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Leituras de Março de 2019

Em março, leituras de ficção científica, ficção literária e ficção militar brasileiras, além de ensaios de C. S. Lewis, um thriller de Justin Scott, e histórias em quadrinhos de Star Wars e do Superman.

 

17 Histórias: Alternativas, Cômicas e Futuristas, de Ataíde Tartari. Pará de Minas-MG: VirtualBooks, 2013, 172 páginas. Brochura. O paulistano Ataíde Tartari ingressou na Segunda Onda da FC Brasileira com o romance curto EEUU 2076: Um Repórter no Espaço (1988). Colaborou com muitas antologias, publicou no exterior pela Amazon e em inglês. Escreveu contos para o Jornal da Tarde e participou do Projeto Portal, de Nelson de Oliveira. É um nome de relevo da Segunda Onda, e boa parte da sua produção de contos está reunida neste volume.

Depois de publicar o conto “Meio que Abduzidos” na minha antologia Estranhos Contatos: Um Panorama da Ufologia em 15 Narrativas Extraordinárias (1998), histórias de Tartari narradas com uma espécie de registro sociolínguistico paulistano e cheio de gírias se tornaram uma das suas marcas registradas. Abrindo o livro, “Sacos de Lixo” (1999) expressa essa tendência. Sobre relacionamentos jovens em Sampa, é uma das histórias publicadas primeiro no Jornal da Tarde. Não há elementos fantásticos nela, ao contrário da seguinte, “Folha Imperial” (1996), uma história alternativa cômica, na qual a monarquia não foi deposta e a bandalheira da década de 1990 persiste com uma cultura de celebridades que envolve a nobreza tupiniquim. “Veja seu Futuro” (2009) apareceu na revista Portal Fundação, de Nelson de Oliveira, e na antologia Páginas do Futuro (2011), de Braulio Tavares. É uma história tipo Além da Imaginação sobre um objeto cotidiano que permite uma visão do futuro — dispositivo literário que está na FCB desde O Presidente Negro (1926), de Monteiro Lobato. Em “A Máquina do Saudosismo” (2009), um homem que descobre ter uma doença fatal recorre a uma empresa que o põe em criogenia, para despertá-lo no século 23, que ele passa a conhecer. “Diário de Marte” (1999) é um conto muito divertido, narrado em primeira pessoa (como num diário) por uma enfermeira que trabalha em um hospital da FAB, onde se apaixona por um alienígena capturado, ajudando-o a fugir e transando com esse Starman. O título se refere ao Campo de Marte, base aérea onde o E.T. ficou internado. Também humorístico e em primeira pessoa, “Ricardo Edgar, Detetive Particular” (2009) narra com dinamismo o caso do tal detetive seguindo uma mulher em Xangai, no futuro próximo.”Um FDP Blindado” (2012) volta para um contexto mais paulistano em texto cheio de gíria, sobre um dispositivo digital portátil que acompanha um rapaz encrenqueiro, comprada pelo seu pai e que conduz a história a outro final tipo Além da Imaginação. “A Sonda” (2010) é conto publicado em e-book em Portugal, sobre uma sonda alienígena descoberta nas escavações de uma construção, abrindo a porta para a invasão do nosso planeta. Em “O Bunker Cretáceo” (2010) é uma construção que arqueólogos encontram em escavação na Antártida, dando acesso a dinossauros inteligentes que passam a habitar a nossa época. A narrativa aqui é mais longa e, como em tudo o que Tartari escreve, desenvolvida com competência e sem tropeços. “Lenda Mineira” (2006) tem um grupo de garotos paulistanos caindo na peça de um velho mineiro que diz que consegue falar com os bichos, e armar uma lição escatológica para os moleques. “Irmão” (2006) é conto curto mainstream, provavelmente inspirado pelo movimento Literatura Marginal. “Craque na Família” apareceu na histórica antologia Outras Copas, Outros Mundos (1998), editada por Marcello Simão Branco. Nesse conto mais longo, um gadget japonês melhora o desempenho de um garoto que faz teste perante um olheiro de futebol. A história é FC, mas a função do dispositivo desconhecido é semelhante ao da fantasia “Veja seu Futuro”. “Saara Gardens” apareceu em outra antologia de Marcello Branco, Assembleia Estelar: Histórias de Ficção Científica Política (2011), e trata de um futuro em que a humanidade se uniu sob um único governo, e um mega empreendimento imobiliário sofre oposição de ambientalistas. “O Triângulo de Einstein” (2008) aborda uma nave espacial e sua tripulação sendo atingidas pela dilatação temporal causada pelo voo próximo ao limite da velocidade da luz.

A noveleta “A Grande Virada do Vitinho” (2013) é o texto mais longo do livro, tendo aparecido antes como e-book. É uma história de costumes sobre um escritor e tradutor, contemplando suas frustrações e infortúnios do passado, e discorrendo sobre novo emprego e seu relacionamento com uma mulher madura, conhecida da sua juventude. Escrito na segunda pessoa, “Você” (2000) fecha o livro com uma reflexão metaficcional. 17 Histórias propicia uma vista panorâmica da carreira de Ataíde Tartari e das suas virtudes: ótimos diálogos, atenção à vida miúda de São Paulo, e grande controle narrativo. Assim como Ademir Pascale projeta nos seus livros um ethos paulistano de classe média baixa com uma textura dura e detalhada, Tartari projeta um ethos paulistano de classe média jovem e irreverente. Ele se diferencia, porém, por conhecer ficção científica e ciência, e todas essas qualidades funcionariam muito bem com um projeto mais sofisticado de novela ou romance misturando FC e observação social, do tipo Connie Willis ou outros autores da Asimov’s. Eu ficaria feliz em ler.

 

Arte de capa de Adams Carvalho.

Escalpo, de Ronaldo Bressane. São Paulo: Editora Reformatório, 2017, 256 páginas. Arte de capa de Adams Carvalho. Brochura. Adquiri este exemplar direto do autor, em um encontro com Santiago Santos, autor de Na Eternidade Sempre é Domingo, no Centro Cultural São Paulo. No romance, acompanhamos um artista de quadrinhos afro-brasileiro chamado Ian Negromonte, original do Rio Grande do Sul mas radicado na cidade de São Paulo. Ele machuca a mão durante um protesto nas ruas da capital em 2015, passa por uma separação, e acaba aceitando fazer uma investigação particular para um chileno que vive no Brasil mas que procura uma filha de cuja existência ele não sabia previamente. O chileno, Miguel Ángel Flores, veio ao Brasil fugindo da ditadura no seu país, e se tornou aqui um bem-sucedido autor de ficção pulp de banca de revistas — tipo um Ryoki Inoue. Assim como Ataíde Tartari, Bressane explora bem a paisagem física e humana de São Paulo, com um estilo mais rico e visual. Mas o seu herói viaja, mergulhando no passado violento e cruel da ditadura do General Augusto Pinochet no Chile, e encontrando lá um lugar na cama de duas mulheres bissexuais. Como Negromonte não abre mão do seu estilo de vida dispersivo e de sexualidade aberta, para além da violência histórica o romance mergulha na textura daquilo que se costumava tratar, nas décadas de 1970 e 1980, como “mundo cão”. De algum modo, isso reforça o retorno literário à atmosfera das ditaduras chilena e brasileira daquela época.

Bressane escreve com energia, foge do minimalismo tão presente na Geração 90 a qual pertence, e faz um uso muito bom de momentos de hiper-realismo. O romance contém, por exemplo, a cena de sexo mais que deve ser a mais incômoda para o leitor, na literatura brasileira recente — por misturar justamente sexo e evocações de tortura. A tendência onipresente da ficção contemporânea pela metaficção é bastante refrescada em Escalpo, justamente pela seu foco na paraliteratura: história em quadrinhos, ficção de banca, ficção de crime e ficção científica. Nesse último aspecto, por explorar algo da contracultura dos anos das ditaduras, com a ufologia mística como uma das suas pedras de toque. Há traços de fabulation também, em como o herói se encontra, em um barco, com um artista estrangeiro que o acusava de plágio. É um intenso romance mainstream que, como costuma ocorrer com a literatura brasileira contemporânea e também na literatura pop das décadas de 1970 e 1980, arrasta o seu protagonista já estanhado com a sociedade e a vida, a uma desagregação crescente. O toque de FC fica realmente no plano da evocação.

 

Sobre Histórias (On Stories and Other Essays on Literature), de C. S Lewis. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018, 252 páginas. Tradução de Francisco Nunes. Capa dura. O ramo brasileiro da editora editora escocesa Thomas Nelson, de assuntos cristãos, tem investido na publicação entre nós da obra de C. S. Lewis, o divulgador cristão que também escreveu fantasia e ficção científica, como a série As Crônicas de Nárnia e o clássico Além do Planeta Silencioso. Os livros aparecem em capa dura e bom tratamento editorial, embora aqui a tradução de Francisco Nunes pareça um pouco rígida. É especialmente bacana para o interessado em fantasia e ficção científica que a Thomas Nelson tenha incluído Sobre Histórias na sua coleção de livros de Lewis. Já adianto que o recomendo enfaticamente.

Além de ser um autor importante para a fantasia e a FC britânica, Lewis foi um comentador privilegiado, tendo convivido com os fantasistas J. R. R. Tolkien, E. R. Eddison e Charles Williams, na famosa sociedade literária Inklings, em Oxford. Em Sobre Histórias há um ensaio sobre Williams e outro sobre Eddison, além de uma resenha de O Senhor dos Anéis, de Tolkien, e um segundo texto sobre o seu O Hobbit. A ficção científica tem um ensaio dedicado a ela, e há ainda um outro sobre George Orwell e a sua distopia maior. H. Rider Haggard também é contemplado, e o livro fecha com uma nova discussão, tripla, da FC na transcrição de uma conversa entre Lewis, Kingsley Amis e Brian W. Aldiss. Confesso que a voz ensaística de Lewis me fascina. Também me parece fabuloso “ouvi-la” sabendo que ele comenta a fantasia no momento em que ela se formava como gênero, e a FC quando ela ganhava atenção literária “séria”. Lewis, em Um Experimento em Crítica Literária (1961) e em outros ensaios, tenta investigar como o leitor pode extrair uma experiência profunda lendo uma literatura considerada superficial ou infantil (sobre isso, vale ler, por exemplo, “Sobre Três Modos de Escrever para Crianças” e “Sobre Gostos Juvenis”, neste Sobre Histórias). Entendo que ele observava a literatura em uma época em que o “elitismo edificante” do influente F. R. Leavis (1895-1978) pautava as discussões literárias, e a sua própria religiosidade coloria suas opiniões sobre a função da literatura. Apesar disso, não consigo ver Lewis como algo diferente de um anti-modernista que via relevância na ficção popular — ao contrário da visão que Stableford expressa na introdução de The Jungle Mushroom A History of Postwar Paperback Publishing (1993), de Steve Holland, enxergando Lewis como um elitista e esnobe social. Mas como ver ma afirmação como a seguinte, no ensaio “Sobre Ficção Científica”, como algo além de aberta e democrática?

“Não consigo compreender como alguém pode pensar que essa forma [a FC] é ilegítima ou desprezível Pode muito bem ser conveniente não chamar coisas assim de romance. Se preferir, chame-as de uma forma de romance específico. De qualquer [modo], a conclusão será a mesma: elas devem ser julgadas por suas próprias regras. […] Sem dúvida determinado leitor pode estar interessado […] em nada mais no mundo a não ser estudos detalhados de personalidades humanas complexas. Se assim for, ele tem uma boa razão para não ler livros [de FC], que não exigem nem admitem isso. Ele não tem motivo para condená-los e, de fato, nenhuma qualificação para deles falar. Não devemos permitir que o romance de costumes estabeleça leis pra toda a literatura: deixe-a governar-se em seus próprios termos. Não devemos ouvir a máxima de Alexander Pope sobre o estudo adequado da humanidade. O estudo apropriado do homem é tudo. O estudo apropriado do homem como artista é tudo o que dá um ponto de apoio à imaginação e às paixões.” —C. S. Lewis. “Sobre Ficção Científica”. In Sobre Histórias.

 

Pelotão de Fronteira, de Moacyr Barcellos Potyguara. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2003, 192 páginas. Brochura. Ficção militar é ocorrência rara no Brasil. Em algum momento da década de 1950 ou 60, o intelectual literário Boris Shneiderman, ele mesmo autor de um romance sobre o Brasil na Segunda Guerra Mundial, Guerra em Surdina (1964), reclamou da ausência de mais ficção sobre o assunto. Nem toda ficção militar é romance de guerra, porém. Parte dela é drama de academia, ou, no caso deste romance curto do Coronel Moacyr Barcellos Potyguara, retrato da vida de soldados em postos militares afastados. Os pelotões especiais de fronteira combinam base de patrulha de fronteira e aglutinador de populações nas áreas da Amazônia. Meu amigo da adolescência Carlos Palla comandou um desses, junto ao qual organizava a primeira linha de defesa e era sucedâneo de embaixador junto a militares dos países fronteiriços, atuando também como delegado de polícia e fiscal de crimes ambientais, além de ser, com a esposa Vanda, pilar da comunidade.

O tenente que comanda o PEF no livro de Potyguara tem atuação semelhante, mas em meados de 1966, na localidade de Curi-Curi, fronteira com a Colômbia. O médico do pelotão também é um homem dedicado e bem visto pelos locais. Tudo muda quando ele é chamado a um esforço para debelar uma epidemia na região, sendo substituído por um tenente dentista, de vocação oposta. Muitos médicos e dentistas fazem sua residência nas forças armadas, passam um tempo, qualificam-se e vão ganhar a vida no meio civil. Esse do livro mal pode esperar para montar seu consultório e fazer dinheiro. Não quer a responsabilidade de cuidar do povo local, e logo se revela corrupto. Bebe em serviço, cobra por vitaminas que seriam distribuídas gratuitamente, e abusa sexualmente de uma ex-prostituta que contratou como cozinheira. Tudo isso depois de o comandante do PEF ser transferido para fazer um curso, e o dentista assumir o comando do lugar. O caso dessa moça é um dos centros emocionais do livro, assim como a quase facilitação, por parte do dentista, de tráfico de indígenas brasileiros para a Colômbia, onde seriam vítimas de trabalho escravo. A população local se une para proteger a moça, e os sargentos para deter o mascate fluvial que levava os índios. Não há muitos finais felizes, porém. A vida é dura na fronteira. A vida é dura na selva amazônica. O dentista foi punido, mas certamente não como merecia. O livro tem personagens muito interessantes, mas trabalhados sem grandes aprofundamentos, e a técnica narrativa é crua. Compensa apenas pela veracidade que a experiência do autor comunica, inclusive pelos seus comentários simpáticos mas politicamente incorretos. Tenho tratado de livros de não-ficção da Biblioteca do Exército Editora. Geralmente são bem editados, mas este aqui é do começo do século e carece de uma revisão verdadeira. O romance curto de Potyguara encerra, como nas telenovelas, com um casamento triplo.

Interessante reconhecer que o militar é um dos poucos tipos sobreviventes do período glorioso da aventura como um grande campo literário popular, indo de meados do século 19 a meados do século 20, com o caubói, o explorador, o pirata, o grande caçador branco e outros tipos indo se despetalando pelo caminho. Na mesma chave, Pelotão de Fronteira é menos romance de aventura do que de observação social, de costumes. Quanto ao casamento triplo, ele é observado por um novo tenente, que diz a si mesmo:

“É… isso é que faz a grandeza deste país. Um crioulo, baiano, casa com uma cabocla, um caboclo com uma índia e um branco com uma cabocla. Todos ficarão aqui e terão filhos. Assim vai-se construindo uma pátria…” —Moacyr Barcellos Potyguara. Pelotão de Fronteira.

É uma observação bonita em si mesma, e o conteúdo do romance consegue reforçá-la tanto com emoção quanto com elementos de crítica social. Mas ela incorpora aquele argumento conservador brasileiro, muito repetido pelos militares, da formação racial tripla e harmoniosa do nosso povo. Um argumento que desautoriza a reivindicação de grupos étnicos e sociais atingidos pelo arbítrio dos poderosos. Nem por isso a experiência de leitura de Pelotão de Fronteira deixa de marcar uma interpretação diferente da sina dos seus personagens: a de pessoas de recursos espirituais limitados, que enfrentam, por meio da solidariedade e do afeto, as dificuldades da vida e o abuso imposto sobre elas.

