Tag Arquivo para Clube de Leitores de Ficção Científica

Leituras de Julho de 2020

Em julho, prossigo com minha investigação da space opera, relendo romances de Jack Vance, mas também examinando a antologia brasileira Space Opera II, de Hugo Vera & Larissa Caruso.

 

Arte de capa de Raul Rangel e Milton Silva.

Star King: A Saga dos Príncipes-Demônios (Star King), de Jack Vance. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1980 [1964], 208 páginas. Tradução de Marina Leão Teixeira Viriato de Medeiros. Arte de capa de Raul Rangel e Milton Silva. Brochura. Cá estou, relendo mais uma space opera das antigas, publicada no Brasil em 1980 e parte de uma série que ainda chama a atenção, misturando FC e ficção de crime pela verve singular de Jack Vance (que escreveu os dois gêneros). De uma série de cinco romances publicados, a importante coleção Mundos da Ficção Científica lançou dois: este Star King (1964) e A Máquina de Matar (1964). O autor da Geração GRD Fausto Cunha foi o coordenador da coleção. Anos depois, na década de 1990, a coleção — agora Novos Mundos da Ficção Científica e com Sylvio Gonçalves como coordenador — publicou um terceiro: O Palácio do Amor (1967). Dentro da primeira coleção, Antonio Jeremias foi o capista mais prolífico e competente. A capa de Raul Rangel & Milton Silva certamente está aquém.

A série acompanha o jovem Kirth Gersen, treinado por seu avô para ser o vingador da destruição da sua colônia planetária por cinco alienígenas capazes de se passar por humanos, e que, a partir dali, criaram os seus respectivos impérios criminais pela galáxia de Vance, o universo do Oikumene. Os cinco são os “Príncipes Demônios”. Cinco bandidos, cinco romances, com Gersen dando cabo de um após o outro. Por alguma razão, Vance terminou a série com a publicação de The Book of Dreams apenas em 1981. (Atualmente, o escritor canadense Matthew Hughes trabalha em um sexto volume, autorizado pelos herdeiros.) Pseudo-excertos de publicações, depoimentos, relatórios do futuro distante imaginado por Vance expandem o sentido da narrativa do romance, somando à textura elogiada e influente que caracterizou a obra desse autor. A intriga do primeiro livro apresenta Gersen na cola de Attel Malagate, que, aos poucos, ele descobre estar disfarçado de dirigente do principal instituto de exploração planetária do Oikumene. O próprio Gersen emprega o disfarce de explorador. A intriga tem como principal premissa propulsora (“MacGuffin”) um planeta singular, muito rico e edênico, descoberto por um explorador de fato, assassinado no início do romance. A questão é apropriar-se do sensor com as coordenadas desse mundo, interessar o conselho coordenador do instituto, e criar um mise-en-scène que facultasse ao herói identificar Malagate, entre o grupo de suspeitos.

No processo, que inclui vários movimentos e truques da ficção de detetive hard-boiled, Gersen coopta uma das várias mulheres que cruzam o seu caminho na série, a bela, vivaz e inocente Pallis Atrode, a quem Vance reserva um destino de abuso nas mãos de um perverso associado de Malagate. O herói Kirth Gersen não tem a personalidade mais vibrante nem a caracterização mais aprofundada, mas as mulheres de Vance na série possuem invariavelmente um encanto misterioso, já que também não são objeto de uma grande dedicação do autor. Já o planeta edênico tem uma ecologia em que espécies diferentes se “metamorfoseiam” em outras, antecipando algo do planeta Lusitânia no meu favorito Orador dos Mortos (1986), de Orson Scott Card. Enfim, como chefões do crime, os príncipes-demônios ou “reis das estrelas” são seres guiados não apenas pela emulação não apenas da forma humana, mas das suas realizações, e a oportunidade de direcionar uma nova raça deve ser irresistível a Malagate. Nesse detalhe, os príncipes-demônios parecem ser uma representação do arrivismo que impulsiona tantos criminosos — e políticos, como vemos no atual governo de arrivistas que está no poder no Brasil. A mistura de ficção de crime, ficção científica e evocação mítica de Vance neste primeiro volume soa inquietante, traz cores vivas e estimula o pensamento.

