Roberto Causo

35 Anos do Universo da Tríade, de Jorge Luiz Calife

Em janeiro de 1985, a Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, lançou o romance de ficção científica Padrões de Contato: Trilogia Padrões de Contato 1, de Jorge Luiz Calife — a mais longeva série de space opera e FC hard do Brasil, existindo há 35 anos.

 

Arte de capa de Ingrid Von Steurer & Gilberto Zavarezzi.

Romance ágil e desenvolvido com elegância, pleno de sense of wonder, explorando o tema do primeiro contato com uma super-inteligência alienígena, com conhecimento científico e tecnológico sólido e uma rica história do futuro como pano de fundo, Padrões de Contato teve um grande impacto na jovem comunidade brasileira de ficção científica. Influenciada por figuras de peso da ficção científica hard como Arthur C. Clarke e Larry Niven, a obra de Calife parecia moderna, otimista e visionária ao leitor brasileiro. Com esse romance tratando da integração da humanidade à Comunidade Galáctica e das intervenções da superinteligência conhecida como Tríade, ele meio que atualizou agudamente a FC brasileira, quanto ao idioma próprio do gênero. Ao mesmo tempo, o formato episódico do romance (um fix-up de narrativas inéditas selecionadas por Calife ao longo dos anos), com grandes lapsos temporais e alternâncias no elenco de personagens. soava ousado e dinâmico.

A qualidade da especulação científica e tecnológica, e a elegância da narrativa, transformou Calife em um colaborador privilegiado de revistas masculinas como EleEla e Playboy, levando repetidamente a FC nacional às suas páginas de papel brilhante.

Arte de capa de Nelson Lopes.

Logo depois, em 1986, a Nova Fronteira lançou Horizonte de Eventos: Trilogia Padrões de Contato 2, uma aventura de foco mais estrito e com mais suspense e ação, retratando como a Comunidade Galáctica se vê ameaçada por alienígenas belicosos que põem em cheque a sua utopia hipertecnológica. Das obras de Calife, é a mais integrada à space opera, e a que mais questiona a viabilidade da sua sociedade cósmica bem resolvida, democrática e hedonista — talvez seguindo a deixa de histórias de Larry Niven como “The Warriors” (1966), parte do seu universo Tales of Known Space.

Ao contrário de Padrões de Contato, possui um arco narrativo mais uniforme e tenso. Horizonte de Eventos, mais bojudo que o primeiro livro, também oferece pela primeira vez uma alegoria satírica do Brasil dos anos da ditadura militar, ainda tão vívidos na memória em 1986, com a nave de gerações B.R.A.S.I.L., vagando perdida há séculos no espaço e vítima de um golpe paramilitar — um anacronismo tão grotesco na Comunidade Galáctica, quanto os alienígenas invasores nictianos.

Publicado apenas em 1991, Linha Terminal: Padrões de Contato III saiu pelas Edições GRD de Gumercindo Rocha Dorea, fechando a trilogia com o retorno a um formato mais breve, repleto de homenagens a filmes e livros da FC internacional, e agregando viagens no tempo que conduzem o leitor ao reencontro de uma personagem desaparecida no primeiro livro, Michelle Darrieux, e à revelação das inteligências por trás da Tríade, os djestares.

No mesmo ano, Calife também publicou o conto “A Sereia do Espaço” na Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Científica N.º 20, levando, com ele, o Universo da Tríade aos leitores da revista. Outros contos desse universo ficcional chegaram ao século 21 aparecendo na primeira coletânea do autor, As Sereias do Espaço (2001), pela Record, e, no mesmo ano, na revista Quark, fundada por Marcelo Baldini, e em antologias como Como Era Gostosa a Minha Alienígena! Contos Fantásticos Eróticos (2002), editada por Gerson Lodi-Ribeiro. Em 2012, a Devir Brasil incluiu uma cronologia do Universo da Tríade na segunda coletânea de Calife, Trilhas do Tempo, com introdução do escritor Clinton Davisson.

Arte de capa de Vagner Vargas.

Graças ao interesse do editor Douglas Quinta Reis (1954-2017) a Devir também reuniu os três romances previamente publicados, no primeiro volume “omnibus” da ficção científica brasileira, Trilogia Padrões de Contato (2008), com introdução de Marcello Simão Branco, outro admirador da obra de Calife, e capa e ilustrações internas de Vagner Vargas.

Em 2010 a Devir Brasil publicou o romance Angela entre dois Mundos, também com capa de Vargas, e quarto romance do Universo da Tríade. Ambientado antes da protagonista central do universo, Angela Duncan, ter se tornado imortal por graça da Tríade, envolve a busca da heroína por sua mãe, desaparecida no espaço, juntamente com a tripulação e os outros passageiros de uma luxuosa astronave de cruzeiro.

A ficção científica hard é aquela mais adepta de temas científico-tecnológicos, e embora ela tenha existido na década de 1970 e começo da de 1980 no Brasil — em obras de José Maria Doménech T., Gerald C. Izaguirre, Fausto Cunha e Fabrizio Pugno —, o Universo da Tríade de Calife se destaca — a ponto de Gerson Lodi-Ribeiro chamá-lo de “Pai da FC Hard Brasileira”.

Jornalista científico com longa passagem, na década de 1980, pelo Jornal do Brasil, Calife também foi autor do livro de não ficção Espaçonaves Tripuladas: Uma História da Conquista do Espaço (2000), escrito com Cláudio Oliveira Egalon e Reginaldo Miranda Júnior.

Antes que se falasse em empoderamento feminino e representatividade de gênero na ficção científica brasileira, a literatura de Jorge Luiz Calife no Universo da Tríade priorizava protagonistas femininas. Além de Angela Duncan, outras personagens importantes imortalizadas pela Tríade são Luciana Villares e Dafne Duncan, neta de Angela e dona de um destino trágico. Charmosas e distantes, juntas elas meio que expressam não apenas o poder e o mistério femininos, mas algo dos mistérios do próprio universo.

—Roberto Causo

 

Arte de capa de Vagner Vargas.

 

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Nostalgia Perry Rhodan: Nos Arquivos da Ediouro

Por solicitação do leitor Dioberto Souza, um dos grandes fãs brasileiros da série alemã de space opera Perry Rhodan, procurei e encontrei em um velho computador o texto “Nos Arquivos da Ediouro”, que, aparentemente, tem chamado a atenção de outros fãs brasileiros da série. Foi publicado em outubro de 2009 no Terra Magazine, a revista eletrônica criada pelo jornalista Bob Fernandes para o Portal Terra, e mais tarde no volume 800 da edição brasileira de Perry Rhodan. Não está mais disponível online, já que o Terra Magazine foi cancelado, mas encontra-se disponível na edição da SSPG Editora. Considerando que a edição da Ediouro foi a primeira edição da série Perry Rhodan no Brasil, e que a SSPG Editora anunciou recentemente que irá republicá-la a partir do seu primeiro ciclo (começando pelo número 1), imagino que seja apropriado trazer o artigo de volta.

 

Nostalgia Perry Rhodan

NOS ARQUIVOS DA EDIOURO

 

A edição da Ediouro seguia um padrão de capa da edição americana da Ace Books. Arte de capa de Gray Morrow.

Nos dias 9 e 10 de setembro de 2004 estive no Rio de Janeiro para o 2.º Simpósio “Ciência, Arte e Cidadania”, promovido pela Fundação Oswaldo Cruz e pelo Instituto Oswaldo Cruz. Fui convidado para o simpósio por Lucia La Rocque, da FioCruz-IOC, em meados de abril. Eu deveria dar a oficina “Ficção e Ciência: Extrapolação Científica e Prática de Escrita” na sexta-feira, dia 10, mas a organização do evento que ia de 9 a 12, presidida por Tania Araújo-Jorge, da FioCruz, franqueou-me a possibilidade de estar presente em outros dias, com estadia paga em um hotel da cidade. Hesitei, porque sempre penso no custo/benefício para quem está organizando um evento desses, mas aceitei a oferta de ir para lá no dia 9 pensando justamente em fazer uma visita aos arquivos da Ediouro, a editora que, como Tecnoprint/Edições de Ouro, primeiro publicou sistematicamente a série Perry Rhodan no Brasil.

Antes de confirmar com a FioCruz, falei de São Paulo com Lucina Ferreira Matos, a arquivista da Ediouro. Estando no Rio, recém-chegado ao hotel, liguei novamente para ela e combinamos que eu iria para as instalações da editora às 15h00. Peguei um táxi e fui para o bairro do Bonsucesso, que eu já conhecia de uma visita ao escritor Jorge Luiz Calife, anos antes.

As instalações da Ediouro localizam-se “desde sempre” na Rua Nova Jerusalém 245. Na portaria, fui recebido pelo estagiário-arquivista Carlos Eduardo Rodrigues da Silva, que me levou por cinco lances de escadas até os arquivos. Dentro do grande salão, fui conduzido até um espaço isolado por divisórias e mantido sob ar-condicionado. Tanto Carlos quanto Lucina foram atenciosos e tolerantes com a minha presença em seu local de trabalho. Expliquei que buscava especificamente por informações editoriais — dados sobre tiragem e circulação, normas contratuais e procedimentos de produção dos livros.

Como já haviam me informado previamente por telefone, eram poucas as chances de encontrar alguma coisa. A editora teve o seu quadro de funcionários mudado seguidamente ao longo dos anos, e ninguém do presente staff se lembra da época em que os livros foram publicados. Em uma rápida visita ao departamento editorial, confirmei esse estado de coisas por meio de uma conversa com Cristiane Marinho: pouco se sabe a respeito da editora nessa época que foi a “era de ouro” da literatura popular no Brasil, com a Tecnoprint sendo uma das casas dominantes, por publicar séries como Matt Helm, Shell Scott, Irving Le Roy, Sherlock Holmes, Perry Rhodan e Espaçonave Orion, entre outras. Também não consegui nenhum contato com os tradutores que trabalharam com Perry Rhodan: Richard Paul Neto, S. Pereira Magalhães e Ayres Carlos de Souza.