 

The Nine Dragons, de Justin Scott. Nova York: Bantam Books, 1992 [1991], 456 páginas. Paperback. Confesso que sinto falta de um certo internacionalidade na minha vida, que na década de 1990 e no começo do século era suprida pela CNN, pela BBC e pelo C-Span. Mas a nossa operadora de cabo decidiu, sem nos consultar, que não merecíamos esses canais em nosso pacote básico, oferecendo, no lugar, a mal-afamada FoxNews… Justin Scott me trouxe de volta um pouco desse sentimento de internacionalismo neste Interessante thriller ambientado em Hong Kong no momento da entrega da cidade à República Popular da China, em 1997. Envolve crime, comércio internacional e especulação imobiliária, com uma antecipação tensa do tipo de distúrbios civis que 2019 acabou trazendo à cidade.

Scott trata de uma família de escoceses que possui empreendimentos comerciais de mais de um século em Hong Kong. As possíveis mudanças adversas que a entrega da cidade à China trariam levam o patriarca da família, Duncan Mackintosh, a fazer um acordo secreto com um militar aspirante ao controle do Partido Comunista chinês. Passando por uma crise de meia-idade e tendo assumido uma amante chinesa bem mais jovem do que ele e funcionária do conglomerado, Mackintosh acaba entrando na mira do vilânico empresário local e gangster Two-Way Wong. Wong tem planos para lançar a cidade em convulsão e obter apoio da Main China para se tornar o governador de Hong Kong (como a atual governadora Carrie Lam?). A protagonista do romance é, na verdade, a ambiciosa filha de Duncan, Vicky, mas quando ele é eliminado em um falso acidente de escuna e desaparece do enredo, The Nine Dragons perde um centro emocional insuspeito, e vai minguando até o seu pálido fim, apesar de toda a agitação em torno dos distúrbios civis e das manobras derradeiras do vilão. O que imagino que salvaria o romance seria uma aliança entre a explosiva Vicky e a serena amante do seu pai, Vivian Loh, para salvar a empresa e resistir às investidas de Wong, com toda a tensão que viria dessa associação entre duas mulheres fortes e ambiciosas divididas pelas suas versões do amor pelo mesmo homem. Mas Scott preferiu investir na vida sexual/amorosa de Vicky com dois rapazes chineses, alternadamente, e que não acrescentam muita coisa.

 

Arte de capa de Júlio Vanzeler.

Laura e Lucas Descobrem Michelangelo, de Isabel Zambujal. São Paulo: Folha de S. Paulo, Coleção Folha Pintores para Crianças 5, 2019, 26 páginas. Arte de capa e ilustrações internas de Júlio Vanzeler. Capa dura. As anotações sobre a leitura deste livro para crianças vêm acompanhadas de uma anedota sobre situações editoriais: há uns dois anos, revisei para um estúdio de São Paulo cinco livros de uma série dirigida ao público infantil, em que um garoto viaja no tempo e convive com grandes pintores do passado. Texto e arte eram do mesmo autor (cujo nome não vou revelar). Tinham grande qualidade, especialmente as ilustrações pintadas, algumas reproduzindo as obras originais dos pintores e escultores clássicos. O autor nos contou que havia procurado a editora da Folha de S. Paulo para oferecer o projeto, mas foi dito a ele que precisavam de mais de 12 livros para compor uma coleção. Como ele fazia tudo sozinho (pesquisa, texto e arte), ficaria inviável. O tempo passou e obviamente os seus livros não saíram pela Folha, e também não saíram com o trabalho feito pelo estúdio junto ao qual trabalhei.

Surge então esta coleção vista nas bancas de todo o Brasil, aparentemente realizada por um estúdio português. Ela pode ou não ter sido inspirada pelo projeto do qual escrevi acima. O livro é simpático, mas a arte é mais esquemática, incluindo até fotografias compondo com o desenho, e o tratamento da situação da viagem no tempo é ligeiro, assim como a didática. De qualquer modo, a coleção cumpre o papel de educar nossas crianças  quanto ao mundo da pintura clássica.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Mathieu Lauffrey.

Star Wars O Último Comando: Trilogia Thrawn Livro Três (Star Wars The Last Command: Thrawn Trilogy ), de Mike Baron (texto) e Edvin Biukovic (arte). Barueri-SP: Panini Books, 2018, 148 páginas. Arte de capa de Mathieu Lauffray. Capa dura. Edvin Biukovic assumiu o desenho do terceiro e final livro da adaptação da trilogia de Timothy Zan para os quadrinhos, trazendo de volta um ar de HQ européia com o seu traço fluido e de linhas quase sempre completas delimitando as formas. Há competência na quadrinização sem extravagâncias, desenvolvida conforme o roteiro de Baron narra o confronto final entre os heróis da primeira trilogia de Star Wars (1977 a 1983) e o astuto Almirante Thrawn e o seu aliado incerto, o jedi louco C’Baoth. Os bebês gêmeos de Leia e Han Solo aparecem pela primeira vez, enquanto Mara Jade, a ex-aliada do Imperador Palpatine, passa a se aproximar cada vez mais do seu futuro marido, Luke Skywalker.

Uma galeria de coadjuvantes customizados por Timothy Zahn contribuem para enriquecer e intensificar a trama. Entre eles estão o contrabandista Talon Karrde e o traficante de armas Niles Ferrier acompanhado do seu trunfo: um alienígena que consegue ficar invisível. O enredo inclui Leia desmascarando um espião no seio da Aliança, e Luke, Mara, Han, Chewbacca e Lando Calrissian encarando, como a irmandade do Senhor dos Anéis, uma paisagem florestal e seus nativos, para alcançarem uma instalação ocupada por C’Baoth e reservada para o clímax da trilogia. Esse clímax, em que Luke duela com um clone de si mesmo diante dos olhos arregalados do jedi louco, parece ser um pouco da “redundância Skywalker” que aflige a franquia, mas gostei do truque e a sequência é excelente. Vale mencionar que a cor no livro começa esmaecida, aguada, e vai perdendo essa qualidade — provavelmente por razões de prazos. Mantém-se harmonizada com o desenho, embora perdendo um pouco do seu charme europeu e antigo. Depois de ler os quadrinhos e sentir a solidez e o interesse da criação de Zahn, estou disposto agora a ler os romances, publicados aqui há alguns anos pela Editora Aleph. Como de hábito neste tipo de livro, há reproduções de capas da primeira edição do seu conteúdo, como minissérie em revistas distribuídas em bancas e lojas especializadas. Feitas por Mathieu Lauffrey, estão entre as artes de Star Wars mais expressivas encontradas por aí, embora muitas vezes incorretas em termos de fisionomias e proporções anatômicas.

 

Arte de capa de Shane Davis.

Superman: Terra Um Volume Dois (Superman: Terra One Volume 2), de J. Michael Straczynksi (texto) & Shane Davis (arte) e Sandra Hope (arte-final). Barueri-SP: Panini Books, 2014, 132 páginas. Arte de capa de Shane Davis. Capa dura. Este volume eu encontrei em promoção na loja Geek.etc.br, no Conjunto Nacional, em São Paulo. Foi só abrir, e me fisgou. Nesta aventura, Clark Kent enfrenta as situações da redação do Planeta Diário, que incluem Lois Lane investigando o seu passado. Por sua vez, sua identidade como Super-Homem se envolve com a questão do poder absoluto e poder limitado — muito viva ainda nos nossos tempos turbulentos. Ao socorrer a população do país fictício Borada de um tsunami, o herói se depara com um cruel dilema: o ditador do país o proíbe de atuar, já que o maremoto atingiu a parte do país que apoia rebeldes que querem derrubá-lo. Para coagir o Superman, o ditador afirma que vai amputar o braço de uma pessoa, a cada minuto que ele permanecer no país. Mais tarde, o herói retorna a Borada para dar acesso a armas, por parte dos revolucionários, colocando o ditador contra a parede. Já vimos aqui que, na origem, o Super-Homem era um guerreiro da justiça social, durão e implacável contra quem cruzava a sua linha do certo e do errado. Em situação semelhante, jogou um torturador dezenas de metros no ar e obrigou os líderes de dois exércitos em guerra a lutarem entre si, em combate singular, até desistirem do conflito. Aqui, ele dá aos revolucionários acesso a armas, colocando o ditador contra a parede. Com essa ironia feroz, Straczynski recupera um traço do personagem, segundo Joe Shuster & Jerry Siegel o conceberam.

Mas o centro da aventura é outro: nos EUA, um serial killer, ao tentar apagar seus rastros, acaba se enfiando nos laboratórios Star, onde recebe uma carga de neutrinos que o transforma no supervilão Parasita (aparentemente, um vampiro energético primeiro apresentado em um desenho animado). A sede de poder do Parasita, voltada para a realização de sua predisposição para a tortura e o assassinato, encontra no Superman uma fonte, é claro, supra-humana. Enquanto isso, Clark arruma outro apartamento e, com ele, uma vizinha bonitona, que só não falta se jogar sobre ele porque ela efetivamente se joga sobre ele. O dilema aí é que danos ele, sendo um super-homem e supermacho, pode causar na garota se ele perder o autocontrole. Clark ainda busca encontrar os limites do seu papel como Superman. Certamente, ameaças como a o Parasita tornam clara a necessidade de ele se assumir como super-herói. O volume fecha, porém, com a reflexão de que o super-herói não consegue salvar todo mundo — neste caso, um jovem músico viciado em drogas, cuja amizade Clark passou a apreciar.

—Roberto Causo

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Leituras de Fevereiro de 2019

Só livros de brasileiros lidos em fevereiro, quando resolvi atacar a pilha de títulos aguardando leitura, alguns há um bom tempo. Inclui ficção científica, fantasia, horror e poesia de cordel. Há também um brasileiro na minha leitura de quadrinhos nesse mês.

 

Sob o Trópico de Capricórnio, de Pedro Carcereri. Belo Horizonte: Letreramento, 2018, 98 páginas. Brochura. Nelson de Oliveira me passou este romance curto do roteirista e cineasta Pedro Carcereri. É uma ficção científica dentro do subgênero distopia, muito em voga na literatura dos millennials e muito significativo hoje em dia, diante do quadro político atual. Mas aqui temos, rascunhado em traços rápidos e num estilo mais introspectivo, fusão de preocupações atuais e o tom das distopias brasileiras da década de 1970 — o Ciclo de Utopias e Distopias, dentro da ficção científica nacional. Isso provavelmente é mais resultante das escolhas pessoais de Carcereri, do que de uma pesquisa ou leitura prévia de trabalhos de autores como Ignácio de Loyola Brandão, Ruth Bueno, Silveira Júnior ou Mauro Chaves.

Também é interessante que o autor empregue temas bastante recentes e relevantes, nestes tempos de globalização: alimentos transgênicos por toda parte e a proibição estrita do plantio de qualquer coisa que o governo centralizado desaprove; o cultivo de plantas e a criação de animais não-transgênicos, como meio de resistência político-econômica. O premiadíssimo The Windup Girl (2009), de Paolo Bacigalupi, aborda tema nessa linha, projetado para um futuro de construção mais rica. A ideia de “vales” em que comunidades agrícolas guardam um princípio utópico está em Sob o Trópico de Capricórnio e também no romance tupinipunk do político verde Alfredo Sirkis, Silicone XXI (1985). A novela de Carcereri começa na Zona Oeste de São Paulo (exatamente a região em que eu moro), com o protagonista Daniel sendo sequestrado por um desses grupos de resistência. Ele acaba cooptado por eles para realizar uma ação em particular, e o grupo se move pelas ruas de Sampa para realizá-la, mas com o aparelho repressor em cima deles. A história tem muito movimento, com os personagens viajando por São Paulo Capital e Interior, como na novela pós-apocalíptica A Terceira Expedição (1987) de Daniel Fresnot. Mas o final é abrupto, como se o livro fosse a primeira instância de um trabalho maior ou de uma série a ser desenvolvida.

 

Quatro Soldados, de Samir Machado de Machado. Porto Alegre: Não Editora, 2013, 320 páginas. Brochura. O escritor gaúcho Samir Machado de Machado me enviou este seu romance um ou dois anos depois do seu lançamento. Com três leitores compulsivos na casa, o livro acabou passando de mão em mão e desapareu. Ano passado, Christopher Kastensmidt me recomendou o livro om muita ênfase, e passei várias semanas procurando-o sempre que surgia um momento livre. Como acontece invariavelmente nesses casos, achei o livro quando não o procurava. Valeu muito a leitura, de qualquer modo. De fato, este é um romance que, com vênia para o fato de ele poder ser lido como uma apropriação histórica ficcional muito própria da ficção pós-modernista, pode ser visto com um marco da fantasia brasileira. Fantasia histórica, é claro, por ser ambientado no Sul do Brasil do século 18.

Há três coisas meio que obrigatórias, na ficção pós-modernista que se estabelece na segunda metade do século 20, e que a gente encontra no romance de Machado de Machado: metaficção (a ficção que comenta a ficção), um espírito brincalhão ou iconoclasta, em torno da forma ou do assunto, e a fragmentação da narrativa. O romance é divido em quatro livros ou partes. Longas epígrafes precedem cada uma dessas partes. Em outros trechos, há uma reprodução da dicção e da grafia arcaica do português de então. O primeiro soldado foi abandonado pelo pai e acabou recrutado. A caminho de uma missão jesuíta, são perseguidos por uma criatura monstruosa até um labirinto. Desaparecidos, são seguidos pelo seu comandante, que tem melhor sorte contra o monstro. A narrativa corta então para contar o que houve com o jovem sobrevivente, que foi abrigado por um inventor e erudito que apresenta a ele a obra de Shakespeare — e um discurso literário elitista. O segmento termina com a chegada do oficial pronto para o resgate. Na segunda parte, o soldado resgatado encontra-se com mais um erudito, mas livre-pensador, irônico, boêmio e com a característica incomum de enxergar melhor no escuro do que a maioria das pessoas. O elemento fantástico surge como um novo monstro, que os dois enfrentam em subterrâneos lovecraftianos de clima pesado e descrições arrepiantes. Na terceira parte, o oficial que aparece na primeira é tratado com mais profundidade, na narrativa que investiga a sua infância e juventude, enquanto ele se coloca no caminho de um assassino psicopata em missão secreta dos poderes coloniais, num episódio com direito à aparição da versão gaúcha do anhangá. Na parte final, ficamos sabendo mais sobre o psicopata, e retornam o homem dos olhos especiais e um enredo de mistério criminal. A força da criação de Samir Machado de Machado está na textura e na evocação, no toque transformador do estranho e do sobrenatural, e na estrutura narrativa engenhosa. Mesmo tendo em mente que esta edição do seu romance se beneficiaria de mais um polimento, Quatro Soldados vai para a mesma prateleira com O Caçador de Apóstolos (2010), de Leonel Caldela, e A Bandeira do Elefante e da Arara (2016), de Christopher Kastensmidt, dos romances brasileiros de fantasia mais destacados dos últimos anos.

 

Arte de capa de Mozart Couto.

As Horripilantes Narrativas Alimentares do Clube Canibal, de Júlio Emílio Braz. São Paulo: Devir Brasil, 2018, 96 páginas. Arte de capa de Mozart Couto. Brochura. O autor mineiro Júlio Emílio Braz começou escrevendo roteiro de quadrinhos para revistas e fanzines na década de 1980. (Mozart Couto, o artista da capa, é um dos mais experientes e respeitados desenhistas de quadrinhos do Brasil.) Eu tava lá, eu vi. Ele teve uma experiência escrevendo westerns de bolso, sob pseudônimo, para a Cedibra, depois fez o salto para a literatura infanto-juvenil, onde encontrou fama e sucesso como um autor afro-brasileiro respeitado nacional e internacionalmente, ganhando um Jabuti com o seu livro de estreia em 1988. Mesmo nos seus livros para jovens, ele costuma ser bastante duro. Este livro sobre canibalismo certamente não passaria como literatura juvenil.

