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Leituras de março de 2017

Nas leituras de março, Dante Alighieri, Saladin Ahmed, Luiz Bras e Andrew Vachss compõem um conjunto variado: o clássico e o novo, livro de arte e livro ilustrado, ficção e não ficção. E muita ilustração de qualidade.

 

Arte de capa de Bob Eggleton.

Alien Horizons: The Fantastic Art of Bob Eggleton, de Bob Eggleton & Nigel Suckling. Londres: Paper Tiger, 2.ª edição, 1995 [1994], 128 páginas. Capa de Bob Eggleton. Introdução de Gregory Benford. Brochura. O último livro que li mês passado foi um título da Paper Tiger. Começo as leituras de março com outro livro da mesma editora. Este é um título mais próximo do costumeiro para a Paper Tiger — portfolios de grandes ilustradores de arte de ficção científica. Bob Eggleton esteve muito ativo a partir da década de 1980, deixando sua marca  na capa de livros e revistas de FC, e também em revistas de astronomia e divulgação científica. Ter um livro publicado pela Paper Tiger é uma honraria em si, mas Eggleton já ganhou oito vezes o Prêmio Hugo de melhor artista!

Tenho muitas revistas e livros com capas feitas por ele, mas apesar de tudo, mantinha reservas quanto ao seu trabalho. Às vezes, um excesso de pinceladas finas dá um contorno esgarçado às suas figuras — e a publicação de várias ilustrações claramente em estágios intermediários, longe da finalização esperada, com certeza não ajudou. E Eggleton nem sempre acerta com a figura humana. Mas a impressão caprichada das suas artes neste livro fornece a oportunidade ideal para se reavaliar seu trabalho. Algumas das suas imagens de arte espacial são absolutamente deslumbrantes, e as pinceladas finas trazem a algumas um acabamento texturado que encanta. O texto é quase num formato de entrevista, integrando o leitor a uma conversa que expressa a personalidade de um artista que gosta de variar (há um trajeto quase que antipodal, entre arte de FC hard e arte de horror sangrento). Mantendo a mesma lógica, as legendas das imagens também são partilhadas pelos dois, com Suckling comentando algumas, e Eggleton outras. Um livro que mudou minha opinião sobre um artista prolífico e versátil.

 

Arte de capa de Vagner Vargas.

Mistério de Deus, de Roberto de Sousa Causo. São Paulo: Devir Livraria, março de 2017, 600 páginas. Capa de Vagner Vargas. Brochura. OK, incluir o seu próprio livro em uma lista de leituras completadas em março é trapaça. Afinal, ao revisá-lo como rascunho, eu já o li várias vezes. Mas rascunho é rascunho e livro é livro, só existindo como tal depois de publicado.

Mistério de Deus é uma dark fantasy (narrativa em que o horror se insere sobre uma base realista) ambientada no interior de São Paulo em 1991. Há muito de ficção de crime no romance, e um pouco de ficção científica. Um jovem recém-saído da prisão escapa de uma tentativa de assassinato, ao retornar à sua cidade natal. Em torno de ele, aos poucos se forma um grupo de quatro jovens — entre eles um segurança e corredor ilegal, um policial militar e uma médium relutante — dispostos a enfrentar uma quadrilha de assassinos que matam sem motivo, carregando as vítimas em um carro envenenado. Aos poucos, vão entendendo que existe uma ameaça sobrenatural por trás dos crimes. Para chegar a essa força sobrenatural, porém, os heróis precisam passar por traficantes de drogas e policiais e políticos corruptos, sobreviver a perseguições automobilísticas a quase 260 quilômetros horários, e transitar na linha incerta entre vivos e mortos. Mistério de Deus se conecta com o meu segundo romance, Anjo de Dor (Devir; 2009), finalista do Projeto Nascente da USP, mas não é uma sequência. Comecei a escrevê-lo em setembro de 1998, e o terminei em setembro de 2003, quando Anjo de Dor nem havia encontrado uma editora. Naquela época, não havia chances de um romance de horror desse tamanho ser publicado — situação que veio a mudar com o sucesso dos livros de André Vianco. Meu desejo, com o romance, era dominar a “narrativa entrançada”, na qual vários personagens, cada um na sua linha narrativa, avançam em paralelo até que elas se enlacem perto do final. Douglas Quinta Reis, meu editor na Devir Brasil, elogia a estrutura do romance e acha que fui bem-sucedido. A arte de capa de Vagner Vargas captura com brilhantismo o clima de velocidade e solidão. Além disso, constrói uma iluminação engenhosa em torno dos faróis dos carros, e deixa claro, com o semblante demoníaco no alto, a qual gênero o livro pertence.