Perry Rhodan foi publicado pela Tecnoprint a partir de 1975, em duas versões de capa branca — a primeira com “Perry Rhodan” figurando nas letras desalinhadas que apareciam na edição original alemã pela Erich Pabel Verlag; a segunda com o nome do herói disposto em “Cinemascope”, como na edição norte-americana da Ace Books. Ambas tinham o selo “Infinitus” aparecendo na capa em uma elipse com o símbolo matemático ∞ (de infinito) ao fundo. Depois que a série foi descontinuada, surgiu uma coleção “capa preta”, ainda seguindo o padrão da Ace e em um formato discretamente maior (11,5 x 18 cm, contra 10,5 x 16 cm). Eventualmente, em 1984 e a partir do seu número 200, a série retorna sob o rótulo “Futurâmica Espacial” — “Futurâmica” era o nome de uma coleção de ficção científica assinada por vários autores, que a Tecnoprint manteve anos antes. Esta última edição vinha em dimensões que, segundo eu viria a descobrir examinando os arquivos, eram chamadas pela editora de formato “superbolso” (12 x 21 cm).

Carlos me levou até os corredores de estantes. Logo encontramos as caixas de papelão com os livros da série, tão numerosas que ocupavam dois corredores. Os números mais antigos tinham de duas a quatro caixas destinadas a cada um deles (os últimos números tinham apenas uma ou duas), contendo coisas como provas heliográficas, fotolitos, correções de impressão, originais e manuscritos de traduções. Mas não pude encontrar nenhum exemplar nem números de tiragens referentes às primeiras coleções “capa branca”. Salvo pela possibilidade remota de estarem em alguma outra parte dos arquivos, pelo jeito a editora não pôde, por alguma razão, salvar para a posteridade essa fase do seu envolvimento com Perry Rhodan. Um dos problemas, supõe-se, de se lidar com a edição de livros populares, considerados “perecíveis”.

Ficou claro para mim, conforme examinava o material, que para o fã da série os arquivos da Ediouro são simultaneamente céu e inferno — há muita informação que se pode analisar, mas os “buracos” inevitáveis são frustrantes.

Estudando um contrato da fase “Futurâmica Espacial”, soube que a Tecnoprint adquiria os direitos de publicação dos episódios da série em lotes de dez títulos, que ela se obrigava a lançar na ordem numérica. Dez exemplares de cada título publicado no Brasil eram enviados à editora alemã.

Examinando a primeira caixa com o material do N.º 1, Missão Stardust, encontrei a ficha de tradução, que ficou a cargo de Richard Paul Neto, com certeza o tradutor mais prolífico da série. Datada de 16 de julho de 1975, a ficha de tradução é uma pista para a altura desse ano em que a Tecnoprint começou a lançar Perry Rhodan no Brasil — provavelmente, no terceiro quadrimestre.

A página de rosto da tradução de Richard Paul Neto revela alguns dados que valem a pena comentar. No alto, escrito a lápis, aparece “Título da série: Perry Rhodan, o herdeiro do universo”, mas com “herdeiro” riscado a caneta e uma seta apontando para a palavra que deveria substituí-la: “pacificador.” Paul Neto estava traduzindo do original alemão, Unternehmen Stardust, e “herdeiro do universo” é uma expressão que aparecesse na edição original (der Erbe des Universums), enquanto que a edição norte-americana da Ace tem “peacelord of the universe” como subtítulo — “senhor da paz”, mais próximo do “pacificador do universo” que a Tecnoprint adotou. Na mesma página, encontramos os nomes dos capitães Reginald Bull e Clark G. Flipper (como no original) alterados a caneta para “Bell” e “Fletcher”, seguindo as mudanças realizadas pela edição da Ace, que parecia pautar as decisões da Tecnoprint. Fica claro que o editor brasileiro tinha em mente aproximar a edição brasileira daquela organizada pelo “Mr. Science Fiction” Forrest J. Ackerman para a Ace entre 1968 e 1977.

Uma última curiosidade a respeito das alterações do anônimo editor sobre a tradução de Paul Neto está no título: originalmente Richard Paul Neto chamou o episódio de “Programa Stardust”, mas o editor escreveu “missão” no alto, a caneta. Curiosamente, o título da edição americana foi Enterprise Stardust. Já A Abóboda Energética, o terceiro episódio da série, quase foi chamado pela Tecnoprint de “A Cúpula Dourada”…

Como os artistas gráficos da Tecnoprint faziam as capas dos livros de Perry Rhodan? Sabemos que davam preferência às ilustrações americanas assinadas por Gray Morrow (até onde o artista as produziu), mas que, como a Ace agrupava dois episódios em um único livro, os artistas da Tecnoprint frequentemente tinham que empregar as artes originais de Johnny Brück.

Um número substancial de publicações alemãs e americanas com as capas faltantes, descobertas nas caixas de arquivamento, sugere que não eram usados cromos ou filmes recebidos da Alemanha ou dos Estados Unidos, mas que essas capas eram aproveitadas diretamente. Encontramos uma evidência ainda mais clara — uma transparência em acetato, com a capa e a quarta capa do N.º 297, A 73.ª Era Glacial, com a “janela” em que se inseria a ilustração aplicada sobre a capa do original alemão da 4.ª edição, arrancada do Heftromane (o formato original alemão, de 15 x 22,5 cm e 64 páginas). O título do livro vem pintado sobre o acetato, sugerindo que essa montagem seria apenas uma indicação de como o artista gráfico deveria proceder. Mas os indícios apontam fortemente para essa prática de emprego direto das imagens originais, sem reduções nem uso de filmes ou cromos importados, de certo com o fim de economizar tempo e dinheiro, dentro de recursos técnicos menos sofisticados do que aqueles que a editora dispõe hoje. É claro, a prática permitia que se aproveitassem apenas um detalhe das artes originais, especialmente as alemãs.

Que dados sobre tiragem pude localizar? Nada a respeito das edições “capa branca”, mas aparentemente a “capa preta” tinha tiragens oscilando entre 3 e 6 mil exemplares, coincidindo com uma fase em que Perry Rhodan não tinha uma presença nas bancas.

Perry Rhodan é relançada nas bancas brasileira em 1984, com o episódio 200 sendo o primeiro da linha Futurâmica Espacial, em formato mais comprido, o “superbolso“. Arte de capa de Johnny Brück.

As informações mais claras e abundantes se referem à edição “Futurâmica Espacial”. A Rota para Andrômeda, o N.º 200, com o qual a editora relançou a série no princípio da década de 1980, teve uma tiragem de lançamento de 80 mil exemplares. Sem dúvida, o bastante para criar uma presença ostensiva nas bancas de todo o país. Já no N.º 203 ela havia caído para 50 mil. Dos N.ºs 205 a 298, foi de 40 mil — o que ainda garantiria uma boa presença nas bancas. Os N.ºs 209 e 210 tiveram 30 mil exemplares de tiragem, e do 211 ao 216, 20 mil. Por sua vez, a segunda edição da Futurâmica Espacial, que trazia a série toda desde o episódio 1, teve em 10 de outubro de 1984 uma tiragem de 15 mil exemplares para o Missão Stardust. Ainda no mesmo ano, em fins de dezembro, ela havia caído para 10 mil.

Analisando os números da tiragem da série, fica claro que Perry Rhodan na Futurâmica Espacial não foi o sucesso esperado pela editora, mesmo que consideremos os 80 mil exemplares iniciais como apenas uma estratégia de lançamento. Do 217 em diante, o número de livros impressos por título se estabilizou em 15 mil, ainda substancial para os padrões brasileiros, e foi assim até o N.º 398, quando a tiragem passou a ser de apenas 9 mil exemplares. A crise econômica da década de 1980 podem ter tido um papel importante nesse declínio, e nós sabemos que toda a publicação de ficção científica no Brasil foi duramente afetada nesse período. A Tecnoprint insistiu com os 9 mil exemplares, de qualquer modo, indo do 398 ao Perry Rhodan de número 536, o último a ser lançado por ela. Esse número 536 teve apenas 5.200 exemplares impressos, o que certamente o torna um item de colecionador.

A ressalva que se pode fazer com relação aos dados aqui expostos é que as informações sobre tiragem e circulação não estariam completas, tendo alguns nuances passados desapercebidos. Algumas fichas de produção informavam que a tiragem era “de banca”, mas isso nos permite supor que haveria uma outra tiragem — para livraria ou para a venda por assinatura, por exemplo? Difícil saber…

Uma “descoberta” que talvez toque os leitores da série, saudosos das edições da Tecnoprint, são os números que deixaram de serem lançados, após o 536. Como a editora adquiria os títulos da Erich Pabel Verlag em lotes de dez e tinha um esquema industrial de produção dos livros, quando a série foi cancelada muitos estavam traduzidos, alguns quase prontos para o lançamento. Aqui estão os onze títulos que encontrei, armazenados em caixas de papelão, para meditarmos sobre o que a editora carioca deixou passar:

 

A Bordo da  Marco Polo 537

Espalhando o Pânico 538

A Experiência dos Cynos 539

O Ataque dos Cynos 540

No Fascínio do Campo de Pânico 541

A Hora do Centauro 542

O Último Recurso da Marco Polo 543

Os Espiões de Gevarri 544

O Portador da Máscara 545

Homens entre Cynos 546

O Sol não Faz Sombra 547

 

Em um gesto de extremo carinho e consideração pelo leitor brasileiro fã de Perry Rhodan, a SSPG Editora traduziu e lançou no Brasil esses episódios, do 537 ao 547, em 2015 e 2016.

—Roberto Causo

 

Arte de capa de Johnny Brück.

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Leituras de Abril de 2020

Em abril, um mês de leituras particularmente interessantes, li dois livros de não ficção relacionados, de um modo ou de outro, com a astronáutica. E também ficção científica nacional e estrangeira, e alguns álbuns de quadrinhos antigos visualmente deslumbrantes.

 

Arte de capa de John Berkey.

Colonies in Space, de T. A. Heppenheimer. Nova York: Warner Books, 1980 [1978], 322 páginas. Prefácio de Ray Bradbury. Arte de capa de John Berkey. Fotos. PaperbackPensando em escrever uma história das Lições do Matador ambientada em uma estação espacial, recorri a este livro que trata dos projetos da década de 1970, de construção de habitats espaciais. Menos do que me trazer informações úteis especificamente para a história, me fez viajar a uma visão futurista retrô — isto é, um futuro que, infelizmente, a humanidade veio a desprezar.

