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Leituras de Novembro de 2020

Histórias em quadrinhos nacionais dominaram as minhas leituras em novembro, numa investigação da interface entre fanzine e publicação profissional, e de quadrinhos autorais e de auto-expressão. Também destaco a novela de horror cósmico de Ramiro Giroldo e uma antologia de fantasia e ficção científica ambientada na Bahia.

 

Arte de capa de Vincent Di Fate.

Space Opera, de Brian Aldiss, ed. Nova York: Berkley Medallion, 1977 [1974], 344 páginas. Arte de capa de Vincent Di Fate. Paperback. Esta antologia montada por Aldiss (1925-2017) na Inglaterra e publicada dos dois lados do Atlântico foi fundamental para dar um novo fôlego à space opera dentro da ficção científica, repensada como um espaço de autorreferência nostálgica dentro do gênero e modo de evocar temas grandiosos com uma linguagem pulp. Aldiss chega a dizer que a space opera já estaria morta, naquela altura. Abre, na seção “Será Tudo uma Ilusão”, com um conto de Robert Sheckley, de quem Aldiss era fã: “Zirn Left Unguarded…” (1972). Apresenta o tipo de uso gozador dos ícones da FC próprio de Sheckley, mas está longe de ser space opera. Já “Honeymoon in Space” (1901), de George Griffith, tem aventura o suficiente para ser lido como um precursor do subgênero. A história é parte de uma série reunida em romance fix-up. E “Tonight the Sky Will Fall” (1952), de Daniel F. Galouye, é uma novela intrigante, com algo de thriller e ambientada apenas na Terra; space opera apenas na acepção muito particular de Aldiss.

A seção “‘Precipices of Light that Went Forever Up…’“ abre com “The Star of Life” (1959), de Edmund Hamilton, pioneiro da space opera e criador do conceito do império galáctico, aqui em uma expedição a um astro estranho, em uma narrativa também mais limitada do que o esperado. “After Ixmal” (1962), de Jeff Sutton, é uma curiosa história de conflito mundial vista pelo ponto de vista de uma inteligência artificial megalomaníaca. E “Sea Change” (1956), de Thomas N. Scortia, trata de robôs que se unem para abandonar a humanidade e partir do Sistema Solar para as estrelas.

A seção “Exile Is Our Lot” traz quatro textos, e o primeiro é “Colony” (1953), de Philip K. Dick, expressão de paranoia em que, numa colônia planetária, um alien metamorfo ataca os colonos. É seguido de um excerto do romance The Sword of Rhiannon (1953), de Leigh Brackett, outro grande nome da primeira fase da space opera e a única mulher no livro. “All Summer in a Day” (1953), de Ray Bradbury, é tocante narrativa ambientada em uma colônia planetária em que chove há uma geração, e ninguém acredita na existência do sol… Nada de space opera, porém. Jack Vance escreveu muito dentro do subgênero, mas o seu “The Mitr” (1953) é justamente mais bradburiano que aventuresco. A última seção é “The Godlike Machines”, aberta com uma história de A. E. van Vogt, “The Storm” (1943), outro autor favorito de Aldiss (junto com Bradbury e Dick). Nessa noveleta, humanos fazem contato com uma civilização de robôs que se instalou na Grande Nuvem de Magalhães. Em “The Paradox Men” (1949), de Charles Harness, os homens-máquina se unem para abandonar a humanidade e partir para as estrelas. Curto, “Time Fuze” (1954), de Randall Garrett, coloca um terrível dilema sobre a tripulação da primeira nave com propulsão mais rápida que a luz: na primeira viagem, descobre-se que ela tem o “efeito colateral” de transformar sóis em novas… “The Last Question” (1956), de Isaac Asimov, é um conto muito reproduzido, sobre um computador construído por uma civilização galáctica e que assume poderes quase divinos. Obviamente, a baliza de Aldiss para esta antologia difere muitas vezes do que entendemos por space opera, ficando a impressão de que ele a usou mais para promover alguns autores de sua preferência.

 

Arte de capa de Hanuka Andrade.

Estranha Bahia, de Ricardo Santos, Alec Silva & Rochett Tavares, eds. Salvador: EX! Editora, 2019, 192 páginas. Arte de capa de Hanuka Andrade. Brochura. Esta antologia original é obviamente um projeto ambicioso, tanto pela qualidade gráfica quanto pela extensão das narrativas que reúne sob o tema regional, explorando a paisagem física e cultural de um dos estados mais antigos do Brasil. Deve se enquadrar, a partir da definição do pesquisador Alexander Meireles da Silva, dentro da tendência dominante da Quarta Onda da Ficção Científica Brasileira — diversidade étnica/sexual, e regionalidades. Ela conserva, porém, a remissão à ficção pulp, própria da Terceira Onda. De saída, chama a atenção a mistura de ficção de detetive e ficção científica de “Raças”, de Ricardo Santos, com seu verniz cyberpunk em uma narrativa dinâmica sobre alienígenas que convivem conosco — metáfora para o quanto os turistas estrangeiros determinariam a política e a segurança de Salvador. Em contraste, a noveleta “Canudos XXI”, de Isabelle Neves, é uma narrativa de horror que se lastreia nas atrocidades de Canudos e apresenta um menino que, na comunidade de Nova Canudos em 1997 (cem anos após o massacre), enfrenta a Morte, que vem cobrar uma dívida. Uma das melhores histórias do livro.

“Joel das Almas” também é ficção de horror, mas em tom bem diferente. Um conto mais urbano e envolvendo terreiros de umbanda e um caçador de demônios. A autora é a gaúcha Evelyn Postali. Mais horror está em “O Profeta do 666”, de Tarcísio José da Silva, narrativa claustrofóbica de um jornalista obrigado, por uma aparição, a relatar em quatorze segmentos os fatos violentos e sobrenaturais ocorrido em um antigo quarto de pensão. Os editores agruparam o horror como núcleo da antologia, fechado por uma quarta história, “Enterrados a Respirar”, do autor português Alexandre Cthulhu. Na história, um político corrupto português arranja uma amante brasileira e se torna alvo da vingança do marido traído, executada com muitas reviravoltas em uma propriedade baiana.

Se a FC abriu a antologia, é a fantasia que a fecha. “Em Busca da Disgraça da Pedra Azul”, da catarinense Cristiane Shwinden, é uma deliciosa história que combina humor, gíria regional e elementos da fantasia épica jogados na Salvador contemporânea: um casal de garotos tem que desvendar charadas e recolher objetos mágicos necessários para invocar as entidades afro que impedirão a invasão de Salvador por um mago gringo. Outro ponto alto da antologia. Mas é a noveleta “Quibungo”, do carioca Rochett Tavares, que a conclui. A história se passa na Bahia do século 17, e o protagonista é um jovem capturado como espólio de guerra na África pelo império de Daomé e enviado ao Brasil, onde eventualmente foge do cativeiro. Seu perseguidor é outro africano, mas um que ganhou o apreço do senhor como capitão do mato, um caçador de fugitivos. Outros personagens são um guerreiro maia e um exu. O conflito que se segue sugere uma narrativa que penetra o território do Brasil Colônia que Christopher Kastensmidt abriu para a fantasia heroica, com a série A Bandeira do Elefante e da Arara. Tavares, porém, impõe o seu próprio projeto, com tom, imagética e evocações culturais próprias, fechando com drama e intensidade uma antologia que merece a atenção do leitor de ficção especulativa.

 

Arte de capa de Guilherme Augusto.

O Tesouro de Antônio Silvino, de Braulio Tavares. Mossoró-RN: Editora Cordel, Coleção Cordelteca Vol. 32, 2ª edição, 2020 [2018], 20 páginas. Apresentação de Kydelmir Dantas. Arte de capa de Guilherme Augusto. Folheto. Este cordel foi uma das recompensas da campanha de financiamento coletivo da Editora Bandeirola, de São Paulo, que trouxe de volta duas das melhores coletâneas brasileiras de histórias de FC e fantasia que se conhece: A Espinha Dorsal da Memória e Mundo Fantasmo, de Braulio Tavares.

O poema narrativo em sextilhas trata de um ex-cangaceiro que teria a incumbência de guardar um antigo butim, distribuindo-o em confiança a um amigo. Antônio Silvino (1875-1944) realmente existiu e foi objeto de vários cordéis (por Leandro Gomes de Barros, por exemplo). Está representado na arte de capa de José Augusto. Na versão poética de Braulio Tavares, há um esboço biográfico, é claro. Mas o desfecho gira em torno da sua visita ao guardião do tesouro, para reavê-lo.

O poema é construído com o cuidado e a expressividade características de Braulio Tavares, um dos maiores nomes da ficção científica e do conto fantástico brasileiros, de todos os tempos. O final irônico incorpora uma observação sobre a transitoriedade da vida e dos valores que atribuímos às coisas.

 

Arte de capa de Denis Lenzi.

Red Hookers, de Ramiro Giroldo. São Paulo: Editora Cabana Vermelha, 2020, 144 páginas. Capa de Denis Lenzi. Brochura. Nesta novela de horror, um bom momento da expressão “lovecraftiana” do gênero, e um raríssimo exemplo de livro atrelado a um filme de curta metragem: Red Hookers (2013), dirigido por Larissa Anzoategui e escrito pelo mesmo Ramiro Giroldo, que acontece de ser um destacado pesquisador de ficção científica brasileira, autor de Ditadura do Prazer: Sobre Ficção Científica e Utopia (2013). A produção brasileira participou do H. P. Lovecraft Film Festival, em Portland, OR (nos Estados Unidos). Seu título remete ao conto de Lovecraft, “Horror in Red Hook” (1927). A capa de Denis Lenzi é uma das melhores que já vi, em um livro do gênero, e o book design também agrada.

A história tem outras marcas lovecraftianas, algumas bem explícitas, mas trata-se essencialmente de um romance curto de body horror e horror cósmico. O prólogo narra um ritual envolvendo uma criatura cheia de tentáculos, devorada por uma sacerdotisa que é subsequentemente morta por uma outra. A história acompanha duas irmãs em São Paulo: Karen, a certinha estudiosa, e Karina, sua irmã prostituta e usuária de drogas, vítima de agressão e estupro. O dilema das duas irmãs vai espiralando em torno da boate Red Hookers, que, obviamente, é mais do que um prostíbulo. Envolve a vingança contra “Zebu”, playboy violento, proto-bolsominion e estuprador de Karina; o surgimento de um soro que transforma, monstruosamente, o corpo do usuário; a figura venerável do especialista acadêmico em ocultismo; um grimório antigo, guia dos rituais; uma feminilidade dominante e monstruosa. Solano, amigo das irmãs e também natural da cidade do interior da qual vieram, se aproxima demais de forças que desconhece, motivado pelo desejo de se redimir de um incidente do passado. E Karen, ao entrar na Red Hookers atrás da irmã, pode ter se transformado em nova protagonista do sacrifício.

A prosa do autor é econômica, de eficiência tranquila e direta, raramente perdendo o passo ou deixando de chocar e impressionar o leitor com descrições escatológicas e sangrentas. O mundo que retrata é grotesco, nauseante, irredimível. Ainda assim, os personagens são vivos e envolventes, e a narrativa conduzida com mão segura até o clímax onírico e mais do que satisfatório. Há nesta estreia de Ramiro Giroldo não só a reverência intertextual a Lovecraft e sua criação, mas também respeito pelas lições do horror dos anos oitenta no cinema e na literatura, com uma saudação ao cinema brasileiro de horror e o seu componente escancarado de sexploitation. Fiquei muito bem impressionado, acreditando que Ramiro Giroldo é uma revelação no campo do horror brasileiro. Aguardo novos livros dele, no futuro próximo.

 

Arte de capa de Ron Walotsky.

Beyond Heaven’s River, de Greg Bear. Nova York: Tor Books, 1987 [1980], 192 páginas. Arte de capa de Ron Walotsky. Paperback. Outro dos primeiros romances de Greg Bear, também doado a mim por Alfredo Keppler, um ex-presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica. Tem premissa engenhosa: Yoshio Kawashita, jovem piloto militar japonês, é abduzido durante a Batalha de Midway, na Segunda Guerra Mundial, e instalado em um planeta remoto. Redescoberto, é adotado por Anna Nestor, empresária do transporte espacial que passa a patrocinar a sua busca por entendimento e identidade.

A premissa claramente se inspira em casos de soldados da IIGG que emergiram na década de 1970 e 80 como involuntários viajantes temporais, redescobertos em ilhas do Pacífico onde tinham ficado para trás. A premissa também evoca o fenômeno ufológico dos “foo fighters” avistados durante a guerra. O caso do personagem, porém, é o de um homem abduzido por alienígenas desconhecidos tanto no século 20 quanto no futuro do século 24, vivendo num habitat solitário em um planeta inóspito, como Billy Pilgrim na sua jaula em Tralfamadore, o mundo-zoológico de Matadouro 5 (1969), de Kurt Vonnegut.

A seção do livro em que Kawashita e Nestor se jogam em uma jornada para encontrar respostas ao drama vivido pelo ex-aviador é muito distinta na sua evocação da galáxia do futuro distante, mas o desfecho é, em última instância, desapontador — em choque, Kawashita mal consegue lidar com a estranheza do confronto com as forças que desviaram o curso da sua existência. Como de hábito, Bear não finge que o ser humano é capaz de lidar casualmente com destinos cósmicos.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Henry Jaepelt.

Maldito Seja Henry Jaepelt, de Douglas Utescher, ed. São Paulo: Ugra Press, outubro de 2013, 80 páginas. Arte de capa de Henry Jaepelt. Brochura. Adquiri este livrinho em uma das duas vezes que visitei a loja Ugra, em São Paulo. Henry Jaepelt é um artista-fã que eu conheço desde a década de 1980, por seus trabalhos em vários fanzines (Hiperespaço, Megalon, Juvenatrix, etc.). Esta bem acabada publicação é amadora, parte da linha de livros Maldito Seja, dedicada a artistas amadores ativos na cena dos fanzines — cena que tem sido objeto, em anos recentes, de uma substancial produção crítica que encontramos especialmente na Editora Marca de Fantasia, da Paraíba.

O livro inclui entrevista ao editor Douglas Utescher, em que Jaepelt reafirma a sua convicção na arte amadora, que se esquiva de prazos e de pressões para se enquadrar naquilo que o mercado demanda ou condiciona. Os exemplos são, necessariamente, histórias em quadrinhos curtas, dentro da sua abordagem metafórica, organicista e delirante, com os desenhos elaborados, de linha valorizada com variações e quebras, e efeitos pontilhistas que remetem a Moebius. Foi ótimo saber mais sobre este destacado artista-fã, e reler ou ler pela primeira vez histórias muito pessoais e de uma ética de trabalho tão singular, que toca tanto o meu coração de velho fanzineiro.

