, a garota gêmea transformada em estrela de Hollywood, recorre a eles para resgatar seu irmão gay Trevor, que está morrendo de AIDS em San Francisco. O romance é episódico, mas a saga da turma em SF é um dos seus melhores episódios, enveredando de modo positivo para a ficção de crime, com direito aos diálogos agudos de Conroy moldando-se ao padrão hard boiled. Com Trevor, o grupo volta a Charleston, onde ele se recupera e o pessoal se fortalece bem a tempo de enfrentar o furacão que vem revirar ainda mais o lodo do terrível passado de alguns deles, que inclui abuso infantil e traições de gente muito próxima. Conroy não doura a pílula ao tratar desses assuntos graves, mas também não chafurda neles. Ele pode até estar atenuando traumas e tragédias, assim como se esquiva de levar o modo ficção de crime até o final. O que parece lhe interessar mais é a reafirmação da amizade e do amor pela vida, da força interior que seus personagens encontram um no outro e na cidade que eles amam. Essa foi a tônica da escrita de Conroy, às vezes dura e macabra o bastante para identificá-lo com o “gótico sulista”. Seu estilo sempre exuberante, exagerado, foi um dos fatores que me fez enxergar no estilo “superescrito” (dele, de Stephen King, Anton Myrer, Cormac McCarthy, William Faulkner e outros) um transbordamento que assinala o amor pela vida na literatura. Se o romance é desigual, ele como a obra final de Conroy reforça o “módulo” que ele buscou em sua obra toda, centrado na sobrevivência do trauma e no reconhecimento das ambiguidades centrais de família, amizade e comunidade. Parafraseando o nosso Guimarães Rosa, viver exige coragem.

 

Arte de capa de Fernando Issamo.

Sete Monstros Brasileiros, de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Fantasy, 2014, 114 páginas. Capa e ilustrações de Fernando Issamo. Brochura. Braulio Tavares é um dos melhores escritores que a Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira (1982-2015) produziu. Seu primeiro livro de contos, A Espinha Dorsal da Memória (1989), ganhou o Prêmio Caminho Ficção Científica, de Portugal, e ele recebeu um Prêmio Jabuti em 2009 pelo livro para crianças A Invenção do Mundo pelo Deus-Curumim. Este Sete Monstros Brasileiros é, se a memória não falha, sua quarta coletânea de histórias. Eu certamente gostaria de ter sabido do seu lançamento mais cedo.

Braulio traz para uma perspectiva adulta de horror o tema folclórico que vinha explorando como literatura infantil. Na introdução, ele observa que há uma tendência na direção do uso do folclore brasileiro na ficção especulativa nacional, e cita Simone Saueressig, Christopher Kastensmidt e Felipe Castilho. Entre os monstros reunidos por ele neste livro estão o lobisomem, o bradador e o corpo-seco, o papa-figo, a Iara e o capelobo — às vezes intencionalmente misturados. Há um tom de história contada que perpassa as sete narrativas, e em alguns casos, uma aproximação econômica mas calorosa, da condição de vida dos personagens. Esse mesmo tom aparece numa construção mais complexa, como costumavam ser os contos da primeira fase de Braulio, em “A Expedição Monserrat”. Já “Os Mortos-VIPs” brinca com a moda dos zumbis na literatura e no cinema. O conto “Bradador” tem uma força incomum, oferecendo também uma condenação da corrupção endêmica da sociedade brasileira, e acabou entrando em As Melhores Histórias Brasileiras de Horror — uma importante antologia montada por Marcello Branco & Cesar Silva, que deverá sair ainda este ano. Outras histórias saídas deste livro de Braulio Tavares, como “Gotas de Sangue”, também poderiam entrar nessa que deve ser a primeira antologia retrospectiva do gênero, no Brasil. A introdução e o posfácio do autor são interessantes e a arte digital de Fernando Issamo na capa e no miolo de Sete Monstros Brasileiros são muito fluidas e competentes, mas a diagramação do livro e a reprodução sem contraste meio que matou a maioria delas. O que vale mesmo são os textos, que eu recomendo vivamente. 

 

Quadrinhos

Arte de capa de Will Conrad & Ivan Nunes.