O primeiro capítulo discute as dificuldades de se encontrar vida em outros mundos, a par com as dificuldades de estabelecer a vida humana em outros planetas do Sistema Solar e da galáxia. A solução explorada é construir colônias no espaço: habitats artificias, como os que aparecem no Universo da Tríade, de Jorge Luiz Calife. Na narrativa de Heppenheimer, a questão começa com o físico Gerard K. O’Neill perguntando a um grupo de pós-graduandos se a superfície de um planeta seria o melhor lugar para uma colônia fora da Terra. Daí surgiram ideias de cilindros rotacionais em certos pontos estáveis (os Lagrange) do sistema Terra-Lua. As ideias foram parar em um congresso, que, por sua vez, capturou a atenção da imprensa e da NASA. Novos projetos aperfeiçoaram as ideias originais, com eles surgindo planos de captar energia solar e enviá-la via emissões de microondas para receptores na Terra, fornecendo energia barata e ecologicamente responsável a bilhões de seres humanos, inclusive de países pobres, tudo devidamente calculado e com o rascunho da tecnologia necessária. O material para a construção das colônias também foi equacionado nos projetos: rastelados na Lua, colocados em órbita por um lançador e apanhado no espaço por uma espécie de luva de baseball gigante acoplada a uma nave espacial, e levado ao local de construção.

Após tratar da engenharia dos espaços internos, o livro mergulha na especulação típica da ficção científica, imaginando gerações nascidas nesse tipo de habitat espacial, e seu estilo de vida, economia, cultura e herança — milhões de anos no futuro, com as colônias funcionando como naves de gerações e chegado a outros sistemas planetários. A edição original do livro é de 1978, e sabemos que, 42 anos depois, nada disso veio a se realizar. A única coisa que temos no espaço orbital é a Estação Espacial Internacional, que é uma realização em si, mas muito aquém do que aqueles visionários haviam imaginado. Ao mesmo tempo, e mesmo reconhecendo o espírito positivista e pouco crítico do utopismo energético daqueles cientistas, ainda temos um mundo que sofre com as consequências ambientais da mesma política energética de então.

 

Arte de capa de Michael Whelan.

In Conquest Born, de C. S. Friedman. Nova York: DAW Books, 1.ª edição, 1987 [1986], 512 páginas. Arte de capa de Michael Whelan. Paperback. Este romance de space opera foi resgatado da substancial estante de literatura em inglês do agora fechado Sebo do Farah, no Centro Velho de São Paulo. Ficou muito tempo em uma caixa de papelão até que eu tornasse a ser cativado pela impressionante arte de capa do artista Michael Whelan. Claramente, sente-se nesta space opera exótica da autora C. S. Friedman a influência da série Duna, de Frank Herbert. Ela imagina duas sociedades em conflito, uma composta por aristocratas absolutos, escravagistas e perversos, além de geneticamente decadentes, os braxins; e a outra, os azeans, mais igualitária e dedicada à manipulação genética. Dois personagens representam as duas sociedades: o ambicioso Zatar, uma espécie de Júlio César que deseja unificar os braxins sob o seu poder; e Anzha lyu Mitethe, uma militar com poderes telepáticos, em ascensão na sua busca por vingança contra os braxins. Apesar de implacáveis e cruéis, cada um ao seu modo, eles são apresentados com simpatia e orbitam em torno um do outro em uma série de situações episódicas que forma um mosaico complexo, envolvendo de duelos com espadas a combates espaciais e atividades extraveiculares, sedução de adversários políticos, traições, intrigas palacianas e assassinato de amantes e de parentes. A fabulosa ilustração de Michael Whelan na capa captura com perfeição a dança entre os dois personagens obsessivos, e a natureza cinzenta da história.

Fica claro que Friedman pescou de Duna a estrutura feudalista que remete às monarquias imperiais dos séculos 18 e 19, e os elementos paranormais como fonte do grande exotismo do romance. Seu feminismo aflora aqui e ali em discussões da condição da mulher nas duas sociedades, especialmente na braxin. Mas, como costuma ocorrer nesse tipo de narrativa fundada em um pensamento darwinista social extrapolado para a sexualidade e a luta de classe sociais, qualquer discurso igualitário e progressista meio que se perde na enxurrada de violência e degradação. De fato, In Conquest Born, que tem uma sequência, The Wilding (2004), é exemplo exacerbado de um pensamento bem americano que naturaliza e advoga opressão e submissão em termos psicanalíticos e darwinistas. Vemos isso em Charles Moulton (o psicanalista William Moulton Marston), criador da Mulher-Maravilha, e no autor de alta fantasia John Norman (o professor de Filosofia John Frederick Lange Jr.), autor da Gorean Saga, que dramatiza situações de escravidão sexual e gerou uma espécie de “culto” S&M que ainda anda solto por aí.

 

A Verdadeira História da Ficção Científica: Do Preconceito à Conquista das Massas (The History of Science Fiction), de Adam Roberts. São Paulo: Seoman, 1.ª edição, 2018, 704 páginas. Apresentação de Silvio Alexandre. Prefácio de Braulio Tavares. Posfácio de Gilberto Schoereder. Tradução de Mário Molina. Brochura. Em dezembro de 2019, saiu nova edição da revista eletrônica Zanzalá, criada e editada por Alfredo Suppia. É a primeira revista acadêmica dedicada à FC e fantasia no Brasil. Este que é a sua terceira edição trouxe meu artigo “A Editor Seoman e a Ficção Científica”, no qual discuto os livros de não ficção dessa editora que são do interesse do pesquisador e fã de FC. São eles A Vida de Philip K. Dick: O Homem que Lembrava o Futuro (A Life of Philip K. Dick: The Man Who Remembered the Future; 2015), de Anthony Peake; Universo Alien: Se os Extraterrestre Existem… Cadê Eles? (Alien Universe; 2017), de Don Lincoln; A Verdadeira História da Ficção Científica: Do Preconceito à Conquista das Massas (The History of Science Fiction; 2018), de Adam Roberts; e O Guia Geek de Cinema: A História por Trás de 30 Filmes de Ficção Científica que Revolucionaram o Gênero (The Geek’s Guide to SF Cinema; 2019), de Ryan Lambie. Todos aí graças ao interesse do editor Adilson Silva Ramachandra. No afã de atender aos prazos da revista, pulei uns trechos (as notas, especialmente) deste importante livro de Adam Roberts, de modo que só completei a leitura mais tarde. Aqui, empresto alguns trechos do artigo em questão, e acrescento alguma coisa a título de apreciação final.

Roberts escreveu Science Fiction (2000), livro introdutório, parte da conhecida e popular série The New Critical Idiom. É bastante citado entre os jovens pesquisadores brasileiros de ficção científica. Nesse livro anterior, Roberts afirmou achar que a FC é moderna, surgida entre  1780 e 1830. Mas já no prefácio à primeira edição de A Verdadeira História da Ficção Científica, ele afirma:

“Sustento que as raízes do que hoje chamamos de ficção científica são encontradas nas viagens fantásticas da novela [sic] grega antiga” —Adam Roberts. A Verdadeira História da Ficção Científica, página 23.

A mudança de ponto de vista fica estabelecida, portanto, e o próprio autor explicita no prefácio que, com a escrita do livro, sua ignorância quanto à FC diminuiu e que as suas visões evoluíram. Ele nem emprega a expressão “proto-ficção científica” em seu livro, preferindo abandonar qualquer ambiguidade ou divergência do gênero que a expressão poderia indicar, para chamar diretamente de “ficção científica” as obras antigas que investiga.

A tese do novo livro com a nova perspectiva é a de que a FC como a conhecemos deveria muito a um ponto de clivagem até então insuspeito: a Reforma Protestante no século 16. Propõe que, entre a Antiguidade Clássica e o século 17, houve um hiato na escrita de viagens fantásticas, motivado pelas condições sócio-culturais da ordem feudal e do catolicismo. Para Roberts, o ressurgimento da FC vem junto com a reforma protestante. A teoria de Giordano Bruno da pluralidade dos mundos habitados, rechaçada pela Igreja, é um dos pilares desse entendimento da parte de Roberts, e que a imaginação da FC se atrela à cultura protestante ocidental. Imagino que uma primeira reação possível que esse tipo de argumento despertaria em nós seria a suspeita de que Roberts desejaria afirmar a superioridade da cultura protestante, e da colonização anglo-nórdica em detrimento da latina ou das culturas não-ocidentais, especialmente em uma época em que (ainda) se fala em “choque de civilizações” e se volta a falar em “guerra cultural”. Roberts evita o campo minado com argumentos sólidos que remetem mais à história das ideias e das mentalidades. Também foge de uma perspectiva chauvinista anglo. Mais que tudo, Roberts quer firmar uma nova visada dialética sobre a FC. Declara que, se fosse reduzir a tese do seu livro em poucas linhas, diria que

“a ficção científica é determinada com exatidão pela dialética entre os imaginários protestante e católico, que emergiu do particular contexto cultural-ideológico do século XVII. […] [O]s textos de FC são mediadores desses determinantes culturais com diferentes ênfases, algumas mais estritamente materialistas, outras mais místicas ou mágicas.” —Adam Roberts. A Verdadeira História da Ficção Científica, página 29.

Seguem-se capítulos altamente informativos sobre a evolução do gênero ao longo dos séculos, e com um muito bem-vindo viés internacional. De modo ainda mais bem-vindo, traz insights significativos sobre a FC da era dos romances científicos (século 19), da era pulp e sobre o gênero no cinema e nos quadrinhos. Há um esforço honesto em superar vícios críticos elitistas, o que põe o livro no topo das minhas considerações sobre como deve ser uma história da FC. Este é um livro que merece a atenção de todo pesquisador interessado na ficção científica, e de todo fã que deseje conhecer questões culturalmente relevantes por trás da história do gênero. Se me torcessem o braço para apontar um problema, eu diria que Roberts exagera na mecânica dialética quando se foca em minúcias, perdendo a força da afirmativa clara e aberta das suas posições.

 

Arte de capa de Teo Adorno.

Fanfic, de Braulio Tavares. São Paulo: Editora Patuá, Coleção Futuro Infinito, 2019, 168 páginas. Texto de orelha de Bandeira Sobrinho. Brochura. Braulio Tavares não poderia faltar em uma coleção de livros montada por Luiz Bras. Um dos melhores contistas da FC brasileira e do nosso conto fantástico em todos os tempos, ele entra com uma coletânea de histórias reunidas sobre uma chave de modéstia literária que enfatiza a intertextualidade e o jogo metalinguístico de reconhecimento de influências. 