 

 

Arte de capa de Mike Deodato.

3000 Anos Depois, de Mike Deodato (arte) & Deodato Borges (texto). São Paulo: Criativo/Opera Graphica, 2015, 74 páginas. Arte de capa de Mike Deodato, Jr. Capa dura. Este é um álbum que eu conheço da sua versão semiprofissional, publicada lá na década de 1980, de um exemplar emprestado do quadrinista campinense Alvimar Pires dos Anjos. Mais tarde, um segmento chegou a aparecer na revista profissional Andróide N.º 1 (Estúdio Ofeliano de Almeida/Press Editorial), em 1987. É um fato muito inspirador que o álbum tenha sido republicado com uma produção editorial de primeira (por Dario Chaves e em capa dura). Mike Deodato Jr., é claro, é um gigante dos quadrinhos internacionais, tendo produzido para DC e Marvel.

O roteiro de Deodato Borges, pai de Mike Deodato, é um misto de pós-apocalipse nuclear e invasão alienígena. Não muito bem articulado como enredo, mas com uma expressão poética que lhe dá um ar panorâmico e fornece a sua própria coesão. Poemas ilustrados eram uma tendência muito forte nos fanzines brasileiros de quadrinhos na década de 1980, e 3000 Anos Depois faz sua vênia a essa tendência, composta com aquela denúncia sincera mais algo ingênua do estado do mundo na época, semelhante à abordagem de Jeronymo Monteiro. Esse quadro incluía a Guerra Fria e a ameaça nuclear, dramatizados na HQ. Assim como a arte de Mike homenageia algumas figuras das HQs internacionais que circulavam no Brasil e que se aproximavam da sua abordagem de então — como 5 por Infinito, de Esteban Maroto, e o personagem Hunter, da revista Kripta. Para esta edição o artista preparou um spread gigante com soluções digitais que expressam toda a exuberância da sua arte.

Completam o livro, a HQ “V.I.G. (Visitante Inter-Galáctico)”, seguida de “Uma História em 4 Tempos (Narrativa em Portfólio)”, que é um poema ilustrado; e então a HQ metalinguística “Os Super-Heróis Moram ao Lado”, com efeitos de luz, sombra e drapejamento que lembram Bernie Wrightson; textos apreciativos dos editores, sobre pai e filho, ladeados de comentários escritos por personalidades nacionais e internacionais dos quadrinhos. E ainda, uma entrevista com o artista, fechando com um conto de ficção científica ufológica escrito por Deodato Borges, “O Mistério da Serra do Disco”, e um álbum de família. Sem dúvida, uma edição muito especial, obrigatória para os fãs do nosso maior nome nas histórias em quadrinhos internacionais.

 

Arte de capa de Mike Deodato.

Quadro, de Mike Deodato, Jr. São Paulo: Editora Mino, julho de 2015, 80 páginas. Prefácio de Helcio de Carvalho. Posfácio de Janaina de Luna. Arte de capa de Mike Deodato, Jr. Brochura. É claro, o artista também merece uma edição tão caprichada quanto esta, com o seu primeiro trabalho autoral, pela Editora Mino. O álbum vem em uma slipcase de plástico rígido, onde vão aplicados os letreramentos da capa. O volume todo é um feito de artes gráficas. Cada trabalho presente nele aqui conta com uma apresentação do próprio Mike Deodato. Na primeira, ele informa que, depois de sair de uma entrevista com outros quadrinistas, se deu conta de que era o único sem um trabalho autoral. O resultado, de uma grande exuberância artística e versatilidade, em alguns pontos toca nas tendências daquele momento formativo da década de 1980. Não investe em uma narrativa de fôlego com um herói próprio, mas em vários fragmentos reflexivos, irônicos e emocionais.

“Dor” é primeira HQ, na qual um personagem com a fisionomia do artista descobre que sua passagem pelo dentista se transforma em uma história de horror — gênero forte, especialmente em relatos curtos como este, nos anos oitenta. “Sopro de Estrelas” é um poema ilustrado (com um desenho em elaborado autocontraste tipo Sin City), algo muito presente nos fanzines de quadrinhos daquela década. “Coração de Guerreiro”, todo em tons de sépia, dá vasão ao desejo do artista de desenhar fantasia heroica. Salta aos olhos a qualidade cinemática da curta narrativa. Fantasia heroica e fantasia científica eram outras forças da cena das HQs brasucas da década de 1980 (mas praticamente ausentes da nossa literatura).

“A Árvore da Serra” funde um poema de Augusto dos Anjos aos fatos trágicos da vida do herói ambientalista Chico Mendes, combinando aí, mais uma vez, o poema ilustrado e a denúncia social e política, também forte naquele período. “Círculo Vicioso” aparece em um centerfold dentro do álbum, e é uma HQ em forma de disco. Com duas páginas, “Roupas” tem quadrinhos espalhados na primeira, e uma cena de sexo na segunda — o texto é uma poesia. Pessoal e divertida, “Pai” foi feita em cima de fotos de Deodato Borges na cama de um hospital; enquanto “O Que Importa” foi feito para a filha do artista quando ela tinha 23 anos, e exibe um desenho estilizado, infantil mas que brinca com o vínculo do artista com os HQs de super-heróis. Já “Ninguém na Escuta” usa o hiper-realismo mais conhecido dele para retratar o que pensa da religião, e sem uma linha de texto além do título (que aparece no fim). “Insensibilidade” é em preto e branco e com um autocontraste de linhas finas, que Deodato associa a Jim Steranko. A seguinte, “Ponto Final”, retoma em um segundo centerfold, um jogo tonal de cores. Logo depois vem um autorretrato estilizado, em traço solto, sobre a timidez — aflição que Mike Deodato diz sofrer. “Dia da Caça” é outra fantasia heroica, mas em uma pré-história com dinossauros. “Vida, Morte e…” é não um poema ilustrado, mas uma reflexão, com um homem sentado em um banco de praça contemplando a existência. “Elo”, uma contemplação da maternidade, com arte que remete à da capa, fecha mais este desejável volume.

 

Arte de capa de Hector Gómez Alisio.

Samsara, de Hector Gómez Alisio (arte) & Guilherme de Almeida Prado (texto). São Paulo: Editora Globo, 1991, 64 páginas. Arte de capa de Hector Gómez Alisio. Álbum. Guilherme de Almeida Prado é o cineasta brasileiro que dirigiu A Dama do Cine Xangai (1988). Premiado com o Troféu HQ Mix em 1988 e 89, Hector Gómez Alisio é um artista argentino radicado há tanto tempo no Brasil que já faz parte da história dos quadrinhos nacionais. Sou fã do seu desenho. Ambientada em Nova York, Samsara é uma colaboração entre os dois. Mistura de FC de viagem no tempo e ficção de detetive hard boiled, é temperada com sexo, humor e muita referência intertextual irônica. Isso já dá pra sentir pelos nomes — como o do protagonista “John Lovecraft”. Segundo Prado, esta é “a sua primeira experiência com histórias em quadrinhos, e nasceu da impossibilidade de transformar seus sonhos cinematográficos em realidade num país carente de recursos como o Brasil.”

Lovecraft, enquanto recebia uma ordem de despejo, vê na rua a mulher dos seus sonhos, a segue e acaba nocauteado por uma futurista pistola de raios. Mais tarde, ainda seguindo a morena, descobre instalações super-high tech, onde é capturado por um robô e acaba metido na intriga de viagem no tempo. Isso permite ao artista representar várias situações típicas de filmes antigos, incluindo o caso verídico do sequestro do filho do aviador Charles Lindbergh. As andanças do desastrado herói e do seu interesse erótico (a garota é agente de uma polícia temporal) acabam reencenando o clichê sempre dispensável do casal primordial – na pré-história e com direito a dinossauros. As peripécias divertidas não escondem que Prado não acreditava muito no seu material, enxergando este mergulho na ficção científica como um exercício de paródia e pastiche. Obviamente, não é apenas a falta de recursos que nos impediria de possuir um cinema de FC com qualidade (veja o livro Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro, de Alfredo Suppia, a respeito disso).

 

Arte de capa de Shiko.

Piteco: Ingá, de Shiko. Barueri-SP: Panini Brasil/Mauricio de Sousa Editora, 2013, 82 páginas. Arte de capa de Shiko. Álbum. A quadrinista e ficcionista Rita Maria Felix me recomendou este álbum várias vezes. Finalmente, neste mês dedicado à leitura de quadrinhos brasileiros, tive chance de ler o trabalho notável de Shiko, artista de talento excepcional. Piteco é o Brucutu (Alley Op) de Mauricio de Sousa, mas a versão “graphic novel” de Shiko troca os dinossauros por uma exploração mais coerente, muito bem-vinda, da fauna latino-americana do Paleolítico recente. Também é muito rica a sua invenção de indumentária das três tribos que aparecem na história, a começar pelo povo de Piteco, passando pela do povo de Ur, chegando à dos inimigos homens-tigre.

Ficção científica pré-histórica é rara no Brasil: Sambaqui: Uma Estória da Pré-História (1975), de Stella Carr, é uma primeira ocorrência. Há ainda a noveleta “Foi Assim (Talvez)” (2000), de Ivanir Calado, a novela juvenil No Começo de Tudo (2002), de Domingos Pellegrini, e a novela Sambaqui (2008), da paleontóloga Urda Alice Klueger. Mas Piteco: Ingá é também fantasia, com visões xamânicas e aparições de entidades da floresta.

Ameaçados pela falta de água, a turma de Piteco tem que migrar. No processo, sua rechonchuda namorada Thuga é raptada pelos homens-tigre. O herói recruta o amigo trapalhão Beleléu e a guerreira Ogra, e eles vão à luta. Encontram pelo caminho uma espécie de Yara do brejo, saem na paulada com os caras de Ur, pedem ajuda ao tipo da Caapora montado em um tatu gigante, cavalgam aves do terror, enfrentam um morcego gigante, fazem amizade com répteis voadores (licença tomada do tempo dos dinossauros), negociam com os homens-tigre e confrontam o totêmico tigre-dentes-de-sabre gigante deles. Ufa! Genial, Shiko faz o malabarismo perfeito de todos esses elementos. Captura a riqueza étnica da nossa pré-história sugerida pelas hipóteses levantadas em torno do famoso fóssil de Luzia, integrando fisionomias africanas e nordestinas nossas contemporâneas. (Não reclame, filmes como Mil Séculos Antes de Cristo são “californianos na pré-história”.) Mesmo com as hipóteses de origem africana ou melanésia de Luzia sendo contestadas pelo mais recente exame genético do fóssil, Piteco: Ingá se sustenta como uma visão especulativa inspirada naquelas hipóteses. Nesse sentido, vai muito além de um spin-off jovem-adulto da criação de Mauricio de Sousa, por projetar, com um jeito bem-humorado, o mito do encontro das três raças e a diversidade brasileira atual para o nosso paleolítico. Uma realização admirável.

 

Arte de capa de Mauro Fodra.

Desafiadores do Destino: Disputa por Controle, de Felipe Castilho (texto) & Mauro Fodra (arte). Porto Alegre: Avec Editora, 2018, 64 páginas. Arte de capa de Mauro Fodra. Álbum. O autor best-seller Felipe Castilho me autografou este deslumbrante álbum de fantasia steampunk no Artists Alley da Comic Con Experience de 2018, em São Paulo. Trata-se de aventura em um passado alternativo no qual a Atlântida não afundou no mar e seres mágicos povoam a Terra. Um conselho de sábios residindo em Londres envia uma equipe multiétnica de heróis para as Ilhas Falkland (Malvinas) em missão diplomática. O arquipélago do Atlântico Sul é palco de uma guerra entre atlantes e lemurianos (Lemúria, outro continente lendário que, aqui, não teria desaparecido), e um enviado deve fazer um discurso de paz. A chefe da missão é a ruiva sardenta que aparece em primeiro plano na capa de Mauro Fodra: Luna Lefevre, que guarda um demônio ancestral dentro dela.

O enredo de Castilho é firme e forte e cada personagem da equipe tem a sua própria personalidade e papel na intriga. O desenho de Fodra é ao mesmo tempo delicado e dramático, com muitos detalhes finos e uma valorização artística da linha. Assim como um Michael Kaluta, há nele um amor à arte do desenho, e este álbum lhe rendeu um Prêmio Ângelo Agostini de Melhor Desenhista. Mas é preciso elogiar a cor de Mariane Gusmão, que não abafa essas qualidades ao mesmo tempo que se casa, com muitos tons, com a exuberância das minúcias do desenho. Ainda por cima fornece, com truques de brilho, uma sugestão de tridimensionalidade à arte. Mais um gol da linha de quadrinhos da Avec.

 

Arte de capa de Laudo Ferreira.

Cadernos de Viagem: Anotações e Experiências do Psiconauta, de Laudo Ferreira. São Paulo: Devir Brasil, 1ª edição, outubro de 2016, 84 páginas. Prefácio de André Diniz. Arte de capa de Laudo Ferreira. Brochura. Laudo, autor do monumental Yeshua, me autografou um exemplar desta HQ muito especial no evento Start de 2018, quando tivemos chance de conversar e lamentar a morte recente de nosso amigo Douglas Quinta Reis (1954-2017), sócio-fundador da Devir e alguém que editou muitos dos nossos trabalhos.

O gibi de Laudo foi beneficiado com o incentivo do ProacSP, da Secretaria de Cultura do Governo do Estado. Os desenhos são bem estilizados, ao contrário do realismo de Mike Deodato, mas a história se alinha, novamente, com algo daquela tônica mais pessoal e menos comercial das HQs brasileiras da década de 1980 (época do início da carreira do artista). Assim como Laudo, o seu protagonista Miguel é um criador de quadrinhos. Após uma “viagem” causada pelo brasileiríssimo Santo Daime, ele recupera lembranças abafadas da infância vivida no interior, com o pai autoritário que não aceitava a sua vocação e reprimia o seu mundo imaginativo. Esse rememorar balança a vida do psiconauta (neologismo muito feliz), e a memory trip é tratada por Laudo com riqueza de momentos oníricos e signos que incluem fisionomias e paisagens brasileiras, e um carro alegórico que conduz o protagonista desnudo até uma visão cósmica. Além de uma certa action-figure que fala muito à minha geração.