 

Throne of the Crescent Moon, de Saladin Ahmed. Nova York: DAW Books, 2013 [2012], 368 páginas. Paperback. Criador do Prêmio Hydra, o escritor Christopher Kastensmidt tem feito há mais de dez anos a ponte entre a comunidade brasileira de fantasia e ficção científica, e a sua contraparte americana. Depois de umas de suas passagens pela convenção mundial de FC, ele me trouxe livros autografados por seus colegas da geração mais jovem da fantasia em língua inglesa. Saladin Ahmed é um expoente, e só lamento estar lendo este romance agora — o livro sumiu da minha estante de autografados, só reaparecendo recentemente.

Throne of the Crescent Moon é, assim com o romance A Bandeira do Elefante e da Arara (2016), de Kastensmidt, uma fantasia heroica de cenário incomum. Um mundo secundário modelado no Oriente Médio, no primeiro; o Brasil Colônia, no segundo. O livro de Ahmed ganhou o Prêmio Locus de Melhor Romance de Estreia em 2013, e é o primeiro de uma série. Nele, o erudito Adoulla Makhslood é um “caçador de goul” (espécie de zumbi do folclore árabe) que tem como assistente o jovem dervixe e espadachim magistral Raseed. Em suas aventuras, eles agregam outros heróis, num grupo dos mais originais e divertidos da fantasia heroica — uma garota que se transforma em leoa, e um casal de alquimistas. Vivem na cidade de Dahmasawaat, capital do Reino da Lua Crescente, que está às voltas com um príncipes dos ladrões, espécie de Robin Hood das Arábias. Mas o que a equipe de heróis descobre é uma força sobrenatural que ameaça instaurar um reinado do terror, na cidade e no reino. O tempo todo nesse mundo secundário calcado na experiência histórica e cultural árabe, fala-se em Deus e no trabalho de Deus, realizado por Adoulla e seus amigos. Na cidade, agentes das normas religiosas patrulham as ruas como o talibã. Uma das grandes sacadas de Ahmed é entender que numa sociedade em que ser pio faz parte das estruturas de poder, uma resposta possível está na ênfase cotidiana no mundano. Por isso, os heróis são pessoas despachadas e endurecidas, repletas — especialmente os velhos — de um humor ácido. A interação entre os velhos e o jovem casal é deliciosa. O final é satisfatório, mas o romance tem uma “barriga” enorme do meio para o fim, apoiando-se demais nessa interação. De qualquer modo, a acolhida desse livro pela comunidade de FC e fantasia americana atesta o quanto ela é aberta e, neste momento, interessada na diversidade cultural.

 

Arte de capa de Cathie Bleck.