Alguns contos foram vistos em outras reuniões dos seus textos admiráveis, mas o segundo olhar me revelou, por exemplo, a criatividade vibrante presente na exótica space opera “The Ghost in the Machine” [sic], cujas notas-glossário explicitam o jogo da influência e o diálogo específico mantido pela ficção científica. A riqueza da linguagem irônica remete à New Wave e é de fazer inveja a um Brian W. Aldiss ou a um Samuel R. Delany. Já “Finegão Zuêra”, que abre o livro, pode se ligar ao romance Finnegans Wake (1939) de James Joyce, pela brincadeira irônica com o título e pela densidade de neologismos e jogos de palavras na narrativa precipitada em parágrafo único. Em oposição, “O Homem que Perdeu seu Reflexo” é conto fantástico, curto, em tom memorialista. Urbano e violento, “Haxan” caberia bem em uma antologia tupinipunk. “Sete OVNIs” é episódico, composto de pequenos parágrafos-narrativas, um para cada personagem diferente, em locais diversos mundo afora. “Fenda no Espaçotempo” é anedótico e divertido, enquanto “Concerto Noturno” é um conto de horror. Também curto (muitos dos contos devem ter sido pescados da coluna diária que ele mantém no Jornal da Paraíba), “A Estética Eliminacionista” é um ensaio ficcional, e “Universos Tangenciais” é outra narrativa metaficcional, sobre o poder da leitura. “A Arca” é texto poético aliterativo que lembra, pelos parágrafos curtos, as narrativas de Ivan Carlos Regina, enquanto “A Demanda do Bosque Sombrio” retoma o tom mais introspectivo e de parágrafos e sentenças longas, num dos contos mais compridos e de maior expressividade lexical. “A Propósito da Difração Quântica nas Regiões Periféricas da Consciência” saiu na edição especial da revista Ficções: Revista de Contos, editada por Dorva Rezende em 2006, e é um dos contos de melhor equilíbrio entre enredo e estilo. “Um Só seu Filho” é conto fantástico irônico, com um fundo de ficção religiosa, e “A República do Recurso Infinito” dialoga com Kafka, na figuração fantástica da burocracia. “O Vale da Maldição” é uma divertida história de pós-holocausto nuclear, e “Gronk” é outro conto humorístico, sobre um intercâmbio não entre gente de países diferentes, mas de planetas diferentes. “Aquele de Nós” é narrado em primeira pessoa por uma entidade coletiva, e “O Polvo” é um conto de horror com final surpresa. Em “A Ilha ao Meio”, o narrador investiga uma ilha dividida “cirurgicamente” no meio — como em muitas das suas histórias, o estranho desemboca em alguma reação impulsiva que parece descarregar o estranhamento acumulado pelo componente descritivo da narrativa.

Duas histórias mais longas, e com um envolvimento maior, fecham o livro: “Frankenstadt” e “O Molusco e o Transatlântico”. O primeiro explora o conceito da realidade virtual e é outra história em primeira pessoa. O último, “O Molusco e o Transatlântico”, partilha dessa característica, em narrativa que trata de um psíquico sendo treinado em uma estação espacial, envolvido com o contato com alienígenas. Embora eu anseie por ver Braulio retornando com FC aos formatos da noveleta e do romance, aqui se tem uma amostra do vigor e da versatilidade deste estilista. Muito adequado para o espírito geral da Coleção Futuro Infinito.

 

Piquenique na Estrada, de Arkádi & Boris Strugátski. São Paulo: Editora Aleph, 2017 [1972], 370 páginas. Prefácio de Ursula K. Le Guin. Posfácio de Bóris Strugátski. Tradução de Tatiana Larkina. Capa dura. Ainda me lembro do renomado escritor João Silvério Trevisan me recomendando a leitura deste romance, em uma oficina literária coordenada por ele em 1988. Minha primeira tentativa de lê-lo, poucos anos depois em edição da Caminho Ficção Científica com o título de Stalker, foi frustrada. Desta vez eu apanhei a bela edição da Aleph e fui até o fim. O romance clássico dos irmãos Strugátski parte da premissa de que alienígenas incognoscíveis passam pela Terra a caminho de alguma outra destinação, deixando para trás restos hipertecnológicos na sua passagem. A analogia é com o lixo deixado para trás depois de um piquenique à beira da estrada. Ocorre que existe um grande interesse humano por esses restos, com os autores irmãos construindo consistentemente relações científicas e de mercado negro em torno dos artefatos encontrados nos arrabaldes da cidade britânica de Harmont. Estruturalmente, o romance também é relativamente engenhoso, com saltos temporais e a narrativa a partir de personagens-pontos de vista diferentes. Grosso modo, porém, a história segue o “stalker” Redrick Schuhart, primeiro um funcionário do instituto de pesquisas, especialista em entrar na zona proibida e encontrar e resgatar os artefatos. Para isso ele precisa contornar pontos perigosos em que as leis da física são alteradas por forças desconhecidas resultantes dos artefatos, frequentemente com resultados fatais. Muito depende da caracterização de Red, um cara duro mas amoroso, especialmente com a mulher e a filha — que nasceu com algum tipo de sequela causada pelas emissões dos artefatos. O personagem precisa representar ao mesmo tempo o que há de caloroso, valoroso e insensato no ser humano. Fora do instituto, Red se torna um requisitado contrabandista. A história de Red é intercalada pela canalhice de autoridades como a do representante industrial Richard Goonan, que comanda o mercado negro local e um dos bordéis mais concorridos. Red acumula um resíduo de emoções e ressentimentos ao longo dos anos, que alcança uma descarga genuinamente pungente no final.

O romance, que pode ser lido como uma crítica ao capitalismo e o seu aceno constante de um “Santo Graal” de fama e fortuna, foi proibido na União Soviética em razão da linguagem chula de Red e de outros personagens, num texto visto como “pouco edificante” pelos burocratas do regime. O fato, porém, é que o romance, a partir da sua premissa e do final, motiva um leque de interpretações: o alienígena como o inescrutável, o maravilhoso trivializado e objetificado pelo comércio e pela busca pelo poder, a incapacidade de canalizarmos os nossos impulsos utópicos para algo que de fato dignifique a condição humana. Na sua articulação de sentidos, é um romance que expressa, como poucos, a insensatez do empreendimento humano na era da ciência. O posfácio de Bóris, com os bastidores da escrita e da publicação do romance, é um documento que vale ser conhecido por si próprio.

 

The Way of the Explorer: An Apollo Astronaut’s Journey Through the Material and Mystical Worlds, do Dr. Edgar Mitchell & Dwight Williams. Nova York: G. P. Putnam’s Sons, 1996, 230 páginas. Hardcover. Muitos vão discordar, mas um dos grandes índices dessa insensatez é a divisão estrita e frequentemente belicosa entre ciência e religião. Esse é um dos pontos balizares deste livro do astronauta americano Edgar Mitchell (1930-2016), que foi à Lua como parte da missão Apollo 14, em 1971. Nos anos seguintes, eu (que nasci em 1965) me lembro de ter lido e visto programas de TV que mencionavam que ele teria feito experimentos de paranormalidade durante o voo espacial. O livro — que adquiri no curto período em que fui assinante do Book-of-the-Month Club — trata disso, é claro, mas os primeiros capítulos são um esboço biográfico de Mitchell. Há muita informação interessante sobre a sua atividade como astronauta.

A caminho da Lua — expressão que uso impunemente porque o sujeito de fato esteve lá e trabalhou no satélite natural da Terra por mais de quatro horas —, Mitchell conduziu um experimento solitário, realizado com o conhecimento de apenas quatro pessoas. Mentalizou um conjunto de números aleatórios combinados com os símbolos das cartas Zener, enquanto na Terra outros aguardavam para reproduzir as combinações “emitidas”. No retorno, ele repetiu o experimento. Mas o livro registra mais do que isso, centrando-se em uma epifania sentida por ele, também no voo de volta:

“Conforme olhei para além da própria Terra, para a magnificência da cena mais ampla, houve um espantoso reconhecimento de que a natureza do universo não era o que me havia sido ensinado. Meu entendimento da qualidade distinta e separada e da relativa independência de movimento daqueles corpos cósmicos foi estilhaçada. Houve uma irrupção de novo insight combinado com um sentimento de ubíqua harmonia — um senso de interconexão com os corpos celestiais que cercavam a nossa espaçonave.” —Dr. Edgar Mitchell. The Way of the Explorer, página 58.

Ele não define essa epifania como religiosa, e nos anos seguintes buscou explicá-la e aos resultados dos seus experimentos à luz de investigações científicas ou paracientíficas, que o levaram a fundar o Institute of Noetic Sciences. A partir de muitas pesquisas e leituras, além do contato com supostos paranormais como Uri Geller e Norbu Chen, ele convocou a mecânica quântica, o xamanismo e a tradição de misticismo oriental para propor o seu “Modelo Diádico da Realidade” (Dyadic Model), no qual as qualidades de consciência e intenção são propriedades partilhadas pelo cosmos, com o campo de ponto zero (da mecânica quântica) servindo como órgão de ressonância das consciências. Isso explicaria os fenômenos paranormais e a sua “não-localidade”.

“Matéria e consciência são uma díade inseparável, não um dualismo com dois reinos irreconciliáveis.” —Dr. Edgar Mitchell. The Way of the Explorer, página 160.

Para ele, consciência e experiência são informação, que, por sua vez, é uma forma de organização de energia. E energia pode ser transformada e assumir outras formas. Argumentos empregando funções quânticas para explicar a consciência têm se tornado mais comuns e consistentes, ao longo dos anos. Roger Penrose e Stuart Hameroff propuseram — na teoria da Redução Quântica Orquestrada — que estruturas celulares conhecidas como “microtúbulos” teriam um número de átomos pequeno o suficiente para amparar fenômenos quânticos, e que a água ordenada no interior das células impediria a interferência do ambiente sobre esses efeitos. A maioria dos cientistas que trabalha com teorias semelhantes não assumem o misticismo de Mitchell, e aqui cabe lembrar de algo que ele disse, nos primeiros capítulos do seu admirável livro, tão bem escrito e tão instigante:

“O público foi lançado ao espaço exterior pelas experiências dos astronautas. Através deles, caminharam em outros mundos.” —Dr. Edgar Mitchell. The Way of the Explorer, página 160.