O título e os textos de abertura dão a entender que as histórias reunidas no livro formam um conjunto coeso em torno do tema do clube canibal. Como as histórias são ambientadas em Porto Alegre, é possível que Júlio Emílio tenha se inspirado no caso dos “Crimes da Rua do Arvoredo” naquela capital, ocorridos entre 1863 e 1864 e envolvendo um trio de assassinos e o açougue de um deles. Meu pai costumava citar esse caso para embasar a sua pouca fé no ser humano…

A falta de um índice com os contos reforça a ideia de que o livro deveria ser lido como uma espécie de novela fix-up. Na minha leitura, porém, não é o que acontece e os seis textos ficcionais acabam tendo uma individualidade maior do que o necessário para isso, mesmo com todos eles narrados na primeira pessoa. Em uma das histórias, por exemplo, uma mulher traída serve ao marido a amante dele — mas nada do clube. Na história seguinte, sim; um serial killer é contratado para abastecer a associação. No próximo conto, o narrador cínico cede ao narrador horrorizado ao descobrir que seu noivado com uma aristocrata rural de origem germânica vai ser celebrado com um terrível ritual, mas aí não se trata do mesmo clube. O mesmo acontece na última história, narrada por um agente funerário que se envolve com uma família de canibais, mas não germânica e sim espanhola. De qualquer modo, o livro é efetivo tanto em criar um clima pesado apropriado ao gênero, quanto em evocar o horror do canibalismo. Há também uma atmosfera de sordidez urbana brasileira que casa muito bem com o projeto. Júlio Emílio Braz teve um conto incluído ano passado na antologia As Melhores Histórias Brasileiras de Horror (Devir Brasil), editada por Marcello Simão Branco & Cesar Silva.

 

A Eva Mecânica e Outras Histórias de Ginoides, de Daniel I. Dutra. Praia Grande-SP: Editora Literata, 2013, 126 páginas. Prefácio de Gerson Lodi-Ribeiro. Brochura. Conheci Daniel Dutra na Odisseia de Literatura Fantástica de 2013, onde adquiri seu livro de contos com o tema da fembot ou ginoide (o feminino de “androide”). As histórias dialogam com os contos do pioneiro da FC brasileira Berilo Neves (1899-1974), best-seller no seu tempo com contos e crônicas publicadas em revistas e jornais e reunidas em livro. Neves frequentemente brincava com o que a tecnologia faria em termos de alteração do comportamento sexual e social humano, se, por exemplo, homens e mulheres artificiais fossem inventados, ou uma encubadora que permitisse a reprodução fora do útero.

Com mais sofisticação, Dutra tenta examinar que transformações a introdução das ginoides trariam à sociedade humana. No prefácio, Gerson Lodi-Ribeiro conta que tudo começou com a publicação de “A Mulher Imperfeita” na antologia de histórias originais organizada por ele, Erótica Fantástica 2 (Editora Draco, 2012). Mas obviamente Dutra já visava um livro com o tema, pois submeteu ao todo quatro histórias para a antologia. As quatro estão no livro, junto com outras quatro. “A Eva Mecânica” é relativamente curto, narrado em primeira pessoa, e conta como o narrador recorreu a um contrabandista para garantir a sua ginoide, já que não se qualificava para possuir uma. No fim, descobre que depositara o seu afeto em um produto falsificado. Há uma certa ironia aí, de que a valorização da mulher mecânica não passa de projeção do macho da espécie. O conto parece estar aí mais para apresentar o histórico da inovação tecnológica sobre o qual o livro especula. Vem então “A Substituta”, também em primeira pessoa: o narrador mata a esposa em uma briga de casal, confessa a um amigo que revela ter substituído sua mulher por uma ginoide, e oferece a ele essa possibilidade, com resultados trágicos. Há aí ecos do romance de Ira Levin, As Possuídas (The Stepford Wives, 1972), segundo Lodi-Ribeiro assinala no prefácio. A terceira história, “Ela, a Ginoide”, abre com as Leis da Robótica de Isaac Asimov, e narra como uma ginoide-babá foge dessas leis — “enlouquecida”, mata a todos os que lhe parecem ameaçar sua protegida. “A Mulher Imperfeita” é mais filosófico e explora os sentimentos que levariam um homem comum a priorizar a mulher artificial sobre a natural, e também outras situações de relacionamentos poliamorosos por causa do excedente de humanas disponíveis, agora que elas têm de concorrer com as máquinas. “Veronica Lake Fake” satiriza um movimento pelo “amor cibernético”, contrário à proibição das ginoides; “A Casa da Dor” se apresenta como um depoimento colhido no julgamento de um homem que descarrega secretamente seus impulsos sádicos nas mulheres artificiais; e em “Sabine”, uma mulher idosa usa um aparato de realidade virtual para experimentar uma vida mais jovem como uma ginoide. A noveleta “A Última Mulher da Terra” dialoga diretamente com o conto de Berilo Neves, “A Última Eva”, que Braulio Tavares incluiu na sua antologia Páginas de Sombra: Contos Fantásticos Brasileiros (Casa da Palavra, 2003).

Imagino que exista uma variedade de modos em que se pode assumir uma postura crítica feminista na literatura, para além da representação positiva ou idealizada da mulher. Histórias que expõem as ilusões ou vícios do comportamento masculino, por exemplo — como “A Mulher Imperfeita” e outros momentos em que os homens não estão bem na foto, nos contos de Dutra. E também histórias que expõem as ilusões ou vícios do comportamento feminino — como “A Última Mulher da Terra”, em que a última mulher, salva de uma cápsula criogênica secreta na Amazônia, é uma bisonhona cheia de ilusões sobre seu apelo perante homens que vivem há séculos só com ginoides. Lendo suas histórias depois das histórias de Angry Candy, do qual tratei mês passado, me ocorreu que Harlan Ellison também usa dispositivos semelhantes para revelar os azares dos relacionamentos humanos. Falta a Dutra, porém, menos adesão às fôrmas alegóricas das suas especulações, e justamente mais ironia para temperar as narrativas. Parte da produção contística de Berilo Neves cabia no tema da “guerra dos sexos”, que também apareceu na noveleta “Éden 4” (2001), de Alexandre Raposo, na qual um astronauta é revivido milhares de anos no futuro, quando não existem mais homens na Terra.

 

Os Domínios do Rei Peste, de Evaristo Geraldo. Fortaleza: Edição do Autor, junho de 2015, 16 páginas. Folheto. Evaristo Geraldo foi outro cordelista a quem Braulio Tavares me apresentou no maravilhoso estande do IMEPH na Bienal do Livro de São Paulo, em 2018. Assim como Rouxinol do Rinaré fez com o seu A Sombra do Corvo, Evaristo Geraldo se inspira em um texto de Edgar Allan Poe, desta vez um conto de horror, “O Rei Peste” (“King Pest: A Tale Containing an Alegory, 1835). Na história, que não é uma das mais famosas do celebrado escritor americano, dois marinheiros malandros vão parar em um bairro de Londres que concentrava os doentes da peste. Inadvertidamente, a dupla, descrita como um cara muito alto e o outro um anão, deparam-se com uma bizarra cena que se desenrola em uma funerária. O poeta brasileiro desenvolve um certo humor, até que o clima de horror se fixa nessa cena em especial, muito bem expressa no poema.

O cordel é completado por um segundo poema narrativo de Evaristo Geraldo, “O Camponês Ganancioso”.

 

 

Arte de capa de Maércio Siqueira.

A Árvore de Todos os Frutos (Lenda Indígena), de Evaristo Geraldo. Alto Santo-CE: Edição do Autor, setembro de 2017, 12 páginas. Arte de capa de Maércio Siqueira. Folheto. Evaristo Geraldo retorna aqui usando uma lenda indígena como inspiração para o seu cordel, representada na xilogravura de Máercio Siqueira. Um elogio à cultura indígena abre o poema narrativo, que conta do amor da Lua pelo Sol. Um eclipse possibilitou a união amorosa dos dois corpos celestes. Um curumim foi o fruto desse encontro, Macunaíma, incumbido de proteger uma árvore que dava todos os frutos encontrados na floresta. O herói mágico distribuía os frutos aos homens e mulheres dos Macuxis, de acordo com sua sabedoria — registro lendário daquilo que os antropólogos chamam de “chiefdom“, o domínio do chefe que exerce esse direito a partir de um capital simbólico que o autoriza a organizar a sociedade. Mas o povo ganancioso passa por Macunaíma e ataca a árvore pensando em plantar um pomar a partir dos seus ramos. Mas ela morre, privando o povo da sua magia e fazendo o herói reagir com uma fúria que incendeia a mata e transforma trechos da floresta em rochedos estéreis. O tom do poema é mais solene e captura bem a lógica lendária dos mitos.

 

Quadrinhos

 

Arte de capa de Marini.

Arte de capa de Marini.

Batman: O Príncipe Encantado das Trevas, Volume 2 (Batman: The Dark Prince Charming Volume 2), de Marini. Barueri-SP: Panini Books, 2018. Arte de capa de Marini. Álbum capa dura. A investida do artista francês Enrico Marini na mitologia de Batman, criado por Bob Kane & Bill Finger, termina com este segundo volume. A qualidade da arte e da narrativa se mantém, enquanto a luta de Bruce Wayne para resgatar a menina Alina, que pode ser sua filha, das garras do Coringa engata a terceira marcha. Como Batman, Wayne patrulha as ruas, ataca uma gangue de motoqueiros tietes do Coringa. Mas é o supervilão, descrito como um psicopata que mata em rompantes, quem precipita as ações, e enquanto não assassina seus colaboradores como alívio de tensão. Ele aborda o multibilionário Wayne para que ele adquira um colar de diamantes — sonho de consumo da sua namorada Arlequina (Harley Queen). No meio do caminho, a joia vai parar nas mãos da ladrona Mulher-Gato, que mais tarde segue Batman até o local do desenlace da história. O interessante dessa sequência final é como, feito um malabarista habilidoso, Marini faz com que todos os personagens participem da ação: Batman, Coringa, o mordomo Alfred, a Mulher-Gato, Arlequina, o palhaço anão e suicida Archie, e a própria Alina. A menina, em particular, demonstra ser cheia de recursos. Isso não só traz maior interesse para o desfecho da minissérie, como também funciona como prenúncio do final surpresa — que sugere que ela pode não ser de fato filha de Bruce Wayne. O desenho e o uso de cor e tonalidade por Marini continua deslumbrante, mesmo que neste segundo volume ele não tenha realizado painéis duplos de tirar o fôlego, como no primeiro. Em sua aventura dentro da mitologia de Batman, Marini levou algo da dualidade da sua série Gypsy, cujo herói hiperviolento faz o que for necessário para proteger uma menina inocente — irmã menor, em Gypsy; suposta filha, aqui.

 

Arte de capa de Darrick Robertson.

Astronauts in Trouble: Live From the Moon, de Larry Young (texto), Charlie Adlard e Matt Smith (arte). San Francisco, CA: AIT/Planet Lar, 2.ª edição, 2001 [1999], 144 páginas. Introdução de Warren Ellis. Arte de capa de Darrick Robertson. Trade paperback. Folheei este livro de quadrinhos várias vezes na loja Terramédia (hoje Omniverse), e o desenho que empresta recursos do autocontraste nunca me passou muita confiança. Me convenci a comprá-lo por causa da recomendação de Warren Ellis, no seu livro de não-ficção Come in Alone. Ellis assina a introdução do livro, onde reafirma a sua paixão pela astronáutica, algo também presente na sua ótima HQ Ministério do Espaço (Devir Brasil).

A história criada por Larry Young, primeiro publicada em 1999, é ambientada em 2019, quando o pouso da Apollo 11 na Lua faz cinquenta anos. Nela, uma equipe de telejornalismo é envolvida na fuga de um megaempresário para o satélite natural da Terra, depois que as suas indústrias são atacadas por supostos ecoterroristas. Aos poucos, o empresário se mostra uma espécie de supervilão como um Dr. No, de 007, pronto para chantagear o mundo depois de conquistar o derradeiro terreno elevado — a Lua. Ele até patrocinara a suposta organização terrorista contra si mesmo, para lhe dar a desculpa para fugir para o satélite, sem supervisão governamental. Embora apareçam senadores corruptos na história, o executivo do governo americano nunca é acionado. Num truque narrativo estranho e bizarro, é uma espécie de máfia que lança uma trinca de misseis contra a Lua. O ápice da de Astronauts in Trouble divide-se entre o empresário e a equipe televisiva, tentando escapar do ataque. A narrativa é irônica e divertida, com muitas referências à cultura popular em diálogos extensos, mas é às vezes confusa e eclíptica. O fato do artista Matt Smith ter abandonado o trabalho nas páginas finais, assumidas por Adlard, não ajudou. De qualquer modo, passado o estranhamento inicial, a arte acaba sendo envolvendo o bastante. Fecha o livro uma história independente da narrativa principal, em que macacos tripulando cápsulas em voos-teste dão espaço para o humor sarcástico de Larry Young. O livro reitera a importância da iniciativa privada nas histórias de FC de viagem interplanetária, algo firmado pelo escritor Robert A. Heinlein e pelo editor John W. Campbell, Jr. O ano de 2019 com o cinquentenário da Apollo 11 está aí, e o megaempresário Elon Musk já anunciou seu desejo de chegar à Lua “o mais cedo possível”.

 

Ate de capa de Danilo Beirut.

Astronauta: Entropia, de Danilo Beyruth. Barueri, SP: Panini Books, 2018, 98 páginas. Arte de capa de Danilo Beiruth. Álbum. Mais astronautas pra nóis, no quarto álbum da série criada por Danilo Beiruth para a Maurício de Sousa Produções, em sua linha de “graphic novels“. O terceiro, eu discuti aqui em junho de 2017. Nele, o Astronauta foi apresentado à uma versão dele mesmo e de sua família, formada em um universo paralelo, e acaba ficando com a filha adolescente, Isabel.

Os dois estão perdidos em uma região inexplorada da galáxia, sem contato com a agência espacial do Astronauta, a BRASA. Isabel sugere que eles busquem sinais de civilizações alienígenas que possam lhes dizer onde estão. Encontram um sinal e chegam a um aglomerado de naves espaciais, o Sargaço, habitado por náufragos e piratas em conflito. Os dois são pegos nessa guerra e acabam separados. Astronauta faz um trato com a liderança dos piratas, e vai com a bela alien Shie’r — que mais tarde se revela como protótipo beyruthiano da personagem Cabeleira Negra, vista em histórias anteriores do personagem. A ideia de uma estação espacial habitada por uma subclasse de desclassificados também pode ter surgido da pena de Heinlein, para se tornar um clichê absurdo que chegou a alcançar até as séries Babylon 5. Mas Beyruth lida bem com essa parte da trama, e o caótico desenho de Sargaço faz homenagem a várias naves da FC, incluindo aquelas de Star Trek. A HQ investe nas qualidades da cooperação e da luta contra a tirania, e seu final deixa um gancho para complicações futuras, num quinto volume. Já neste ponto, Astronauta é uma série de álbuns vitoriosa dentro do campo dos quadrinhos nacionais de ficção científica. Algo que o próprio Mauricio de Sousa celebra no introdução.

—Roberto Causo

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Leituras de Janeiro de 2019

O ano começou com uma boa dose de ficção científica… e outra de Harlan Ellison. Foi um mês de dobradinhas com Ellison e Charles Sheffield.

 

Arte de capa de Larry Price.

Odyssey, de Jack McDevitt. Nova York: Ace Books, 2006, 410 páginas. Arte de capa de Larry Price. Hardcover. Ano passado eu li Omega (2003), de McDevitt. Este Odyssey é a sequência na série The Academy — ou Romances de Priscilla Hutchins. Aqui, o experiente autor americano parte de uma premissa rara e instigante: avistamentos de OVNIs no espaço. Quem mais pensou nisso? No seu livro In Search of Wonder Essays on Modern Science Fiction (1956), Damon Knight menciona um romance com essa premissa. Em Odyssey, os OVNIs são chamados de moonriders e são vistos ao longo de uma rota turística que cobre vários sistemas solares.