Comunhão, de Felipe Folgosi (texto) e J. B. Bastos (arte). São Paulo: O Instituto dos Quadrinhos, 2017, 144 páginas. Capa de Will Conrad & Ivan Nunes. Álbum. Comprei este álbum gigante na TrekkerCon 2017. É mais uma bonita história em quadrinhos escrita e produzida pelo ator e roteirista Filipe Folgosi, a partir de campanha de crowdfunding feita com o Catarse. A primeira, Aurora (2014), eu resenhei no Who’s Geek. As duas realizam roteiros de cinema que ele desenvolveu depois de estudar nos Estados Unidos, na UCLA. Esta é uma história de horror, sugestão de um colega de Folgosi no curso. Ela segue a americana Amy e seu grupo de amigos, praticantes de um reality show de sobrevivência e corrida em trilhas localizadas em diversos países. Depois de uma tragédia de inverno, quando alguns amigos morrem ao atravessar um rio, ela se volta para a religião. Mais tarde, Amy e sua equipe estão no Brasil para uma etapa da competição, onde ela encontra um ex-namorado brasileiro, Dani. Todos resolvem fazer um treino na Mata Atlântica, onde se deparam com um reverendo que é uma figura tipo Kurtz (de Coração das Trevas, de Joseph Conrad) com a cara de Bryan Cranston em Breaking Bad, dominando uma tribo indígena instalada junto a um pátio ferroviário abandonado.

Amy terá sua fé testada por atos brutais motivados pela loucura mística do vilão, e seus amigos passarão por um teste ainda mais cruento de sobrevivência. Brigas de facão, empalamento, rituais de canibalismo sincretizado com a eucaristia — o leitor está no terreno dos filmes de Sexta-Feira 13 e de Halloween, com a diferença da ambientação tropical e da profundidade dada aos dilemas de Amy. Inclusive, com uma bela virada no final. A narrativa mantém um ritmo intenso o tempo todo. Por isso, provavelmente, ela foi cruel com os índios engabelados pelo reverendo, o detalhe que mais me incomodou. A arte em preto e branco de Bastos privilegia a linha, com tracejados e meios-tons apenas no fundo, e uma linha mais valorizada no contorno externo das figuras — lembrando a arte de Mike Allred ou de Geof Darrow. O formato é bem grande, aproximadamente 22 x 31 cm. Isso o torna meio perecível nas bancas de revista, mas traz ao leitor o prazer especial de ver tantos quadrinhos na página, resultando num ritmo incomum da narrativa. Coisa rara, hoje em dia.

 

Outras Leituras

The Imagitron: The Simon Stalenhag Art Gallery on the World Wide Web. Por intermédio da rede social Pinterest, fui parar no site do artista sueco Simon Stålenhag, agora exibindo artes digitais de seus livros ilustrados criados por ele e financiados via crowdfunding: Tales from the Loop (2015) e Things from the Flood (2016). Neles, um experimento de acelerador de partículas dá errado e aparentemente abrindo portais para a vinda de máquinas e criaturas fantásticas, a uma década de 1980 alternativa. Muitas das imagens revisitam a paisagem da Suécia, transformada pela presença desses objetos e criaturas, mas também há cenas que exploram outros lugares no mundo — tudo em uma atmosfera de melancolia, solidão e estranhamento. Algumas imagens dessa estranha “invasão” sugerem também uma invasão cultural americana e de um consumismo desastroso. Há um pouco de fotorrealismo e de surrealismo nessa arte de ficção científica, por si mesma perturbadora e instigante.

 

Arte de Simon Stalenhag.

 

 

Locus 673: Arte de capa de Francesca Myman.

Locus—The Magazine of the Science Fiction & Fantasy Field 673 (volume 78, N.º 2), fevereiro de 2017. A Locus é a trade magazine do campo da FC e fantasia desde que seu criador, Charles N. Brown, rodou o mimeógrafo pela primeira vez em 1968. Uma espécie de Publishers Weekly desse campo. Sou o “correspondente brasileiro” desde 1987 ou por aí. Boa parte do pagamento pelas minhas contribuições são em extensão da minha assinatura, por isso tenho a felicidade de receber a revista em casa, embora quase sempre alguns meses depois de baixar a edição em PDF a que os assinantes estrangeiros têm direito. A revista agora tem o miolo colorido, tornando-a ainda mais simpática.

Uma das suas grandes atrações é a cobertura do estado anual da arte, o “ano em resenha”, que aconteceu nesta edição de fevereiro. Mas antes eu li a entrevista com o galês Alastair Reynolds, o grande nome da new space opera. Eu já tinha enfrentado um livro dele antes, e a entrevista renovou meu interesse. A revista tem muitos resenhadores interessantes, e normalmente eu leio com maior interesse as colunas de Gary K. Wolfe e Russell Letson, que, desta vez, cobriu a antologia original Bridging Infinity (sobre super-engenharia), de Jonathan Strahan, ed., que pretendo adquirir se tropeçar nela em alguma livraria. Também resenhou dois romances do escocês Ken McLeod (escritor que não pretendo revisitar) e um do americano Greg Bear, Take Back the Sky, parte da primeira série de space opera militar de Bear. Wolfe resenhou, entre outros, Ken Liu, de quem nosso amigo Christopher Kastensmidt é grande fã. Noutra seção da revista, Rich Horton faz um bom apanhado das questões por trás da entrada da FC e fantasia nas antologias anuais “Best American” da editora Mariner, importantes no mainstream. A antologia que ele resenha, Best American Science Fiction and Fantasy 2016 foi editada por Karen Joy Fowler & John Joseph Adams. A escritora Kameron Hurley tem uma coluna eventual na revista, mas geralmente me esquivo dela por achá-la meio insossa. Só que desta vez ela acertou na mosca, com “If You Want To Level Up, Get Back to the Basics”, que me obriguei a copiar inteirinha, no meu caderno de escritor.