Dá para dizer que Cadernos de Viagem, uma bem-sucedida experiência metaficcional, é também uma história em quadrinhos de autoficção: “Miguel não é Laudo. E é”, afirma André Diniz, no prefácio, destacando o fator que torna esta história tão humana e poderosa. “Sou eu também. E você também.” Com certeza, eu me senti, em certa medida, muito bem representado em suas páginas.

 

Outras Leituras

Arte de capa de

Scientific American Brasil Ano 19, N.º 213, novembro de 2020, Nastari Editores, 66 páginas. A matéria de capa trata de asteroides extra-solares, i.e., originários de fora do Sistema Solar, uma fantástica novidade da astronomia recente. É assinada pelos astrônomos David Jewitz & Amaya Moro-Martín, e trata dos dois corpos interestelares conhecidos, 1I, o famoso ‘Oumuamua, e 2I/Borisov, menos conhecido. Os autores nada mencionam sobre a possibilidade do primeiro ser uma espaçonave alienígena como Rama, de Encontro com Rama (1973), de Arthur C. Clarke (como crê o astrônomo Avi Loeb). Em “O Destino dos Bravos Maias”, Zach Zorich trata — acompanhado de um belo ensaio fotográfico de Christian Rodriguez — de novas descobertas arqueológicas na região do Lago Mensabak (Sul do México). Os demais artigos principais tratam da necessidade de programas sociais que garantam a alimentação adequada na primeira infância; de como a pandemia da Covid-19 alterou o sono das pessoas mundo afora, mexendo até no conteúdo dos sonhos; e as lições da pandemia da AIDS, para o combate à Covid. Nas seções fixas, o jornalista científico e trekker Salvador Nogueira trata da primeira imagem de um buraco negro (feita em 2017).

—Roberto Causo

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Publicações Recebidas: Primeiro Semestre de 2020

Três livros e uma revista estão na nossa lista das publicações recebidas no período.

 

 

Arte de Capa de Hanuka Andrade.

O primeiro livro a chegar este ano pelo correio, cortesia do seu editor, Ricardo Santos, foi a antologia original Estranha Bahia (Salvador-BA: Ex! Editora, 2019, 194 páginas, arte de capa de Hanuka Andrade). É uma bonita produção, com papel de qualidade e diagramação inventiva, além de ilustrações internas. Reúne histórias de fantasia e ficção científica ambientadas na Bahia — um conceito muito simpático, que procura mostrar, segundo a orelha, “uma Bahia além dos clichês e estereótipos, mas sem esquecer nossa cultura, o jeito de ser baiano”.

Os autores são Isabelle Neves, Evelyn Postali, Tarcísio José da Silva, Alexandre Cthulhu, Cristiane Schwinden, Rochett Tavares e do próprio organizador. A ilustração de capa de Hanuka Andrade é uma arte digital de boa execução e movimento dinâmico e agradável. A tipologia pulp da capa me arrancou um arrepio de prazer.

 

 

 

Arte de capa de Túlio Cerquize.

Meus exemplares de crowdfunding de Vislumbres de um Futuro Amargo eu apanhei na tarde de lançamento dessa antologia original organizada por Gabriela Colicigno & Damaris Barradas (São Paulo: Agência Magh, fevereiro de 2020, 200 páginas, arte de capa de Túlio Cerquize) em 15 de fevereiro. A antologia original de histórias de FC apresenta uma seleção de autores novos representados pela Magh: Anna Martino, Lady Sybylla, Waldson Souza, Lu Ain-Zaila, Cláudia Fusco e Roberto Fideli.

A arte de capa é de Túlio Cerquize, e o livro traz ilustrações internas de Renata Aguiar, Deoxy Diamond, Estevão Ribeiro, Roberta Nunes, Stephanie Marino e Roberto Causo, em um projeto visual que também inclui páginas com cores de fundo representando a diversidade que é uma das tônicas dos representados pela Agência Magh. Além de duas ilustrações, também contribuí com o prefácio, que você pode ler aqui.

 

 

 

Arte de capa de Fernando Pacheco.

João Batista Melo me sugeriu para a autora, e Branca Maria de Paula teve a boa vontade de me enviar a sua novela A Luz Paralela (Belo Horizonte: Caravana Grupo Editorial, 2020, 146 páginas, introdução de João Batista Melo, arte de capa de Fernando Pacheco). Outro livro bem produzido, com papel e capa de qualidade e uma boa diagramação. Trata-se de uma novela de ficção científica ufológica ambientada, em boa parte, na reserva ecológica da Serra do Cipó, Minas Gerais.

Escrita com sutileza e espirituosidade, cor local e bons diálogos, apresentando uma protagonista divertida mas de dilemas sólidos e humanos. Já chega como um destaque desse subgênero bem brasileiro da ficção científica, praticado por Rubens Teixeira Scavone, Guido Wilmar Sassi, João Guimarães Rosa, Cid Fernandez, Ivan Carlos Regina, Finisia Fideli e tantos outros desde a década de 1950.

 

 

 

Arte de capa de Francesca Myman.

Chegou em julho a Locus—The Magazine of the Science Fiction & Fantasy Field edição 713, de junho deste ano. Um fato curioso, porque a edição anterior a aportar por aqui foi a 707, de dezembro de 2019.

De qualquer modo, esta é outra edição muito substancial da principal trade magazine do campo da ficção científica e fantasia, uma sobrevivente das transformações da era digital. A edição (com bela arte de Francesca Myman) Traz entrevistas com Madeline Ashby e Tobias S. Buckell, além de coluna por Kameron Hurley e resenhas por Gary K. Wolfe, Liz Bourke, Adrienne Martini, Ian Mond, Paula Guran, Katharine Coldiron, Colleen Mondor, Russell Letson, Paul Di Filippo e outros. A seção de notícias trata dos primeiros cancelamentos de eventos em razão da covid-19. Fato raro, a edição trouxe um capítulo do romance de space opera de Kate Elliott, Unconquerable Sun, pela Tor Books, como excerto promocional. Mais sobre a Locus no site da revista.

 

—Roberto Causo

 

Endereço para envio de publicações: Rua André Dreifus, 109/163 – bloco 2, São Paulo-SP, CEP 01252-010. Em PDF: rscauso@yahoo.com.br

 

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Leituras de Agosto de 2019

O pânico do leitor compulsivo é terminar uma leitura em situação que não permite engatar a seguinte. Uma vez, terminei um livro enquanto aguardava uma reunião que sofreu atraso, e corri até um sebo próximo, para garantir uma nova leitura no metrô de volta. A outra agrura do leitor compulsivo é começar muitos livros quase ao mesmo tempo, perdendo o foco e deixando de completar nenhum deles. Em agosto, comecei meia dúzia de livros. Um deles foi um título de não ficção para complementar uma pesquisa, sendo que li cerca de 100 páginas até entender que ele não me seria útil. Noutro caso, comecei um romance de ficção científica ambientado no futuro próximo e tendo um velho genioso como protagonista. Ele era tão chato que peguei outra FC, esta ambientada no futuro distante — mas também com um velho genioso como protagonista. Como acho que estou a caminho de me tornar eu mesmo um velho ranzinza, abandonei os dois. Então as minhas anotações deste mês correspondem aos poucos títulos que consegui terminar.

 

As Águas-Vivas Não Sabem de si, de Aline Valek. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2019 [2016], 294 páginas. Brochura. Este é um elogiado romance brasileiro de ficção científica, todo ambientado nas profundezas do mar — uma absoluta raridade no contexto da nossa FC, embora, se a memória não falha, Jorge Luiz Calife tenha explorado esse ambiente em suas histórias do Universo da Tríade. Eu estava de olho no livro de Aline Valek há algum tempo, e durante a Flipop 2019 meu filho Roberto Fideli me conseguiu um exemplar autografado.

As Águas-Vivas Não Sabem de si é um dos romances de melhor reputação, dentro da atual produção da Terceira Onda da FC Brasileira. Como acontece com vários outros exemplos da escrita desse período, me espanta a naturalidade com que a autora estabelece um tom agradável e introspectivo. Os diálogos marcados por aspas certamente contribuem para essa introspecção — que culmina com um segmento final em primeira pessoa.

A narrativa acompanha a mergulhadora Corina, seu colega Arraia, o cientista Martin e outros tripulantes de um submersível em missão de teste de um traje de mergulho profundo. Esse é o objetivo declarado, porque o interesse secreto de Martin é encontrar formas de vida inteligentes, lá embaixo. Isso é segredo não por questões científicas ou comerciais, mas porque o assunto pareceria excêntrico demais para a “ciência séria”. Mas, de fato, Corina e os outros se aproximam de um contato real com uma civilização submarina. Ao contrário daquela do filme de James Cameron, O Segredo do Abismo (The Abyss, 1989), a imaginada por Valek evoluiu incógnita aqui mesmo na Terra. O leitor fica sabendo detalhes muito sugestivos da evolução e da cultura desses seres. Como não há um esforço de estranhamento que distancie a experiência deles da nossa, os trechos que os acompanham — e a vários animais marinhos — têm às vezes um quê de fábula. Sem muito enredo, as complicações surgem em torno de uma doença que pode impedir Corina de mergulhar. Enfim, eu teria apreciado mais o romance se a sua técnica de personagem-ponto de vista fosse mais estrita, e com transições mais marcadas. Parece, porém, que sou o único que reclama desse tipo de coisa, considerando que essa é uma técnica amplamente desprezada pelos autores brasileiros.

 

Arte de capa de Jussara Gruber.

O Livro dos Seres Imaginários (El libro de los seres imaginários), de Jorge Luis Borges & Margarida Guerrero. Porto Alegre: Editora Globo, 1981 [1979], 214 páginas. Arte de capa de Jussara Gruber. Brochura. Parte da coleção da minha esposa Finisia Fideli, este é um livro de não-ficção do mitógrafo Jorge Luis Borges (1899-1986), um dos ficcionistas mais cultuados da América Latina e influentes do mundo, escrito com Margarita Guerrero.

Consta que a sua primeira versão chamou-se Manual de zoología fantástica e foi publicado originalmente em 1957. A versão comentada aqui foi expandida na Espanha e publicada primeiro em 1979. O título original sublinha a fusão frequente em Borges, da ficção e da não ficção, ou da ficção e do ensaio. O livro descreve seres imaginários dos mundos da religião, do mito, do folclore, e da literatura. Os verbetes ou entrada aparecem fora de uma ordem alfabética ou qualquer outra discriminação evidente, como a clássica, nórdica ou oriental. O primeiro ser é o dragão e o último. a “lebre lunar”. Entre um e outro, existem 114 seres, entidades ou monstros. Extraídas da literatura de fantasia e ficção científica há criações de C. S. Lewis, Edgar Allan Poe, Franz Kafka (o “odradek” e outros), H. G. Wells e Lewis Carroll. Há seres africanos, americanos, europeus e orientais. Os textos são críticos e levemente irônicos, descrevendo mas também dedicando algum comentário sobre o sentido de cada ser. Criaturas vistas comumente na literatura de fantasia, como trolls, gnomos, elfos e dragões, bem como golens, sereias, unicórnios, harpias e djins, merecem a atenção do leitor e do autor do gênero, para um entendimento mais aprofundado de cada uma, para além — ou sugestivamente distante — das suas explorações ficcionais costumeiras. As esparsas xilogravuras de Jussara Gruber (que mereciam reprodução mais caprichada) coroam esta edição que foi para a minha prateleira de livros de referência e de estudos.

 

Arte de capa de Anne Sudworth.

Enchanted World: The Art of Anne Sudworth, de Anne Sudworth & John Grant. Paper Tiger, 2000, 112 páginas. Capa dura. Minha esposa Finisia Fideli adquiriu este livro da Paper Tiger há alguns anos, em uma Virada Nerd na loja Terramédia — hoje Omniverse. A artista inglesa Anne Sudworth é uma pintora de galeria que ocasionalmente produz ou produziu capas de livros de fantasia. É um caso raro de coincidência temática de arte de fantasia (geralmente concentrada na ilustração editorial) e belas artes, lembrando a gente do conceito de arte mítica que o ramo da fantasia mítica de Charles de Lint e Terri Windling explora desde a década de 1980. É exatamente essa coincidência o que o escritor John Grant discute no texto que acompanha as reproduções. A primeira coisa que impressiona é que Sudworth realiza os efeitos de clareza e luminosidade próprios da tinta acrílica com o uso, muito incomum na pintura de quadros, de tintas pastéis. 

O capítulo 1, “Of Fantasy and Reality” apresenta Sudworth e traz paisagens, com os efeitos peculiares de luz que caracterizam a artista, e alguma pintura equestre (inclusive natureza morta) feita por ela. Mas ele começa apontando o conteúdo fantástico das obras de nomes de peso como Salvador Dalí e René Magritte, e a qualidade artística de ilustradores de FC com Ron Walotsky, Bob Eggleton, John Harris e Richard Powers que dobram ou dobraram como pintores de galeria ou que poderiam fazê-lo. O trabalho de Sudworth tende para o hiper-realismo e a fantasia está, muitas vezes, presente na atmosfera. Suas paisagens, frequentemente tomadas de lugares reais, formam uma defesa muito forte da conexão entre geografia física e histórica, folclore e fantasia. Trata-se, é claro, das ilhas britânicas. O capítulo “Of Leaf and Tree” explora árvores à noite, marcadas por luzes irreais que, para qualquer um que tenha dirigido ou caminhado, como eu, à noite em estradas de terra batida, capturam uma frutífera tensão entre a verdade do olhar e a da imaginação. Uma qualidade etérea tão discreta, que é como o seu hálito mal percebido em uma noite mal iluminada. Não tenho problemas em admitir que as imagens desse capítulo inspiraram o meu conto “Escultura Negra em Noite Escura”, na antologia Histórias (Mais ou Menos) Assustadoras (2019), da Agência Magh, editada por Grabriela Colicigno & Roberto Fideli.

“Of Dragon and Dreams” agrupa pinturas que se aproximam mais da pintura narrativa da fantasia como campo editorial, às vezes com alguma deficiência fisionômica de heróis e magos, ou simplificação na figura de quimeras e dragões. Mas sempre com muita atmosfera, como na pintura do lindo unicórnio que também vemos na capa. De fato, mesmo com a iconografia do gênero, a proposição subjacente, na sua arte, de que magia ou sobrenatural estão mais na atmosfera é sempre sublinhada. A força das suas paisagens retorna em “Of Spirit and Stone”, com duas pinturas estasiantes de Stonehenge e outros outros monumentos paleolíticos, além de castelos e ruínas. Nessa modalidade, a alternância das superfícies suaves e homogêneas dos pastéis, e os efeitos mais granulados, imbuem as pinturas da aura fantástica. A iconografia do gênero retorna com mais eficácia no último capítulo, “Of Visions and Views”, mas misturada com paisagens e naturezas mortas. É interessante que a qualidade épica das artes de capa de uma trilogia da escritora Storm Constantine é atenuada pela atmosfera noturna, que ampara a composição estática, evocativas da pintura de capa de livros de horror, mas sem nunca penetrar de fato nesse gênero. Torno a destacar a qualidade das análises de John Grant em cada um dos capítulos, mas os comentários da artista, dispostos como legendas das reproduções, não fica atrás na sua capacidade de iluminar os sentidos e os processos por trás de cada uma das pinturas.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Chris Scalf.