The Divine Comedy (La Divina Commedia), de Dante Alighieri. Nova York: Barnes & Noble, 2008, 694 páginas. Capa de Cathie Bleck. Tradução de Henry Wadsworth Longfellow. Ilustrações de Gustave Doré. Introdução de Melinda Corey. Capadura. Eu conhecia A Divina Comédia da juventude, quando comprei a edição da saudosa coleção de clássicos da Abril Cultural (que usou uma tradução de Hernani Donato, em prosa e não em verso). Mais tarde, na pós-graduação, estudei o livro de Dante Alighieri. Meu Mestre das Marés, o segundo romance da série As Lições do Matador, empresta dele imagens e versos para sublinhar o estado mental do herói Jonas Peregrino, quando ele desce à paisagem torturada de um planeta destruído por um buraco negro. Para tanto, recorri a esta edição da tradução para o inglês de Longfellow, lendo o “Inferno” e o “Purgatório”. Mas neste mês achei que valia terminar a leitura de “Paradiso”, fechando o livro. Além disso, Dante e sua obra terão um papel no romance Archin, que Taira Yuji do Desire®  Universe me contratou para escrever.

A edição da Barnes & Noble, a rede de livrarias americana, é do tipo “bargain edition” — quer dizer, imita o acabamento de um livro de couro com douramento, mas numa faixa de preço bem abaixo. É gostoso de manusear, de qualquer modo, e a tradução versificada de Longfellow faz toda a diferença, mesmo não sendo rimada e usando um inglês do século 19. A estrutura em tercetos de Dante é preservada, e a habilidade de Longfellow (que levou uns três anos para terminar a tradução do italiano) no uso de rimas internas e de sequências aliterativas dá uma cadência profunda e magnética à sua tradução desse poema narrativo e filosófico. As ilustrações de Gustave Doré (também na edição da Abril) são obrigatórias. Hoje, estão em toda parte, como a interpretação última da imagética dantesca, influentes até no cinema. O cuidado de Doré com atmosfera, aliado à sua imaginação grotesca, certamente romântica, fazem um interessante contraponto à erudição clássica de Dante, e transformam o mergulho do turista do além túmulo na cultura clássica e dos dilemas sociais e religiosos do século 13 europeu, em um mergulho no inconsciente.

 

Dante, anônimo, ed. São Paulo: Colégio Dante Alighieri, 2008 [1965], 100 páginas. Ilustrações. Brochura. Na sequência da Divina Comédia, decidi ler este opúsculo sobre vida e obra de Dante, produzido e publicado pelo Colégio Dante Alighieri, de São Paulo. Quando Taira Yuji decidiu que Dante seria um personagem no romance Archin, ele, o redator Pedro Santos e eu fizemos uma visita ao colégio em 28 de junho de 2016, para uma conversa com dois especialistas no poeta italiano, o artista Canato e a bibliotecária Marilda Mitsui. Além de informações preciosas e um tour guiado pelos murais primorosos de Canato interpretando a Divina Comédia, cada um de nós recebeu esta edição fac-similar de um livreto de 1965, quando se comemorou 700 anos do nascimento do poeta.

A nota da primeira edição informa que os textos foram escritos por professores “que vivem e ensinam no nosso meio”. Não há mais informações editoriais ou de autoria — talvez perdidas quando se produziu o fac-símile. Comparado a outro livro sobre Dante que li, Dante Alighieri: O Poeta Filósofo, de Carlos E. Zampognaro, a linguagem mais rica (“antiquada”) deste atrai mais do que o livro de Zampognaro, mais burocrático na sua intenção de amparar estudos universitários. Um insight que importa aos estudos da “proto ficção científica” aparece na página 61: “poder-se-ia qualificá-lo como romance de aventura: da mais extraordinária e inverossímil aventura que possa ocorrer a um homem.” E na página 72: “um invulgar clima de aventura e de imprevisto, dando à própria ficção extraordinária ambientação, ao mesmo tempo realística e fantástica”. Nessa aventura pelos reinos do além, não estão apenas os conhecimentos teológicos reelaborados pela imaginação e pela verve do poeta, mas também algo dos conhecimentos científicos da época.

 

Arte de capa de Teo Adorno.