“Há poucas coisas para mim que são igualmente tão deprimentes e energizantes, quanto ler um livro realmente ótimo. Grandes livros são a razão de eu ter entrado nesta área em primeiro lugar, daí o motivo de eu ficar tão frequente chocada quando ouço de outros escritores profissionais que eles não leem mais.” —Kameron Hurley, “If You Want To Level Up, Get Back to the Basics”.

Hurley reveza a coluna “Commentary” com o canadense Cory Doctorow (sobre FC e cultura digital). Esse espaço já tinha existido antes, mas eventual e sem um titular. Na edição de abril de 1999, cheguei a publicar nela o meu texto “The Next Wave”, em que chamava a atenção para a importância e o crescimento de uma FC de cunho étnico e internacional: “A próxima onda na ficção especulativa provavelmente trará novas cores para o campo, e todo um conjunto de visões perturbadoras para confrontar o futuro de consenso”, afirmei. É claro que (conforme a piada vigente desde a década de 1990 no fandom paulista) eu estava errado. Antes do reposicionamento de uma FC mais internacional e diversa junto ao mainstream da FC, surgiram outras “ondas” ou “movimentos” que chamaram a atenção — como a new space opera e o New Weird, talvez não tão interessantes para a interpolinização e a abertura do gênero para outras perspectivas. (Nesse sentido, apenas o movimento da “mundane SF” pode ter chegado perto.) A julgar pela cobertura de 2016 na Locus, essa “onda” finalmente chegou. Liz Bourke trata da diversidade sexual no seu texto, Colleen Mondor saúda a instauração do novo paradigma no campo da literatura jovem adulta (como o pessoal do Manifesto Irradiativo aqui no Brasil já anunciava), e Rich Horton lamenta que a FC tradicional não esteja engajada contra a Era Trump, mas celebra o aumento da FC traduzida. Finalmente, Geoff Ryman (o fundador da mundane SF) trata da eclosão da FC africana (em língua inglesa).

No meu artigo, eu dizia que um grande obstáculo à integração das muitas FCs internacionais ao mundo de língua inglesa era o comercialismo inerente ao gênero, que impedia as editoras de investir em traduções: “quando você pensa na FC como uma ficção comercial para exportação, parte de uma tentativa de controlar a economia do lugar que importa, qualquer estratégia que contemple a troca cultural ou a interpolinização não tem razão de ser.” Eu estava citando gente como Bruce Sterling e Gwyneth Jones, mas o interessante do texto de Mondor, por exemplo, é que exatamente o comercialismo do campo que representaria uma fragilidade das editoras a ser explorada pelas demandas de público e grupos de pressão:

“A diversidade se tornou um tópico significativo de discussão no meio editorial e especialmente quanto a livros para crianças e adolescentes. Leitores, bibliotecários e livreiros estão exigindo mais representação não apenas de quem assina os livros e nos personagens, mas ambientação e enredo também, e a indústria se arrisca se ignorá-los.” —Colleen Mondor, “YA in 2016”.

Ao mesmo tempo, ler o texto de Ryman me deu o insight de que a FC africana e outras de Terceiro Mundo estão sendo favorecidas pela integração da ficção publicada na internet, às considerações editoriais do mundo de língua inglesa. A internet acaba tendo impacto não só na articulação dos grupos de pressão, mas até pelo amadorismo das suas publicações, que parcialmente igualam o campo: um blog ou revista eletrônica pode ter tanta força quanto uma revista impressa; algo mais difícil, no tempo da divisão entre revistas profissionais, semiprofissionais e fanzines.