O mundo das experiências humanas foi ampliado pelos astronautas, para fora da atmosfera terrestre, para a órbita e até a Lua. Mas a maioria dos astronautas, cosmonautas e taikonautas do mundo nos prestaram um desserviço, quando limitarem os seus testemunhos aos de garotos-propaganda das suas nacionalidades, e ao se restringirem a posturas de engenheiros e militares. O alargamento das nossas experiências exige poetas, filósofos, visionários — e místicos. Edgar Mitchell foi um astronauta que — não importa o que possamos pensar objetivamente das ideias que ele veio a desenvolver — ousou dar esse passo adiante na sua representação do olhar humano fora do nosso planeta.

 

Arte de capa de Frede Marés Tizzot.

Uma Cidade Flutuante (Une ville flottante), de Jules Verne. Curitiba: Arte & Letra Editora, Coleção EM Conserva, 2010 [1870], 208 páginas. Tradução de Beatriz Sidou. Arte de capa de Frede Marés Tizzot. Livro de Bolso em estojo de metal. Este é o último livro do lote que adquiri na mesa da Arte & Letra, na feira do livro da Universidade de São Paulo, em  29 de novembro de 2017. Outros foram A Sombra do Abutre, de Robert E Howard; A Fúria do Cão Negro, de Cesar Alcázar; Três Viajantes, de Thiago Tizzot; e Fábulas Ferais: Histórias dos Animais de Shangri-lá, Conforme Relatadas no Atlas Ageográfico dos Lugares Imaginários, de Ana Cristina Rodrigues.

Este romance curto é provavelmente um dos menos conhecidos de Jules Verne. Faz parte da Coleção EM Conserva, que inclui outros autores clássicos em domínio público: Liev Tolstói, com Nota Falsa; Émile Zola, com As Aventuras do Grande Sidoine e do Pequeno Médéric; Charles Dickens & Wilkie Collins, com A Viagem Preguiçosa de Dois Aprendizes Vazios; e Robert Louis Stevenson, com O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Sr. Hyde. Um material muito bom, com uma apresentação bastante original: além das ilustrações de capa de Frede Marés Tizzot, que imitam as ilustrações de miolo em xilogravura comuns no século 19, os livros vêm dentro de uma latinha de metal — daí o nome Coleção EM Conserva, o que pega bem com a ideia de se publicar clássicos.

Uma Cidade Flutuante é uma aventura de amor e violência ocorrida a bordo do maior navio do mundo, segundo a descrição, minuciosa, de Verne. O SS Great Eastern existiu de fato, e Verne discorre longamente sobre as dificuldades de se manter, operar e navegar o colosso de 211 metros de comprimento. O narrador é amigo de um militar inglês, o Capitão Fabian MacElwin, que, uma vez a bordo, descobre que o amor de sua vida, a jovem Ellen Hodges, também está na viagem, acompanhada do seu marido abusivo, Harry Drake. Vários acidentes trágicos acompanham a viagem, que parece amaldiçoada, e, por proximidade, alimentam de tensão palpável o duelo eminente entre MacElwin e Drake. É um texto que se lê com grande prazer, fluido e com pitadas de humor e sugestão do sobrenatural no denouement.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Juan Giménez.

Leo Roa Book 1: The True Tales of Leo Roa (Leo Roa tome 1: le veritable histoire de Leo Roa), Juan Giménez. Hollywood, CA: Humanoids Publishing, 2001 [1992], 60 páginas. Arte de capa de Juan Giménez. Álbum capa dura. Giménez, um dos meus artistas de quadrinhos favoritos em todos os tempos, desencarnou no dia 2 deste mês de abril. Foi uma das primeiras vítimas, no mundo nerd/geek, da COVID-19. Confesso que foi uma morte que me atingiu. Além de admirar muito o trabalho dele, tinha-o como uma influência. Este álbum gigante eu adquiri há alguns anos na antiga loja Terramédia — hoje Omniverse. Me deparei com ele durante uma das minhas faxinas da madrugada, e o peguei prontamente para ler.

Talvez o melhor trabalho dele tenha sido a arte da criação de Alejandro Jodorowsky, a Saga dos Metabarões (publicada aqui pela Devir Brasil), mas a série Leo Roa também é uma space opera exótica. A tônica, porém, vai para o cômico: Leo é um telejornalista medíocre que sonha em ser um grande herói aventureiro, admirado pelas garotas. Ao tropeçar em uma informação decisiva sobre a identidade do mais notório pirata da galáxia, descobre que a sua ambição heroica é mais complicada e perigosa do que nos seus sonhos. Com a ajuda do primo Meke, um roqueiro ainda mais atrapalhado do que ele, Leo tenta escapar dos seus perseguidores, atrás do mesmo segredo. Vai parar nas garras do dito cujo, o pirata Capitão Drake, um ciborgue megalomaníaco, e da sua ninfomaníaca primeira em comando, Crapula.

A narrativa rocambolesca inclui escapadas, monstros cheios de tentáculos e um outro muito ciumento de Crapula, uma batalha espacial e feitos sexuais do herói atrapalhado mas dotado de estranho sex-appeal. Há uma ironia específica aí, já que o sonho de interessar as garotas se realiza sem que ele banque o herói, mas como está sempre na correria para salvar a vida, aproveita pouco. Crapula, aliás, está no gancho fixado para o volume 2. Com uma arte e uma cor aquarelada mais luminosa e arejada do que na Saga dos Metabarões, Giménez exibe aqui o seu imenso talento para o desenho de estruturas e veículos, artefatos hipertecnológicos e vestimentas. Mesmo com a modulação voltada para o humor, ele fornece aquele sense of wonder tão apreciado, na ficção científica.

 

Arte de capa de Richard Corben.

Den 1: Neverwhere, de Richard Corben. Kansas City, MO: Fantagor Press, 1991 [1978], 112 páginas. Arte de capa de Richard Corben. Álbum. Outro dos tesouros encontrados na madrugada, Den era um velho conhecido das páginas brilhosas da revista Heavy Metal, e também do filme antologia de 1981. Naquela época, quando eu mal sabia ler em inglês, tive contato apenas com fragmentos deste volume 1 e dos posteriores. Ler o volume completo agora me permitiu desfrutar muito mais das referências intertextuais ao Edgar Rice Burroughs da série Barsoom, e ao H. P. Lovecraft dos Mitos de Cthulhu.

A história abre com um parrudão tipo Schwarzenegger aparecendo em uma planície rochosa, sem roupas e sem pelos, aos poucos se lembrando de ter sido um nerd franzino chamado David Norman, que descobriu, nas anotações do tio desaparecido, como construir uma espécie de máquina de transmigração da alma. Apanhado na máquina, ele ressurge no mundo de Neverwhere como Den. Aparentemente, como a história vai contando, Den também era a persona do seu tio, de modo que ele não herda apenas o corpanzil, mas uma história de conflitos nesse mundo. Mal pôs os pés lá, e se vê em uma intriga envolvendo uma perversa rainha e um degenerado imortal, pela posse de um objeto mágico, Loc-Nar, necessário para invocar o Grande Uhluhtc (Cthulhu ao contrário). No caminho, Den luta com todas as armas disponíveis, conhece inimigos e aliados valorosos mesmo entre os habitantes bestiais do lugar. A cada passo da sua jornada, encontra mulheres que seguem um mesmo padrão conhecido dos fãs de Corben: rechonchudas, peitudas e depiladas. Primeiro a moça indígena de adereço asteca da cabeça, e que tenta alimentar um dragão com ele; depois a Rainha que o assedia na cara dos seus súditos; e a escritora inglesa Katherine Wells, que também veio da Terra, mas do século 19. Den se apaixona por Kathy, que acaba nas mãos do vilânico imortal Ard. A arte de efeitos tridimensionais de Corben, sua iluminação e cor quase psicodélica e o dinamismo que ele dá aos personagens capturam o olhar e a imaginação. A diagramação dos balões e outros textos, porém, ficou meio perdida nessa edição da Fantagor. A nudez é impossível de ser desvinculada desta obra. Trabalhando com o material de Burroughs e de Lovecraft não nas décadas de 1920 e 30, mas na década de 1970 pós-revolução sexual, Corben “dessublima” o conteúdo sexual do romance planetário heroico e do horror cósmico, tornando-o explícito e celebrado.

—Roberto Causo

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Machado e Poe

Em outubro de 2020 completam-se três anos do desencarne do meu amigo, mentor e alvo de admiração sincera, Douglas Quinta Reis, sócio-fundador da Devir Brasil e um herói nacional do mundo nerd/geek. Desejando não deixar a data passar em branco, resgatei da gaveta virtual este que foi o último texto encomendado a mim por Douglas, introdução para uma pretendida edição bilíngue do famoso poema “O Corvo”, de Edgar Allan Poe, empregando a tradução de Machado de Assis. O texto foi entregue a ele em setembro de 2017, e um mês depois Douglas teria nos deixado. Fica a minha homenagem a ele, em reconhecimento a todas as oportunidades que ele deu a mim e a tantos outros artistas e escritores do Brasil.

—Roberto Causo

 

 

Machado de Assis em 1904. Foto: Wikimedia Commons.

Nascido em 21 de junho de 1839 no Rio de Janeiro, Joaquim Maria Machado de Assis conquistou a consagração literária ainda em vida, como romancista, poeta, contista e cronista popular, autor de livros que vendiam bem e chamavam a atenção da intelectualidade. Era influente entre seus pares no Brasil e em Portugal. Para Erico Verissimo, em Breve História da Literatura Brasileira (1945), aos 50 anos de idade Machado “era a figura mais distinguida e respeitada da cena literária brasileira”. Eleito para a Academia Brasileira de Letras, instituição que ele lutou para criar, em conjunto com outros intelectuais do Brasil em fins da década de 1890, foi escolhido o seu presidente perpétuo. É tido pela maioria dos críticos como o maior autor brasileiro do século 19 — se não de todos os tempos. No plano da literatura mundial, é comparado a Henry James pela investigação psicológica dos seus protagonistas.