Star Wars Legends: Boba Fett Está Morto (Star Wars: Blood Ties: Boba Feet Is Dead), de Tom Taylor (texto) e Chris Scalf (arte). São Paulo: Panini Comics, 2014, 170 páginas. Arte de capa de Chris Scalf. Brochura. Mês passado eu li Boba Fett: Inimigo do Império, e neste mês decidi ficar com o mermo personagem de Star Wars. Desta vez, um sujeitinho chamado Connor Freeman, que tem uma cantina em Coruscant, partindo do planeta para investigar a morte de Fett, que o teria ajudado no passado. Pontuando a chegada dele ao planeta Sathiemon, há uma série de situações que mostram pessoas que testemunharam o suposto assassinato de Fett sendo mortas. Freeman entra na mira do Império, acaba ferido e resgatado por um cara que se revela como sendo o próprio. Fett conta o que aconteceu com ele, e os dois se juntam para visitar uma caçadora de recompensas chamada Sintas Vel, que Fett deseja proteger. Por trás da intriga em torno do grupo que deseja ver Fett morto e de como eles tentam caçá-lo, há a revelação de que o famoso caça-prêmio de armadura mandaloriana tem uma família. É um toque interessante por ser, justamente, humanizador do personagem. A arte digital de Chris Scalf tem pontos fortes, mas eu a achei de “pinceladas” meio frouxas e uma certa rigidez dos personagens, talvez por conta de algum apoio fotográfico na criação dos desenhos. Freeman retorna em outras histórias de Fett da sequência Blood Ties.

Em “Sacrifício”, Cam Kennedy, novamente ilustrando roteiro de John Wagner, por outro lado é preciso, solto, dinâmico e vigoroso em uma narrativa de quadrinhos que funciona bem mesmo sem balões. Além disso, o trabalho de colorização de Chris Blythe é bonito e inspirado, com um contraste entre tons quentes e frios que traz muita personalidade aos ambientes noturnos. Junto com o estilo de Kennedy, que diverge bastante do hardware e da visualidade de Star Wars, tem-se nesta HQ uma experiência estética mais européia. É claro, não há nada que humanize Boba Fett no roteiro cínico de Wagner, na história de como o caça-prêmio acaba auxiliando, por força das circunstâncias, um grupo de revoltosos. O filosófico líder dos rebeldes, por outro lado, é um personagem sólido e humano, que nos diz:

“Ele [Fett] não é maligno… É pouco mais que uma máquina, uma ferramenta para realizar um trabalho. Ele é um homem sem coração, sem sentimentos, sem nenhum interesse além do preço sobre a cabeça de outro homem. Nós, pelo menos temos alguém por quem vale a pena viver e morrer. Eu tenho pena de Boba Fett.” —John Wagner, “Boba Fett: Sacrifício”

Fecham o livro uma história de Ron Marz com desenhos da brasileira Adriana Melo; e uma quarta, bem estilizada, com roteiro de Thomas Andrews e arte de Francisco Ruiz Velasco.

 

Arte de capa de Moebius.

Graphic Novel 11: Surfista Prateado, de Stan Lee (texto) & Moebius (arte). São Paulo: Editora Abril, maio de 1989, 64 páginas. Revista. Há pouco tempo, a Panini reeditou esta colaboração entre dois monstros sagrados dos quadrinhos internacionais em formato gigante e em capa dura. Eu encontrei esta primeira edição no Brasil em uma caixa de papelão e resolvi reler. A introdução de Stan Lee trata de como ele e Moebius (Jean Giraud) almoçaram juntos durante a Comic Con de San Diego em , quando surgiu a ideia de uma colaboração entre os dois. Moebius (1938-2012), então famoso por desenhar o Incal de Alejandro Jodorowski, se mostrou interessado no heróis Surfista Prateado, criação de Lee e Jack Kirby. Segundo os textos de apoio da publicação, o roteiro de Lee (1922-2018) tinha apenas seis páginas e era totalmente dissertativo, sem aquelas divisões de praxe entre texto dos balões e descrição da cena. O resultado é um comentário bem década de 1980 sobre tele-evangelismo, democracia de “massa”, distúrbios civis generalizados e, o mais importante, o fetiche do poder que está por trás de muito das organizações religiosas e políticas dos nossos tempos. Especialmente agora que a política, em várias partes do mundo, regrediu para a extrema direita.

Na história, o Surfista Prateado vive incógnito nas ruas de Nova York quando o seu antigo mestre, o superser Galactus retorna à Terra. Tendo prometido ao seu ex-batedor nunca mais usar o seu poder de destruição em nosso planeta, Galactus recorre a um estratagema: tudo o que ele lança sobre a humanidade é a sua presença e um discurso de anarquismo hedonista radical. O mundo moderno é o mundo do oportunismo, com os espertos sempre subindo no “bonde” do momento, não importando os estragos lá embaixo no nível da sarjeta. O super-herói filósofo se lança à defesa da humanidade disposto a um martírio quase crístico, conquistando o coração bem intencionado da jovem irmã de um tele-evangelista especialmente canalha. A narrativa é muito eficiente e põe um dedo necessário em certas feridas, mesmo enquanto mantém as estruturas narrativas pulps que fundamentam tanto das HQs de super-heróis, e a mitologia do Universo Marvel. O desenho de Moebius varia um pouco ao longo da história, que é relativamente curta. Ele racionaliza essa irregularidade, num dos textos que acompanham a publicação.

 

Príncipe Valente 1942, de Hal Foster. Editora Planeta deAgostini, 2019, 62 páginas. Tradução de Carlos Henrique Rutz. Introdução de Pablo Kurt Rettschalg Guerrero. Capa dura. Na introdução deste volume, o prefaciador Pablo Guerrero faz uma interessante defesa da arte e da cultura da Idade Média, declarando:

“A Idade Média, diferentemente do que se pode pensar, não foi um período estéril ou obscuro no desenvolvimento da intelectualidade.” —Pablo Kurt Retschalg Guerrero.

Na história em quadrinhos propriamente, o Príncipe Valente vai à Africa, depois de se associar ao pirata viking Boltar, que chegou a aparecer na adaptação dessa história em quadrinhos para o cinema, em 1954. No volume anterior, ele enfrentou uma tripulação de aloprados para evitar que eles se dedicassem à pirataria, e aqui ele segue com os piratas vikings. Esse é um dos pontos de contradição da saga criada por Hal Foster — seu herói é um herói cristão, quer dizer, ele promove civilização, lei e ordem sempre que pode, mas é ao mesmo tempo um aventureiro que topa o que aparece. O que importa é manter a aventura girando. Desse modo, o que era para ser um ataque dos vikings a uma aldeia dos nativos da África equatorial se transforma providencialmente no resgate dos nativos, quando Valente e os outros afastam de lá um grupo de gorilas que assustava os moradores. Improvável, já que os gorilas dificilmente se meteriam com humanos e suas lanças, zarabatanas e flechas. Mas o que importa é que o possível massacre dos nativos se transformou em um acerto em que eles foram livrados de um incômodo e recompensados com ouro.

Quando partem da África e chegam ao primeiro porto europeu, por uma dessas coincidências espetaculares que povoam a aventura como modo ficcional, Valente fica sabendo que seu amigo Sir Gawain foi feito prisioneiro por um lorde local, que quer cobrar o resgate por Gawain, da corte do Rei Artur. Ele paga o resgate, mas Boltar tem os seus próprios planos para reaver o ouro entregue ao vilão. É claro, a primeira coisa que o recém-libertado Gawain faz é flertar com uma senhora casada, o que leva a situações cômicas envolvendo o marido. O próximo encontro fortuito leva a dupla a se pôr a serviço de um nobre sitiado por um barão rival — e a uma situação do tipo Romeu & Julieta envolvendo a filha de um e o filho do outro, além de uns truques defensivos que Valente puxou da manga. A situação dramático-romântica sai de cena e entra uma outra, cômica, envolvendo dois cavaleiros idosos em uma ridícula justa, e as suas esposas. A dupla mal sai dessa situação, e se deparam com uma dama em apuros, que os leva a uma trama sobrenatural. A transição aqui é muito sutil, com as sombras do desenho e as árvores desgalhadas sugerindo o novo “clima”, em nova sugestão da versatilidade de Foster como artista. Virando a página, painéis sombrios, intrincados, fabulosos, e mais tarde um jogo de luz e sombra digno do cinema expressionista da época. A trama é trágica, genuinamente, e termina apropriadamente com o incêndio das ruínas. Tudo se clareia em antecipação ao reencontro com Boltar e Lancelot, precedendo, enfim, o retorno a Camelot — onde encrencas na fronteira norte, no que seria futuramente a Escócia, aguardam o herói. As peripécias são mais sérias, e incluem Val sendo feito prisioneiro pelos pictos, que o entregam a invasores vikings. Antes de ser resgatado por Gawain, para variar, ele sofre tortura e passa por longa convalescença. De volta a Camelot mais uma vez, ele expõe suas cicatrizes à corte em um dramático painel, motivando os bretões para uma incursão contra os vikings. Desse modo, o volume termina com uma das sequências de ação mais impactantes e cruéis desse período das aventuras do herói, o duelo de Val contra o guerreiro viking Thundaar e o seu machado de batalha.

Têm-se neste volume em particular um exemplo consumado das dinâmicas de leitura da página dominical, com curtos arcos desenvolvidos com rapidez, alternados com outros mais curtos e episódicos, e um mais longo de abertura mais lenta e intensidade superior. Desse modo, o leitor da época era apresentado a situações diversas, amparadas pelo lapso de atenção entre uma semana e outra, mas com o herói sempre conservando o foco e o interesse.

—Roberto Causo

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Leituras de Junho de 2019

O mês de junho concentrou a leitura de ficção científica brasileira e japonesa recentes, além de fantasia celta e história em quadrinhos do Batman e de fantasia heroica.

 

Arte de capa de Patricia Highsmith.

Os Gatos, de Patricia Highsmith. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2011, 120 páginas. Arte de capa de Patricia Highsmith. Tradução de Petrucia Finkler. Livro de bolso. Mês passado, terminei estas anotações com a leitura de uma história de bichos, a fábula O Lobo, de Joseph Smith, e neste mês começo com este livro centrado na figura do gato. O livrinho da famosa escritora de ficção de crime Patricia Highsmith (autora dos romances de Ripley), com três contos, três poemas e vários desenhos, tem todo o jeito de ter sido montado no Brasil, de material retirado de outra obra da autora. (Não tem nota de copyright de um título reunindo todos os textos, por exemplo.)

“Presentinho de Gato” é a primeira história, uma noveleta, em que, durante uma reunião social, um gato traz para casa um dedo humano, com uma aliança ainda presa nele. Isso leva o casal dono do gato a investigar o caso, chegando até o perpetrador — e a uma decisão surpreendente, sobre o que fazer com ele. A segunda história, “A Maior Presa de Ming”, é um conto de suspense que pode ser lido como horror e não ficaria mal em uma série de antologia como Galeria do Terror (1969-1973) ou em um filme do tipo antologia, como Creepshow: Arrepio de Medo (1982). Nessa noveleta, o gato do título, odiado pelo namorado fisicamente abusivo da sua dona, dá um jeito de “acidentalmente” (vai saber…) tirar o sujeito da vida dele e da moça. Finalmente, “A Casa de Passarinhos Vazia” mostra uma mulher que vislumbra um bichinho na propriedade rural em que vive, e cuja presença furtiva passa a incomodá-la acentuadamente. Ela passa a chamar o animal de “filhote de yuma”, e faz o marido emprestam uma gata da vizinha, para caçar o bicho, mas o conto revela que a criatura é símbolo de uma inquietação íntima, referente ao filho que ela abortou intencionalmente. Uma inquietação que pode ter se transferido ao marido, mesmo depois do “yuma” ter sido morto pela gata. É um suspense psicológico, portanto. Seguem-se então três poemas sobre a vida do gato: gatinho, gatão e velhão. O livro fecha com o ensaio “Sobre Gatos e Estilos de Vida”, observando como a beleza e a tranquilidade do gato combinam com a vida do escritor. O ensaio e os poemas, bem mais do que as histórias, que podem ser lidas pelo seu fator suspense ou crime, é que tornam este um livro para amantes de gatos, assim como, por exemplo, O Gato por Dentro (1986), de William Burroughs.

 

Arte de capa de George Amaral.

A Telepatia São os Outros, de Ana Rüsche. São Paulo: Monomito Editorial, Coleção Universo Insólito, 2019, 118 páginas. Apresentação de Enéias Tavares. Texto de Orelha de Jana Bianchi. Arte de capa e ilustrações internas de George Amaral. Livro de Bolso. Esta novela de Ana Rüsche abre a Coleção Universo Insólito da Editora Monomito, voltada para FC, fantasia e o fantástico. É uma excelente obra de abertura para uma coleção, considerando as suas qualidades literárias e representacionais. (Um embrião, sob a forma de conto, apareceu antes na revista eletrônica Mafagafo, de Jana Bianchi.) A narrativa acompanha a aventura de Irene, uma mulher brasileira, afro-descendente e de meia-idade que acaba no Chile, fazendo uma oficina de práticas de meditação. Lá, toma contato com uma beberragem capaz de induzir a comunicação telepática, e se une a uma comunidade que explora essa fabulosa habilidade.

A bebida já está na mira de um empresário americano que se infiltrou no grupo antes da brasileira chegar, e que pretende turbinar a internet com uma tecnologia bioquímica de transmissão do pensamento. A premissa lembra a intriga de fundo do romance Interferências (2018), de Connie Willis, no qual a telepatia poderia fundamentar uma revolucionária expansão da tecnologia de comunicação móvel. Ao mesmo tempo, o cenário translatino-americano coloca o livro junto com Na Eternidade Sempre é Domingo (2016), de Santiago Santos, e Escalpo (2017), de Ronaldo Bressane. É uma tendência bem-vinda, e eu mesmo expresso minhas ansiedades de contato com a América Latina na série As Lições do Matador. Mas, assim como no livro de Bressane, a novela de Ana Rüsche lembra a violência da ditadura militar brasileira, ao evocar a ditadura chilena. Rüsche faz bom uso de um recurso incomum na composição literária — o portento (um terremoto andino, no caso). Ela também compôs uma prosa literária discreta, muito próxima do estilo dominante na literatura mainstream brasileira e latino-americana, o que aproxima ainda mais forma e conteúdo. É um estilo sensível aos estados mentais da protagonista e a como ela se relaciona com a galeria de personagens que desfilam em A Telepatia São os Outros, uma das melhores novelas surgidas neste momento tardio da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira.