 

Drive (Drive), de James Sallis. São Paulo: Editora LeYa, 2012 [2005], 160 páginas. Tradução de Amanda Orlando. Brochura. Com quantos livros se faz um subgênero de ficção de crime? No caso em questão, talvez apenas três: The Getaway Man, de Andrew Vachss, que eu li em 2008; este Drive, de James Sallis; e O Motorista (The Wheelman), de Duane Swierczynski, que está na fila. O trio já rendeu um artigo de Eric Beetner, e compõe o subgênero “piloto de fuga”. Apenas o livro de Vachss não foi traduzido no Brasil. James Sallis escreve fantasia contemporânea e frequenta as páginas da The Magazine of Fantasy & Science Fiction. Este seu Drive virou um filme muito bom, estrelado por Ryan Gosling (aí na capa) e Carey Mulligan, dirigido por Nicolas Winding Refn.

O livro é um romance curto de texto minimalista e capítulos breves. O protagonista é chamado apenas de “Piloto”. É um especialista em livrar assaltantes armados da perseguição da polícia. Sua história abre com um momento crucial, também visto no filme, em que ele é emboscado, junto com a cúmplice Blanche, em um motel. A narrativa, porém, logo mergulha em um longo flashback que conta, capítulo a capítulo, as suas origens e como ele chegou até ali, usado pelo pai em arrombamentos ainda quando criança, como fugiu de casa e foi para Los Angeles e se tornou piloto de façanhas em filmes. A recuperação das trajetória do protagonista se reencontra com aquela cena central no capítulo 9, mas a estratégia dos flashbacks retorna imediatamente após, agora centrada em como ele entrou no mundo do crime.

Um toque de Sallis que não está no filme é o relacionamento do Piloto com Manny, um escritor de roteiros que fornece alguns comentários sobre o mundo literário e suas desilusões. (Manny também é responsável pela ironia final.) Fora dos flashbacks, a situação central é do Piloto, baleado, fazendo uso dos serviços de um médico de bandido, especialista em remover projéteis e costurar buracos de bala. E então como o herói se recupera da emboscada, sai da cidade, se reorganiza e dá a volta por cima contra os operadores locais da máfia italiana, usando suas habilidades específicas atrás do volante — no que se assemelha um pouco com o romance de Vachss. Também na caracterização do Piloto, que, como o herói de Vachss, tem algum déficit de inteligência ou de empatia, possível neurodivergência que sugere ser por isso que ele é um savant na mecânica e na pilotagem. O texto minimalista e emocionalmente apartado reforça essa impressão, ao mesmo tempo em que insere o livro dentro da ficção de crime pós-modernista.

 

Arte de capa de Raul Rangel.

A Máquina de Matar (The Killing Machine), de Jack Vance. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1980 [1964], 192 páginas. Tradução de Luís Corção. Arte de capa de Raul Rangel. Brochura. O segundo livro da série Saga dos Príncipes Demônios vê o herói Kirth Gersen à caça de Kokkor Hekkun, o príncipe-demônio conhecido como “Máquina de Matar”, cuja trilha leva a um mundo de fantasia científica, Thamber, um planeta oculto das autoridades do Oikumene. A única pista de Thamber é uma cantiga folclórica. Raul Rangel retorna como capista em arte de cores aguadas e uma representação da máquina de matar que parece um esboço inacabado. Ilustradores estrangeiros também preferiram representar a estranha centopeia blindada, encomendada por Hekkun a uma empresa de engenharia — mimetizando uma criatura do tal planeta —, e não os personagens.

Gersen descobre que Hekkun busca levantar uma grana para resgatar uma mulher, Alusz Iphigenia, que se refugiou na matriz de um esquema quase industrial de sequestros e cobrança de resgate, colocando-se voluntariamente em cativeiro sob um resgate bilionário, para proteger-se do vilão. O herói então consegue o patrocínio de uma autoridade do instituto cujos filhos foram sequestrados, e infiltra o cativeiro para ter contato com ela, dona da única pista do paradeiro de Hekkun. Como Gersen obtém a soma absurda para resgatá-la é muito anacrônico para o leitor do século 21: ele forja dinheiro usando uma oficina de arte e laborterapia para os cativos… Chegar a Hekkun depende derradeiramente não apenas da ajuda de Alusz Iphigenia, mas do herói assumindo o controle do projeto da tal máquina assassina encomendada pelo príncipe-demônio.