Não Chore, de Luiz Bras. São Paulo: Editora Patuá, 2016, 152 páginas. Capa e Ilustrações de Teo Adorno. Brochura. A ficção científica e fantasia brasileira estão em grande efervescência desde 2004 ou por aí. Isso nos obriga a uma leitura prospectiva constante. Mas aos poucos, certos autores vão surgindo como nomes obrigatórios. Luiz Bras é um deles. Um dos heteronômios do consagrado escritor mainstream Nelson de Oliveira, foi criado para explorar a FC e o infanto-juvenil. Sua coletânea de histórias Paraíso Líquido (2010) é uma das mais experimentais e ousadas, desde A Espinha Dorsal da Memória (1989) e Mundo Fantasmo (1994), de Braulio Tavares; O Fruto Maduro da Civilização (1993), de Ivan Carlos Regina; e Confissões do Inexplicável (2007), de André Carneiro. Seu romance Distrito Federal (2014) leva a FC tupinipunk a novas direções e produz uma dos mais contundentes denúncias do status quo do Brasil pós-Mensalão. O movimento que ele lançou a partir do ensaio “Convite ao Mainstream” é um dos desenvolvimentos mais interessantes da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira, situando-se no polo oposto do apelo à estética pulp, desse contexto característico do século 21.

A novela Não Chore vem com a chancela do ProacSP, mas faz par com Distrito Federal. Repete a estrutura de rapsódia, e sua crítica mira agora a questão do crime e as omissões do Estado. O caráter experimental está na mistura de trechos em terceira, primeira e segunda pessoas do singular, e na prosa poética que emprega repetições, reiterações e o entrecruzamento de linhas narrativas. No plano temático, o malabarismo surrealista é com uma organização de viajantes no tempo, nuvens de nanomáquinas, realidade virtual, clonagem, anarquistas em ação contra policiais, entidades espirituais afro-nativo-brasileiras, ameaça de choque de asteroides contra São Paulo, e um futuro ou realidade alternativa distópica em que presídios apresentam reality shows de tortura de prisioneiros. O texto aqui tem menos espinhos dirigidos à autoridade e ao poder, mas nos traz personagens mais próximos e vozes mais comoventes, do que o de Distrito Federal. Alguns personagens meio que desaparecem antes na melancólica conclusão, mas o texto conserva sua força e complexidade estrutural até o fim. As ilustrações de Teo Adorno (outro heteronômio) apresentam personagens de traços afros, homens e mulheres, acompanhados de reflexões e confissões pessoais. Funcionam em si mesmas, mas uma delas dá a chave metaficcional deste que é, derradeiramente, um texto de fabulation pós-modernista:

“A mentira da ficção é mais verdadeira que a verdade do jornalismo e da historiografia porque a realidade não é ‘real’, é uma convenção social cuidadosamente ajustada. As obras mais realistas (mais verdadeiras) são as que denunciam o autoengano social dessa irrealidade cotidiana.” —Luiz Bras, Não Chore.

 

Arte de capa de Paul Chadwick.

Another Chance To Get it Right: A Children’s Book for Adults, de Andrew Vachss. Milwalkee, OR: Dark Horse Books, 1995, 64 páginas. Ilustrações internas. Capa de Paul Chadwick. Brochura. Continuo encontrando material de interesse nas prateleiras de promoções da loja Terramédia, de São Paulo. Este é um livro ilustrado com a proposta muito importante, de nos lembrar da vulnerabilidade da criança perante a desigualdade, a guerra, o vício, a violência e o abuso. Andrew Vachss é um advogado que milita na área, com experiência pessoal como investigador de campo do serviço de saúde pública, supervisor de serviço social, e diretor de ONGs. Além disso tudo, é romancista de ficção de crime, autor da série Burke, com um detetive particular que se especializa em casos de abuso infantil.