Nesse momento, a Academia está sob ataque de políticos atrás do seu orçamento. O esforço de colonização de outros mundos não trouxe os resultados esperados, e a humanidade não fez contato com nenhuma civilização alienígena com presença espacial. Além disso, o aquecimento global tornou-se uma questão urgente, e muitos defendem o uso de recursos no combate às suas consequências, e não na viagem interestelar. Isso acontece lá por 2230, com aquilo que se projeta acontecer, em termos de mudança climática catastrófica, por volta de 2050. A perspectiva derrotista começa a mudar com o acúmulo de avistamentos e com a revelação de que tais objetos não-identificados conseguiriam mover asteroides — primeiro contra um dos poucos planetas com vida animal complexa, conhecido da humanidade, e depois contra um hotel espacial. Uma nave fora enviada para investigar os avistamentos. Na tripulação, um jornalista cético e contrário aos gastos com as viagens interestelares, uma competente pilota grega, um executivo de RP que resolve se meter na ação, e a filha adolescente de um senador americano. MacAllister, o jornalista, teve sua vida salva por Priscilla “Hutch” Hutchins no romance Deepsix (2001), que eu não li. Amy, a adolescente, quer ser piloto e tem um contato imediato de “quarto grau”, em que um alienígena personificando Hutch manda um recado à humanidade por meio dela. Na Terra, MacAllister e Hutch independentemente descobrem que a maior parte dos avistamentos são farsas organizadas por grupos de interesse, para marcar a importância do voo interestelar e da militarização da viagem espacial. Mas de tudo, o contato imediato de Amy permanece sem explicação. Por isso Hutch reage a ele enviando naves de resgate à uma gigantesca estação espacial europeia construída como um acelerador de partículas. Esse acelerador busca sondar os mistérios mais profundos do universo, criando microburacos negros. Existe a perspectiva de uma ruptura no tecido do espaço-tempo que levaria ao fim do universo — premissa semelhante à de Forever Peace (1997), premiado romance de Joe Haldeman. Todos os cientistas com que os Hutch e MacAllister falam se apressam em afirmar que a possibilidade disso acontecer é muito pequena. Mas obviamente os alienígenas, que surgem de fato nos momentos finais do romance, discordam. A arte digital de Larry Price na capa captura com dinamismo a forma esférica com que suas naves são descritas, e deu um jeito de colocar uma nave em forma de disco na arte. No texto, a ironia em torno dos OVNIs é divertida e bem realizada, ainda que com discrição. A crítica à política, à burocracia e às obsessões da ciência é bem estabelecida e de ironia mais marcada, já que mesmo diante da morte e da destruição, as pessoas se agarram às suas perspectivas limitadas e mesquinhas. McDevitt tem em Odyssey mais um exemplo da sua capacidade de criar um suspense natural a partir de reflexões sobre as faltas da sociedade e de sua fé nas qualidades individuais humanas como a coragem e o auto-sacrifício.

“Certos tipos de decisão pode ser ignorado com segurança. Algumas questões irão embora com a passagem do tempo, outras vão se desenvolver tão lentamente, que os tomadores de decisão terão partido antes que os resultados da sua negligência se tornem manifestos. O que nos traz ao meio ambiente.” —Jack McDevitt, Odyssey.

 

Arte de capa de Bob Eggleton.

Between the Strokes of Night, de Charles Sheffield. Nova York: Baen Books, 1985, 346 páginas. Arte de capa de Bob Eggleton. Paperback. Este romance de Charles Sheffield também menciona as consequências catastróficas do aquecimento global, e em 1985! Mas enquanto McDevitt parece ter errado para mais quanto a incidência dessas consequências, Sheffield, projetando-as para 2010, errou para menos. Em cima das tensões causadas pela mudança climática e superpopulação, Sheffield colocou uma guerra termonuclear total e um inverno nuclear. Por sorte da espécie humana, um trilionário investiu sua fortuna (outra antecipação brilhante de Sheffield: o cara fez sua fortuna em ações de empresas de computação) em habitats espaciais. A primeira parte do livro, de fato, é dedicada a descrever como esse visionário recrutou um instituto de pesquisas sobre o sono, vinculado a ONU, para se instalar em seu principal habitat.

O romance dá um salto de dezenas de milhares de anos, para um contexto de muitas colônias humanas em outros planetas. Um grupo de jovens é selecionado, a partir de uma grande competição, para visitar um outro mundo. De um modo bem próprio da FC hard americana, um deles sofre um acidente potencialmente fatal. O único modo de salvá-lo é um de seus colegas colocá-lo em uma espécie de hibernação química. Quando desperta, ele e seus amigos estão em uma nave espacial desconhecida. Aos poucos é revelado a eles que parte da civilização humana na galáxia é composta de pessoas que vivem no “espaço-S” — uma percepção do passar do tempo milhares de vezes mais lenta do que a do espaço normal. Isso é fruto dos experimentos do instituto apresentado na primeira parte, e o recurso funciona como um modo de driblar a velocidade da luz como lei universal, sem rompê-la. Em alguns momentos, ele também lembra a história de H. G. Wells, “The New Accelerator” (1901), e o episódio da invasão dos Druufs, na série alemã Perry Rhodan. A outra coisa que o espaço-S faz é permitir o contato com estranhas criaturas que vivem flutuando no espaço, sendo que algumas podem ser inteligentes.

O pessoal do instituto e dos primeiros habitats ainda está vivo e atuando como dirigentes invisíveis da humanidade. A competição planetária que selecionou o grupo de protagonistas da segunda parte do romance é um modo desses dirigentes renovarem os seus quadros com pessoas competitivas e intelectualmente aptas. Mesmo porque um efeito colateral do espaço-S é a impossibilidade da reprodução humana. O grupo visita a Terra do pós-apocalipse, ainda não recuperada de uma era glacial, e então descobre onde fica realmente o centro das decisões. Ao chegarem, descobrem que são esperados. O grande segredo é contado a eles: experimentos para uma ampliação ainda maior da percepção são realizados, para que o voluntário possa observar eventos de milhões e bilhões de anos. A necessidade dessa perspectiva vem do fato de que um daqueles seres espaciais ter comunicado a visão de um futuro em que alguma força desconhecida iria converter todos os sóis do nosso braço da Via Láctea em anãs-vermelhas, tornando impossível a vida humana. Uma parte do grupo de aventureiros decide abrir mão desse novo “espaço” — e do espaço-S — ao se mudarem para um segundo centro de pesquisa. É como a Segunda Fundação, de Isaac Asimov, e lá, gerações dos seus descendentes, vivendo um tempo de vida normal, poderão se dedicar à solução dessa ameaça com maiores chances de sucesso. Como acontece com muita FC hard, o romance não oferece protagonistas simpáticos, interessantes ou mesmo bem realizados. Sheffield também tem a tendência de expor o assunto mais por meio de monólogos do que diálogos. Por conta disso tudo e das especulações que ele apresenta, há uma face muito estéril para esse estranho futuro. Um toque interessante e que mostra a sua autoconsciência como autor, está no fato de seus protagonistas terem escolhido a opção mais humana para enfrentarem o problema que enfrentam. É uma luz particularmente brilhante, nesse romance estranho. Mas o maior fator mesmo é o senso do maravilhoso que ele comunica e a dimensão “stapledoniana”, como dizem os anglo-americanos, das suas especulações.

 

Sight of Proteus, de Charles Sheffield. Nova York: Del Rey, 1988 [1977; 1978], 248 páginas. Paperback. Neste romance de Sheffield, o mundo está novamente na beira do precipício, por causa da superpopulação. Inclusive, Sight of Proteus faz par com a sequência Proteus Unbound (1989) mas menciona situações e tecnologias vistas na série Crônicas de Arthur Morton McAndrew. A impressão geral é bem diferente daquela do livro One Man’s Universe, porém. Isso porque a principal novidade tecnológica presente em Sight of Proteus é a modificação da morfologia humana, permitindo a customização do corpo e até que ele adquira a aparência de animais. Uma dupla de investigadores está na cola de um supergênio da área, que teria usado cobaias humanas, crianças, em seus experimentos. Capman, esse cientista, some do mapa mas deixa pistas que levam os investigadores a uma jornada que os leva à galeria do grotesco que é o Palácio dos Prazeres; ao acesso à genética de alienígenas que viveram milhões de anos atrás no planeta Loge, um gigante gasosos que, ao ser destruído, gerou no cinturão de asteroides do Sistema Solar; a uma equação para o equilíbrio econômico-populacional da humanidade; e a um asteroide em forma de bola de gude oca, transformado em nave espacial interestelar. No fim das contas, Capman é encontrado mas a questão em torno dele já havia se dissipado há algum tempo. Inclusive, o experimento com crianças era na verdade uma tentativa de rejuvenescimento. A imagem final é menos positiva do que assustadora, pelo número de pessoas que, sorridentes, abandonam uma humanidade conhecida em favor de uma visão alternativa, ainda desconhecida, de humanidade. O leve tom farsesco, presente inclusive na quantidade de ideias de FC empilhadas e pouco problematizadas, reforça os percalços de uma leitura que não conduz o leitor a um futuro que parece coerente e interessante de se conhecer. Não obstante, vale refletir sobre a hipótese de Sheffield ter refletido ou expressado ainda na década de 1970 (uma versão do romance apareceu primeiro na revista Galaxy em 1977) ansiedades sobre o controle e a radicalização do corpo — que na década seguinte estariam no cyberpunk, e que hoje estão na política de identidade.

 

Arte de capa de Glen Orbik.

Web of the City, de Harlan Ellison. Londres: Titan Books/Hard Case Crime, 2013 [1958; 1957; 1959; 1956], 284 páginas. Arte de capa de Glen Orbik. Trade paperbackDesencarnado no ano passado, Harlan Ellison foi um dos escritores mais inquietantes da FC e do horror americanos, e uma das suas figuras mais polêmicas. Quando estive no Festival Utopiales em Nantes, em 2002, flagrei Brian W. Aldiss perguntando a Norman Spinrad se o “little guy” (o baixinho Ellison) ainda seguia sem ter escrito nenhum romance. De FC, bem entendido, pois Ellison no começo de sua carreira ele publicou este romance de ficção de crime, escrito enquanto ele fazia o treinamento básico no Fort Benning. Mais tarde, quando ele escrevia uma coluna de resenhas de paperbacks para o jornal do Fort Knox, onde servia, encontrou, em uma caixa de livrinhos enviados pela Pyramid Books pra serem resenhados, o seu romance — que ele havia submetido à Lion Books como Web of the City (a teia da cidade). A Lion fechou e o seu inventário foi comprado pela Pyramids, que lançou o livro como Rumble.

Web of the City é centrado no delinquente juvenil Rusty Santoro, e contam as lendas que como pesquisa para o livro Ellison teria se enfiado em uma gangue de verdade. Rusty é o líder da sua gangue, mas alguma coisa das admoestações do professor Carl Pancost cala nele. Ao tentar se afastar da violência, ele passa a ser acossado pelos seus ex-amigos. Poupa o seu

A edição original do romance de estreia de Harlan Ellison, pela Pyramid Books.

adversário em uma briga ritual de canivete, pela liderança do bando. Quando as coisas parecem estar se assentando para ele, sua irmã, que entrou na gangue influenciada por ele, é assassinada brutalmente, e a mãe o responsabiliza. Atormentado, Rusty se lança em uma fiada de atos de violência no território de gangues rivais, enquanto caça o assassino. Na introdução, Ellison reconhece que o livro tem os seus problemas. Mas a leitura revela o pendor precoce do autor pelo over the top e pela linguagem vigorosa, expressiva, e o seu interesse pelos tipos estranhos que se encontra nas ruas. O clima é forte e as situações são tensas, a textura dos bairros pobres e dos seus espaços violentos é muito presente. O romance alcança um senso trágico genuíno.

Ao pessoal que descuidadamente define “ficção de gênero” como sendo apenas ficção científica, fantasia e horror, é bom lembrar que ficção de crime também é gênero literário, e a ficção sobre delinquência juvenil foi um subgênero popular na década de 1950, nos Estados Unidos. A informação está na mui útil Encyclopedia of Pulp Fiction Writers (2002), de Lee Server. O mesmo livro menciona Wenzell Brown como um dos “três mais” do subgênero, e pode ser que o romance de Ellison tenha sido rebatizado como Rumble para entrar no rastro de um livro de Brown, The Big Rumble (1955). Eu vi muitos filmes na madrugada, pertencentes ao subgênero — e que não eram Amor Sublime Amor. Três histórias curtas de Ellison, “No Game for Children” (1959), “Stand Still and Die!” (1956), e “No Way Out” (1957), noveleta que fornece o primeiro material empregado em The Web of the City. “No Game for Children” combina a violência juvenil com a cultura dos hot rods (carros envenenados), em uma história em que um acadêmico sossegadão se mostra mais implacável do que os bandidinhos das ruas, quando provocado por um deles. O selo Hard Case Crime tem feito um trabalho maravilhoso com a ficção de crime hard-boiled, resgatando obras antigas e publicando material novo, mantendo um amor saudosista pelo formato do paperback e pela arte pulp que invariavelmente colore as suas capas. Esse material pulp e o projeto gráfico já rendeu até matéria e capa da revista de arte alternativa Juxtapoz. Algumas edições especiais aparecem em trade paperback, de dimensões semelhantes àquelas dos livros em brochura que temos aqui no Brasil. Confesso que se tivesse grana, enchia uma estante com todos os livrinhos da Hard Case Crime (já tenho uns oito). Glen Orbik, que assina esta capa e várias outras do selo, é um mestre da arte pulp oriundo dos quadrinhos.

 

Angry Candy, de Harlan Ellison. Nova York: Plume, 1989, 334 páginas. Trade paperback. Nesta coletânea de histórias, caí direto no centro da produção de Ellison, em termos de ficção científica, fantasia e horror. Já tinha lido outras coletâneas, mais antigas, mas nesta encontrei uma grande concentração de histórias premiadas, instigantes, sugestivas, nostálgicas e incômodas. Na um paia introdução, Ellison (famoso pelos comentários e introduções) comenta que, depois de montada a coletânea, ele se deu conta de que a tônica das histórias era a morte. Alguns páginas registram nas margens quem partiu entre 1985 e 1987, incluindo gente como Theodore Sturgeon e Frank Herbert. A primeira história, “Paladin of the Lost Hour”, acompanha um jovem que salva um idoso do ataque de uma dupla de assaltantes num cemitério, abriga o velho, aprende a tratá-lo como a um pai, aí descobre que era tudo um teste para que o homem lhe passe o bastão na tarefa de impedir o fim do universo. O bastão na verdade é um relógio que não pode tiquetaquear. Ao mesmo tempo, o objeto mágico confere desejos, mas ao custo de um tempo com o relógio funcionando. O teste final é negar ao velho a graça, em troca de um minuto, de rever sua esposa falecida. Uma bonita alegoria da responsabilidade, próxima daquela que Stephen King e Richard Chizmar fazem com A Pequena Caixa de Gwendy, que discuto mais abaixo. A noveleta de Ellison ganhou o Prêmio Hugo 1986. “Footsteps” é uma história de horror sobre uma vampira que seduz suas vítimas, até que encontra um semelhante. Mais curta (dua páginas), “Escapegoat” tem três viajantes temporais no Titanic, com o propósito da missão deles oferecendo um final surpresa. “When Auld’s Acquaintance Is Forgot” é um conto de FC quase-cyberpunk sobre um homem que recorre a um serviço clandestino de remoção de lembranças, por causa de uma lembrança ruim. “Broken Glass” é outra FC, mas sobre telepatia e com o toque perverso de Ellison, que narra como uma garota que sofre um estupro mental devolve a agressão com fantasias sexuais violentas ao atacante, levando-o à loucura. “On the Slab” é uma história meio lovecraftiana, com o toque ellisoniano de evocação da cultura popular cotidiana (também como Ray Bradbury fazia): um empresário do showbiz desencava o que parece ser a múmia de um ser imemorial, que ele põe em exposição — até que testemunha um inimigo igualmente imemorial surgir para vingar-se da sua descoberta, em um final intenso. “Laugh Track”, que eu conhecia da Asimov’s Science Fiction, evoca igualmente a cultura popular americana, ao tratar com leveza de uma risada gravada e empregada em diversos sitcoms e de um dispositivo tecnológico que, a partir dessa gravação, acessa a alma da tia do protagonista, a dona da risada. Também em primeira pessoa, “Prine Myshkin, and Hold the Relish” mostra que Ellison também consegue dialogar com a alta cultura literária, mas com o seu próprio twist: o narrador visita uma lanchonete onde sempre se encontra com um amigo pra discutir Dostoievsky; um terceiro ouve os dois debatendo a violência do autor russo contra as mulheres, e resolve contar uma fiada dos seus casos com o sexo feminino, todos resultando em algum tipo de acidente/incidente trágico, fatal ou aleijante — um tremendo pé frio para as mulheres.