Alusz Iphigenia é outra das mulheres estranhamente atraentes de Vance, mas quando ela e Gersen chegam a Thamber ela perde algo do interesse, conforme o enredo envereda para situações de fantasia heroica, com a cooptação de grupos tribais pela dupla e o conflito entre esses grupos até que a dupla chegue ao castelo de Hekkun — que nesse mundo cunhou para si uma persona heroica, como se o planeta fosse o seu parque temático privado. Novamente, o príncipe-demônio busca para si mais do que uma distinção como criminoso. E novamente, o herói precisa aparecer com um truque para tirá-lo do seu disfarce humano, aqui, em uma revelação particularmente tétrica. Para além de grotesco, Hekkun assume uma face trágica que nos parece singularmente romântica (talvez mesmo aristocrática) e humana:

“— Ele era um homem em que a imaginação era um dom e uma maldição. Uma única vida não lhe bastava. Ele sentia a necessidade de beber em todas as fontes, de conhecer todas as experiências e viver em todos os extremos. Em Thamber ele encontrou um mundo bem a seu gosto e temperamento. Nas suas diferentes entidades ele criava suas próprias epopéias.” —Jack Vance. A Máquina de Matar.

 

Arte de capa de Hugo Vera.

Space Opera: Jornadas Inimagináveis em uma Galáxia Não Muito Distante, de Hugo Vera & Larissa Caruso, eds. São Paulo: Editora Draco, 1.ª edição, 2012, 380 páginas. Introdução de Gerson Lodi-Ribeiro. Arte de capa de Hugo Vera. Brochura. Romantismo epopeico, épico, exótico e sempre maior que a vida é a província da space opera. Minha noveleta das Lições do Matador, “A Alma de um Mundo”, apareceu nesta antologia de Vera & Caruso, a segunda da sua vitoriosa série de três, as primeiras antologias nacionais dedicadas à space opera. A lista de participantes é grande: Vera e Caruso, Octavio Aragão, Fábio Fernandes, Marcelo Augusto Galvão, Lidia Zuin, Tibor Moricz e Carlos Orsi. Todas as histórias são relativamente longas e sempre movimentadas, e a capa de Hugo Vera é provavelmente a melhor que ele fez para a sua série de antologias originais.

“Obliterati”, de Fernandes, começa in media res, em uma alternância de situações aceleradas, amparadas pela narrativa no tempo presente e em primeira pessoa, mais tarde sucedidas por reflexões descritivas do contexto ficcional, e toques de perda pessoal e de grandes conceitos científicos que apontam para a new space opera. “Tudo por Causa dela”, de Caruso, também é muito movimentado e também inclui um relacionamento passional em seu núcleo (olha o título!), mas com um twist envolvendo um implante cerebral. “Jowjow, Jungermaid e a Deusa de Luz”, de Tibor Moricz, talvez inadvertidamente nos lembra que a expressão “space opera” surgiu para designar uma “faroeste no espaço” — o componente de western (também presente no romance de Moricz, O Peregrino, de 2011) é bastante evidente na aventura de planetary romance do caça-prêmio Jowjow e seu cavalo-robô, acompanhados de uma heroína local na busca por uma importante joia mitológica, a Deusa da Luz. “Rainha das Estrelas — Dias de Sangue na Área Vermelha”, de Octavio Aragão, imagina, em narrativa com muitos movimentos, um império galáctico em futuro distante, repleto de intrigas palacianas e crueldades absolutistas que sugerem a influência de Duna (1965), de Frank Herbert. “Viva Muito, Morra Jovem”, de Lidia Zuin, é relativamente curto, se comparado com a maioria das demais histórias da antologia, e nele a autora mais conhecida por seus contos cyberpunks empresta a sua pena para substanciar a série criada por Hugo Vera, representada no livro pela novela “As Filhas de Cassiopeia — A Ofensiva Draconiana”, outra space opera exóticaA história de Zuin é circunscrita a um único lugar e envolve uma devoradora de homens, parte de uma espécie assexuada mas que se apresenta como fêmea e cujos feromônios ela usa para atrair suas vítimas. De Marcelo Augusto Galvão, “Inferno de Dantes” é uma ágil space opera militar sobre fuzileiros espaciais em um sítio xenoarqueológico no qual procuram um artefato supertecnológico, e lutam contra monstros cheios de tentáculos e um traidor entre eles. Galvão revela familiaridade com o subgênero, com um estilo consistente, ideias de FC formando uma boa textura e alguma ironia e tuckerismos (menções a colegas do mundo da FC brasuca). A já mencionada novela de Hugo Vera rivaliza com a de Aragão como narrativa mais longa do livro, em um universo de space opera exótica que sugere a influência de Duna e de séries de TV como Babylon 5, e de videogames como Mass Effect. Quase um romance, implora expansão para esse formato, para colocar mais substância em suas situações de guerra galáctica e piratas espaciais, agentes secretos e guerreiras determinadas. Mais curto, “No Vácuo Você Pode Ouvir o Espaço Gritar”, de Carlos Orsi, tem ideias científicas mais ricas e também explora o tema de artefatos deixados à deriva por supercivilizações anteriores, além de descreve hábitos culturais do futuro distante, e uma trepidante colaboração entre humanos e uma outra potência espacial, na investigação de um desses objetos. É um dos textos brasileiros que mais se aproxima da new space opera, em tom e em tema, e recebeu o Prêmio Argos, do Clube de Leitores de Ficção Científica, em 2013.