Vachss também escreve para quadrinhos, sendo autor de Batman: The Ultimate Evil (1995) e de outros trabalhos. Another Chance To Get it Right é uma coletânea de textos sem títulos, ilustrada só por craques da área: Tim Bradstreet, Paul Chadwick, Geof Darrow, Rick Geary, Gary Gianni (que já desenhou Príncipe Valente e Conan), Dave Gibbons (o artista de Watchmen) e Warren Pleece. Em alguns momentos, os desenhos que acompanham o texto são de arte sequencial mesmo, faltando apenas os balões. O livro de Vachss é eficiente em chamar a atenção do leitor para a situação da infância ameaçada. E seu texto tem uma qualidade poética saudada por Joe R. Lansdale na contracapa. Esse elemento poético vem da ternura que pulsa por baixo de toda a dureza das situações descritas. E essa ternura expressa esperança que as crianças trazem, para o mundo — está no título, inclusive: as crianças representam uma outra chance de acertarmos, em como nos relacionamos com o mundo.

Levei um tempo para me recordar de que já tinha lido um livro de Andrew Vachss antes, o competente romance de crime The Getaway Man (2003). Na época, eu procurava livros sobre pilotos de fuga para inspirar a escrita de Mistério de Deus, e nesse Vachss trata de um delinquente juvenil de inteligência limítrofe, mas que é uma espécie de idiot savant no volante de carros de fuga.

—Roberto Causo

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Leituras de fevereiro de 2017

A ficção científica, o zen budismo e a ideia de transcendência deram a tônica das leituras de fevereiro, mesmo sem retiro de Carnaval. Confira as minhas anotações.

 

The Art of Japanese Architecture, de David & Michiko Young. Tóquio: Tuttle Publishing, 2007, 176 páginas. Brochura. Taira Yuji, o brilhante líder da empreitada multimídia do Desire® Universe, talvez o mais interessante projeto da FC e fantasia nacional em curso, me contratou para escrever Archin, o primeiro livro da franquia. E me inundou com livros sobre cultura japonesa, já que a maior parte do romance se passa no Japão do século 13. Este The Art of Japanese Architecture, do casal Young, foi o primeiro do lote que completei neste ano.

Trata-se de um livro de arte, em formato grande, muito bem estruturado e extremamente bem ilustrado com fotos, gráficos e concepções artísticas. Realmente informativo, vai da pré-história ao presente do Japão — de cabanas erguidas em cima de uma depressão cavada no solo, a projetos pós-modernistas de arranha-céus futuristas. Comentários sobre a evolução da sociedade, da religião budista e a sua história são habilmente associados a cada prática ou estilo de construção ou ornamento. Longe de ser um Casa Grande e Senzala, mas é impossível não sentir que mergulhamos em uma outra cultura, quando a imaginação nos leva a entrar nas casas das pessoas, e entendemos um pouco melhor o seu modo de vida. A Tuttle se especializa em cultura japonesa, e o seu fundador, Charles Egbert Tuttle, Jr., foi instrumental no renascimento da indústria editorial do Japão durante a ocupação americana. E por tabela, fundamental para a difusão da ficção científica americana naquele país (principalmente pela editora Hayakawa).

 

Arte de capa de Frank Frazetta.

Downward to the Earth, de Robert Silverberg. Garden City, NY: Nelson Doubleday, 1970, 180 páginas. Capa de Frank Frazetta. Capadura. Silverberg é um dos grandes nomes da ficção científica de todos os tempos. Downward to the Earth nunca foi publicado no Brasil, e sua leitura é uma indicação de Marcello Simão Branco, autor de Os Mundos Abertos de Robert Silverberg (2004). Trata-se de um romance planetário escrito no modo New Wave próprio daquela década. Um fato curioso é que Silverberg não veio ao Brasil para o Simpósio de FC de 1969 justamente por estar na África pesquisando para este romance, primeiro serializado em 1969 na revista Galaxy. É inspirado no clássico de Joseph Conrad, Coração das Trevas (1899), que influenciou obras de J. G. Ballard como The Drowned World (1963) e “A Question of Re-entry” (1963) — esta, ambientada no Brasil —, e até a minha O Par: Uma Novela Amazônica (2008). Silverberg chega a apresentar um personagem chamado Kurtz (o famoso vilão da novela de Conrad).