“The Region Between” se afasta da tendência principal de Ellison, por ser uma FC que acompanha um homem aparentemente comum que assume diversas identidades por vários planetas, e em torno de quem o destino derradeiro do universo passa a orbitar. A história, uma noveleta, é bem New Wave e inclui diagramação especial e ilustrações feitas pelo artista de FC Jack Gaughan, com direito a recursos concretistas, incluindo um texto composto em espiral. (Ellison foi um dos nomes centrais da New Wave americana.) “Eidolons” é outra história em primeira pessoa, narrada por um ser sobrenatural que encontra um outro, disfarçado de proprietário de uma loja de soldadinhos de chumbo. O encontro coloca nas mãos do narrador um pergaminho com o segredo da imortalidade, e boa parte do conto é composto de 13 excertos enigmáticos desse pergaminho. A história ganhou o Prêmio Locus 1989, assim como “With Virgil Oddum at the East Pole” (uma FC sobre um homem misterioso que cria uma obra de arte para alienígenas nativos de um outro planeta, enchendo o narrador de inveja), que o recebeu em 1986, e “The Function of Dream Sleep” (também em 1989, sobre um homem que vê um monstro quando da morte do seu melhor amigo, desenvolve problemas de sono e vai ver um homem misterioso que explica a ele como é o além da vida). A melhor história do livro, porém, deve ser “Soft Monkey”, ficção de crime que ganhou o American Mystery Award 1988 — conto sobre uma moradora de rua que testemunha um crime e passa a ser caçada pela máfia, fugindo pelos becos e no meio das multidões de Nova York. É uma história dura, com muito sangue derramado Mas ela conserva um conteúdo trágico, porque a sem-teto é uma pessoa enlouquecida por alguma perda em seu passado, carregando uma boneca que ela chama de Alan, e que fará tudo para proteger. O que surge como contraponto à toda a dureza do conto é portanto esse ponto de ternura insana, que serve apenas a alguém que sempre esteve sozinho. Angry Candy ganhou o World Fantasy Award. Um testemunho das razões de Ellison ter sido considerado por tanto tempo como um dos melhores contistas do campo, e, por alguns, da literatura americana.

 

Irlanda: Os Lugares e a História (Irlanda: I luoghi e la storia), de Rosalba Graglia. Lisboa: Verbo, 2001 [1996], 136 páginas. Tradução de Rui Pires Cabral. Capa dura, formato grande. E eu que achava que travelogues e guias de viagem deviam ser o máximo da leitura chata… O texto da escritora italiana Rosalba Graglia faz a diferença, neste livro sobre a Irlanda. Espirituoso, informativo e inteligente, ele também se destaca pela sua simpatia pelo povo irlandês. O livro chegou às minhas mãos emprestado por Taira Yuji, que por sua vez o emprestou de Cristiana Vieira. Muito bem organizado, comenta a história, a paisagem, os costumes, as contribuições literárias (W. B. Yates, James Joyce) e artísticas da Irlanda para o mundo. Mas não deixa de fora o lado mais triste do lugar, mencionando a história de abusos promovida pelo Reino Unido sobre a população irlandesa, nem a questão separatista e a violência entre as duas Irlandas — Norte e Sul —, que perdurou por tanto tempo. Lindas fotografias marcam cada página, mas é o texto de Rosalba Graglia que distingue o livro. Li o livro de arte para embasar um segmento ambientado na Irlanda do século 13, do romance multivolume “Archin”, um projeto de Taira Yuji e do seu Desire Studio.

 

Arte de capa de Ben Baldwin.

A Pequena Caixa de Gwendy (Gwendy’s Button Box), de Stephen King & Richard Chizmar. Rio de Janeiro: Suma, 2018 [2017], 168 páginas. Arte de capa de Ben Baldwin e ilustrações internas de Keith Minnion. Tradução de Regiane Winarski. Capa dura. A mais famosa colaboração de Stephen King com outros escritores é o romance O Talismã (1983), com Peter Straub. Mas ele tem outras, inclusive com os filhos Joe Hill e Owen King. Esta, com Richard Chizmar, editor da revista Cemetery Dance, com a qual King chegou a colaborar, veio ao Brasil em 2018 com um belo tratamento editorial que inclui capa dura e ilustrações internas, em preto e branco (grafite) de ótima qualidade de Keith Minnion, com efeitos granulados muito sutis.

A história começa na década de 1970. Acompanha uma garota de Castle Rock — a cidade ficcional em que King ambientou muitas das suas histórias e romances de horror —, que aos 12 anos recebe de um homem de preto (outro leitmotif favorito de King) uma caixa com botões. Apertando um deles, uma gavetinha abre com um chocolate dentro. Apertando um segundo, a gaveta revela uma moeda de alto valor para colecionadores. O terceiro botão, se apertado, pode vir a causar alguma tragédia longe dali. É bem o tipo de dispositivo fascinante que a dark fantasy americana vem imaginando desde Richard Matheson (1926-2013), cuja história “Button, Button” (1970) virou o filme A Caixa (The Box), de 2009. O próprio King já havia empregado premissa semelhante em “Tudo É Eventual” (“Everything’s Eventual”), uma novela de 1997. A Pequena Caixa de Gwendy passa a acompanhar a menina do título, contando como ela enxuga o seu corpo rechonchudo, ganha formas atléticas, torna-se confiante e capaz, arruma um namorado, perde uma amiga… e também como ela apertou o botão do terror pela primeira vez e qual é o fato terrível que ela imagina ter provocado. Com leveza, a novela explora a psicologia da moça, suas dúvidas, ansiedades, e como ela constrói sua força de vontade para evitar o emprego de um poder tão maior do que ela. Sem dúvida, assim como a protagonista de The Girl Who Loved Tom Gordon (1999) e outros livros e histórias de King, Gwendy é uma personagem feminina encantadora pela sua determinação. A sua história sugere o quão poderoso pode ser um ato de imaginação na construção tanto de um caráter sólido, marcado pela autodeterminação, quanto de um desproporcional sentimento de culpa e de responsabilidade por tragédias que estão além do nosso poder individual de controlar.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Shane Davis.

Superman: Terra Um (Superman: Earth One), de J. Michael Straczynski (texto) e Shane Davis & Sandra Hope (arte). Barueri-SP: Panini Books, 2012, 138 páginas. Arte de capa de Shane Davis. Tradução de Rodrigo Oliveira & Paulo França. Capa dura. Sou eu, ainda procurando os quadrinhos de autoria de Straczynski, e estendendo as minhas leituras do Super-Homem. Na verdade, passei um bom tempo refletindo se valia a pena adquirir este livro em que Straczynski recria a origem do personagem. É sempre um risco, e muitos esforços semelhantes derrapam. Felizmente, não é o caso aqui. De fato, valeu muito o investimento. Na verdade, fiquei surpreso com a resposta emocional que essa HQ despertou em mim. Essa atenção para com a “lógica emocional” (nas palavras da escritora de FC Kelly Robson), ou mesmo lógica moral, do que ele narra é uma das características que distinguem o roteirista conhecido pela criação da série Babylon 5. 

A história começa com Clark Kent arriscando a sorte na cidade grande — Metrópolis, onde faz teste para um time profissional de futebol americano, e para uma vaga em uma empresa de materiais. Fisicamente ele excede, e intelectualmente também, o que é um detalhe importante, considerando o quanto gêneros e formas artísticas populares tendem a se esquivar de personagens inteligentes. A caminho de realizar o sonho americano, Clark hesita quando sua mãe lhe diz que ele deve buscar a ocupação que lhe trouxer felicidade e que melhor empregue seus supertalentos. O rapaz então visita a redação do jornaleco Planeta Diário, onde conhece o idealista Jimmy Olsen e a durona Lois Lane. Enquanto ele reflete sobre as suas possibilidades profissionais, a história, que ia muito bem, retrabalhando o material conhecido da mitologia do herói, de modo que as variações do autor caiam com naturalidade e também de modo interessante e sugestivo, nas fendas antecipadas pelo leitor que conhece essa mitologia, se transforma em uma ficção científica de invasão alienígena, completa com naves gigantes e tropas com armaduras robotizadas. Nesse ponto, achei que o enredo iria se perder, mas mesmo durante as sequências de ação os flashbacks vão preenchendo as lacunas da formação do personagem e garantindo o interesse. Os alienígenas estão na Terra atrás do próprio Superman. Buscam terminar o serviço iniciado com a destruição do planeta Kripton. Essa é uma inovação de Straczynski, eu imagino: a destruição do planeta seria resultado de uma guerra de gerações entre Kripton e um outro mundo do mesmo sistema planetário. A briga de Superman contra o líder dos invasores acontece entre os arranha-céus de Metrópolis, e aí há semelhanças com o filme Homem de Aço (Man of Steel; 2013). Há ainda uma linha narrativa coadjuvante, em que uma cientista militar analisa a nave que trouxe o personagem de Kripton. Os personagens dessa linha não interferem muito no enredo, mas a nave é crucial para virar a mesa sobre os invasores. Para sublinhar a sua participação, Straczynski trouxe uma interessante ideia de ficção científica: os próprios átomos da nave apresentam um código ativado quando Superman sonda um fragmento dela, com a sua supervisão.

Lendo essa HQ, me pareceu que Hollywood tem quase que sistematicamente se apropriado das histórias de Straczynski para realizar produções de menor potencial — como em Thor (2011) e Doutor Estranho (2016). No início de Terra Um, Clark Kent é um jovem melancólico e ensimesmado. Está em busca do seu lugar no mundo, e o conflito indica a ele com clareza qual é esse lugar. Por isso, apesar de toda a morte e destruição, ele sorri no final. Shane Davis tem aquele desenho correto anatomicamente e versátil em termos da representação de roupas e arquitetura, que caracteriza a DC Comics. A arte-final cuidadosa de Sandra Hope reforça suas qualidades. O seu jovem Clark se parece com uma versão alta e corpulenta de Tom Cruise em A Guerra dos Mundos, completa com a jaqueta de capuz. Ao mesmo tempo, Davis homenageia alguns desenhos clássicos de Joe Shuster, o co-criador (com Jerry Siegel) de Superman. O livro é muito bem diagramado, a propósito. Por sua vez, Straczynski não perde o seu senso de lógica moral e fornece uma espécie de epílogo (disfarçado como uma entrevista do Superman dada a Kent) em que o herói não deixa de registrar as perdas sofridas durante a invasão, e faz a sua promessa de se dedicar à proteção da humanidade, sem se colocar a serviço do governo americano.

—Roberto Causo

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Leituras de Dezembro de 2018

Em dezembro eu sentei para ler, e o resultado foi muita ficção científica brasileira e estrangeira, poesia, história em quadrinhos e alguma não-ficção.

 

Darwin’s Blind Spot: Evolution Beyond Natural Selection, de Frank Ryan. Boston/Nova York: Houghton Mifflin Company, 2002, 310 páginas. Hardcover. O darwinismo social é um assunto que me interessa desde que ele cruzou meu caminho em vários momentos em que eu cursava a Faculdade de Letras na USP. Minha posição, bem marcada e contrária a ele está no meu livro Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950 (UFMG, 2003). Sendo leitor de ficção científica desde criança, foi ficando cada vez mais claro para mim o quanto o pensamento darwinista social faz parte da moldura anglo-americana do gênero. Essa é uma questão política e filosófica que fãs e escritores do gênero no Brasil frequentemente deixam passar.

Li partes deste livro justamente para escrever minha conferência “Combatendo Robôs: Drones e Darwinismo Social na Ficção Científica”, no IV Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional. (Muito obrigado ao Prof. Flavio García por me convidar!) Gostei da leitura, fluida e informativa, e resolvi terminá-lo. Trata-se de um livro-reportagem que se dedica a confrontar o neo-darwinismo com ideias em torno da simbiose e da cooperação entre as espécies — com isso indo contra as noções prevalecentes de competição e sobrevivência do mais apto. Esse é um assunto relativamente novo, e a esperança de Ryan (e minha) é de que ele venha a equilibrar a incorporação ideológica do darwinismo social na cultura, na ciência e na economia. Logo na introdução, Ryan aponta:

“Desde o início, a teoria evolucionária tem sido aplicada a muitos campos dos assuntos humanos, como a sociologia, a psicologia e mesmo a política. Tais interpretações, vistas apenas de uma perspectiva darwiniana, levam a uma ênfase excessiva na competição e no conflito. Mais danoso de todos, o darwinismo social da primeira metade do século XX levou diretamente aos horrores da eugenia. O surgimento, mais uma vez, do darwinismo social é portanto uma fonte de preocupação para muitos cientistas e sociólogos.” —Frank Ryan. Darwin’s Blind Spot.

O livro é dividido em duas partes. A primeira, “Controversies: The Struggle for Recognition” (controvérsias: a luta pelo reconhecimento), discute a história do conceito de simbiose e de como ele foi historicamente abafado pelos darwinistas. A segunda, “The Weave of Life” (a tecitura da vida), descreve a sua importância e exemplos e hipóteses que explicitam a importância da simbiose como um forte mecanismo evolucionário. Essa parte é absolutamente fascinante na sua divergência do consenso darwinista corriqueiro. Evoca uma sensação de como a evolução da vida é complexa, parecendo mesmo alienígena à nossa percepção. Há muitas ideias de ficção científica esperando gestação nessa parte do livro. É claro, o que a questão da simbiose como motor evolucionário evoca culturalmente é a ideia da cooperação equilibrando o substrato da competição no darwinismo. Um questão crucial, especialmente num momento em que a política brasileira vem abraçando perversamente as práticas do darwinismo social.

 

Contos Reversos, de Romy Schinzare. São Paulo: Editora Patuá, 2018, 158 páginas. Introdução de Caio Bezarias. Texto de orelha de Gilberto Lopes Teixeira. Ilustrações de Jorge de Souza Coelho. Brochura. Conheci pessoalmente a escritora Romy Schinzare e seu marido Jorge Coelho, um antigo colega da USP, no evento “Ficção Científica Brasileira: 60 Anos de Manifestos”, quando ela me deu um exemplar do seu Contos Reversos. O livro reúne histórias de fantástico literário, absurdismo, e daquela narrativa de FC ou fantasia que costumo chamar de “histórias tipo Além da Imaginação“. Nelas, o absurdo ou o fantástico entram no cotidiano de alguma pessoa ou pessoas, de modo relativamente restrito e mais com um caráter pessoal e humano. Menos “épico”, digamos. Nesse tipo de história há espaço também para a tão necessária franqueza na denúncia e no comentário moral. Assim, em “Ministério da Solidão” tem-se uma fábula sobre uma gente meio mole que nasce em cachos, uma espécie de humanos artificiais, individualistas e consumistas, que, como as salamandras do livro de Karel Capek, vão se multiplicando e ameaçando dominar o mundo: os Bananas. “O Prédio” é uma fábula distópica sobre essa construção que hierarquiza burocraticamente a vida em um mundo de alta tecnologia, como no livro de Ruth Bueno, Asilo nas Torres (1979). Mais longo e desenvolvimento mais pausado, “O Colecionador” é uma história de horror com uma atmosfera bem firmada, sobre uma assustadora coleção de corujas. No curto “Mrs. Liberty”, a Estátua da Liberdade ganha vida em Nova York, antes de fugir, desiludida com o desvirtuamento pelas autoridades americanas. Em “Os Robôs de Marte”, autômatos enviados ao Planeta Vermelho fundam a sua própria sociedade e retornam à Terra para capturar humanos, como nos velhos filmes B, e em Marte esses humanos e descendentes se tornam uma subclasse em revolta contra as máquinas. “Canal 66” é bem Além da Imaginação, menos panorâmico e mais centrado em personagens, tratando de um programa de TV que captura, literalmente, os seus espectadores. “Buraco de Minhoca” é uma FC sobre uma primeira missão espacial a Marte, narrada pelo ponto de vista de um cosmonauta russo que se depara com um portal dimensional no caminho. A tendência internacionalista das histórias de Schinzare é repetida em “Operação Baltimore”, ambientada no Sul dos EUA e tratando da violência racial e de uma sociedade secreta destinada a combater, com ferro e fogo, a Ku Klux Klan. “O Vampiro de Santa Efigênia” é outra história de horror e crime, enquanto “Moça Enluarada” brinca com situações de ufologia mascarando um golpe imobiliário, e “Rede ZZZ” traz outra alegoria da alienação causada pela TV e outros aparelhos que funcionam como muletas emocionais. “Oziris” é FC alegórica sobre alienígenas infiltrados na Terra, e finalmente, “Mutantes” é outra narrativa irônica e alegórica que emprega elementos de ficção científica para tratar dos absurdos do cotidiano. Vale citar o prefácio de Caio Bezarias, autor de Totalidade Pelo Horror: O Mito e a Obra de Howard Phillips Lovecraft:

“Romy Schinzare é um desses poucos autores em língua portuguesa que adotam o gênero fantástico sem se limitar a seus frequentes lugares comuns e clichês, inclusive os usando com inteligencia, vazando seus contos em uma linguagem cuidadosa, simples e desprendida, para mostrar que o impossível, o aterrador e o incrível estão muito mais perto de irromper em nossa realidade do que concebemos.”  —Caio Bezarias.

 

Arte de capa de Vagner Vargas.