 

Arte de capa de Bruce Jensen.

Divergência: Livro Dois de O Universo dos Construtores (Divergence: Book Two of The Heritage Universe), de Charles Sheffield. Rio de Janeiro: Editora Record, 1994 [1991], 286 páginas. Tradução de Ronaldo Sérgio de Biasi. Arte de capa de Bruce Jensen. Brochura. A bela arte de capa de Jensen revela novos artefatos xenoarqueológicos abandonados pelos Construtores na galáxia humana, e caçados pela especialista Darya Lang, uma erudita de tais objetos, e seu companheiro mais rústico, Hans Rebka. O romance abre introduzindo um novo e excêntrico personagem, C. Indigo Tally, um androide com um supercomputador no lugar de cérebro, e que é ativado e colocado em movimento com a missão de investigar o ocorrido uma semana antes, no planeta binário que foi palco das situações de Maré de Verão (1990), o primeiro da série. Tally está a par com outros personagens talvez britanicamente excêntricos, criados por Sheffield para esta série. Onde vai, ele enche a paciência das pessoas e, depois de cortado, insiste: “Posso falar?” A investigação do propósito dos Construtores leva os vários curiosos até as imediações do gigante gasoso Gargântua (presente aí na colorida capa de Bruce Jensen), onde a equipe de heróis se depara com objetos que se pensava serem asteroides, mas que de fato são novas construções xenoarqueológicas.

A praia de Sheffield (desencarnado em 2002 de um tumor cerebral) era a ficção científica hard desenvolvida quase sempre com uma qualidade de estilo áspero mas plena de ideias de superciência e, às vezes, um toque pulp explícito de filme B. Em Divergência, esse toque está no cenário de labirinto de testes de inteligência armado por um representante cibernético dos Construtores, para avaliar as qualidades das civilizações que acabam chegando até ele, numa variação complexa do leitmotif da arena, na ficção científica. O teste para os heróis humanos e seus parceiros alienígenas inclui uma grupo de belicosos alienígenas com a forma de polvos ou medusas gigantes e que produzem, aos montes, bebês carnívoros insaciáveis. Todas essas qualidades da composição do romance exigem, digamos, um gosto adquirido por parte de um leitor que deve se esbaldar com aquilo que a FC realiza e que poucos ou nenhum outro gênero teria o interesse em reproduzir. Composta de cinco livros (Maré de Verão, Divergência, Transcendence, Convergence e Ressurgence), todos apresentado o mesmo grupo de exploradores idiossincráticos, no Brasil a série parou por aí, talvez por questão de gosto do público leitor, mais provavelmente vítima da crise econômica (hiperinflação, início do Plano Real). A própria Isaac Asimov Magazine, editada por de Biasi, havia terminado em 1993.

 

Quadrinhos

Arte de capa de J. Scott Campbell.