Em Downward to the Earth, o antigo administrador do planeta colonial Mundo de Holman — rebatizado de Belzagor, agora que foi retornado aos seus habitantes, duas espécies inteligentes, os nildoror (parecidos com elefantes) e os sulidoror (semelhantes a gorilas) — retorna para expiar violências morais e físicas que infligiu a esses alienígenas. O principal produto do planeta é o veneno de vermes gigantes. Ele provoca nos humanos o crescimento acelerado de membros perdidos. No passado, o protagonista, instado por Kurtz, provara o veneno, resultando num momento de consciência trocada com os nildoror. Em sua jornada de expiação, reencontra antigos amigos (inclusive uma sensual mas distante ex-namorada), e participa da cerimônia central tanto dos nildoror quanto dos sulidoror. Ele experimenta agora um transformador vislumbre da totalidade transcendente. Há pontos de contato entre este romance e a FC New Wave inglesa de J. G. Ballard e Brian W. Aldiss. Mas o livro também se apoia na estratégia central da New Wave americana: a concretização do mito — ou, no caso deste admirável livro de Silverberg, do ritual.

 

O Zen e a Experiência Mística (This Is It), de Alan W. Watts. São Paulo: Editora Cultrix, s.d. [1960], 150 páginas. Tradução de José Roberto Whitacker Penteado. Brochura. O terceiro romance da minha série As Lições do Matador, Anjos do Abismo, vai tocar na questão da religião organizada. Além disso, a religião e o místico farão parte de Archin, o primeiro romance do Desire® Universe. Seu criador, Daniel Abrahão me forneceu livros sobre o budismo no Japão. Mas minha esposa Finisia Fideli tem uma bela prateleira de obras sobre zen budismo, que, inclusive, eu já tinha visitado antes. Este livro de Alan Watts é uma coletânea de ensaios sobre a experiência mística zen: o insight da totalidade ou da ordem profunda da vida. O processo em que a “compreensão de que tudo é tão errado quanto pode ser se transforma na compreensão de que tudo é tão certo quanto pode ser”, Watts escreveu (explorei noção semelhante em meu conto de horror “Trem de Consequências”, de 1999).

O ensaio intitulado “O Zen Beat, ou da Contestação, o Zen Square, ou Tradicional, e o Zen” é particularmente interessante. Faz crítica da apropriação de conceitos budistas pelos beats ou beatniks, o movimento de Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William S. Burroughs. Como a literatura beat (especialmente a de Burroughs) influenciou pesadamente a FC da New Wave e do cyberpunk, existe aí um ponto de contato com minhas pesquisas desses movimentos dentro da ficção científica. Já o ensaio “O Zen e o Problema do Controle” me plantou a ideia de uma identidade entre o budismo e o transcendentalismo de Ralph Waldo Emerson, especialmente no conceito da “autoconfiança” (self-reliance) — que tem tido muita importância na minha escrita. E buscando, encontrei na internet evidências de que Emerson de fato teve contato com o budismo, lá na primeira metade do século 19 — espantoso! O Zen e a Experiência Mística tem um tratamento editorial básico, e a tradução de Whitacker Penteado derrapa aqui e ali, mas o livro me trouxe uma leitura frutífera.

 

Arte de capa de David Mattingly.

The Armageddon Inheritance, de David Weber. Nova York: Baen Books, 4.ª edição, 2000 [1993], 344 páginas. Capa de David Mattingly. Paperback. Weber é famoso pela série de space opera militar Honor Harrington, iniciada em 1993. Lançado no mesmo ano, este é o segundo volume da trilogia de space opera Dahak. A capa do experiente David Mattingly é na técnica de acrílica, e anterior à sua transição para a arte digital. Apareceu no prestigioso catálogo Spectrum 2 (1995). A hemorragia cósmica que ela representa já diz tudo.