 

Capa de Teo Adorno.

Back in the USSR, de Fábio Fernandes. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, 2019, 224 páginas. Brochura. Nunca fui um beatlemaníaco, embora amigos de infância como Devair Almeida e até a minha mulher sejam grandes fãs dos Beatles. Às vezes, só pra encher o saco da minha esposa, eu me refiro ao grupo como “Os Reis do Iê Iê Iê”, a ridícula alcunha dada pela imprensa brasileira a eles, quando do seu surgimento.

Começo assim o comentário deste que é o segundo romance de Fábio Fernandes porque John Lennon é o seu protagonista. O livro abre a Coleção Futuro Infinito, editada por Luiz Bras (Nelson de Oliveira) para a Editora Patuá, de São Paulo, e é uma história alternativa em que, em fins do século 18, um método de ressuscitação total, conhecido como “Método Frankenstein”, mudou a história do mundo. À revelia, Lennon sofre o procedimento depois de ser assassinado por Mark David Chapman em Nova York. Coagido pela empresa superpoderosa que controla o método, ele vai à Rússia para, a pretexto de fazer um show, contrabandear dados secretos para fora do país e sofrendo com várias reviravoltas, logo a seguir. A premissa relativamente simples é retrabalhada com uma infinidade de referências culturais, eruditas e pop, e especulações divertidas sobre um mundo que venceu (até certo ponto) a maior questão transcendental possível: a morte. O que chama mais a atenção é o quanto a questão da sobrevivência após a morte, transformada em ferramenta de controle e de diferenciação social e política, daria o tom do pensamento filosófico e ideológico ao longo dos séculos. De fato, a estratégia imprime ao livro todas as marcas da ficção pós-modernista, na estrutura fragmentada e com a sua aproximação do popular e da alta literatura. São citados, por exemplo, Mary Shelley, H. P. Lovecraft, Karl Marx, Yoko Ono, George Harrison, Michel Foucault e Erich Maria Remarque — com o trecho de um romance que apresenta Adolf Hitler reduzido a um personagem. Soma-se a ela a paródia de um gênero popular, o thriller internacional, para reforçar essa inserção. O romance surgiu do conto “Para Nunca Mais Ter Medo”, publicado na revista Dragão Brasil em 1995, e agrega como reaproveitamento outros textos em torno do Método Frankenstein. A Coleção Futuro Infinito vai trazer um mix de autores da Segunda e da Terceira Onda, como Braulio Tavares, Claudia Dugim e Marco Aqueiva.

 

Capa de Carol Russ.

The Book of Kells, de R. A. MacAvoy.  Nova York: Bantam Books, 1985, 340 páginas. Arte de capa de Carol Russ. Arte interna de Robert Hunt. Paperback. A escritora americana Roberta A. MacAvoy fez sucesso na década de 1980 e depois deu uma sumida. Uma pesquisa na internet revelou que ela desenvolveu uma doença crônica, controlada recentemente, quando ela voltou a escrever. Este é um romance solo (não fazer parte de uma série) ambientado na Irlanda. Foi por essa razão que eu o adquiri este ano em um sebo da região da Sé, em São Paulo. É que a escrita do romance “Archin” para o Desire entrou em uma fase ambientada na Irlanda do século 13. Dá para chamá-lo de “fantasia celta” e de “fantasia de portal”, já que ele começa na Irlanda contemporânea — para onde vai uma jovem adolescente do século 10, que tenta fugir do massacre da sua vila por um grupo de vikings. Ela surge na casa alugada de um artista canadense que foi levado à Irlanda por sua namorada, uma historiadora, feminista e mulher de ação. De algum modo, as filigranas celtas e uma certa canção que ele ouvia na vitrola criaram um portal que permite a viagem no tempo. A menina foi estuprada e está ferida. O casal contemporâneo cuida dela e, tendo matado a charada, resolve levá-la de volta ao século 10. Lá, descobrem um segundo sobrevivente, um poeta, e ficam sabendo que o portal de retorno foi fechado quando os vikings destruíram uma cruz ornamentada pelos mesmos padrões de filigrana. Os náufragos temporais se tornam os representantes do leitor numa jornada de descoberta da vida e da cultura celta de então — especialmente depois que o grupo determina que devem ir a Dublin exigir do rei uma compensação pelo massacre e pelo estupro da garota. Por todo o caminho eles são perseguidos pelos vikings, liderados por um sacerdote renegado do deus Odin, que escolheu aquela aldeia como sacrifício para o deus nórdico. O sincretismo tanto da cultura celta quanto da nórdica com o cristianismo é uma das marcas do romance, e daquela época. Não apenas o mecanismo de viagem temporal tem papel no enredo, mas também milagres que incluem um fabuloso encontro, ao mesmo tempo divertido e assustador, com a deusa Bridget. O clima é realista e noturno, com uma textura que sustenta a viagem temporal que o próprio leitor experimenta.

É especialmente interessante a caracterização dos personagens: o artista é atrapalhado, sexualmente inibido (o que irrita a sua liberada companheira o tempo todo) e estoico. A historiadora é altiva mas às vezes cede ao peso psicológico do estranhamento da situação, desmaiando ou explodindo com as pessoas. Seu relacionamento com o artista inclui momentos apaixonados, mas é de constante abuso verbal contra ele. Ela acaba se interessando mais pelo poeta local. Ailish, a garota resgatada, é vivaz e determinada — bastante encantadora, por essas e outras qualidades. MacAvoy lida com a caracterização de personagens e do ambiente com um senso quase teatral da dinâmica entre eles, com uma incisividade que admite momentos brutais ou detalhes pouco glamourosos, como pelos corporais nas mulheres, flatulência e uma sexualidade e nudez desinibidas que, o livro me revelou, era próprio da cultura irlandesa de então. Quando o grupo encontra a deusa Bridget, ela se revela como uma mulher idosa, nua e que, agressivamente, abre a vagina (é a figura folclórica de Sheila na Gig) para o incomodado artista — que desmaia! Outro aspecto interessante dele é que seus impulsos eróticos parecem atrelados a fatores estéticos (ele tem ereções persistentes quando desenha).

Um problema de MacAvoy é a adoção do narrador onisciente ilimitado, cujos saltos de um personagem para outro tornam difícil para o leitor saber quem pensa, sente ou mesmo fala o quê. O final do livro é meio que um deus ex-machina, mas funciona suficientemente bem para a conclusão de um romance rico, divertido e com muitos elementos subversivos da fantasia. The Book of Kells é o título de um folio do século 8, caracterizado por exuberantes iluminuras sincréticas. É considerado o maior tesouro medieval da Irlanda. O livro faz uma aparição no romance de MacAvoy, quando o grupo de amigos chega ao monastério onde ele está sendo restaurado por um grupo de monges escribas.

 

A sugestiva arte de Robert Hunt cobre a guarda da capa e a primeira página do livro. Estão nela os personagens e a mistura da cultura celta e a ameaça viking.

 

Arte de capa de Brigid Collins.

The Sleep of Stone, de Louise Cooper. Nova York: DAW Books, 1993 [1991], 174 páginas. Arte de capa de Brigid Collins. Paperback. Esta é uma novela ou romance curto com um ar de conto de fadas que disfarça bem a sua sensibilidade moderna voltada para apontar os desenganos do delírio amoroso. A incomum heroína é uma espécie de gremlin que se apaixona pelo príncipe de uma cidade pesqueira. Ela envolve o moço assumindo a forma de diversos animais (em especial uma foca ou leão-marinho) e oferecendo-lhe a sua amizade. Quando descobre que ele vai se casar com uma princesa de outra cidade, ela elabora o plano de tomar a forma da jovem e consumar o seu amor pelo rapaz. É bem provável que história se baseie em lendas das selkies, comum em ilhas do Mar do Norte, sobre um povo-foca que podia assumir a forma humana, ao trocar de pele. Uma estátua moderna, de Hans Pauli Olsen em Kalsoy, uma das Ilhas Faroe, marca a força dessas lendas.

Para a gremlin de Louise Cooper, as coisas acabam mal. No meio do caminho, Ghysla, a gremlin, acaba matando uma aia do castelo do príncipe, mas essa experiência traumática a leva a hesitar em matar a princesa que deseja substituir. Por isso, resolve apenas sequestrar a moça, levá-la a uma caverna e transformá-la em pedra com um encantamento. Bombasticamente, no final da cerimônia de casamento o noivo não confirma seus votos, dizendo que essa não era a sua noiva, o que é confirmado pela mãe da princesa. Aflita, Ghysla revela sua verdadeira forma, é caçada pelos homens, reage com sua força mágica e acaba encastelada em uma torre. O príncipe percebe que ela representa o único meio de resgatar sua amada, mas para desentocá-la, recorre ao último grande mago conhecido. Com grande relutância, o mago o acompanha de volta ao castelo, e, usando sua forma mágica, convoca Ghysla para uma conversa. Ele descobre que ela não apenas é a última da sua espécie no mundo, como que fez tudo por uma fantasia de amor, em que se convencera de que o príncipe também a amava. Enfim, o mago se revela como fazendo parte da espécie dela — ou uma parte dele, pois é filho do encontro entre uma mulher da raça mágica e um humano. Surpreendentemente, o príncipe ouve tudo e se compadece de Ghysla. Ele e o mago, porém, a convencem a colaborar. Mas existe um preço terrível a ser cobrado: o feitiço do sono da pedra pode apenas ser revertido se quem o lançou também se transformar em pedra. A autora lida muito bem com o mais neutro tom de fábula, e torna sua trágica heroína uma personagem atraente e cativante ao caracterizá-la como adolescente intensa, ingênua e atrapalhada. Cooper também antecipa a especulação mais ousada do leitor para um final diferente, escapando dela com a maior elegância. Há anos que me deparo com livros dessa autora inglesa nos sebos da vida, mas sempre pertencentes a alguma série multivolume, e nunca com o volume um. Livro solo, The Sleep of Stone foi uma ótima oportunidade de conhecer o seu trabalho. A arte de capa de Brigid Collins tem o ar e a composição dos quadros dos pintores pré-rafaelitas, mas parece ser aquarela e não pintura a óleo.

 

A escultura de Hans Pauli Olsen, na Ilha Kalsoy, retrata uma selkie se despindo da sua pele de leão-marinho. Com o dobro da altura de uma pessoa normal, ergue-se em uma extensão rochosa e é capaz de resistir a ondas de até treze metros de altura, interagindo com o mar. Nas lendas, a selkie é forçada a se tornar esposa do homem que tomou a pele de leão-marinho, a chave para a reversão da sua transformação em mulher. No romance de fantasia de Louise Cooper, a gremlin pode assumir muitas formas, e procura a todo custo ganhar o amor do humano que escolheu.

 

your name., de Makoto Shinkai. Rio de Janeiro/Campinas: Verus Editora, 2ª edição, 2019 [2016], 186 páginas. Tradução de Karen Kazumi Hayashida. Comentário de Genki Kawamura. Brochura. Há alguns anos eu me apaixonei pelo filme curto de Makoto Shinkai, O Jardim das Palavras (Kotonoha no Niwa; 2013). Outros filmes anteriores de Shinkai, como 5 Centimeters per Second (Byōsoku 5 Senchimētoru; 2007) e Viagem para Agartha (Hoshi o Ou Kodomo; 2011) não me impressionaram tanto. O comentário do produtor Genki Kawamura ao final da novelização your name., escrita pelo próprio Shinkai, dá a entender que um grupo de produtores se reuniu para dar a Shinkai as condições de produzir a obra-prima que se esperava dele. O anime longa-metragem Your Name foi o filme de animação mais visto na história do Japão, e ganhou prêmios em três continentes. É maravilhoso, já o vi várias vezes, e ele está passando direto na TV a cabo.

Narrado em primeira pessoa mas pelos dois personagens principais — dois colegiais, ele vivendo em Tóquio e ela em uma cidade interiorana ficcional —, o romance tem a ligeireza comum às “novelizações”, mas como é rico em situações e na subjetividade dos personagens, ele encanta e aproxima o leitor da dupla, ampliando a experiência do filme. Shinkai escreveu o livro enquanto dirigia o anime sobre os colegiais que trocam de corpo aleatoriamente, e, apaixonados um pelo outro, se procuram espiralando em torno do evento central, que é o choque do fragmento de um cometa que já havia atingido a mesma cidadezinha, séculos antes. Nessa coincidência e no impacto duplo há aquela sombra perpétua dos ataques atômicos americanos ao Japão na Segunda Guerra Mundial, presente em tanto da cultura popular japonesa. Em tudo isso (e também em uma engenhosa viagem no tempo), a história combina fantasia e ficção científica. O que impressiona é a costura intrincada, mas que parece despretensiosa ao mesmo tempo. No leitmotif da troca de corpos e de gênero sexual, têm-se um comentário sensível e bem-humorado de como o conhecimento do sexo oposto derrubaria barreiras e promoveria uma qualidade maior de relacionamento pessoal. Ao mesmo tempo, oferece a perspectiva de como o desconhecimento atrapalha. É difícil aparecer ficção científica japonesa por aqui, e este livro é uma oportunidade de se ter algum contato com dela. O que o filme e o livro realizam em grande parte é oferecer, com a inteligência e a sensibilidade de Makoto Shinkai, um testemunho da potência da cultura popular japonesa.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Andy Kubert.

Batman e Filho, de Grant Morrison (texto) & Andy Kubert (arte). Cajamar-SP: Planeta DeAgostini Brasil, 2019 [2006, 2007], páginas. Arte de capa de Andy Kubert. Capa dura. Este é o primeiro volume de uma coleção da Planeta DeAgostini dedicada exclusivamente ao Batman. Conta a história de como Bruce Wayne soube que teve um filho com a filha de Ra’s Al Ghul, Talia. Existe, inclusive, uma animação bastante divertida e interessante, com roteiro do escritor de FC e fantasia Joe R. Lansdale, baseada ou inspirada nesta HQ: O Filho do Batman, de 2014.