Possessão Alienígena, de Ademir Pascale, ed. São Paulo: Devir Brasil, dezembro de 2018, 98 páginas. Capa e ilustrações internas de Vagner Vargas. Brochura. Esta é uma antologia original de ficção científica e horror compilada pelo dinâmico Ademir Pascale e que ficou um tempo na oficina da Devir Brasil, saindo, enfim, em dezembro de 2018. Traz histórias de Tibor Moriz, Estevan Lutz, Marcelo Bighetti, Miguel Carqueija, Jorge Luiz Calife, Mustafá Ali Kanso, Roberto Causo e uma narrativa visual de Vagner Vargas, tudo dentro da premissa original criada por Pascale. A seleção de autores é uma mistura interessante de nomes da Segunda e da Terceira Ondas da FC Brasileira. Um grande atrativo é a deslumbrante arte de capa e as ilustrações internas de Vagner Vargas. Além disso e pela primeira vez em uma antologia de ficção científica nacional, esse destacado artista de FC participa também com uma galeria de imagens que funciona como uma espécie de narrativa visual com clima de horror, que lembra o material da revista Heavy Metal dos bons tempos. O livro também traz a primeira publicação póstuma de Mustafá ibn Ali Kanso, nosso colega desencarnado em 2017. A minha história na antologia é “Os Fantasmas de Lemnos“, vista antes em Shiroma, Matadora Ciborgue (Devir; 2015), mas escrita para Possessão Alienígena e inspirada diretamente na arte de capa feita pelo Vagner, ainda como esboço a lápis. Sobre essa arte, o que dizer? Linda, impactante, sugestiva, inquietante, com um senso estético ao mesmo tempo glamouroso e delicado que define a arte de Vagner Vargas, o melhor artista de ficção científica do Brasil.

Lendo as histórias, parece que a maioria dos escritores esquivou-se da fusão entre ficção científica e horror que o títulos sugere. O conto de Carqueija é uma love story, a de Moricz uma comédia, a minha é uma aventura. A de Bighetti provavelmente está mais próxima do horror, a de Vagner Vargas é de horror explícito, enquanto a de Lutz é uma narrativa apocalíptica. A contribuição de Calife, um dos principais autores da Segunda Onda e pai da FC hard nacional, abre a antologia repetindo a firmeza e a clareza características do seu texto, mantendo um traço de mistério. Calife sempre teve uma afinidade pelo tema, por ser fã do filme Força Sinistra (Lifeforce, 1985), e seu conto, que é a sua publicação mais recente, reflete essa afinidade.

 

The Infinite Future, de Tim Wirkus. Nova York: Penguin Press, 2018, 394 páginas. Hardcover. O Professor Christopher T. Lewis, da Universidade de Utah, me presenteou com este romance mainstream que, curiosamente, tem a ficção científica brasileira como um dos seus assuntos. Tudo indica que Wirkus, assim como Orson Scott Card e M. Shane Bell, foi missionário mórmon no Brasil. Seu primeiro romance, City of Brick and Shadow (2015), explora as favelas de São Paulo. Aparentemente, os dois livros têm em comum a narrativa construída como uma investigação. Neste aqui, trata-se de uma investigação literária. Uma sociedade informal composta por três pessoas (sendo uma delas um acadêmico brasileiro) se dedica a descobrir mais sobre um fugidio escritor americano de ficção científica que desenvolveu a sua carreira no Brasil, um certo Eduard Salgado-MacKenzie que soa como uma mistura do nosso Ivan Carlos Regina com figuras místicas tipo Philip K. Dick ou Cordwainer Smith.

No romance, Jeronymo Monteiro, André Carneiro, Dinah Silveira de Queiroz e Fausto Cunha são mencionados como brasileiros que escreviam para um número de antologias e de revistas que o Brasil nunca possuiu, com títulos como Contos Fantásticos, FC, Argonauto [sic], O Planeta, Contos Astronômicos, Contos Intergalácticos e Contos do Astronauta… Antes fosse assim. A descrição que Wirkus produz de um encontro de autores e fãs brasileiros de FC também soa mais como as convenções americanas, com gente circulando com bebidas nas mãos. De qualquer modo, toda a premissa, a ambientação e a estrutura do romance conduzem a leitura com interesse. Nesse último aspecto, a estrutura, o romance tem várias narrativas em primeira pessoas embricadas uma na outra, com Wirkus afirmando nque o seu romance é um manuscrito que caiu em suas mãos vindo de um amigo chamado Danny Laszlo, e com as narrativas dos outros investigadores literários e de testemunhas da verdade sobre Salgado-MacKenzie vindo logo atrás, até o ponto em que estamos lendo o manuscrito perdido do enigmático autor, ele mesmo uma espécie de ficção. Ao final dessa vasta exploração metaficcional, as coisas ficam mais misteriosas e subjetivas, mas a sugestão de que a obra de Salgado-MacKenzie possuiria uma dimensão mística e filosófica substancial não se cumpre. Além disso, todas as narrativas são moduladas com uma prosa literária competente mas que é, no todo, uma versão daquela prosa literária que parece ser tão default no mainstream quanto a prosa “operária” (workmanlike) da ficção popular. De qualquer modo, há em The Infinite Future muito de engenhoso, além de interessantes discussões mórmons (pelo caráter progressista dessas discussões), momentos genuinamente intrigantes, e essa estranha evocação literária da ficção científica no Brasil.

 

Cronista de um Tempo Ruim, de Ferréz. São Paulo: Selo Povo Editora, 2.ª edição, setembro de 2018, 124 páginas. Capa dura. Já falei nas minhas leituras de abril de 2017 da primeira edição deste livro de crônicas, que incluí na minha lista da literatura brasileira pós-mensalão. Está é uma segunda edição ampliada, num bonito formato capa dura, que adquiri do próprio Ferréz na minha visita à Comic Con Experience de 2018. Ferréz começou como fanzineiro na mesma época que eu, e se tornou um nome do hip hop e do movimento Literatura Marginal. Hoje também cronista e youtuber, é uma das figuras literárias nacionais mais interessantes e instigantes. Esta segunda edição do seu Cronista de um Tempo Ruim mostra que, além de tudo, ele deve amar o livro como objeto, já que produziu um volume bonito e gostoso de manusear. Quando tratei da primeira edição, apontei Ferréz como “uma voz fora da curva, na denúncia das hipocrisias costumeiras da sociedade brasileira quanto aos pobres e os moradores da favela e da periferia. Sua denúncia chega às autoridades, que não enfrentam a violência policial e mantêm, pela corrupção, a situação violenta que ceifa as vidas dos jovens e limita suas possibilidades de avanço. Alguns dos textos do livro repercutem os ataques do PCC em 2006, e a reação violenta da polícia e de esquadrões da morte. Outros, condenam o consumismo ou apontam o preconceito com que o morador da periferia é apresentado pela imprensa. Muitos têm a cadência e a dicção do hip hop brasuca. O retrato que Ferréz faz do estrago social produzido pela corrupção e descaso das autoridades é visceral.” Agora, além de repetir o elogio, eu me concentro no conteúdo inédito presente na segunda edição, totalizando cinco crônicas. Considerando que muita água rolou por baixo da ponte entre 2009 e 2018, politicamente falando, é apropriado que ele abra a seção com as adições anunciando a crônica “Sobre o Sorriso dos Políticos”, a respeito das suas desilusões e de uma tomada de posição humana e pessoal:

“Faz um Tempo que não me identifico com nenhum partido, a coisa parou de ser que nem time, está todo mundo no mesmo saco, literalmente.” —Ferréz, Cronista de um Tempo Ruim.

Por sua vez, “Paraíba, Literatura e Crack” descreve algo do mundo cultural que ele frequenta, feiras e eventos literários país afora. Ele trata de uma feira em especial na Paraíba, das palestras que ouviu com interesse, mas a questão de um grupo de meninos viciados em crack e jogados na rua é o centro emocional da crônica, orbitado o mundo elevado da arte literária. Em “O Aniversário de uma Favela”, ele trata de um evento de rua na periferia de São Paulo, num bairro que comemora seu aniversário e nas figuras sociais e culturais que transitam por ali, construindo um clima utópico passageiro mas que preenche o ar de esperança. “Malditos Flanelinhas” é contundente ao comentar medidas do governador de São Paulo de reprimir a atividade dos guardadores de carro; quer dizer, pisar no pescoço de quem já está desesperado, enquanto práticas cotidianas capitalistas legais são até mais extorsivas do que alguém pedir ou cobrar uns trocados para vigiar o seu automóvel. O último texto é “Tentativas”, provavelmente o mais poético, transitando em referências culturais populares que esquentaram o meu coração de fanzineiro e fã de quadrinhos e cultura popular, com tanta citação de artistas brasileiros e estrangeiros. Ferréz mantém o seu toque especial.

 

Arte de capa de Bryn Barnard.

Farewell Horizontal, de K. W. Jeter. Nova York: St Martin’s Press, 1989, 250 páginas. Capa de Bryn Barnard. Hardcover. Não me lembro onde comprei esta edição de clube de livro. Provavelmente pelo sebo virtual Alibris. De Jeter eu já tinha lido o seu romance proto-cyberpunk Dr. Adder (198 ) para a minha tese Ondas nas Praias de um Mundo Sombrio: New Wave e Cyberpunk no Brasil, e mais tarde, li o seu debut steampunk, Morlock Night (1978). Farewell Horizontal é cyberpunk de um jeito meio japonês, por se centrar em um cenário complexo, sugestivo mas sem que o autor se dê ao trabalho de mostrar como chegamos a esse futuro. Isso meio que contradiz, inclusive, os princípios extrapolativos dos cyberpunks de primeira geração.

O cenário em questão é uma gigantesca torre que se ergue num mundo que nem sabemos se é a Terra ou não. O protagonista é um cinegrafista que se pendura a face externa da torre e vende imagens para canais especializados — uma delas, de misteriosos seres alados chamados “anjos”, transando no céu em torno da torre. Esse freelancer tem até agente. Seu trabalho do coração, porém, é decorar armaduras de combate para que as diversas gangues do lugar possam se matar com estilo. As coisas entortam pra ele quando é usado como bode-expiatório em um esquema pra humilhar os líderes de uma dessas gangues. Só lhe resta fugir para regiões esquecidas, misteriosas da gigantesca torre. Caçado implacavelmente, ele conhece e trava contato com tipos ainda mais estranhos, todos apropriadamente cruéis e cínicos. Em sua jornada, ele descobre ações ainda mais cruéis do governo local. Nesse mundo, conflitos e informações são comercializados e transformados em entretenimento, e a fuga e as escapadas do herói — um individualista tipicamente cyberpunk e redimível apenas por estar circunstancialmente lutando contra o sistema — são acompanhados pelos espectadores dos vários níveis. Apesar do cenário interessante, falta pegada à narrativa e ao que ela tem a dizer. É um pouco como a competente ilustração de capa de Bryn Barnard, sugestiva e bem executada, mas com um personagem de expressão sem personalidade.

 

Mindscan, de Robert J. Sawyer. Nova York: Tor Books, 2011 [2005], 302 páginas. Capa de Stephan Martiniere. Trade paperback. Este livro, um romance de ficção científica, foi presente da minha colega de pós-graduação Cláudia Corrêa e veio autografado. O tema é o upload da consciência humana em corpos robóticos, conceito que, a partir da década de 1990, cresceu muito no rastro das ideias da singularidade tecnológica e do pós-humanismo. O protagonista é um canadense mediano, herdeiro de uma cervejaria, que resolve fazer o upload antecipando uma doença neurológica hereditária. Há um lado literário no livro, em como ele foge do formato do thriller e se concentra na caracterização do protagonista e seus relacionamentos. As coisas se encaminham para o personagem assumir um retiro na Lua, enquanto o seu duplo robótico segue com a vida na Terra. As questões em torno disso são desenvolvidas com habilidade, narrando a adaptação da consciência duplicada e transplantada ao corpo robótico, e a da consciência antiga ao ambiente artificial lunar. Na Terra, o robô enfrenta a alienação da namorada e o questionamento legal da família de uma amiga, uma nonagenária que implantou sua consciência em um corpo jovem, envolvida agora em uma disputa por controle de direitos autorais (a mulher é autora best-seller de livros para jovens). Na Lua, o protagonista descobre que um novo procedimento médico é capaz de resolver a sua doença degenerativa facilmente, e passa a desejar o retorno à Terra e para junto do seu interesse romântico. Por um lado, portanto, o romance assume as cores de um drama jurídico em torno da definição da vida e dos direitos do ser humano; e de outro, as de um drama pessoal, do homem em conflito com as disposições comerciais e legais da empresa que assumiu o controle da sua vida. Ao mesmo tempo, há um argumento interessante sobre entrelaçamento quântico entre várias iterações do upload.

Este é o primeiro romance do veterano e premiado autor canadense Robert J. Sawyer que leio. Mindscan alterna momentos intrigantes, com uma espécie de carência de empatia emocional que a gente às vezes se depara numa ficção científica que quer suprir com grandes ideias uma incapacidade de lidar com aspectos emocionais e humanos. É um problema, inclusive, do assunto upload de consciência humana a algum meio digital, virtual ou robótico. Soma-se a isso o fato de que o protagonista é outro personagem pálido, insosso. Nesse sentido, o romance de Sawyer, apesar da sua construção engenhosa e complexa, fica devendo — e muito.

 

A Arte do Cinema: Star Wars (The Art of Film: Star Wars), Anônimo, ed. São Paulo: Editora Europa, 2015, 178 páginas. Tradução de Gustavo Vicola, Maurício Muniz e Paulo Ferreira. Formato grande. Bacana saber que a ascensão da cultura nerd/geek tem permitido a publicação de um livro de arte como este, sobre a arte de Star Wars. Foi produzido originalmente pelos editores da revista inglesa ImagineFX, dedicada à arte digital. É basicamente um catálogo de artistas, trazendo muita arte de fã, mas bastante coisa comissionada oficialmente, inclusive material de Greg Hildebrandt, David Dorman, Dave Seeley, Terry Dodson, Jon Foster e outros artistas fabulosos. Foi muito sensível abrir o livro com o trabalho de Ralph McQuarrie, o desenhista de produção da primeira trilogia da franquia (1977-1983). Incluir esse conteúdo clássico, feito com rapidez com guache ou outra técnica semelhante, mas que conserva uma qualidade épica e a atmosfera de maravilhamento dos primeiros filmes, faz a gente pensar o quanto o look de Star Wars persiste com a sua coesão e coerência estética até interpenetrar a sofisticação da arte digital — representada no livro pela arte fluida de Mark Molnar, Josh Viers, Daryl Mandryk, Simon Goinard e outros. De fato, muita coisa mudou na arte de ficção científica, na transição da tinta e do pincel (ou do aerógrafo) para a mesa digitalizadora. Mas a arte de Star Wars permanece distinta para além do rótulo do retrô, justamente por sua coerência ao longo dos anos. Confesso que sou fascinado pela arte de Star Wars não só por ser  fã da franquia desde a infância, mas exatamente por essa razão relacionada à sua riqueza e à sua permanência. É claro, este e outros livros dão conta da quantidade de talentos que já produziram imagens para Star Wars, e de uma infinidade de abordagens aplicadas por eles.

Há no livro o trabalho do criador de dioramas Stephen Hayford, por exemplo, e o do modelista Ansel Hsiao, que turbinou as naves da franquia em plastimodelismo. Ou de Brandon Kenney, que pintou telas com os personagens da primeira trilogia, em óleo, carvão e acrílica, enquanto Cat Staggs absorveu a iconografia da franquia em arte de poster de propaganda política. Gostei especialmente das ilustrações de Chris Trevas, que criou interpretações visuais intensas, bem-humoradas ou dramáticas de momentos elipsados nas narrativas canônicas dos filmes, materializando aquilo que certamente pertence à imaginação dos fãs.

 

Outros Jeitos de Usar a Boca (Milk and Honey), de Rupi Kaur. São Paulo: Editora Planeta, 20.ª edição, 2018 [2017], 208 páginas. Capa e ilustrações internas de Rupi Kaur. Brochura. Tradução de Ana Guadalupe. Cá estou, tentando ler mais poesia, contemporânea desta vez, e por tabela tentando entender algo da subjetividade feminina. A poeta Rupi Kaur é uma jovem canadense que fez um baita sucesso com este livro, que ela ilustra com os seus próprios desenhos. Chegou ao primeiro lugar na lista do New York Times.