No primeiro livro, o herói da trilogia, um astronauta americano, descobre no lado escuro da Lua que nosso satélite natural é uma espaçonave gigante de um império galáctico em crise. Ele é adotado por ela como herdeiro da sua tecnologia, e acaba se casando com uma alienígena descendente da primeira tripulação. No segundo, a Terra é unida para enfrentar a ameaça de alienígenas guerreiros chamados achuultani, comandados por um supercomputador e “programados” para tripular monstruosas esquadras de naves voltadas para um único propósito: o extermínio preventivo de qualquer outra espécie dotada de navegação espacial. Parece que Weber, na sua trilogia, compactou os dois primeiros ciclos da série alemã Perry Rhodan — hipótese que outros também apontaram na internet. Como em Perry Rhodan (iniciada em 1961), a ação deste romance de Weber é repleta de batalhas espaciais, lances dramáticos em rápida sucessão, e ideias fabulosas. The Armageddon Inheritance habita exclusivamente o espaço da hipérbole: naves do tamanho de planetoides, tripulações de dezenas e centenas de milhares, armas destruidoras de planetas, uma epidemia transplanetária capaz de extinguir todo um império galáctico, combates que acontecem no espaço normal e no hiperespaço ao mesmo tempo, uma inteligência artificial com alma, escudos de energia envolvendo um planeta inteiro, batalhas com milhões de vasos de guerra, e a Terra atingida por armas que a lançam numa pequena era glacial. Raramente a história acelerada e incansável mergulha na consciência dos personagens, e mesmo o herói mal arranha a superfície. A narrativa acaba assemelhando-se a um romanceiro medieval — poema narrativo que salta de situação em situação, com enredo frouxo e dentro de uma verve repetida por poemas anteriores, destituído das qualidades usuais do romance moderno (caracterização redonda, cenas bem construídas e alternância de formatos, cadências e tons numa mesma narrativa). Nesse sentido, expressa aquela “poesia pulp” atribuída pelo crítico Phil Hardy à série Perry Rhodan — um vertiginoso uso de imagens e sentidos que apenas a space opera é capaz de produzir.

 

REQU13M, de Lidia Zuin. São Paulo: Editora Nova Abordagem, dezembro de 2016, 272 páginas. Ilustrações internas de Davi Augusto e Pe Oliveira. Posfácio de Roberto de Sousa Causo. Apêndices. Brochura. Agora em fevereiro chegou o meu exemplar do primeiro livro de papel da escritora da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira, Lidia Zuin. Graças à indicação de Carlos Angelo, e à boa vontade do editor Nestor Turano Jr., tive a chance de escrever o posfácio do livro. Ele narra as aventuras da hacker Lynx (a primeira heroína de uma série cyberpunk brasuca?), que já circulava por aí em antologias e e-books pela Editora Draco. Quando o li para escrever o posfácio, ele não tinha nem as ilustrações internas, nem os apêndices — dois textos acadêmicos não creditados, mas de autoria da própria Zuin, que é Mestre em Semiótica. (Um deles está em inglês no site Neon Dystopia.) A rica edição é do pessoal do curso de Produção Editorial da Universidade Anhembi Morumbi.

REQU13M, que pode ser lido como um romance, é uma aventura movimentada. Tem correrias e tiroteios, escapadas de última hora e encontros com tipos estranhos e tecnologias bizarras, que causam estragos no nível das ruas da cidade indefinida que a heroína percorre. Dentre essas tecnologias, o upload da mente humana na rede. Mas o livro não prescinde de um lado filosófico e intelectualizado, que discute real e virtual, mundano e transcendente. Nesse sentido, os dois ensaios mencionados acima lançam luz sobre o projeto literário da autora — sem dúvida, um diferencial, dentro da recente produção brasileira de ficção científica cyberpunk.