A obra literária de Machado é geralmente dividida entre uma primeira fase na qual ele aderiu ao Movimento Romântico, e uma segunda, a partir da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), na qual se aproximou do Realismo. Mas alguns críticos entendem que muitos dos procedimentos literários adotados por ele e a abordagem de alguns de seus romances o tornam um precursor do Modernismo na literatura. Desse modo, o autor fluminense faria a ponte entre o século 19 e o 20, pavimentando a literatura brasileira no caminho da sua tendência dominante. José Luiz Passos, em Romance com Pessoas: A Imaginação em Machado de Assis (2007), aponta, por exemplo, Mário de Andrade e Graciliano Ramos como escritores impressionados pela contribuição de Machado ao romance brasileiro, marcada pela representação dos atritos “do indivíduo perante a comunidade”.

Desde cedo, essa foi a tônica da obra de Machado, a exploração das tensões entre o autoconhecimento do sujeito e as máscaras sociais que ele é forçado a usar ou que identifica nos outros como dissimulação moral. Também segundo Passos, logo com Ressurreição (1872) já se tem “um tema novo para o conjunto da narrativa brasileira: a justa visão do outro desmantelada pelo império do autoengano; um tema ousado para a pena de um estreante no romance”.

Passos observa igualmente que, em 1878, Machado publica uma resenha de O Primo Basílio, de Eça de Queirós, demandando maior imaginação moral do autor português — uma exigência em sintonia com o seu próprio projeto literário. Na mesma resenha há, porém, um dado problemático da visão de mundo do escritor brasileiro, quando ele iguala ciência, consciência moral e arte: “Quando a ciência nos disser: a ideia é verdadeira; a consciência nos segredar: a ideia é justa; a arte nos bradar: a ideia é bela — teremos tudo.”

Em “O Alienista” (1882), por exemplo, Machado trata da chegada à pequena cidade fluminense de Itaguaí, ainda no século 17, do alienista Simão Bacamarte. O seu frio propósito científico é descrito como um sacerdócio de dedicação absoluta, visão romântica da ciência que também aparece na ficção científica O Doutor Benignus (1875), de Augusto Emílio Zaluar. Mas essa novela de Machado é basicamente uma comédia de costumes, na qual Bacamarte recolhe os insanos locais, mas logo expande sua ação para recolher os dotados de pequenas manias e faltas morais próprias da época e do contexto — ostentação financeira, vaidade, superstição…

Depois de uma revolta popular dirigida contra ele e os políticos locais que o apoiavam, o alienista muda o seu foco e passa a recolher os virtuosos, vistos por ele como improváveis no mesmo contexto e portanto mentalmente desequilibrados. É o mesmo esquema alegórico de A Luneta Mágica (1869), de Joaquim Manuel de Macedo, em que um jovem, incapaz de lidar com a realidade da vida, alterna óculos mágicos que o fazem ver tudo com lentes metafóricas escuras, com outros que pintam o mundo com cores róseas. Em “O Alienista”, assim como nas explorações de ideias “científicas” e “filosóficas” bizarras que apresentou em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e em Quincas Borba (1891), a busca pelo conhecimento não possui autonomia, leva ao desequilíbrio da consciência (como a do próprio Bacamarte), e soa como intrusão impertinente sobre a moralidade instituída.

Verissimo, que chama Machado de “nosso enigma literário mais intrigante”, tende a explicar o pessimismo do mestre fluminense e sua obsessão literária com a dissimulação e com o olhar julgamentoso da coletividade sobre o sujeito, pela própria biografia do autor: “Machado de Assis tinha seus padecimentos secretos”, escreveu. “Sofria de terrível doença. Era epilético. Temia a possibilidade de ter um de seus ataques na rua ou em qualquer lugar público. Abominava a ideia de ser um ‘espetáculo’.”

*

A posição de Machado no compasso da história dos movimentos e ideias literárias é complicada pela sua grande e variada produção, e pela sua disposição de ocupar os espaços culturais disponíveis no seu tempo. Afinal, a ambição artística marca a trajetória de Machado desde a sua inserção, e o seu projeto literário é precoce: “Há grande ambição num escritor que, na sequência dos primeiros livros, tenta todos os [formatos] que a literatura do seu tempo lhe punha à disposição”, Passos observa; “inclusive um libreto de ópera que, aparentemente, não sobreviveu”.

“Aurora sem Dia”, por exemplo, é um conto que, mesmo escrito na fase romântica de Machado, faz crítica aos excessos do Romantismo e da conexão institucional entre literatura e política, na sua descrição de um pretensioso poeta tupiniquim. Juntamente com “A Chinela Turca” (1875), é talvez um conto antirromântico e parece dizer que em Machado as impropriedades intelectuais e artísticas se traduzem como impropriedades sociais. Passos isola “A Chinela Turca” como um marco na produção de Machado por expor “de modo evidente uma feição incomum à narrativa brasileira da época”: “o contraste entre os mundos interior e exterior, com a primazia do primeiro sobre o segundo”. Nele, um jovem é forçado a ler uma peça de teatro, que ele rejeita por conter os clichês e artifícios do Romantismo. O autor da peça, desagradado com sua reação, parte deixando-o sozinho. De imediato, porém, o protagonista é sequestrado e levado à força literalmente para dentro de um enredo de capa e espada. Soa profundamente irônico — exceto pelo fato de que era tudo um sonho (outro clichê romântico) —, e a mensagem do conto acaba alertando contra certa contaminação cognitiva ou moral, que aquela literatura ruim seria capaz de promover.

Passos, que chama a escrita de Machado de “realismo romântico de feição psicológica”, também observa que “uma obra vasta como a de Machado é uma região delicada, sujeita aos influxos da mirada anacrônica”. O lugar do fantástico — mais próximo do Romantismo do que do Realismo — nessa obra não é assunto de que Passos se ocupe, mas também ele pode ser explicado pela vastidão da atividade literária de Machado. “As Academias de Sião”, por exemplo, é um conto de fantasia ambientado em contexto orientalista muito próprio do Romantismo, e que propõe a troca temporária de corpos entre o monarca do antigo reino da Tailândia e uma de suas concubinas. Ela, como dirigente, revela-se mais implacável e eficaz do que ele. Além disso, ao mesmo tempo que troça das academias científicas e filosóficas, o conto permite a Machado explorar por um outro ângulo as suas mulheres calculistas e de personalidade forte.

Outro exemplo é a ficção científica “O Imortal” (1882), sobre um português chamado Rui de Leão que, nas guerras contra holandeses no Brasil, acaba convalescendo de um ferimento numa aldeia indígena, onde, depois de ser adotado pelo pajé local, bebe uma poção que lhe traz a imortalidade. Esse é um tema que a ficção científica herdou do romance gótico — sublinhado no conto pela narrativa do filho do protagonista, numa reunião com amigos em noite chuvosa… Herdou concomitantemente a posição de que a imortalidade física seria, no fim das contas, um fardo e um tormento. Essa é a posição de Machado, que, depois de traçar as várias aventuras do herói ao longo dos séculos e no Brasil e na Europa, encontra a solução para o tédio vivido por ele. Para João Adolfo Hansen, da Universidade de São Paulo, o traçado do enredo de Machado incorpora clichês do Romantismo, de modo que o seu enfileiramento na narrativa formaria mais uma crítica irônica dos excessos daquele movimento.

 

Edgar Allan Poe, circa 1847. Daguerreótipo de autoria desconhecida, restaurado por Yann Forget e Adam Cuerden.

 

Ao contrário de Machado de Assis, o escritor americano Edgar Allan Poe, nascido em 19 de janeiro de 1809 em Boston, só alcançou um largo reconhecimento postumamente. Sua vida foi difícil e incluiu a orfandade, o abandono da universidade e da academia militar para perseguir a atividade literária. Encontrou nesse esforço a penúria e a viuvez, e sua morte foi prematura — em 1849, cercada de controvérsias. A versão de que ele morreu bêbado na sarjeta é contestada pela hipótese de que teria sido drogado e arrastado por cabos-eleitorais de distrito em distrito, sendo forçado a votar várias vezes no mesmo político até ser jogado em algum canto, numa prática que se afirma ter sido comum nos Estados Unidos da época. Hoje, o consenso parece ser de que a memória de Poe foi vítima de um crítico literário malicioso chamado Rufus Wilmot Griswold, que teria fabricado a sua fama de “maldito” e “degenerado” — por ressentimento pessoal contra Poe, ou por oportunismo comercial, já que Griswold se tornou executor do legado de Poe após sua morte, e talvez achasse que essa “aura” venderia mais livros. O próprio Poe escreveu farsas durante a vida, na busca pelo sustento.

Assim como Machado de Assis, Poe escreveu crítica literária, sendo reconhecido com um crítico especialmente arguto e filosófico. Mas foi como poeta e contista que ele alcançou a fama maior. Considerado um dos grandes nomes do Romantismo americano, buscou com frequência o macabro e o insólito — daí a frequente confusão entre sua biografia e o conteúdo sombrio de suas narrativas. Ainda em vida, teve muitos admiradores, e sua influência sobre autores americanos de peso que vieram depois dele, como Ambrose Bierce e H. P. Lovecraft, é clara e significativa. Por meio desses e de outros nomes, Poe tornou-se central para certos ramos da ficção norte-americana nos séculos 19, 20 e 21. É especialmente instigante o fato de ele ter se tornado uma poderosa influência pioneira sobre alguns dos gêneros populares mais potentes a surgirem no século 19: a ficção de crime, a ficção científica e a de horror.

Apesar disso, observa-se que a reputação duradoura de Poe é na verdade devedora da sua recepção pelos intelectuais franceses da segunda metade do século 19. Isabelle Meunier foi uma das primeiras tradutoras, para o francês, dos seus contos. Mas logo ele chama a atenção dos mestres simbolistas Charles Baudellaire e Stéphane Mallarmé, sendo que, segundo Sandra M. Stroparo, que estudou a correspondência de Mallarmé, este teve mais tempo e energia para promover o trabalho do americano. Charles Kieffer aponta que “os simbolistas, jovens poetas que se reuniam no modesto apartamento de Mallarmé, na Rue de Rome, elegeram o autor de ‘O Corvo’ e ‘A Queda da Casa de Usher’ como seu profeta”.

Mallarmé e Baudelaire também traduziram obras de Poe para o francês, estendendo sua influência a vários países europeus e latino-americanos — inclusive o Brasil, que em fins do século 19 estava sob a influência cultural francesa. Baudelaire é responsável, por exemplo, pela coletânea de contos Histoires extraordinaires (1856), no Brasil traduzida do francês por ninguém menos que Clarice Lispector. Jules Verne foi um autor francês influenciado por Poe nas suas “viagens extraordinárias” — narrativas muito didáticas de aventura, precursoras da ficção científica.