Um aspecto do livro é a exploração muito franca de questões sexuais de étnicas de alguém da sua geração que está fora, em termos físicos e subjetivos, do “padrão”. Filha de mãe indiana, Kaur fala muito de pelos corporais e da vulnerabilidade feminina, tratando de abuso e supressão da voz e do desejo. Na mesma moeda estão a violência masculina, passividade materna e opressão paterna. Ela divide o seu livro em partes com os títulos “A Dor”, “O Amor”, “A Ruptura” e “A Cura”, e é interessante como uma expressão do eu feminino em partes posteriores se contrapõem àquela presente na primeira. “O Amor” começa tratando do amor entre mãe e filha e da maternidade, mas logo entra no amor erótico. O eu lírico assume uma personalidade mais assertiva e prospectiva, mais segura de si em seus desejos e na afirmação das suas várias faces. Essa perspectiva, que não se atrela a situação da mulher vítima nem à da mulher altiva contribui para dar ao livro uma representatividade maior, mesmo que o leitor tenha a impressão de haver um caminho de libertação ou de impulso utópico aí. A terceira parte trata de saudade e separação, e a quarta de solidariedade e autodeterminação. Kaur também se sente livre para escrever poemas curtos de linhas também curtas, ou outros longos e quase de prosa poética. O título original reproduz a imagem do leito e do mel — do corpo feminino que nutre e deleita — muito repetida nos poemas. Não conheço o suficiente dos millennials canadenses e americanos para dizer se Rupi Kaur define ou não dilemas e virtudes da sua geração, mas o seu livro tem caráter e a impressão de juventude salta de suas páginas.

 

Bandeira Sobrinho: Uma Vida e Alguns Versos, de Braulio Tavares. Fortaleza: Editora IMEPH, 2017, 256 palavras. Brochura. Comprei este romance curto praticamente da mão do próprio Braulio Tavares, a quem eu e minha esposa Finisia Fideli encontramos por acaso no estande da Editora Draco, na Bienal do Livro em São Paulo. Ele nos levou ao maravilhoso estande da IMEPH e nos apresentou a este que é o seu segundo romance (depois de A Máquina Voadora, de 1994), tratando-o como um exercício de autoficção. Isso porque há um “Braulio Tavares” personagem e narrador do livro, que é centrado na figura de um cantador e repentista da Paraíba, cujo nome está no título e com quem o Braulio-personagem teria convivido. Bandeira Sobrinho, porém, é um personagem ficcional, cujo discreto estudo de personalidade traçado por Braulio (pelos Braulios, na verdade) fornece um mecanismo interessante e eficiente para uma compreensão das características da cena cultural dessa prática artística tão nordestina e tão importante para a cultura brasileira, nos anos de formação de Braulio Tavares, um conhecido letrista, roteirista de cinema e televisão, poeta cordelista e um dos melhores escritores da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira. Braulio, inclusive, já escreveu muito a respeito do cordel e do repente em livros como Contanto Histórias em Versos: Poesia e Romanceiro Popular no Brasil (2005) e Cantoria: Regras e Estilos (2016).

Como sempre e em tudo o que faz, ele conduz o texto de Bandeira Sobrinho com graça, brilho, riqueza de textura e uma erudição despretensiosa. Há um componente metaficcional efetivo e integrado ao projeto do romance, já que os versos reproduzidos — todos escritos por Braulio Tavares — compõem com a narrativa e a caracterização dos personagens e do seu ambiente. Interessantemente, no mesmo ano em que visitamos o IMEPH, o cordel  foi declarado patrimônio imaterial do Brasil.

 

Arte de capa de Cayman.

A Sombra do Corvo, de Rouxinol do Rinaré. Fortaleza: Edição do Autor, novembro de 2017, 8 páginas. Capa de Cayman. Folheto. Por falar em cordel, este é um dos que Braulio Tavares me indicou no estande do IMEPH. Uma das coisas maravilhosas que a editora cearense fez foi trazer cantadores e cordelistas para a Bienal do Livro, de modo que pegamos o autógrafo de Rouxinol do Rinaré ali mesmo. Braulio indicou este cordel em particular porque ele se inspira no famosíssimo poema de Edgar Allan Poe, “O Corvo” (1845). Trata-se então de um diálogo intertextual e homenagem bem específicos, e seria interessante sondar como o poema de Poe veio a impressionar o poeta brasileiro. De qualquer modo, o cordel sempre fez um malabarismo de erudição entre fontes clássicas e populares.

É claro, o poema narrativo de Rouxinol do Rinaré é mais extenso e num tom diferente daquele de Edgar Allan Poe, mas há pedras de toque o suficiente entre um e outro para garantir um jogo intertextual evocativo. Poe é incrivelmente produtivo e plástico, nesse sentido. A sua obra se presta ao diálogo em polos tão diferentes quanto o mainstream literário, a ficção de gênero e, como vemos aqui, formatos populares como o cordel.

 

Arte de capa de Eduardo Azevedo.

Jorge e Carolina, de Rouxinol do Rinaré. Fortaleza: Edição do Autor, novembro de 2015, 32 páginas. Capa de Eduardo Azevedo. Folheto. Neste Jorge e Carolina, Rouxinol do Rinaré adapta uma obra brasileira, A Viuvinha (1857), o segundo romance publicado por José de Alencar. Eu me pergunto se haveria ou haverá no futuro um mercado para adaptações de cordel de grandes obras do cânone literário nacional, como aconteceu com as histórias em quadrinhos que adaptam esses livros, funcionando como um facilitador para quem quer ter esse capital cultural em particular — ou que precisa enfrentar perguntas de literatura no vestibular… Acho que não.

A Viuvinha é um romance de costumes, tônica da época, e o poema narrativo descreve o casal de protagonistas citados no seu título, e a situação emocional e social dos dois. Narra como o moço superou o passado perdulário e irresponsável, para conquistar a moça. O tom é mais sóbrio, é claro, do que A Sombra do Corvo. Rouxinol do Rinaré recebeu prêmios e venceu concursos, foi citado em revistas culturais francesas como Quadrant, Latitudes e Infos Brésil, e sua arte poética é assunto de muitos trabalhos acadêmicos. Um tesouro regional e nacional.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Juan Giménez.

Apocalypse: The Eyes of Doom, de Juan Giménez & Roberto Dal Prá. Northampton, Massachusetts: Heavy Metal/Kitchen Sink, 1993 [1991], 58 páginas. Arte de capa de Juan Giménez. Tradução de Michela Noris. Álbum capa dura. Sendo fã do quadrinista argentino Juan Giménez, eu não poderia deixar este álbum colorido dando sopa por muito tempo, na loja Omniverse de Luis Mauro. A história começa em 1972 na guerra do Vietnã, quando o sargento Dan Curry (chamado de “Dick” em um momento, talvez por engano da tradutora) vê uma criança deter, aparentemente pela força do pensamento, um par de helicópteros americanos durante o ataque a uma aldeia vietnamita. Anos depois, vivendo em Nova York, Curry é um bem-sucedido escritor de ficção de detetive — uma instância do interesse europeu pela coisa toda do cinema noir. Obcecado pelo que viu no Vietnã, o atormentado Curry claramente mantém um interesse pela cultura indochinesa. Ele acaba se deparando com casos estranhos de mortes entre a cúpula do crime organizado no Chinatown novaiorquino, e passa a investigá-los de modo independente. A narrativa vai então a um jovem confinado a uma cadeira de rodas, e sua mãe, a responsável pelos ataques e pela campanha de tomada de poder do crime organizado em Chinatown. Obviamente, o rapaz é aquele menino vietnamita com poderes mentais.

Uma critica que se pode fazer ao enredo é que Curry no fim não descobre nada, apenas testemunhando o destino final do seu objeto de interesse. A dinâmica entre mãe e filho explica sozinha que ela não é de fato a mãe dele, mas uma mulher que apenas viu o que ele era capaz de fazer ainda em criança, e que passou a utilizá-lo para os seus fins. Mesmo sabendo que, a cada vez que o jovem usa seus poderes, paga um preço caro em saúde física — daí a cadeira de rodas. O álbum apresenta então uma história que é uma espécie de Scanners (1981) em formato de film noir, mas é o virtuosismo de Giménez que o eleva para algo mais do que o nível de um telefilme da época. O apartamento de Curry, por exemplo, é um desbunde, atulhado com objetos de arte oriental ajuntados pelo obcecado escritor. Para esse álbum, o artista empregou um ângulo especial de iluminação, aplicado ao rosto dos personagens a fim de lhes dar maior expressividade. E as cenas de paranormalidade são genuinamente assustadoras.

 

Superman Crônicas Volume Um, de Jerry Siegal & Joe Shuster. Barueri-SP: Panini Brasil, agosto de 2007, 194 páginas. Capa dura. Depois de ler mês passado a biografia em quadrinhos de Joe Shuster, fui atrás desta compilação das primeiras histórias do Super-Homem criadas por ele e Siegal, nas páginas da revista Action Comics. É maravilhoso que a Panini tenha nos franqueado esse material histórico.

De imediato, fica claro que o personagem que se consagrou nas HQs e nas telonas e telinhas era, em sua origem, bastante diferente. Faltam todas aqueles superpoderes cuja dinâmica foram a tônica do personagem em um momento posterior. Também falta o enfrentamento de supervilões exóticos que parecem possuir o seu próprio complexo militar-industrial (como Lex Luthor), ser um supercrânio vindo do futuro, um duende vindo de uma outra dimensão, ou incontáveis ameaças alienígenas. (Parece que essas coisas foram definidas posteriormente não por Siegal & Shuster, mas por Julius Schwartz.) Na sua primeira fase, o Super-Homem enfrenta os problemas sociais do seu tempo e lugar, os Estados Unidos de fins da década de 1930.

Na primeira história, o herói impede uma mulher injustamente condenada à morte de ser executada, brutaliza um marido abusivo, salva Lois Lane de um machão, e aterroriza um lobista corruptor. Esse último caso o leva, na segunda história, a uma situação de fomento de guerra em um país estrangeiro fictício, para incrementar a venda de armas. Clark Kent e Lois Lane vão para lá cobrir o conflito, e o herói tem a chance de salvar Lois de um fuzilamento, despacha um torturador militar, e obriga os generais das duas partes no conflito a lutar até a morte ou a fazer as pazes. Outras histórias envolvem um empresário do setor de mineração que não investe o que devia na segurança dos trabalhadores, trapaça em um campeonato de futebol americano, um impostor do Superman a serviço da imprensa marrom, delinquência juvenil e favelização, corrupção policial e penitenciária, especuladores do petróleo, e leis de trânsito frouxas levando a um número elevado de acidentes.

É fabuloso que Superman tenha surgido como um guerreiro da justiça social, mas os seus criadores temperaram a sua bondade com a atitude das ruas, emprestando a aspereza da ficção de detetive (incluindo truques como disfarces) que o faz empregar espancamentos, intimidações, destruição de propriedade na escala de arma de destruição de massa — como quando resolve sozinho revitalizar uma zona de cortiços, expulsando as pessoas de suas casas e as destruindo do teto ao chão. Suponho que o seu código de honra, tão de aço quanto ele, tenha surgido mais tarde. Depois de ler este material, eu me pergunto se a disposição do herói de obedecer às leis dos homens não veio só para temperar o uso desinibido do seu poder super-humano, mas também para afastá-lo desse seu lado social por razões políticas e ideológicas. Mesmo neste primeiro volume com 14 histórias, a gente vê o herói sendo aperfeiçoado na sua origem: a primeira história fala do menino recolhido de um foguete entregue a um orfanato por um motorista anônimo; quando o personagem ganha sua própria revista, a história de origem menciona o casal Kent como tendo encontrado a nave, recolhendo o bebê e o entregando ao orfanato, mas retornando logo depois com a proposta de adotá-lo. O livro reúne também as capas da Action Comics de 1 a 13, da primeira Superman, e da histórica edição New York World’s Fair Comics.

 

Arte de capa de Cliff Chiang.

Paper Girls Volume 1, de Brian K. Vaughan (texto) & Cliff Chiang (arte). São Paulo: Devir Brasil, 2016, . Arte de capa de Cliff Chiang. Tradução de Kleber Ricardo de Sousa. Brochura. OK: anos 80. Eu estava lá. Li livros de Stephen King, vi filmes como Os Goonies e Carrie, a Estranha, joguei Asteroids e Space Invaders, e li muito gibi de horror e ficção científica. Releituras como Super-8, Stranger Things e produções ambiciosas como a de It são mais que bem-vindas — mesmo porque as estratégias narrativas e os temas daquela época ainda guardam a sua eficiência. Os meus romances Anjo de DorMistério de Deus, ambientados em 1990 e 1991, têm tudo a ver com essas estratégias e temas.

Este Paper Girl combina muita coisa de tais estratégias narrativas: um grupo de crianças imaginativas enfiadas em situações fantásticas, um fenômeno sobrenatural ou alienígena ameaçando uma pequena comunidade, narrativas pessoais de desajuste caracterizando os personagens, ideias de ficção científica e horror informadas por uma tradição de filmes e livros populares, referências culturais por toda parte, e um aceno ao cósmico. É claro, há uma qualidade áspera, irônica, e subversiva no roteiro de Brian Vaughan, embora, felizmente, não tanto quanto no seu megassucesso, a space opera nonsense Saga. No primeiro episódio, as meninas entregadoras de jornal se metem, no meio da madrugada, com uns valentões vestidos para o Halloween — e essa é a coisa mais normal com que se deparam. Depois disso temos viagem no tempo, uma polícia temporal montada em pterossauros, e um conflito de gerações no futuro. As quatro meninas forma um conjunto de dinâmica divertida, de origens diversas (uma delas fuma, anda armada, é bocuda e politicamente incorreta; uma outra é mulata, outra é meiga e ingênua, e por aí vai). Muita coisa fica no ar, esperando definição maior no volume dois. Este aqui fecha com o gancho mais perfeito.

 

Arte de capa Owen Freeman.

Lazarus Volume 2: Ascensão (Lazarus Number 2), de Greg Rucka (texto) & Michael Lark (arte). São Paulo: Devir Brasil, dezembro de 2018, 128 páginas. Arte de capa Owen Freeman. Brochura. Este é o segundo volume de um série de ficção científica que tenho acompanhado com muito interesse por ser uma bem realizada FC cyberpunk rural — algo visto antes nos romances Tempo Fechado (Heavy Weather, 1994), de Bruce Sterling, e em partes de The Peripheral (2014), de William Gibson, do qual já tratei aqui em janeiro. Se no cyberpunk usual, urbano, frequentemente aparece uma monstruosa aristocracia financeiro-industrial, em Lazarus tem-se uma violenta aristocracia rural quase feudalista, que controla o trabalho com poderes absolutos e alicia os talentos de técnicos e cientistas à sua “família”, num vínculo vitalício. O patriarcalismo é total em um futuro americano decadente e distópico, de carências agudas e grandes desigualdades sociais.

A protagonista da série é Forever Carlyle, uma pós-humana criada desde criança para ser uma espécie de tenente e carrasco da família Carlyle. Ela é capaz de se regenerar rapidamente de ferimentos infligidos a ela — daí o título da série. Incidentes narrados no volume 1 deixaram Forever com a pulga atrás da orelha em relação aos negócios da família e o quanto a sua lealdade absoluta é correspondida pelo patriarca e por seus “irmãos”. Aqui, conhecemos mais do treinamento de Forever na infância, com direito a espadas japonesas bem cyberpunks, e à descarada chantagem emocional do patriarca. O habilidoso romancista Greg Rucka desenvolve a narrativa como o roteiro de um filme, introduzindo neste volume um enredo paralelo envolvendo uma família de “refugos” (os trabalhadores sem adesão a uma “família”) que abandona a propriedade degradada em que tinham se abrigado e partem como retirantes rumo a um posto de recrutamento de trabalhadores organizado pelos Carlyles. Tanto essa linha quando o momento climático da sua fusão com a linha de Forever tem uma crueza digna de um filme como Logan (2017). O desenho realista de Michael Lark, que conserva algo de autocontraste por baixo da cor esmaecida de Santi Arcas, enfatiza a dureza da narrativa e coloca o leitor nesse mundo tão semelhante ao nosso mas com elementos futuristas suficientes para sublinhar o lado cyberpunk de Lazarus. Uma das HQs de ficção científica mais bacanas sendo publicadas atualmente.

—Roberto Causo

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Leituras de Novembro de 2018

Em novembro de 2019 aconteceu o IV Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional, nas dependências da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Fui convidado pelo organizador Flavio García para apresentar uma conferência, e na preparação dessa conferência pouco tempo sobrou para as leituras habituais. Mesmo assim, o mês trouxe alguma leitura de ficção científica e, especialmente, da pioneira antologia das melhores histórias brasileiras de horror, organizada por Marcello Branco & Cesar Silva.