 

Night Passage, de Robert B. Parker. Nova York: G. P. Putnam’s Sons, 1997, 322 páginas. Capadura. Sou fã de Parker, um escritor de ficção de crime e de western, um dos poucos herdeiros, de fato, do mestre Raymond Chandler. Na ficção de crime, Parker (1932-2010) desenvolveu três séries — a do detetive particular Spenser, a do chefe de polícia Jesse Stone, e a da detetive Sunny Randall. Spenser foi a série que mais acompanhei, mas eu já tinha lido o terceiro romance das histórias de Jesse Stone, Stone Cold (2003). Meu interesse pelas aventuras de Stone foi renovado pela ótima série de longas produzidos e estrelados por Tom Selleck, exibida no Brasil em vários canais a cabo.

Night Passage apresenta o personagem, bem mais jovem que a versão de Selleck. É um ex-policial de Los Angeles que mergulhou no álcool para lidar com as traições conjugais da esposa atriz, e acabou exonerado. É contratado para assumir a força policial de Paradise, em Massachussetts, do outro lado do país. Parker sempre escreve sobre essa região. O próprio Spenser é baseado em Boston, a capital. Enquanto se reequilibra, Stone arruma uma namorada e muitos inimigos. Por toda volta, encontra casos de traição extraconjugal. Paradise é uma espécie de subúrbio de classe alta, branco e quase que exclusivamente WASP. A intriga, envolvendo uma milícia armada de supremacistas brancos (ausentes da adaptação para a TV), comandada por um frustrado banqueiro, mostra que Paradise não é assim por acaso. Parker era fissurado em psicanálise, e às vezes isso aparecia de modo exagerado ou repetitivo, nos seus livros. O seu Stone é um homem duro, independente e estoico. Bem na tradição da self-reliance de Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau, que lançaram o seu movimento transcendentalista lá mesmo na Nova Inglaterra. Embora mais complicado do que Spenser, Stone é, assim como o detetive particular de Boston, uma ilha de maturidade num mundo que parece cada vez mais infantilizado. Nesse sentido, Parker lida com o tema da milícia americana armada como uma fantasia infantilizada de compensação. Assim com os argumentos racialistas e contrários à globalização, que viriam a contribuir para a eleição de Donald Trump, tanto tempo depois do lançamento deste romance.

 

Arte de capa de Tom Adams.

Journeys of the Mind, de Alan Pemberton. Limpsfield: Paper Tiger, 1983, 144 páginas. Capa de Tom Adams. Ilustrações internas de Adams, Graham Humphries e Bill Donohue. Brochura. Quando eu era adolescente, na primeira metade da década de 1980, os livros de arte de ficção científica e fantasia da Paper Tiger circulavam timidamente no Brasil. A minha coleção dos seus livros foi adquirida em sebos e nos saldões da loja Terramédia, em São Paulo. Mas eu não sabia que a Paper Tiger tinha publicado livros ilustrados, até comprar esta coletânea de contos de horror em um desses saldões, ano passado.

A edição de Journeys of the Mind nada traz sobre Alan Pemberton, o autor das histórias, e não achei nada sobre ele rede. É um autor competente na ficção de horror (embora a primeira história do livro seja de ficção científica), e sua coletânea traz doze contos. A maioria deles é ambientada na Inglaterra, mas alguns se passam em outras terras (Malásia, África do Sul, Suécia, e uma plataforma petrolífera talvez instalada no Mar do Norte) e envolvem outras culturas. Tendem a ser curtos — calibrados para amparar três ilustrações por conto, uma delas sempre em página dupla e a maioria de colorido total. O fato de serem curtos implica um desenvolvimento mais superficial e, às vezes, um desenrolar meio truncado. Mas todos prendem a atenção, e a exuberância e riqueza das ilustrações compensa (especialmente as de Adams). Os temas comuns a todos são a morte e a mensagem vinda do além, com um lado moralizante que condena a arrogância e a frieza das classes altas. A história que dá título fala de um homem que perde a namorada num acidente, cai em depressão e, durante uma sessão de eletrochoque, tem uma experiência extracorpórea que se desdobra em outras. Sua conclusão dá o tom do livro — a morte oscilando entre o horror e a transcendência.

—Roberto Causo

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