Curiosamente, Poe também teve impacto sobre a música erudita francesa: Claude Debussy começou uma ópera baseada no conto “The Fall of the House of Usher” (1893), iniciada em 1908, “La chute de la maison Usher”, enquanto André Caplet escreveu a “Conte fantastique” (1924) inspirada no conto clássico do horror “A Máscara da Morte Rubra” (“Masque of the Red Death”; 1842), e Florent Schmitt compôs “Le palais hanté, Op. 49” (1900-1904), poema sinfônico baseado no poema “O Palácio Assombrado” (“The Haunted Palace”; 1839), de Poe. Na segunda metade do século 19, o inglês John Henry Ingram opõe a sua própria biografia de Poe, equilibrada e cuidadosa, às difamações de Griswold. É bom lembrar que no Reino Unido a influência de Poe se fez sentir sobre o escocês Arthur Conan Doyle, cujo detetive Sherlock Holmes foi inspirado no proto investigador criminalista de Poe, Auguste Dupin. Sobre Poe, Doyle declarou: “Suas histórias são um modelo para todas as ocasiões.”

 

 

Ilustração de John Tenniel (1820–1914) do poema “The Raven”, de Edgar Allan Poe.

 

O brasileiro Machado de Assis se encontra com o americano Edgar Allan Poe, da maneira mais célebre, com a tradução que Machado fez do poema canônico de Poe, “O Corvo” (“The Raven”; 1845). Publicada na Gazeta de Notícias em 1883, sua tradução é uma das mais famosas em língua portuguesa. Aparentemente, foi submetida pelo próprio Machado, e não encomendada pelo periódico. Para a maioria dos especialistas, Machado teria tomado conhecimento do trabalho de Poe por via das traduções francesas de Baudelaire.

“The Raven” é um poema rico em figuras sonoras, de ritmo marcado, aliterações reiteradas e rimas fechadas finais no original em inglês, rimas internas entrelaçando versos e sentidos, e em tudo compondo uma atmosfera de pesadelo: o eu lírico pertence a um homem entre o sono e a vigília que reage a pancadas que houve em sua porta. Ele inicialmente se recorda de sua falecida amada Lenore, e descobre, além da sua porta, um corvo que vem pousar sobre um busto de pedra, e que passa a repetir uma única elocução: “Nevermore” (“nunca mais”); ou “nada mais”, alternado por “nunca mais”, na tradução de Machado. Imaginando o pássaro como arauto do além-túmulo (os litorais de Plutão, o deus da morte), ele o interroga sobre Lenore e recebe sempre a mesma terrível resposta. O fato do corvo estar pousado sobre o busto de Palas, a deusa da sabedoria, representa um outro nível de ironia: o conhecimento humano não tem acesso àquele território. O poema expressa, portanto, uma indagação que Poe fez com uma das suas farsas, “Os Fatos no Caso de Monsieur Valdemar” (“The Facts in the Case of M. Valdemar”; 1845), publicada no mesmo ano — apresentando um outro resultado e provocando grande estardalhaço entre o público leitor americano e britânico —, e outras narrativas sombrias ao longo de sua carreira.

O crítico Cláudio Weber Abramo observa: “é possível afirmar-se, sem sombra de dúvida, que a tradução do escritor brasileiro é muito mais da versão francesa de Baudelaire do que do poema original.” As diferenças são muitas, e incluem a transformação das estrofes de seis versos, de Poe, em estrofes de dez versos, além da redução das reiterações que dão a cadência peculiar do poema original. Com rimas finais mais abertas e menor ocorrência de rimas internas, o poema assume um tom mais declamativo. Os professores Adriano Mafra e Munique Helena Schrull entendem que a versão de Machado busca adaptar o poema “intencionalmente a um novo contexto, buscando bases sólidas para a formação de uma identidade literária nacional”, adotando a recriação, de modo que “traz à tona novos elementos, incorporando em sua tradução as influências de sua formação literária”.

Os versos finais na versão de Machado implicam que a alma do personagem que interroga o corvo, sem consolo algum, é prisioneiro como em uma gaiola ou cadeia; enquanto em Poe a sombra do pássaro envolve a alma afundada pela depressão, que dali não conseguirá elevar-se ou alçar voo. Cada um a seu modo, costura uma inquietante fusão de imagens de opressão e voos abortados. Repetindo apenas uma única fala de desesperança, o corvo torna-se, nos dois casos com grande maestria, uma presença fixa e eterna na consciência do eu lírico, símbolo de perda e luto perene.

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A presença de Poe na obra de Machado de Assis não se limita à sua tradução de “The Raven”. É interessante, porém, que José Luiz Passos, por exemplo, aponte que Machado teria bebido extensivamente de William Shakespeare, e composto cuidadosamente suas influências a partir não apenas do Bardo, mas de Victor Hugo e Ivan Turgueniev. A influência de Shakespeare, especialmente, parece óbvia a quem conhece seus contos e romances, mas Passos foi além e fez um levantamento das ocorrências de Shakespeare, menções e citações, na obra toda de Machado — mais de 200, com ocorrências majoritárias de peças como Otelo e Hamlet.

É interessante notar, a propósito da inclusão de Poe como influência sobre Machado, que sua coletânea Várias Histórias (1896) traz diversas narrativas que se aproximam da aura dos contos do americano — que, inclusive, é citado na nota introdutória: “[meus contos não] são feitos daquela matéria, nem daquele estilo que dão aos [contos] de Mérimée o caráter de obras-primas, e colocam os de Poe entre os primeiros escritores da América.”

Não obstante a modéstia de Machado, há no seu livro histórias famosas, marcantes para a produção nacional de ficção curta, como “A Cartomante” (1884), que pode ser lido como conto fantástico (a cartomante sabia ou não que o herói seria vítima de vingança passional?), e que já foi adaptado para o cinema. “Entre Santos” é outra história que bordeja o fantástico, com um padre que, diz o narrador, sonha que ouve os santos conversando na igreja, sobre um fiel de quem o padre dificilmente saberia tanto. Outros famosos: “Uns Braços” (1885) e “A Causa Secreta” (1885) — este último uma história macabra digna de Poe, sobre um sádico estudante de medicina e sua morbidez que, no final da história, volta-se para o cadáver da esposa. “Viver!” assume a forma de diálogo entre Prometeu e o Judeu Errante (um imortal como Rui de Leão, e presente na literatura gótica) — um formato que Poe utilizou antes em textos como “A Palestra de Eiros e Charmion” (“The Conversation of Eiros and Charmion”; 1839) e “Colóquio entre Monos e Una” (“The Colloquy of Monos and Una”; 1841). É interessante notar ainda que a maior parte das histórias de Machado neste livro são posteriores à sua tradução de “The Raven”; i.e., possivelmente posteriores ao seu contato com a obra do americano.

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O diálogo entre Machado e Poe não passou despercebido a outros pesquisadores. No ensaio “Machado de Assis e Edgar Allan Poe: Dois Escritores da Modernidade” (2012), a Prof.ª Greyce Pinto Bellin compara os contos “O Homem das Multidões” (“The Man of the Crowd; 1840), de Poe, e “Só!” (1885), de Machado. “Não podemos deixar de ignorar o fato de que, para Machado, [Poe] foi uma inegável influência no que diz respeito ao uso do conto como forma de expressão artística”, Bellin escreveu, no ensaio que ressalta a atenção dada pelos dois escritores, às transformações sociais que dão origem à modernidade. Ana Maria Lisboa de Mello, da PUC do Rio de Janeiro, já havia coberto território idêntico no artigo “Edgar Allan Poe e Machado de Assis: Estranhamento e Sedução da Cidade” (2009).

Já a Prof.ª Fabiana Gonçalves, no ensaio “Sadismo ou Demonismo na Poética de Machado de Assis”, escreve: “Um dos escritores preferidos de Machado de Assis, Edgar Allan Poe, evidenciou no conto ‘O Gato Preto’ [‘The Black Cat’; 1843] que a violência não atinge apenas os humanos”, comparando essa formulação com o contexto de um conto de Machado já mencionado aqui: “A tortura infligida a um gato na narrativa de Poe assemelha-se muito com o martírio aplicado por Fortunato ao rato em ‘A Causa Secreta’.” E o diálogo intertextual entre o brasileiro e o americano é explorado pela Prof.ª Renata Philippov, em “Edgar Allan Poe e Machado de Assis: Intertextualidade e Identidade” (2011).

Entender a influência de Poe sobre Machado Assis, incluindo-a junto à de outros grandes nomes como Shakespeare e Hugo, só faz alargar o alcance e a profundidade da obra do mestre brasileiro.

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Leituras de Março de 2020

Num certo sentido, a maior parte das leituras de março foi continuidade de séries e de obras anteriores. Prepare-se para vários hiperlinks

 

Arte de capa de Stephen Youll.

The Wolf Man: Hunter’s Moon, de Michael Jan Friedman. Milwaukie, OR: Dark Horse Books, 1.ª edição, 2007, 238 páginas. Arte de capa de Stephen Youll. PaperbackNeste mês, achei uma brecha para retomar o trabalho em um romance de dark fantasy, espécie de sequência de Mistério de Deus (2017), e li para me inspirar este romance que retrabalha um dos monstros clássicos do horror: o lobisomem. De fato, o romance de Friedman faz parte de uma linha da Dark Horse que recupera os monstros da Universal — eu já havia, inclusive, lido há dois anos um outro livro da série: Creature from the Black Lagoon: Time’s Black Lagoon, de Paul Di Filippo. Este é um tipo de horror que a Universal promoveu e que penetrou na cultura como um dos fundamentos do gênero, centrado na figura do monstro. Sua leitura me remeteu muito à minha infância, aquele clima dos filmes vistos na TV tarde da noite, e que a arte hiper-realista de Stephen Youll capturou completamente.