Marvel Saga: Espetacular Homem-Aranha Volume 1, de J. Michael Straczynski & John Romita, Jr. Barueri-SP: Panini Comics, 2020, 210 páginas. Apresentação de Fernando Lopes. Tradução de Mário Luiz C. Barroso. Arte de capa de J. Scott Campbell. Capa dura. Ainda estou perseguindo a escrita de quadrinhos de J. Michael Straczynski, o renomado roteirista de televisão e cinema, conhecido criador da série de space opera Babylon 5. A Panini resolveu facilitar minha vida colocando nas bancas uma coleção dedicada apenas aos roteiros dele, para as aventuras do meu super-herói favorito, o Homem-Aranha. Esse mesmo volume já havia saído antes como parte da coleção Marvel Graphic Novels, da Salvat do Brasil (nome oficial: “Ultimate Marvel Graphic Novel Collection”), edição 21, O Espetacular Homem-Aranha: De volta ao Lar (2013).

Na apresentação, o editor Fernando Lopes fala de como a vida do Aranha foi bagunçada nas páginas dos gibis de 1990, e de como o chefão da Marvel, Joe Quesada, chamou o editor Alex Alonso (ex-DC Comics) para pôr ordem nessa zona aracnídea. Straczynski vinha de uma experiência bem-sucedida com a sua criação Rising Stars para a Top Cow Publications. A mão sempre discreta e humana do escritor mostra um Peter Parker quebrando o galho com professor de ensino médio na mesma escola em que entrou em cena como adolescente supernerd, em 1962. Está envolvido com a comunidade, interessado no futuro dos seus alunos de baixa renda — o que eu acho muito importante nos super-heróis novaiorquinos, como o Demolidor e Luke Cage. Também está separado de Mary Jane Watson, que deu um tempo no casamento para perseguir sua carreira em Hollywood.

Como Aranha, ele é abordado por um tal de Ezekiel Sims, megaempresário que tem habilidades semelhantes às suas. O herói é alertado de que vem aí um caçador de superpoderes, e que é melhor fugir. Ezekiel também dá à origem do Aranha (e dos seus semelhantes, como Ezekil) um fundo místico animista que diverge da mitologia original do personagem, embora não proponha uma revisão total. Além disso, o confronto com o sombrio supervilão Morlun leva a uma das sovas mais duras já sofridas pelo herói — e, com isso, Tia May descobrindo o que o sobrinho apronta nas horas vagas: outra ousadia de Straczynski. Eu sempre demoro a entrar no espírito da arte estilizada de John Romita Jr., mas de qualquer modo, é a escrita de Straczynski o ponto forte do livro, seu modo de trabalhar as características conhecidas do personagem, e a narrativa propriamente. O máximo, para mim, é como — tendo ao fundo e com oposição conceitual o misticismo de Ezekiel e de Morlun — a ciência é que derradeiramente salva a vida do herói. (Especialmente depois de como o lado nerd dele foi tão diminuído nos filmes.)

 

Arte de capa de Lorenzo de Felici.

Oblivion Song Volume Dois: Entre Dois Mundos (Oblivion Song Volume Two), de Robert Kirkman (texto) & Lorenzo de Felici (arte). Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2020 [2019], 136 páginas. Tradução de Fernando Scheibe. Arte de capa de Lorenzo de Felici. Brochura. O primeiro desta série, discuti aqui em abril de 2019. Eu já dizia que a criação de Kirkman parecia ajustada para despertar o interesse de produtores de séries audiovisuais que ainda estivessem à procura do novo Lost (2004-2010), mesmo depois de The 4400 (2004-2007), Les Revenants (2012-2015), The Leftovers (2014-2017) e, mais recentemente, Manifest (2018-2021) e a norueguesa Beforeigners (2019- ). O determinante é o tema de FC e fantasia que poderíamos chamar de “transferência” (chamado exatamente assim, na história) — de uma dimensão a outra, de um mundo a outro, de uma ecologia a outra; ou de lugares estranhos para o nosso mundo. No pacote, estão a figura do cientista atormentado pelo experimento que levou à tragédia, o tema muito americano dos irmãos estranhados, e também paranoia governamental e monstros lovecraftianos. Tudo isso, amparado pela “estética do feio” presente no desenho de Lorenzo de Felici.

O ponto focal deste episódio é o retorno de Ed, irmão do cientista atormentado, Nathan Cole. Antes de ser transferido para o mundo paralelo, ele era um perdidão viciado em drogas — mas lá ele é o líder de uma comunidade que se firma em uma nova fronteira. Tem-se aí outro tema muito americano: o espírito pioneiro, a expansão territorial contra as uma natureza e a noção adjacente de que os obstáculos e a luta forjam o caráter e determinam a essência de um povo. Obviamente, seja neste ou no outro mundo, há um marcante conflito de interesses entre os irmãos. Um ponto forte deste volume são as cores de Annalisa Leoni.