O Batfilhote é um pequeno assassino com problemas de autoridade, ciúmes do Robin (com quem trava uma luta épica), e a ideia fixa de que matar é a resposta para todo e qualquer problema. Além dos membros da Liga dos Assassinos, Batman e eventualmente também o seu filho, combatem homens-morcegos mutantes criados artificialmente pelo Dr. Kirk Langstrom. A intriga envolve o resgate da esposa do primeiro ministro britânico, raptada quando os homens morcegos entram em cena pela primeira vez — em uma exposição de arte em Londres, para arrecadar fundos para a África. Grant Morrison, um das estrelas dos quadrinhos do século 21, traz um toque metalinguístico interessante com o tema da exposição: a arte pop tipo Roy Lichtenstein, que deve muito à linguagem dos quadrinhos e que por sua vez deve ter influenciado o ângulo camp da série Batman e Robin (Batman), de 1966.

A tentativa de resgate da mulher do primeiro ministro também implica no reencontro da Batman com Talia — e o uso de um batfoguete suborbital. O volume se estende um pouco mais com o cruzado embuçado perseguindo um assassino em série que ataca prostitutas, revelando-se como um gigante mascarado que cobra um duro preço do herói, numa pancadaria em um beco. A arte de Andy Kubert, filho do lendário Joe Kubert, é competente em todos os aspectos da narrativa dos quadrinhos, com alguns momentos muito expressivos.

 

Arte de capa de Andy Kubert.

Batman: O que Aconteceu ao Cavaleiro das Trevas? (Batman: Whatever Happened to the Cape Crusader), de Neil Gaiman (texto) & Andy Kubert (arte). Barueri-SP: Panini Books, 2013, 130 páginas. Arte de capa de Andy Kubert. Capa dura. O celebrado Neil Gaiman e o mesmo Andy Kubert criaram uma narrativa metaficcional em que Batman parece acompanhar em espírito vários testemunhos de amigos e inimigos, durante o seu velório. Como Batman morreu é a pergunta que paira, logo dividida com outra pergunta: Batman morreu mesmo? O velório acontece no Beco do Crime, onde a morte do casal Wayne dá início à formação do herói encapuçado que se tornaria o Batman.

Como sempre, o texto de Gaiman é falsamente simples, na verdade rico em situações e em movimentos. Há um componente crucial de dúvida sobre o que se passa na situação-base do velório e seus testemunhos. A Mulher-Gato é a primeira a falar, e conta um história estranha em que teria deixado de socorrer Batman de um ferimento eventual, depois que ele rejeitara construir uma vida com ela. Segue-se uma outra, em que o mordomo Alfred se apresenta como um ator farsante que assumia a identidade de vários supervilões da franquia, para motivar o patrão no seu suposto delírio heroico. A segunda parte da história abre mão do formato inicial de narrativas mais alongadas e contrastantes, para recorrer a uma rápida sucessão de testemunhos da Batgirl, do Coringa, de Robin, e até mesmo do Super-Homem. Num terceiro momento, toda essa pantomima de testemunhos funerários cede a um mergulho na subjetividade do próprio Batman. Memória e subjetividade estão no centro da abordagem literária de Neil Gaiman, e neste tratamento original e instigante da trajetória do herói a sua obsessão com a infância não deixaria de igualmente se manifestar — com direito a uma aparição de Martha Wayne, a mãe de Bruce, a identidade “civil” do Batman. A arte de Kubert dá conta e homenageia discretamente as várias fases do personagem, emprestando elementos de estilo do criador Bob Kane e de desenhistas do passado como Jack Burnley e Jerry Robinson, reforçando o caráter metaficcional da HQ. A história de Gaiman é uma linda homenagem ao imortal cruzado embuçado, tratando-o com admirável verve e sensibilidade. O volume é completado por cinco histórias mais curtas, também de épocas diferentes, incluindo uma em preto e branco por Simon Bisley, esta totalmente metaficção.

 

Arte de capa de Giuseppe Matteoni.

Dragonero: O Caçador de Dragões Nº 1, de Luca Enoch & Stefano Vietti (texto) e Giuseppe Matteoni (arte). São Paulo: Mythos Editora, fevereiro de 2019, 292 páginas. Tradução de Júlio Schneider. Arte de capa de Giuseppe Matteoni. Brochura. Dragonero é uma série mensal de quadrinhos de alta fantasia, publicada originalmente pela Sergio Bonelli Editore em preto e branco, criada na Itália em 2009, pela dupla Enoch & Vietti. Chegou aqui num livrão distribuído em bancas. Traz todos os elementos tradicionais da alta fantasia pós-Tolkien: mapas e glossário de línguas ficcionais; uma cuidadosa e rica construção de mundo bem amparada pelo traço preciso de Giuseppe Matteoni; ameaças que atingem o mundo secundário globalmente, e a formação de uma irmandade que, depois de identificar a natureza completa da ameaça, parte para obter os itens mágicos necessários. O enredo prevê a separação eventual da irmandade em pontos-chave da narrativa, e o sacrifício de algum dos seus membros. O centro da dinâmica entre os personagens é o relacionamento do herói de queixo quadrado Ian Aranill com seu amigo orc, Gmor (que contribui com o alívio cômico), e de Ian com a irmã, Myrva. Há uma ênfase especial nas guildas de magos, aviadores e técnicos, já que a série tem um lado steampunk. Inclusive, Myrva faz parte da ordem dos tecnocratas e integra a irmandade. O desenho claro, de traço robusto e de claro-escuro discreto de Matteoni dá conta de tudo.

O enredo leva o leitor a conhecer paulatinamente os membros da irmandade, o seu mundo secundário e a problemática que eles precisam resolver: um poderoso mago-vilão libera hordas de demônios antes confinados na zona proibida da “Antiga Interdição”. Para reerguer a interdição, é preciso plantar no coração do seu território uma planta mágica que viaja sob a custódia de uma pequena elfa reclamona e relutante, que é o último membro da irmandade a ser recrutado. Na premissa, há algo de J. R. R. Tolkien e de Terry Goodkind. No caminho dos heróis, viagens a terras distantes pela terra e pelo ar, duelos contra velhos desafetos e reencontros com velhos amigos, luta contra demônios cada vez mais numerosos, sacrifícios pessoais, um duelo de magos e, finalmente, um dragão redivivo. O ritmo é excelente, no desdobramento do enredo que pontua o maravilhamento da descoberta desse mundo mágico pelo leitor, e o conteúdo épico da narrativa, com momentos sombrios crescentes. Peter Jackson transformaria isso tudo em um blockbuster definitivo.

 

Príncipe Valente 1940, de Hal Foster. Planeta DeAgostini, 2019, 64 páginas. Introdução de Beatriz C. Montes. Tradução de Carlos Henrique Rutz/Estação Q. Capa dura. Após escapar da tentativa de assassinato do usurpador Piscaro, e de libertar o nobre Cesario, o Príncipe Valente parte, acompanhado de Sir Gawain e de Sir Tristão e com recursos renovados, na missão de deter quatro mil hunos que se aproximam. Logo no início, tem-se uma página com um violento choque de cavalaria. Com a ajuda do seu novo escudeiro, o malandro Slith, Valente bola um plano para derrotar o chefe dos hunos, Karnak, com mais ação clássica de cavalaria pouco adiante na narrativa. No aftermath, Valete socorre um mensageiro ferido, e descobre se tratar de uma garota disfarçada de rapaz. Ela tem origem nobre e, com o disfarce, busca continuar a liderança paterna na resistência aos invasores. Enquanto rola esse pequeno arco romântico, que recupera o leitmotif da moça que assume papel masculino em homenagem à autoridade paterna (que vemos desde Grande Sertão: Veredas, a Mulan), Valente vai pescar sozinho e retorna para se defrontar com uma delegação de nobres de várias regiões demandando que ele os lidere, como um Alexandre, para a vitória sobre um “mar de sangue huno”. Já apontei aqui como o volume anterior apresentou o início do ciclo sobre as guerras dos hunos, marcado pela uma crueldade. Aqui, quando Valente recebe os nobre e generais, ele se nega a liderá-los, indicando um livro com a “história do mundo” (de Plutarco?):

“Aqui, sob a minha mão, está a história do mundo. Jamais encontrarei uma conquista à força que seja duradoura. Alexandre e César, cada um a seu tempo, dominaram o mundo. Mas onde estão suas conquistas agora? O que aconteceu com a Babilônia, a Pérsia e Cartago? Os frutos da conquista são apenas inimizadas amargas. Não, meus nobres senhores, eu empenhei minha espada apenas às causas da justiça e da liberdade!” —Hal Foster. Príncipe Valente.

O trecho não apenas reafirma a mística arturiana de ideais civilizadores, como tempera as aventuras do herói com uma reflexão pacifista a partir da leitura e da ponderação. Assinalando os novos ares da saga, Valente e seus amigos Gawain e Tristão partem para Roma, com o primeiro cavaleiro se metendo em uma série de situações cômicas e desastradas, e com Valente partindo, mais adiante, para livrar uma região do arbítrio de um gigante. Começa um dos arcos que conheci na infância e que é dos mais nostálgicos para mim, pela sua mensagem contra o preconceito. Aí também temos um retorno ao espaço menos histórico e mais mítico da fantasia, embora a figura do gigante seja racionalizada, como outros ícones da fantasia, na crianção de Foster. Quanto ao ciclo dos hunos, ele só termina algumas páginas adiante, quando Valente e seus companheiros conseguem levar a ação até o acampamento principal dos invasores. Mais adiante ainda, Valente resgata um mercador árabe que lhe dá, em reconhecimento, um colar especial que vai tirar o herói de alguns apuros, no futuro. Uma vez, em Roma, mais encrencas aguardam os companheiros, com Valente sendo apanhado no meio de uma intriga do imperador contra o popular General Aécio. Os três são aprisionados, e escapam quando o imperador é alvo de uma revolta. Perseguido pelas montanhas, Valente margeia uma erupção do Vesúvio, e fecha o volume tomando um barco do seu capitão pirata.

 

Príncipe Valente 1941, de Hal Foster. Planeta DeAgostini, 2019, 64 páginas. Introdução de Beatriz C. Montes. Tradução de Carlos Henrique Rutz/Estação Q. Capa dura. Neste ano da publicação da página dominical de Príncipe Valente, importantes personagens secundários aparecem pela primeira vez: o pirata Angor Wrack e o mercador viking Boltar (que chegou a aparecer no filme de 1954). Principalmente, Aleta, a rainha das Ilhas da Bruma e futura esposa de Valente e mãe dos seus filhos. Eu me lembro de ter lido esta sequência há muito tempo, quando era menino, nas edições de capa amarela da Editora Paladino e em formato de livro (N.º 11, 1972).

Resistindo à tentação dos seus tripulantes de se aplicarem à pirataria, Valente termina ironicamente prisioneiro do escravagista Angor Wrack. Ao escapar, ele acaba em um bote à deriva durante dias, até ir parar em uma praia deserta, onde é socorrido momentaneamente por um anjo louro, que se torna sua obsessão. Esse anjo é Aleta, que deixa com o moço um bilhete que afirma que ninguém pode viver, depois de aportar na suas ilhas no Mar Egeu, mas que ele é jovem demais para morrer. Após curtas peripécias, ele vai parar na cidade litorânea de um velho rei que o toma como refém para pedir resgate. Valente encanta as duas filhas do rei, enquanto reúne recursos para a fuga, mas os cede a uma das filhas, para que ela possa fugir com um marinheiro que conquistara o seu coração. É um episódio bonito, e um refresco necessário a todo o sangue e cinismo do ciclo dos hunos. Mas quando Angor Wrack surge no palácio do rei para uma visita, o irritável herói puxa a espada. Nesse ponto, Foster produziu o fabuloso painel com o polvo gigante no fosso em que Valente é atirado, por ter agredido o convidado do rei. Após nova fuga, Wrack, que havia se apoderado da Espada Cantante de Valente, se torna a sua nova obsessão. Mas é no deserto e não no Mediterrâneo, que os dois se reencontram, aprisionados por ladrões enquanto duelam. Valente acaba escravizado na propriedade de um mercador árabe, ganhando parte das suas graças quando sua cultura o torna valioso como escriba. O plano de fuga de Valente envolve seduzir a morena filha do mercador, um padrão que se repete ao longo da saga, e que o herói deve ter emprestado do seu companheiro Gawain, o galanteador. Livre, ele vai parar em outra situação fantástica, desta vez não racionalizada, envolvendo um mago e a sua firme e bocuda esposa — outro momento divertido de observação psicológica, lastreado pela fantasia, do qual eu me recordava com muita afeição. O volume acelera com novo reencontro com Wrack. Agora, a cooperação anterior entre os dois teria funcionado como prova mútua de valor, e eles se tornam amigos — quando a narrativa é forçada a abafar o passado escravista de Wrack, algo pouco harmonizado com os valores da cavalaria e da Távola Redonda do Rei Artur. De novo de posse da Espada Cantante, Valente combate piratas, mas em nova circunstância moralmente ambígua, termina se associando ao pirata viking Boltar, para seguir com novas aventuras.

—Roberto Causo

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Leituras de Maio de 2019

Maio foi um mês marcado pela leitura de alguma ficção científica (também em não ficção de grande interesse), com destaque para Philip K. Dick, e muita fantasia (inclusive em quadrinhos nacionais e estrangeiros), com destaque para George R. R. Martin e álbuns do Príncipe Valente.

 

Sonhos Elétricos (Electric Dreams), de anônimo, ed. São Paulo: Editora Aleph, 2018, 236 páginas. Tradução de Daniel Lühmann. Brochura. Alguém pegou dez contos de Philip K. Dick que foram adaptados para uma série de TV por streaming e colocou em um livro. Esse alguém não foi Philip K. Dick (morto em 1982) nem qualquer um dos seus simulacros conhecidos. A série em questão, do tipo antologia, chamou-se Electric Dreams e foi criada pela Sony Pictures Television, indo ao ar em 2018. O relacionamento com a série é sublinhado no livro pelas apresentações dos contos, escritas por quem realizou a adaptação de cada história para o meio audiovisual — um formato bastante incomum. Muitos desses comentários são inteligentes e cheios de insight interessantes. É claro, o projeto em si reforça o relacionamento do escritor com esse meio. Hoje, Dick é um dos escritores de FC mais adaptados.