 

Home from the Shore, de Gordon R. Dickson. Nova York: Ace Books, 1.ª edição, 1979 [1978], 122 páginas. Ilustrações de James R. Odbert. Posfácio de Sandra Miesel. Paperback. Assim como na série Dorsai, em Home from the Shore o escritor canadense-americano Gordon R. Dickson (1923-2011) apresenta uma espécie de proto-divisão da humanidade entre conservadores e progressistas — estes determinados a encararem o futuro no espaço e em outros planetas. Neste romance curto, após duas gerações apenas, humanos que colonizaram os mares do nosso mundo começam a se diferenciar daqueles que ficaram em terra. Jovens são selecionados para se tornarem cadetes espaciais, mas a empreitada se transforma em um revés para toda a comunidade dos humanos do mar. Isso acontece depois que eles realizam um protesto, involuntariamente coletivo, contra a “caça para propósitos científicos” de uma espécie alienígena volante que vaga pelo Sistema Solar. De algum modo, o ambiente aquático desses jovens nutre uma sensibilidade incompreensível para os outros, e que permitiu uma empatia com tais seres, percebendo-os como sencientes. Vindos de uma sociedade libertária, quando passam a ser perseguidos pelas autoridades a deserção é a solução imediata.

O líder desse grupo é o jovem Johnny Joya, que, quando volta para a sua comunidade subaquática, descobre ser pai de um menino esperto e um tanto ressentido. Nesse ponto, a história muda substancialmente de tom, que se torna mais introspectivo e literário. A comunidade tem a habilidade de se desfazer em habitats autônomos chamados Lares, e por algum tempo é como um jogo de gato e rato, até que a trama se dirija a uma operação de resgate aos prisioneiros, enfiados numa instalação de Nova York. A missão é sabotada por um traidor muito próximo de Johnny, que, depois de perder a esposa, desiste do conflito e parte com o filho pequeno, Timo, para viver, sem os Lares high-tech, diretamente do mar como as gerações anteriores. Ele sugere o mesmo aos outros, em uma dispersão que vai dificultar que os humanos da terra continuem a persegui-los. No posfácio, Sandra Miesel, uma estudiosa da obra de Dickson, explica que Home from the Shore é parte de uma sequência completada com The Space Swimmers, protagonizada por Timo. Segundo ela, Dickson apresenta uma dicotomia entre inconsciente/conservadorismo e consciente/progressismo. Para além desse aspecto filosófico, o livro é uma aventura movimentada e colorida no espaço e no oceano, envolvendo golfinhos e orcas, e um ode à juventude e à simplicidade na vida.

Home from the Shore foi concebido como um livro ilustrado com elegantes desenhos em autocontraste de James R. Odbert, bem fundidos com o texto. Eles formam uma fusão equilibrada do conhecido e do futurista, e de linhas retas e formas ovoides e onduladas. Muitas vezes, Dickson soava bastante hiperbólico com respeito ao próprio trabalho e projetos, e neste caso ele afirma que a cooperação de texto e arte aqui seria única, não só no campo da FC quanto no âmbito editorial. Provavelmente, não é tanto assim, mas ele tem uma observação no prefácio que vale ser reproduzida:

“A ilustração sempre foi considerada como uma parte dos livros, até o começo deste século, quando ela começou a ser expulsa da maior parte da ficção por razões de custo editorial. A única exceção a essa tendência estava na ficção escrita para os jovens; e mesmo nesse tipo de material de litura elas foram severamente limitadas. Uma concepção errônea do editor cresceu para uma aceitação generalizada de que eram as palavras, e apenas as palavras, que os leitores adultos queriam, e não imagens.

“Como ocorre frequentemente no campo literário, essa concepção errônea foi gerada e aceita sem qualquer referendo real daqueles mais interessados — os próprios leitores. O resultado é que ela existia até bem perto do momento histórico presente, com uma exceção. A exceção era a ficção científica, a única área da literatura em que se tinha a oportunidade de responder diretamente aos autores tanto em pessoa quando por carta; e na qual, apropriadamente, eles expressavam sua preferência não apenas por ilustrações nos livros que leem, como por boas ilustrações — ilustrações não expressas apenas nas cores tipo poster da moda do momento e nos padrões frívolos da publicidade, sem qualquer preocupação real com a história na qual é aplicada. A ilustração que os leitores demonstravam desejar era aquela que verdadeiramente espelhava a história ilustrada; e que tentasse trazer para um foco agudo e artístico as imagens gerais dos personagens e cenas formadas na mente conforme a história fosse lida.” —Gordon R. Dickson.

Oneironautas, de Fábio Fernandes & Nelson de Oliveira. São Paulo: Editora Patuá, 2018, 90 páginas. Texto de orelha de Santiago Santos. Livro de bolso. Este livro é uma incomum colaboração entre dois nomes de peso dentro da ficção científica brasuca moderna — Fábio Fernandes, acadêmico e ficcionista da Segunda Onda da FC Brasileira, e parte do Grupo da Renovação que fez a ponte com a Terceira; e Nelson de Oliveira, autor consagrado no mainstream literário que, como o heterônimo “Luiz Bras”, é um dos autores mais interessantes da Terceira Onda e uma das suas melhores lideranças e cabeças pensantes. Uma nota no fim do livro observa que ele deveria ter saído em 2016, quando os dois escritores completariam 50 anos de idade. As eventualidades da escrita e da edição determinaram que sairia apenas em 2018. Eu o li enquanto aguardava meu voo para o Rio de Janeiro, onde ia participar, por obra e graça do Prof. Flavio García e da CAPES, do IV Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional.

A história enfoca uma dupla de viajantes do tempo que participam de uma festa eterna na qual encontram não apenas alienígenas mas também várias versões deles mesmos. No capítulo 3, porém, surge uma ex de Fábio, uma mulher negra que tentou matá-los em um outro contínuo do espaço-tempo. Além disso, os outros foliões estão atrás deles por terem espalhado um vírus de insônia entre os “oneironautas” — sendo que o salto entre os mundos paralelos se dá por meio de sonhos. A narrativa, cheia de referências culturais pop e surrealistas, se desenvolve em capítulos curtos, com diálogos exaltados e sempre apresentando um gancho no final. Cada capítulo é narrado em primeira pessoa, mas sob o ponto de vista alternado de um Nelson ou um Fábio (e vice-versa). Difícil saber, mas me parece que a narrativa foi construída como uma espécie de round-robin, sem planejamento, com um escritor pegando de onde o outro parou. Oneironautas é divertidíssimo, especialmente para quem conhece a dupla e consegue visualizar os dois trilhando o seu caminho entre as dimensões da Festa Eterna.

 

Arte de capa de Flávio Correia Lima.

As Melhores Histórias Brasileiras de Horror, de Marcello Simão Branco & Cesar Silva, eds. São Paulo: Devir Livraria, 2018, 272 páginas. Arte de capa de Flávio Correia Lima. Brochura. Há décadas que Cesar Silva e Marcello Simão Branco vêm contribuindo, individualmente ou em dupla, para o avanço da ficção científica e fantasia no Brasil. Os criadores do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica (encerrado em 2014) retornaram em 2018 com um trabalho fabuloso, esta antologia que se associa a outras que têm surgido em tempos recentes valorizando a ficção de horror e, em particular, o horror no Brasil. Entre elas estão a internacional Contos Clássicos de Terror, de Julio Jeha, ed. (Cia das Letras; 2018); e a anterior Páginas Perversas: Narrativas Brasileiras Esquecidas (Appris Editora; 2017), de Maria Cristina Batalha, Júlio França & Daniel Augusto P. Silva, eds.

As Melhores Histórias Brasileiras de Horror é um dos projetos deixados por Douglas Quinta Reis, no inventário de projetos que ele conduzia na Devir Brasil. É maravilhoso que tenha sido completado. A seleção de histórias começa lá no século 19 e vem até o início do nosso século 21. Inclui “A Vida Eterna” (1870, de Machado de Assis; “Acauã” (1892), de Inglês de Sousa; e o mais antologizado “Demônios” (1893), de Aluísio Azevedo. O destaque do período para mim, porém, é “Assombramento (História do Sertão)” (1898), de Afonso Arinos, conto mais longo e com fortes marcas regionalistas, que pinta um quadro bastante expressivo da casa mal-assombrada — uma casa-grande de fazenda, no caso, e que o corajoso vaqueiro Manuel decide enfrentar sozinho, passando a noite lá dentro. No que pode ou não ser um episódio sobrenatural, ele sai machucado mas de coragem intacta, em uma narrativa de força incomum — que encontra um estranho paralelo na bela ilustração de capa de Flávio Correia Lima.

A atmosfera tétrica, carregada de impressões de medo e de perturbações mentais, é a tônica das narrativas selecionadas do começo do século 20 — “O Defunto” (1907), de Thomaz Lopes; “A Peste” (1910), de João do Rio; e “Rag” (1922), de M. Deabreu —, até encontrarem o equilíbrio perfeito em uma obra-prima de Gastão Cruls, autor do clássico da FC de mundo perdido A Amazônia Misteriosa (1925): “O Espelho” (1938), em que a influência de Edgar Allan Poe se faz sentir da melhor maneira, numa história de obsessão sexual. Daí em diante, já na segunda metade do século 20, as histórias ganham variedade de enfoque, tom e tema, a partir de “Tuj” (1968), tentativa de uma espécie de impressionismo New Wave do autor da Primeira Onda da FC Brasileira Walter Martins, também publicada na França (na revista Antarès). Muito vista no campo da literatura infanto-juvenil, Márcia Kupstas está no livro com uma releitura de terror e erotismo da história de Pinocchio, com o conto “Geppeto” (1987). A década de 1990 é representada por “Bença, Mãe” (1992), de Júlio Emílio Braz; “Solo Sagrado” (1995), uma história de fanatismo religioso de Carlos Orsi; o meu “Trem de Consequências” (1995), uma história de trato com o diabo; até alcançar seu ápice na fusão da imaginação gótica e da exploração da herança histórica de violência brasileira, na novela de Tabajara Ruas, “O Fascínio” (1997). “Os Internos” (2007), de Gustavo Faraon, representa o século 21, mas é o conto de horror folclórico “Bradador” (2014), de Braulio Tavares, que fecha esta histórica antologia com chave de ouro. Um livro necessário, e uma realização importante de Branco & Silva, que aqui fornecem uma moldura para a produção de ficção de horror no Brasil, frisada pelo seu ensaio panorâmico e aprofundado, “Trajetória e Caracterização de uma Ficção de Horror Brasileira”, que serve de introdução ao livro.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Thomas Campi.

A História de Joe Shuster: O Artista por Trás do Superman (The Joe Shuster Story), de Julian Voloj (texto) & Thomas Campi (arte). São Paulo: Editora Aleph, 2018, 192 páginas. Capa de Thomas Campi. Tradução de Marcia Men. Há alguns anos, resenhei o livro Homens do Amanhã: Geeks, Gângsteres e o Nascimento dos Gibis (Men of Tomorrow; 2004), de Gerard Jones, para o Terra Magazine. Foi uma leitura fascinante, centrada na presença de artistas e empresários judeus na indústria dos quadrinhos, com muita interface com a ficção pulp de FC, detetive e aventura — e com a história da criação do super-homem pela dupla Jerry Siegel & Joe Shuster como principal estudo de caso. Afinal, a criação do homem de aço resultou no subgênero dos super-heróis nos quadrinhos. Depois de ler o livro de Jones, fica fácil de entender um romance como As Incríveis Aventuras de Cavalier & Clay (2000), de Michael Chabon, que explora a trajetória dos judeus-americanos no campo dos quadrinhos. Eu ainda adquiri, anos mais tarde em uma liquidação na loja Terramédia (hoje, Ominiverse), Man of Two Worlds: My Life in Science Fiction and Comics, de Julius Schwartz com Brian M. Thomsen, autobiografia de um agente literário e roteirista de quadrinhos que também atuou com Super-Homem.

Este romance gráfico de Voloj & Campi é uma biografia panorâmica, contada a partir de um artifício interessante: idoso e empobrecido, Shuster é retirado de um banco de praça por um policial na década de 1970. O tira paga a ele uma sopa num diner, e ali, depois de se apresentar como um dos criadores do Super-Homem, ele narra a própria história. Nesse ponto, o estilo da arte muda de traço e cor para mancha e cor, até o momento em que a narrativa se reencontra com o personagem novamente na década de 1970. Os avós de Shuster eram judeus russos que saíram do país fugindo dos pogroms, indo primeiro para a Holanda. Seus pais se conheceram em um hotel de Roterdã e migraram para o Canadá, e então para Cleveland, nos EUA, onde seu pai foi trabalhar como alfaiate. O primeiro contato do pequeno Joe com os quadrinhos foi com as tiras e páginas dominicais das HQs “sindicalizadas” (distribuídos a diversos periódicos país afora) que seu pai lia para ele. Campi brinda o leitor com um lindo painel em que Joe folheia os jornais que continham histórias dos Sobrinhos do Capitão e de Little Nemo in Slumberland, sua tira favorita. Joe conhece Jerry Siegel no high-school e o interesse dos dois pela ficção científica das pulp magazines e pelos quadrinhos fortalece a amizade. A obra de Voloj & Campi mostra os dois editando fanzines e colaborando com jornais locais, e criando personagens juntos, seguindo o modelo da aventura — o campo literário mais forte nas pulps. No processo, a narrativa passa pela morte do pai de Siegel, um comerciante, de ataque cardíaco ao sofrer um assalto a mão armada. E também pelo instante em que Siegel antecipa o surgimento das revistas em quadrinhos ao produzir o projeto do que chamou de “revista pulp em quadrinhos” (na época, as HQs apareciam como anexos em revistas pulp normais), mas que não conseguiu realizar antes do lançamento de Detective Dan, a primeira revista em quadrinhos. A dupla muda seu foco para oferecer material à editora dessa publicação, controlada pelo escritor pulp Major Malcolm Wheeler-Nicholson. O Super-Homem, enquanto isso, já vinha sendo gestado na cabeça de Siegel — primeiro como um vilão de FC pulp no fanzine dos dois, Ficção Científica: A Vanguarda da Civilização Futura (pelo qual Siegel levou um puxão de orelha da sua professora de inglês). Siegel chegou a pensar que o Super-Homem viria do futuro, mas achou que um alienígena chamaria mais a atenção. O personagem só sairia na revista Action Comics em 1938, depois que o Major já havia passado adiante a sua editora, fazendo a dupla de criadores cair nas mãos de empresários de caráter duvidoso como o ex-pornógrafo Harry Donenfeld e Julius Liebowitz. Os pilantras compraram não apenas os direitos de reprodução do personagem, mas o próprio personagem, por US$ 412,00. Por mais que fosse uma graninha em 1938, toda vez que a dupla via um programa de rádio, um seriado ou um anúncio empregando o herói, ele percebiam que tinham sido engabelados. A luta por uma compensação justa pelo personagem ocupa grande parte do romance gráfico, tudo narrado com grande habilidade e brilho artístico que tornam este livro uma joia para o fã de quadrinhos e também desse momento pujante do capitalismo literário da era pulp americana. Há detalhes interessantes como o interesse romântico de Joe pela modelo Jolan/Joanne que posou para ele mas que acabou se casando com o amigo; o fato de ninguém menos que Stan Lee ter escrito contos de Super-Homem para que as revistas tivessem um benefício dos correios americanos; a vergonha que Joe sentia por ter desenhado fetiche e bondage para revistinhas do submundo da pornografia, nos tempos das vacas magras; e a possível morte violenta de Donenfeld (que tinha conexões com a máfia).

Quando digo que esta é uma biografia panorâmica, em parte é por detalhes que falam também da época e de como os quadrinhos sofreram com campanhas moralizadoras, com a caça às bruxas do macartismo e também da situação dos judeus na sociedade americana. Esta é a história de dois nerds que abriram um campo que hoje é bilionário — o dos super-heróis — e que criaram um dos personagens mais icônicos da cultura popular. Meu fascínio pelo contínuo pulp da FC e dos quadrinhos é igualado e recompensado por Voloj & Campi quando eles incluem notas ilustradas no final do livro, uma leitura tão deliciosa quanto a HQ propriamente dita. Apesar da tradutora ter sido presa de falsos cognatos aqui e ali, e da narrativa não ter mencionado algumas fontes conhecidas na inspiração para o herói, recomendo o livro com grande ênfase e alegria. Muito grato à Aleph, que tem abordado muitos produtos cult como Watchmen e a FC clássica, e que acertou na mosca com A História de Joe Shuster.

—Roberto Causo

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