Roberto Causo

Temos 2 comentários, veja e comente aqui

Leituras de Fevereiro de 2020

Em fevereiro, muita arte de Star Wars nos quadrinhos, muita ficção científica brasileira, um romance de Robin Hobb e histórias de Robert Sheckley.

 

Arte de capa de Dave Dorman.

Star Wars Art: Comics, de anônimo, ed. Nova York: Abrams, 2011, 180 páginas. Foreword de Dennis O’Neil, prefácio de Douglas Wolk, introdução de Virginia Mecklenburg. Arte de capa de Dave Dorman. Hardcover. O exemplar que adquiri deste livro é testemunha e sobrevivente dos maus tratos recebidos por livros de arte com sobrecapa, em muitas livrarias brasileiras. Foi comprado com desconto substancial na loja Geek.etc.br, em São Paulo, com rasgo na lombada e a sobrecapa ausente. A que aparece ao lado foi apanhada na www, e traz uma linda e impactante ilustração de Dave Dorman com ecos de Frank Frazetta, feita originalmente para a minissérie Star Wars: Crimson Empire. É claro, se o livro estivesse inteiro e impecável, eu dificilmente teria como adquiri-lo.

Há algo de catálogo de galeria na sua organização, com reproduções que buscam o original com seus defeitos, e itens majoritariamente com ausência de letreramento e outros toques gráficos finais. Num sentido semelhante, o livro dá atenção não só às artes “oficiais”, que resultaram em produtos de venda massificada, mas também às requests — artes encomendadas (“private commissions“, como o livro adota). Muitas vezes, são grandes nomes produzindo essas encomendas, como Joe Kubert, Mike Mignola, Bill Sienkiewicz, John Cassaday, Michael Kaluta, John Romita, Arthur Adams, P. Craig Russell, George Pérez, Paul Gulacy e Carlos Sarzon. Os editores até reservaram a uma request um dos spreads de quatro páginas do livro: uma arte de J. H. Williams III.

Em termos de artes de capa, existe um look de Star Wars consagrado nas revistas em quadrinhos. Os responsáveis são, principalmente, Dave Dorman, Ken Kelly e Hugh Fleming — com a arte do cartazista de cinema Drew Struzan como influência nos bastidores (ele não está no livro). No que diz respeito à arte de miolo, temos itens desenhados por Howard Chaykin, Dave Cockrum, Al Williamson, Carmine Infantino, Terry Dodson, Tony Dezuniga, Drew Johnson, o canadense Michel Lacombe e o japonês Hiromoto-Sin-Ichi. Alguns painéis de Killian Plunkett são especialmente impactantes, mas gostei mesmo foi de ver as páginas a lápis de Doug Wheatley, cujo trabalho com o ciclo Dark Times eu achei fabuloso. Senti falta de páginas desenhadas por Walt Simonson, que trabalhou com Star Wars na primeira fase da franquia com a Marvel, e de Cam Kennedy. A única arte que expressa o que temos visto mais recentemente, com o domínio da cor digital, é um request de Ryan Sook. O requisitado Adam Hughes também está presente, assim como o destacado capistas de FC Jon Foster, e me agradaram as páginas em preto e branco de David Michael Beck, muito utilizadas ao longo de todo o livro. Fiquei agradavelmente surpreso com o registro de brasileiros que trabalharam com Star Wars nos quadrinhos: Rodolfo Damaggio e Rod Pereira. Star Wars Art: Comics é um livro precioso, que expressa a produtividade do universo de Star Wars no campo da arte de ficção científica, e um registro do seu impacto na FC em quadrinhos. As requests também nos falam da força afetiva desse universo sobre o público, e o interesse de colecionadores sobre ele. Fecha com a transcrição de uma reunião de trabalho entre George Lucas e Howard Chaykin, quando da adaptação do filme Guerra nas Estrelas (Star Wars, 1977), com o então editor da Marvel, Roy Thomas, intermediando a conversa que resultaria no pontapé inicial da presença de Star Wars no universo dos quadrinhos.

 

Arte de capa de Jackie Morris.