 

Locus—The Magazine of the Science Fiction & Fantasy Field 677 (volume 78, N.º 6), junho de 2017. Quando Orson Scott Card esteve no Brasil em 1990 para a I InteriorCon, perguntei a ele sobre sua discussão com o escritor John Kessel no fanzine Short Form. Scott me disse que Kessel podia fazer muito mal à ficção científica. Suas ideias, é claro, de importar os valores do mainstream literário para a FC. Esta edição da Locus traz uma entrevista com ele, em que ele afirma que era leitor de FC desde criança, em uma família de classe trabalhadora. Kessel foi parar na universidade, onde se estabeleceu como professor de cursos de escrita criativa. Na entrevista, ele fala sobre seu novo romance, The Moon and the Other, em uma carreira não muito prolífica. Também sobre a Era Trump, o novo assunto de preferência da comunidade de FC e fantasia nos Estados Unidos. Mas já no fim da entrevista ele conta que era um fã doido de FC, que foi seduzido pela alta literatura. “Eu queria trazer os valores da literatura para a ficção científica”, declara. “Queria tratar a ficção científica como a academia tratava as obras que eu estudava. Todo jeito que eu conseguia misturar essas duas coisas, eu buscava misturar. Também estou dividido quanto aos valores dos dois tipos de literatura — ficção de gênero e ficção literária.” E ainda:

“A ficção literária que eu estudava na pós-graduação investia em personagem, em estilo e escrita e prosa. Enredo era o tipo do segredo sujo, na melhor das hipóteses, uma necessidade suja. Enquanto a ficção científica tende a investir um bocado em narrativa e nos conceitos por trás dela, e frequentemente diminui os personagens e o estilo da prosa. Eu queria ver se conseguiria fazer todas essas coisas juntas.” —John Kessel, “Over the Moon”.

Hoje, e demonstrando alguma evolução do seu pensamento, Kessel lamenta que os novos escritores não tenham contato com a tradição pulp do gênero. “Toda a tradição [do editor] John W. Campbell não significa nada para os novos escritores”, ele diz. E:

“De certas maneiras, as revistas pulp e Campbell e os escritores que vieram depois, reagindo contra ele, eles criaram a sua própria cultura, porque o mundo da literatura estava fechado a eles — não tinham qualquer acesso a ele, eles nunca seriam reconhecidos. Eles fizeram suas próprias regras. Era uma cultura de gueto, mas tinha o seu vigor, onde não tinham que se preocupar [com o crítico Edmund Wilson] vindo dizer a eles o que era o certo e o errado. […] Então eles fizeram suas próprias regras, sua própria literatura, o seu cânone, um alicerce sobre o qual as coisas poderia ser feitas, que os sustentaram e criaram obras interessantes. Essa ficção é valiosa, porque não seguem o mainstream do modernismo americano e da ficção judaica do pós guerra e todas as outras coisas que eram consideradas como a escrita série na América de meados do século 20. Muitos desses escritores assumiam certo orgulho do fato de não serem elitistas, de serem trabalhadores nas trincheiras.” —John Kessel.

A outra entrevistada é a escritora australiana Cat Sparks, exatamente da minha geração, e alguém que participou ativamente do fandom de FC antes de se voltar para a escrita e chamar a atenção com o romance Lotus Blue (2017). Além da identificação com ela, apreciei a preocupação de Sparks com o aquecimento global e mudança climática — assunto que sofreu certa resistência na FC americana há uns 8 ou 10 anos mas que agora teme entrado com força. Sparks cita o americano Kim Stanley Robinson como um autor que antecipou muito do caminho da FC nessa direção, e diz:

“Eu não sentei para escrever uma história de mudança climática, mas é fácil ver como acabei fazendo isso. Meu doutorado ainda não-terminado examina o ponto de intersecção da ficção científica de ecocatástrofe e da ficção sobre o clima. […] Pessoalmente, eu choro de tédio com [a ideia] do escolhido que salva o mundo. Salvar o nosso mundo real vai ser um esforço de grupo.” —Cat Sparks, “Strange Directions”.

Russell Letson, que se especializa em FC hard e em séries, resenhou a new space opera Infinity Engine de Neal Asher, e Convergence, de C. J. Cherryh, o 18.º livro de uma série na qual eu estou de olho, especialmente depois de ler dois romances da autora este ano. Cherryh foi muito importante nas décadas de 1980 e 90. Tom Easton, o crítico da revista Analog, chegou a afirmar que, “no seu melhor, ela me parece estar fazendo mais par moldar o futuro da FC do que qualquer outro escritor vivo”. Demorei para assimilar o estilo telegráfico e enérgico dela, mas agora quero mais. Na Locus, John Langan resenha dois livros de horror, e me interessei por Behold the Void, de Philip Fracassi [sic], justamente por trazer histórias do “tipo Além da Imaginação” — uma influência que eu também persigo (vi essa série na TV!). A Locus 677 também trouxe duas instâncias de uma apresentação relativamente nova, o “Spotlight On”. Primeiro, sobre Scott H. Andrews, editor da revista eletrônica Beneath Ceaseless Skies, dedicada à “fantasia de mundo secundário com ênfase literária ou nos personagens”. Depois sobre Heather Shaw, editora da revista eletrônica Persistent Visions, dedicada especificamente a servir de plataforma a vozes marginalizadas.

—Roberto Causo

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