A seleção de contos é boa, e contém títulos muito antologizados como “A Coisa-Pai” (1954) e “O Planeta Impossível” (1953). Todas as histórias estão agrupadas na primeira fase da carreira de Dick. Vão de 1953, quando ele estreou, a 1955, e trazem as marcas da FC da época — uma delícia para quem absorveu os protocolos da ficção pulp ou cresceu vendo filmes B em preto e branco. A julgar pelas histórias, Dick já sentia que a década de 1950 se tornaria uma espécie de paradigma da vida americana para as décadas seguintes. Em “Peça de Exposição” (1954), por exemplo, um historiador do futuro, especializado no século 20, ao criar um diorama de demonstração do American way of life descobre que o mergulho cognitivo naquele contexto permite uma espécie de experiência direta, uma viagem temporal ou interdimensional — e uma alienação do sujeito quanto ao seu próprio tempo. O tema da alienação é explícito em “O Enforcado Desconhecido” (1953), com a paranoia escancarada de um homem comum que acredita estar rodeado de pseudo-homens que substituíram as pessoas da sua comunidade. É impressionante a semelhança dessa história com o romance posterior de Jack Finney, Os Invasores de Corpos (The Body Snatchers, 1955), adaptado pra o cinema em 1956 por Don Siegel. “A Coisa-Pai” está dentro do mesmo clima — semelhante ao filme Os Invasores de Marte (Invaders from Mars, 1953), de William Cameron Menzies: um menino descobre que seu pai foi substituído e é telecomandado por uma criatura alienígena que ele e seus amiguinhos perseguem no quintal de casa. O principal efeito está em como a credulidade infantil parece sustentar a forma implacável com que eles se voltam contra a imagem paterna, numa alegoria surda mas violenta do conflito das gerações. Em “Foster, Você já Morreu” (1955), o autor denuncia o consumismo americano e a ansiedade causada por ele, num contexto de guerra global em que toda família precisa de um abrigo anti-bombas de última geração. Novamente, um menino está no centro da narrativa. Dick também levou seus questionamentos sobre a percepção do real para o tema da robótica, representada no livro pela noveleta “Autofab” (1955), em que fábricas automatizadas ameaçam os recursos da Terra e são combatidas por um movimento de resistência; e pelo cômico “Argumento de Venda” (1954), história mais ligeira sobre um robô impertinente, tipo operador de telemarketing, que leva um piloto espacial à loucura.

Ao longo dos anos, vimos a reputação de Philip K. Dick crescer ao ponto de ele se tornar não apenas um nome fundamental da ficção científica na segunda metade do século 20, mas também um autor fundamental para questões ontológicas que seriam exploradas dentro e fora do gênero, pela corrente pós-modernista da literatura americana. Sonhos Elétricos, apesar do oportunismo em torno da série de streaming, é uma ótima introdução à sua FC.

 

A Vida de Philip K. Dick: O Homem que Lembrava o Futuro (A Life of Philip K. Dick: The Man Who Remembered the Future), de Anthony Peake. São Paulo: Editora Seoman, 2015, 312 páginas. Fotos. Tradução de Ludimila Hashimoto. Brochura. Este é um dos livros da Seoman que ganhei de Adilson Silva Ramachandra ano passado. Um leitura interessante com pontos muito instigantes sobre a vida e as atitudes de Dick, com o diferencial de que o autor, Anthony Peake, está disposto a analisar o seu lado místico — fundamental, a propósito, para o seu projeto literário. Esta é a primeira biografia de autor de FC que eu leio. Existe uma outra “biografia” de Dick disponível no Brasil, Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos: A Vida de Philip K. Dick, de Emmanuel Carrère, pela Editora Aleph (na verdade, um romance centrado na vida de Dick).

O livro de Peake investiga, em sua primeira parte (ele é dividido em três), a infância e juventude do escritor, a família, seus primeiros empregos e relacionamentos, e os primeiros escritos. Mais tarde, os casamentos, os seus momentos místicos, o sucesso relativo e seus anos finais até a morte em 1982, pouco antes que o sucesso de Blade Runner: O Caçador de Androides (1982), baseado no seu romance Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968), o consagrasse como uma referência quase universal na cultura do século 20. É interessante mencionar especialmente o fato de que Peake combina a biografia de Dick com uma série de boxes com informações sobre os principais romances de Dick. Desse modo relativamente discreto, o livro combina biografia com referência. O tempo todo, Peake pontua a sua discussão da vida de Dick com a tese de que de algum modo o escritor americano enxergaria cenas e situações do futuro — daí o subtítulo, O Homem que Lembrava o Futuro, certamente devendo algo a histórias de Dick como “We can Remember it for You Wholesale” (1966). Ele ampara a sua especulação com trechos de histórias, de entrevistas e da correspondência de Dick, além de depoimentos de gente que o conheceu. Seus argumentos são intrigantes, mas ele não os força sobre o leitor.

A segunda parte se concentra justamente em imaginar uma explicação mística para as experiências transcendentes que Dick afirmava ter vivido. Mas equilibrando a questão, e com ainda mais firmeza, Peake busca na terceira parte uma explicação neurológica — e portanto materialista — dessas experiências, indo de enxaqueca a overdose de vitaminas e AVCs isquêmicos. O assunto é fascinante em si mesmo, mas há o suficiente em A Vida de Philip K. Dick fora dessas especulações, para cativar também quem não se interessa por elas e busca apenas insights sobre a vida e a obra de um grande escritor que a FC apresentou ao mundo.

 

O Cavaleiro dos Sete Reinos (Knight of the Seven Kingdoms), de George R. R. Martin. São Paulo: LeYa Editora, 2016 [2015], 504 páginas. Tradução de Márcia Blasques. Ilustrações internas de Gary Gianni. Capa dura. Ainda sobre o impacto da última temporada de Game of Thrones, peguei esta reunião de três novelas ambientadas no mesmo universo, adquirida em uma promoção nas Lojas Americanas há pouco tempo. Eu já tinha comprado, no mesmo lugar, outra edição do mesmo livro, sem as belas ilustrações internas de Gary Gianni, mas com uma capa colorida do ubíquo Marc Simonetti. Foram justamente as ilustrações de Gianni que me atraíram para esta edição especial. Os outros dois livros com ilustrações desse artista de destacada passagem pelas páginas dominicais do Príncipe Valente que li foram The Bloody Crown of Conan (2003), de Robert E. Howard, e Gentlemen of the Road, de Michael Chabon — ambos com um excelente trabalho de Gianni. Sem dúvida, o  envolvimento com Príncipe Valente e as suas habilidades o tornaram um requisitado ilustrador de miolo. Por outro lado, não sou muito fã dessa capa dura com efeito metalizado. É uma adaptação local, e com ela perdemos uma arte colorida de Gianni…

As novelas reunidas são “O Cavaleiro Andante”, “A Espada Juramentada” e “O Cavaleiro Misterioso”. Na introdução, Martin esboça a história de Westeros e informa que a primeira narrativa ocorre uns 100 anos antes do início das Crônicas de Gelo e Fogo, base para a série Game of Thrones. A primeira novela conta como Duncan, ou “Dunk”, um escudeiro elevado a cavaleiro andante pelo cavaleiro a quem servia (e que morre e o deixa livre para cair na estrada), encontra seu futuro escudeiro: um menino pequeno, de cabeça raspada, que se banha em um regato e passa a ser chamado de Egg. Dunk é um tipo grandão com algumas habilidades de guerreiro, e logo fica claro que o moleque conhece mais da heráldica e de quem é quem no mundo da aristocracia de Westeros, do que ele. O objetivo dos dois é inscrever Dunk em um torneio, na esperança de que ele vença algumas justas e possa renovar o seu equipamento depauperado e ganhar uns cobres. No processo, Dunk salva uma moça marionetista que era assediada por um aristocrata. O ato o torna popular entre os camponeses, que se recordam de que a obrigação do cavaleiro é proteger os fracos, mas coloca o cavaleiro pobre e trapalhão na mira de um castigo aleijante. Com a ajuda de Egg (cuja origem surpreendente é revelada), cavaleiros de importância são recrutados para defender Dunk — e nesse ponto a ironia característica de Martin faz sua primeira aparição, com a morte inesperada de uma figura importante para Westeros. Toda a coisa do torneio é muito rica e lembra o episódio de Príncipe Valente (veja abaixo) em que o herói se inscreve secretamente em um, na tentativa de conquistar a glória que a sua condição de escudeiro não permitia.

A segunda história mostra a dupla defendendo as terras de um senhor feudal decaído, e vítima da injustiça da senhora que controla a rica propriedade vizinha. A princípio, Dunk tem que treinar, os camponeses do seu senhor como soldados. A situação é cômica e potencialmente trágica. Para evitar um massacre, Dunk vai parlar com a senhora vizinha, que se interessa romanticamente (ou sexualmente) por ele. Depois de uma série de incidentes, o herói descobre que não há uma recompensa reservada a ele. A narrativa final tem a dupla novamente envolvida com a realeza traiçoeira de Westeros, quando eles se apresentam num torneio organizado para honrar um casamento, com um ovo de dragão como prêmio ao vencedor. No processo, descobrem uma intriga de traidores para agitar uma nova revolta contra os monarcas que estão no poder naquela época do mundo de fantasia de Martin, os Targaryens. Livre dos truques usuais de Martin nas Crônicas de Gelo e Fogo, a narrativa de O Cavaleiro dos Sete Reinos é mais leve e dá mais espaço à contemplação de como ele pinta a sua fantasia medieval e os seus habitantes. Acaba sendo nostálgico e realista ao mesmo tempo, rico em enredo e textura. A dinâmica entre Dunk & Egg é divertida e os toques sobre o tecido social e a economia medievalesca de Westeros dão mais consistência às Crônicas. Adorei o livro, e viajei com o casamento perfeito de textos e ilustrações.

 

Arte de capa de Keith Parkinson.

Debt of Bones, de Terry Goodkind. New York: Tor Books, 1.ª edição, 2004 [1998, 2001], 160 páginas. Arte de capa e ilustrações internas de Keith Parkinson. Paperback. Goodkind é um best-seller da alta fantasia nos Estados Unidos e em vários cantos do mundo, com a série The Sword of Truth, cujos livros aparentemente nunca foram publicados no Brasil, mas que estão parcialmente disponíveis em Portugal pela Porto Editora. Assim como o livro de Martin discutido acima, este apresenta uma aventura ocorrida bem antes dos eventos principais da série — e também é um livro com ilustrações. Nessa novela, a camponesa filha de feiticeira Abby vai até a cidade grande em busca de ajuda do grão-mago Zedd Zorander — que está muito ocupado defendendo o seu país da invasão mágica de tropas do tirânico Império de D’Hara. Em um fabuloso mise-en-scène, Zedd fala com Abby enquanto atende simultaneamente dezenas de outras demandas táticas do conflito. A princípio ele rejeita a demanda da moça, cujo marido e filha foram tomados pelos invasores, mas cede quando ela exige que ele cumpra uma dívida de ossos (como no título): um antepassado de Zedd (um dos personagens principais da série) foi beneficiado pela mãe de Abby, e o osso examinado por ele certifica a dívida.

Quando Abby retorna à sua vila invadida, fica claro que a moça é sendo chantageada pelas forças inimigas. Também fica claro que a concordância de Zedd acaba sendo uma situação do tipo O Resgate do Soldado Ryan, em que aquilo que parece uma exceção pessoal inserida em um vasto conflito acaba confluindo para uma situação estratégica ou tática legítima. A narrativa é bem equilibrada e bem construída, reservando duras lições a Abby. A ilustração de Keith Parkinson tem composição simples mas uma execução brilhante em termos de luz, sombra e atmosfera. Suas artes internas (apenas meia dúzia) são mais simples, feitas a grafite e portanto com um nível de acabamento menor que as de Gary Gianni, mas mesmo assim encantam e iluminam o texto. Desencarnado muito cedo, aos 47 anos, Parkinson foi um artista rico e sofisticado, de quem os jogadores brasileiros de RPG devem se recordar (artes dele apareceram na capa da revista Dragon).

 

O Guia Geek de Cinema (The Geek’s Guide to SF Cinema), de Ryan Lambie. São Paulo: Editora Seoman, 2019 [2018]. Apresentação de Cláudia Fusco. Prefácio de Roberto Causo. Posfácio de Adilson Silva Ramachandra. Capa dura. Depois da publicação de A Verdadeira História da Ficção Científica, de Adam Roberts, a Seoman volta a contribuir com a pesquisa e a contextualização crítica da ficção científica com este livro de um dos editores do site Den of Geek. Tive a honra de ser convidado, por Adilson Ramachandra, para escrever o prefácio que se segue à ótima apresentação de Cláudia Fusco. Também fiquei muito feliz de sugerir a contribuição de Alfredo Suppia, um especialista em FC no cinema brasileiro, que contribuiu com uma lista de produções de interesse que merecem atenção. Com isso, o cinema brasileiro não ficou de fora do livro, que conta ainda com várias listas dos melhores filmes, agregadas por Ramachandra ao posfácio escrito por ele.

O livro de Lambie, propriamente, é engenhosamente dividido em capítulos temáticos que se dispõe cronologicamente, discutindo assim a evolução da FC no cinema a partir dos seus grandes marcos, indo de Viagem à Lua (1902) até A Origem (2010). Desse modo, o livro também é uma grande lista. Mas com o diferencial de discutir uma série de outras produções a cada capítulo, identificando semelhanças sob uma mesma chave dentro de cada período. Uma ficha com os títulos “suplementares”, por assim dizer, fecha os capítulo. Lambie não é elitista, e por isso comenta filmes pouco babados pela crítica e mais populares, como Godzilla (1954) e Independence Day (1996), ao lado de grandes títulos como Metrópolis (1927), Dr. Fantástico (1964), 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Blade Runner (1982) e Matrix (1999). O texto de Lambie é fluido, animado e com grande poder de síntese. Ele foge da superficialidade que encontramos em muitos sites e blogs, por meio de uma abordagem que destaca o modo como os filmes e os temas que aborda expressam o espírito da época e suas questões políticas e sociais, sem, obviamente, ser “pesado”. Desse modo, o guia valoriza o seu assunto e favorece tanto a leitura completa do volume quanto a consulta constante dos filmes e temas que Lambie elegeu. Recomendo com entusiasmo.

 

As Aventuras de Honey Bel, de Miguel Carqueija. São Bernardo do Campo: Edições Electron/Edições Hiperespaço, 2017, 64 páginas. Artesanal. Assim como eu, Braulio Tavares, Cid Fernandez, Finisia Fideli, Gerson Lodi-Ribeiro, Henrique Flory, Ivan Carlos Regina, Ivanir Calado, Jorge Luiz Calife, Roberto Schima e Simone Saueressig, Miguel Carqueija é um escritor da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira (1982-2015). Apareceu em muitas antologias ao longo dos anos (Possessão Alienígena sendo a mais recente) e seu trabalho marcou a fase dos fanzines desse período. O desktop publishing e a era dos blogs e e-books forneceram a ele um espaço análogo ao dos fanzines, para a sua produção de FC e fantasia em geral leve e descompromissada, voltada para os jovens mas provavelmente sem alcançar esse público específico. Os seus trabalhos mais conhecidos devem ser o conto “Camarões do Espaço” (2009) e a novela juvenil Farei meu Destino (2008).