O lobisomem aqui se inspira no filme O Lobisomem (Wolf Man; 1941), dirigido por George Waggner com roteiro original do autor de FC Curt Siodmak, e Lon Chaney Jr. como o tal. Há em comum entre o filme e o livro a ambientação britânica. Embora a história abra com um prólogo ambientado na Idade Média e envolvendo o viking que originou a maldição do lobisomem, e a história do filme está embutida no background do herói, Lawrence (Larry, no filme) Talbot — que entra em cena como em um filme de ação, fugindo num carro metralhado por caçadores de lobisomem, com direito a projéteis de prata e tudo. Com ele no carro estão membros de uma “sociedade protetora de lobisomens”; quer dizer, uma sociedade secreta da cavaleiros que promete a ele refúgio e a redenção da maldição que o aflige. Em uma propriedade rural antiga, ele conhece o líder da ordem de cavaleiros, e uma garota jovem e misteriosa por quem se encanta. Quando o lugar é atacado, os dois fogem para uma cidadezinha em que uma arapuca já está armada para Talbot — cujo papel não é o de um ser especial a ser protegido, mas o de vítima de um sacrifício encenado com os efeitos visuais de um Steven Spielberg. Me pareceu que a traição da garota era previsível, mas a história prende a atenção e Friedman a conduz com segurança e textura suficientes. Os toques de filme de ação, a paranoia de fundo e o cenário mais diversificado são as atualizações propostas por ele para a narrativa clássica de monstro, aqui em um livro que confirma o charme dessa linha da Dark Horse.

O Lobisomem (The Wolf Man), de 1941.

 

 

Mass Effect: Revelation, de Drew Karpyshyn. Nova York: Del Rey, 2007, 324 páginas. PaperbackEste é o segundo romance original atrelado ao videogame Mass Effect que eu li. O primeiro foi Mass Effect: Ascension, do mesmo Drew Karpyshyn, lido em 2015. Ambos, parte de uma trinca de romances apresentados como “prequência” do jogo, foram traduzidos e publicados no Brasil. Resenhas de FC original americana publicadas na revista Locus atestam a influência desse game na FC atual, talvez no Brasil também (como, possivelmente, na série As Filhas de Cassiopeia, criada por Hugo Vera).

Este é portanto outro romance original atrelado (tie-in) escrito com competência e efetividade. Ao contrário de Ascension, que lida com experimentos secretos paranormais para dar uma vantagem ao grupo chauvinista humano comandado pelo “Elusive Man”, um dos vilões do game, Revelation é uma aventura com menos de thriller e mais de space opera militar: acompanha o oficial David Anderson em uma missão secreta. Após explorar as ruínas de um laboratório palco de um massacre promovido pelo grupo mercenário Blue Suns, Anderson acaba, assim como no posterior Legado Bourne, um filme de 2012, fazendo par com uma cientista sobrevivente daquela ação criminosa, a também oficial militar Kahlee Sanders, filha de uma figura importante na Aliança, o Almirante Jon Grisson. Noutra linha narrativa, o alienígena turiano Saren, investigador do corpo de elite Spectre, se aproxima dos dois como uma ameaça concreta — quase como um psicopata, ele recorre ao assassinato e à tortura como ferramentas de investigação. Estar perto demais de Saren (que aparece na capa) é um perigo…

Há uma boa dinâmica entre Anderson e Sanders, com os dois se completando e funcionando bem como equipe. O romantismo do herói faz o contraponto ao cinismo gritante tanto de Saren quanto dos mercenários. Karpyshyn é um dos escritores principais do jogo, e faz um bom trabalho de introdução ao universo de Mass Effect. O que se tem como motivador do massacre é um big dumb object, uma nave espacial de uma outra era da galáxia, com recursos bélicos singulares e que deve ter algum papel importante no game.

 

Still Dead, de Hart D. Fisher. Granada Hills, CA: Boneyard Press, 1.ª edição, julho de 1998, 142 páginas. Ilustrado. Trade paperbackEm outubro de 2017, comentei o doloroso livro de poemas de Fisher, Poems for the Dead, de 1997. Este Still Dead surgiu logo depois e prossegue com as torturadas ruminações deste quadrinista americano cuja namorada, e pelo jeito amor de sua vida, foi assassinada por um serial killer.

Muitos dos poemas são contemplações ásperas de uma vida sem sentido, extrapoladas para a vida americana em geral. O apelo do suicídio, do sexo desesperado e de arroubos de violência fazem parte dos seus poemas cortantes, sem concessões e que frequentemente produzem imagens do horror como gênero literário e midiático. Todo o projeto gráfico, com cara de fanzine, abraça a esqualidez existencial e a marginalidade social que os poemas expressam. As dezenas de ilustrações, algumas pelo famoso David Mack (da HQ Kabuki), ampliam ainda mais essa vinculação. (Uma ilustração em particular de Daerick Gross, com conteúdo pornográfico, é particularmente incômoda.) Still Dead não é um livro fácil de ler nem de refletir a respeito. Mas realiza uma figuração literária única, do drama de uma personalidade do mundo da ficção de horror que incorpora, em sua biografia, estilemas do próprio gênero em uma imbricação que assusta e perturba. O horror está mais enraizado na realidade do que às vezes gostamos de admitir, e pode produzir uma sublimação estranha, na qual suas fontes sinistras e muito reais retêm uma vida própria.

 

Arte de capa de Teo Adorno.

Vinte & Um, de Nelson de Oliveira. São Paulo: Editora Patuá, 2020, 168 páginas. Introdução de Moacyr Scliar. Capa e ilustrações de Teo Adorno. Brochura. Assumindo o pseudônimo de “Luiz Bras”, Nelson de Oliveira — um autor da Geração 90 consagrado no mainstream brasileiro com prêmios de prestígio aqui e no exterior — tem sido, por cerca de dez anos, um dos principais nomes da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira. Além de publicar Luiz Bras com constância, a Editora Patuá tem republicado títulos significativos assinados por Nelson de Oliveira, incluindo o admirável romance fantástico Subsolo Infinito, em edição de 2016, com a obra redefinida por Fábio Fernandes como um romance New Weird. Elogiado por Moacyr Scliar (que escreve a introdução), Bernardo Ajzemberg, José Paulo Paes, José Castello e Leo Gilson Ribeiro, originalmente reunindo 13 contos, seu livro Treze (1999) reaparece como uma edição ampliada com mais oito narrativas — daí o novo título de Vinte & Um.

Em Oliveira/Bras, o mainstream literário brasileiro se casa com a ficção científica, uma das questões litrárias centrais da Terceira Onda. Esse casamento já foi visto antes, no campo da ficção curta e com outras modulações, nas obras de Rubens Teixeira Scavone, André Carneiro, Braulio Tavares e outros, e programaticamente, no Ciclo de Utopias e Distopias (1972-1982). A modulação que ele dá é, porém, muito singular, e um livro como Vinte & Um fornece a oportunidade de enxergarmos melhor o antes e o depois, e os pontos de transição. Bras é um dos autores que eu mais tenho acompanhado aqui, comentando a noveleta Anacrônicos (2017), o livro de contos A Última Árvore (2017), e a novela Não Chore (2016).

A primeira história do livro (e do anterior Treze) é “Dies Irae”, que firma sua ironia de saída, ao empregar a expressão teológica do título numa história absurdista sobre a vida brutal de pessoas em situação de rua. O tema do sem-teto foi central para a Geração 90 naquela década, e o próprio autor o empregou em Subsolo Infinito. De parágrafo único, “Fábula Rasa” empresta toques narrativos dos contos de fadas, enquanto “Doce Dilema Azul de Bolinhas Amarelas” é uma fabulation (o texto ficcional que acena ser contrário ao modo realista) que explicita a arbitrariedade literária de se dar nome a personagens ao nomear os personagens do texto por meio de descrições recorrentes (como Luiz Bras, ele fez algo semelhante com o elogiado “Déjà-vu”, de 2009). “Ela Não Vê no que os seus Olhos Creem” e “Gorducha” são minicontos em que um ponto da narrativa pega a deixa de uma expressão ou sonoridade vista antes, para conduzir a situações de surpresa e desconforto, com o desfecho re-significando o sentido geral. O segundo também é de parágrafo único, e uma única sentença. O mesmo para “Mesdra”, que vem a seguir. “Duas Quedas” é dividido em dois segmentos, o primeiro narrado na primeira pessoa do plural, e o segundo com um narrador de sexualidade oscilante — assim como a personagem mais inquietante de Subsolo Infinito. “Homenagem a Troia” tem parágrafos mas nenhuma vírgula, e se desenrola em contradições propositais que firmam uma incerteza constante. Mais longo, “Monstro” personaliza um mise-en-scène burocrático, enquanto “Toleima?”, também mais longo, ecoa em linguagem roseana a questão da ambiguidade sexual do desejo do narrador, visto em Grande Sertão: Veredas. Em “Zede, o Gado”, último conto de “Treze”, o principal efeito é uma dicção fanhosa que exige uma leitura diferenciada para se assimilar o sentido. “Sete”, a segunda seção do livro, abre com “Chapeuzinho Pergunta ao Chapeleiro”. Muito curto, brinca com o subtexto sexual dos contos infantis, enquanto “Crime e Castigo” esvazia a competência investigativa necessária ao protagonista da ficção de detetive — remetendo, ao mesmo tempo, a alguns dos maiores embusteiros da literatura: Dom Quixote e Simão Bacamarte. “Una Fábula Colorida” faz com o portunhol algo semelhante ao efeito de “Zede, o Gado”. Um dos textos mais longos do livro, “Gritos Ocultos” traz o contraste entre o diálogo (sem marcação) de um casal que se reencontra, com pensamentos entre parênteses que expressam as suas ansiedades e contrariedades, e estendem a história. Último texto de “Sete”, “Curva Dramática” também apela para os parênteses para ampliar a narrativa de parágrafo único. Longo, “Pintando o Sete” explora a paisagem de São Paulo e tem um narrador que avalia e descreve as sete amantes que ele manobra uma por dia durante a semana, com um imprevisto problema de multiplicação no final. “Reconhecimento de Padrões” tem imagens de ficção científica e algumas das preocupações de Luiz Bras quanto ao estado da vida no século 21. Fechando o livro, “Fenômeno Fenomenal” inclui imagens, o que reforça a vinculação do autor com a literatura pós-modernista. Texto (que em um ponto evoca situações do conto tupinipunk de Braulio Tavares “Jogo Perigoso”) e imagens remetem à música rock como fornecedora da identidade do problemático século 20. Em tudo, Vinte & Um sublinha a inventividade e o experimentalismo que está no centro da escrita de Nelson de Oliveira/Luiz Bras.

—Roberto Causo

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