Esta é uma edição amadora de novela de ficção científica humorística. Honey Bell é uma garota  desmiolada que só pensa em arrumar casamento, mas acaba recrutada para agir como agente secreta. A premissa é estranha e exige que o leitor confie na narrativa até que os fatos esclareçam que quem entrou pelo cano foi o malandro que a recrutou. O humor vem da oposição entre o que a heroína enfrenta e o mundo emocional açucarado que ela projeta o tempo todo. É um recurso que a gente vê com frequência nos animes, uma das áreas de interesse do autor. Mas como Carqueija conhece FC a fundo, ele enriquece o enredo e a caracterização da garota com um truque interessante — ela consegue reconhecer meio que por instinto os pontos de estresse e de fratura de inimigos e de estruturas, de modo que, apesar da falta de juízo, termina sempre sendo eficiente. Carqueija só não explica de onde vem essa habilidade (de um implante cibernético, de uma mutação?), talvez guardando a explicação para uma nova aventura da personagem.

 

Arte de capa de John Spencer.

O Lobo (The Wolf), de Joseph Smith. Rio de Janeiro: Objetiva, Alfaguara, 2009, 136 páginas. Tradução de Adalgisa Campos da Silva. Capa e ilustrações internas de John Spencer. Brochura. O selo Alfaguara da Objetiva, no qual este livro foi publicado, é um dos espaços privilegiados da publicação de ficção mainstream no Brasil. Causa certa estranheza encontrar uma fábula nesse espaço, o que me fez adquirir este romance de estreia do inglês Joseph Smith, em uma feira de descontos num dos saguões do Shopping Cidade de São Paulo, em Sampa. Já anotei aqui outras fábulas: Fábulas Ferais (2017), de Ana Cristina Rodrigues, e O Chamado dos Bisões (2017), de Paola Giometti.

Na fábula de Joseph Smith, o lobo, fera que vive no topo da cadeia alimentar dos bosques europeus, é vítima, por isso mesmo, do seu próprio húbris: ele desafia o homem, na sua indefectível cabana isolada na mata, presente em tantos contos de fadas. O resultado é vexatório, o que leva o predador a descontar a frustração em uma raposa. Esta, sempre implorando pela vida com os olhos, promete levá-lo a uma refeição especial.

“Implorar com os olhos” é mais do que uma expressão, já que o contato visual, nesta fábula, conduz a uma forma de comunicação não verbal — um dispositivo literário muito inventivo, que supre a necessidade de diálogos sem que a narrativa necessariamente caia no truque tão próprio da fábula, que é o animal falante. A refeição especial é um cisne preso em uma poça d’água, no fundo de um poço natural entre os interstícios de uma caverna. Neste momento, os sentidos de O Lobo se aprofundam. De repente, a atmosfera torna-se quase metafísica, e aos poucos o leitor se vê tentado a enxergar o livro menos em termos de eventos estranhos vividos pelo imaginário ponto de vista de animais, e mais como alegoria de algo maior. As raposas passam a ser mais que bichos espertos tentando enganar o predador estúpido. Elas representam tudo o que há de mesquinho e que precisa do monstruoso e do brutal para destruir a beleza. Ilustrado com xilogravuras de John Spencer, O Lobo é um livro belo e perturbador, escrito ao mesmo tempo com sensibilidade e a qualidade cortante de uma faca.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Fred Rubim.

Contos do Cão Negro Volume II: A Canção do Cão Negro, de Cesar Alcázar & Fred Rubim (arte). Porto Alegre: AVEC Editora, 2017, 64 páginas. Álbum. O personagem de fantasia heroica Cão Negro é uma criação do escritor gaúcho Cesar Alcázar, desenvolvido em contos e em histórias em quadrinhos. Já tive chance discutir aqui a sua novela A Fúria do Cão Negro (2014). O primeiro álbum desta série de quadrinhos, O Coração do Cão Negro, saiu em 2016.

Este segundo volume traz o violento e melancólico mercenário Anrath, vulgo “Cão Negro”, em meio ao resgate de uma mulher irlandesa sequestrada por vikings da Islândia. Anrath é o capitão de um barco que, depois que ele e seus homens são pagos, passa a ser seguido por um antigo companheiro de armas em busca de vingança, Ulf Gunnarson. Ulf arma uma eficiente emboscada, e Anrath e seu colega Rorik são feridos e acabam náufragos em uma ilhota. Anrath se separa do amigo e vai parar em uma caverna onde encontra comida, bebida e os braços de uma misteriosa mulher — que se revela de origem sobrenatural.

O verdadeiro arco desta narrativa se inicia, porém, quando Anrath se despede da bela Aella, uma companheira de aventuras, negando-se a abandonar a violência pelo amor. E o amor acaba sendo o tema da HQ, já que é esse sentimento o que a morena misteriosa da caverna oferece como letal ferramenta de sedução. A parceria de Alcázar com o artista Fred Rubim torna a render bons frutos neste segundo álbum, embora me pareça que de um para o outro a arte tenha se tornado ainda mais áspera a irregular.

 

Príncipe Valente 1937, de Hal Foster. Planeta DeAgostini, 2019, 64 páginas. Introdução de Álvaro Pons. Tradução de Carlos Henrique Rutz/Estação Q. Capa dura. Este é o primeiro volume da Coleção Príncipe Valente, nas bancas brasileiras importada de Portugal, onde é produzida. A coleção vai do primeiro ano de produção da página dominical do imortal herói criado por Hal Foster (em 1937) até 2018. O acabamento é bonito sem ser ostensivo, o papel é de boa qualidade sem ser couché, e a reconstituição das cores originais é bonita, embora, a julgar pela comparação com a edição reconstituída pela americana Fantagraphics (2009), sem a mesma qualidade esmaecida e aquarelada. O que eu mais temia era que a tradução para o português europeu apresentasse o tipo grave de problema que a Coleção Star Wars Classics apresentou. Felizmente, isso não acontece, embora haja uma “gralha” aqui e ali — inclusive na edição que não segue exatamente o original e as suas sinopses e chamadas para a página dominical da semana seguinte.

De qualquer modo, a magia da criação de Foster está presente no livro, que é agradável de se manusear. O formato da narrativa de Valente sempre foi biográfico, e no ano 1 ele e sua família chegam da terra mítica de Thule à Bretanha, como uma família real destituída e em exílio. Depois de choques com os bretões, instalam-se em uma ilha solitária no meio de um vasto pântano rondado por criaturas antediluvianas que trazem os primeiros maravilhamentos à aventura do príncipe. Valente se torna o derradeiro escoteiro, metendo-se na charneca com um garoto local da sua idade (11, 12 anos) e aprendendo a viver da abundância da terra, mas se metendo com figuras monstruosas que também usam o lugar como refúgio. Entre elas, uma bruxa e seu filho deformado que o garoto, já mais velho, quase mata de pancada. Depois de devolvê-lo à mãe, o rapaz ouve como castigo o vaticínio da vidente. Na profecia, o resumo das aventuras futuras do herói, e da dimensão existencial das andanças e triunfos que não lhe trarão felicidade. Daí não apenas a afirmação da face existencial equilibrando a aventura incansável, mas também testemunho da ambição de Foster, que já teria o rascunho da evolução da sua HQ ao iniciá-la.

Abalado pela profecia e pela subsequente morte de sua mãe (agourada pela bruxa), o sinal mais claro do caráter do rapaz é ele ter partido em busca do seu destino. No processo, encontra cavaleiros da Távola Redonda e se torna escudeiro de Sir Gawain, em Camelot. As várias aventuras posteriores em que luta contra um dragão (racionalizado como um crocodilo marinho gigante), ajuda a aprisionar salteadores, liberta um ferido Gawain do cativeiro e encontra seu primeiro amor ao liberar o castelo da moça de usurpadores funcionam mais para demonstrar a sagacidade e os recursos do herói. Os próximos volumes trarão arcos mais intensos e representativos da arte e da imaginação de Hal Foster. Cada livro terá um ensaio a título de introdução, tratando da obra do artista canadense. Álvaro Pons responde pelo primeiro ensaio, no qual enfatiza a qualidade adulta da obra de Foster (uma novidade na época), e como ele racionaliza os elementos mágicos costumeiros da fantasia arturiana.

 

Príncipe Valente 1938, de Hal Foster. Planeta DeAgostini, 2019, 64 páginas. Introdução de Beatriz C. Montes. Tradução de Carlos Henrique Rutz/Estação Q. Capa dura. O segundo livro da Coleção Príncipe Valente abre com o jovem herói usando o feitiço contra o feiticeiro, na sugestiva sequência em que o boato sobre um ogro horrível atacando os viajantes se revela como um bando de ladrões fantasiados. Capturado por eles, Valente escapa usando a sua engenhosidade ímpar de escoteiro. Ele retorna com a sua própria fantasia, para “assombrar” como um demônio alado, o castelo dos salteadores. De fato, constantemente o herói racionaliza a magia e o sobrenatural, mas logo depois se mete entre um duelo de feitiços entre a fada Morgana e o mago Merlin, numa situação fantástica em que nada é racionalizado.

Poster da adaptação de Príncipe Valente para o cinema, por Henry Hathaway.

O jovem príncipe desterrado não tem descanso. De volta a Camelot, tem notícia de que sua paixão, Lady Ilene, vai se casar com o Príncipe Arn. Ele logo parte, disposto a confrontar Arn pela mão da garota, mas no caminho se depara com evidências de uma invasão viking. Antes de encontrar os invasores, encontra o próprio Arn, com quem se bate e resgata de um azarado tombo em águas revoltas. O surgimento dos vikings obriga os dois a uma trégua. Arn vai proteger Ilene, instado por Valente, que fica com a famosa Espada Cantante do seu rival, para ganhar tempo segurando o inimigo em uma ponte de pedra. Esse é um dos momentos antológicos da saga do herói, com um dos painéis mais inspirados de Hal Foster. Exausto, Valente é capturado e levado à presença do chefe viking Thagnar, enfrenta o seu gigantesco carrasco em uma peleja de luta olímpica, e revê Ilene. Nem ele nem Arn, porém, terão a mão da jovem. Esse arco narrativo termina com os dois príncipes antes rivais e agora amigos como náufragos em Thule, firmando aí o primeiro retorno de Valente à sua terra natal, desde o exílio de sua família nas charnecas da Bretanha.

De volta a Camelot, temos aquele delicioso arco em que Valente se inscreve no grande torneio como o incógnito cavaleiro sem brasão e destituído de armas, mas que não obstante desafia ninguém menos que Tristão, o segundo melhor cavaleiro de Arthur. A sequência, se a memória não falha, entrou no filme de 1954 (acima). Mas o herói acaba humilhado e volta para as terras de seu pai nas charnecas. O retorno é um movimento esperto da parte de Foster — esse mundo selvagem é belo e repleto de significados místicos, que o artista torna a explorar. Mais importante, dá a chance de Valente se deparar com uma nova invasão, início do arco mais dinâmico e significativo da primeira fase das aventuras do jovem herói.

 

Príncipe Valente 1939, de Hal Foster. Planeta DeAgostini, 2019, 64 páginas. Introdução de Beatriz C. Montes. Tradução de Carlos Henrique Rutz/Estação Q. Capa dura. A sagração de Valente como cavaleiro fecha o notável arco narrativo iniciado no volume anterior, depois que o rapaz alerta o Rei Arthur de que a esquadra invasora dos saxões oculta-se nos pântanos, e elabora um plano astuto para entregar o inimigo de bandeja ao rei. Basicamente, termina aí a fase arturiana dos primeiros anos das páginas dominicais do herói. Logo depois, Foster o lança na empreitada de recuperar o reino do seu pai em Thule — um arco talvez abreviado demais e livre de grandes complicações, seguido de uma situação cômica em que a filha do rei deposto tenta seduzir Valente, mas acaba se apaixonando pelo melhor amigo do herói. A partir daí, minha memória das aventuras de Valente ficou mais nebulosa, talvez porque toda a trama da invasão dos hunos não tenha me parecido tão interessante quanto deveria. Há uma força cruel nessas passagens, porém, em especial quando Valente se une aos defensores de um castelo liderado por um galante lorde que enfrenta os hunos com um sorriso nos lábios. A noção de que o combate contra os invasores asiáticos é um esporte pulsa de maneira incômoda em vários momentos, mas é o terrível estoicismo hedonista do Lorde Camoran que marca o arco como um episódio digno da crueldade de um George R. R. Martin. Comoran e os seus vassalos e damas vivem como se não houvesse amanhã, até que não há, e todos se conformam à morte sem que cedessem aos invasores.

A partir daí, Valente, de maneira talvez pouco característica em relação aos episódios anteriores da sua saga, comanda uma guerrilha contra os hunos, até que sua fama cresce e ele reúne um exército vitorioso na Europa central. Reencontra-se com Gawain e Tristão, que se unem à sua causa. Já perto do final do volume, Valente se infiltra na cidade controlada pelo Conde Piscaro, um colaboracionista dos hunos, e é capturado e torturado por ele, escapando com truques de capa e espada. A maior parte do volume me pareceu divergir do espírito da série. Apenas o episódio em que Valente tem um vaticínio místico com um feiticeiro que vive em uma caverna traz uma aura mais próxima desse espírito. É como se Foster, sentindo que realmente realizara algo de especial até o ponto da sagração de Valente, meteu-se a elaborar fiadas aventurescas menos características, talvez por influência das suas pesquisas. Mas a questão dos hunos é intrigante e vale outro grau de considerações: em 1939 a Segunda Guerra Mundial já rolava na Europa. Sendo canadense, Foster provavelmente era mais sensível à questão de como a Inglaterra e a Europa continental sofriam nas mãos dos alemães — alcunhados de “hunos” desde a Primeira Guerra. A hipótese não é doideira da minha cabeça, tendo entrado no livro Arthurian Writers: A Biographical Encyclopedia (2008), editada por Laura Lambdin & Robert Thomas Lambdin. Assim, a luta do herói contra o terror huno pode muito bem ter expressado o  desejo de uma vitória das democracias contra o nazi-fascismo.

—Roberto Causo

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