Blood of Dragons: Volume Four of the Rain Wilds Chronicles, de Robin Hobb. Nova York: Harper Voyager, 1.ª edição, 2014 [2013], 482 páginas. Arte de capa de Jackie Morris. Paperback. Robin Hobb, conhecida no Brasil pela série Crônicas do Assassino (The Farseer Trilogy), fecha com este volume a sua tetralogia The Rain Wilds Chronicles, parte do mesmo universo da Farseer Trilogy e da trilogia Mercadores de Navios-Vivos (Liveship Traders). Ele se conecta mais com essa última. Às vezes, o volume final de uma série fica sobrecarregado com linhas narrativas a entrelaçar, pontas a amarrar, e os último traços de drama a raspar do tacho. Blood of Dragons sofre um pouco com isso. Os cuidadores de dragões e seus associados estão em Kelsingra, a antiga cidade dos elderlings que serviam aos dragões e recebiam longevidade e magia em troca. Os tratadores seguem se transformando fisicamente em elderlings, agora com uma atenção maior dos “seus” dragões guiando o processo. Enquanto isso, em outra região do mundo secundário, Tintaglia, a primeira dragão a retornar ao mundo em gerações, é emboscada e ferida pelos soldados do vilânico Duque de Chalced. Subindo o rio, o casal Malta e Reyn Khuprus seguem para Kelsingra, na esperança de reverterem as deformidades do seu filho recém-nascido. Hest, o marido gay de Alise Kincarron, também está a caminho por outras vias, posto em movimento pela ameaça dos agentes de Chalced. Obviamente, chegando à cidade mágica ele tem o potencial de causar muitas complicações para ela e o seu novo homem, o capitão Leftrin, e também para o ex-amante de Hest, Sedric.

Uma das linhas narrativas que mais cresce em peripécias e em força dramática a de Selden, irmão de Malta e um prisioneiro do Duque de Chalced, vendido a ele como um homem-dragão que pode curar o tirano, se este consumir a sua carne. Enquanto se recupera dos maus tratos sofridos em cativeiro, Selden é cuidado pela filha do duque, Chassim, ela mesma vítima da crueldade do pai. Os dois formam uma desesperada aliança. A linha que perde mais é a de Thymara, protagonista em vários momentos dos livros anteriores, e que conserva importância neste último volume. Ela se empenha em descobrir o segredo da regeneração de dragões e elderlings. Mas essa importância acaba empalidecida. Me parece que, na tetralogia, Hobb buscou se aproximar de várias características da fantasia jovem adulta. A heroína dividida em seu amor por dois rapazes se tornou um dos estilemas dessa literatura, que Hobb adota aqui e que meio que abafou as possibilidades de crescimento da personagem, que em Blood of Dragon se caracteriza pela apatia causada pela dúvida cruel. Ao tratar da questão da homossexualidade, Hobb incorpora Kelsingra como um espaço utópico potencial de liberdade e diversidade. Divide, porém, os gays entre os honestos e abertos como Sedric e seu namorado, o caçador Carson; e os que mantêm sua opção secreta e são dissimulados, manipuladores e oportunistas, como Hest. É uma problematização interessante e significativa. Mas a necessidade de fazer Hest ter todas as chances de aprender pela dor e pelo medo, porém recusando-se, coloca-o como a figura a ser punida pelos episódios catárticos ao final do romance. Até mesmo o francamente vilânico Duque de Chalced sai de cena sem tanta fanfarra e ironia sobre ele. Não discordo do destino que Hobb reserva a Hest, apenas me incomoda que tanto foco sobre ele tenha roubado o desenvolvimento de personagens talvez mais interessantes, como Thymara e Alise.

De qualquer modo, Blood of Dragon é uma conclusão satisfatória e, em vários momentos, empolgante da tetralogia. Em especial, a batalha final na capital de Chalced é realmente eletrizante. Um novo status quo é estabelecido para essa região do mundo secundário de Robin Hobb. Os dragões — e os elderlings — estão definitivamente de volta, e o leitor aprende muito sobre o passado desse mundo.

 

Arte de capa de Túlio Cerquize.

Vislumbres de um Futuro Amargo, de Gabriela Colicigno & Damaris Barradas, eds. São Paulo: Magh Agência Literária, fevereiro de 2020, 200 páginas. Prefácio de Roberto Causo. Ilustrações de Renata Aguiar, Deoxy Diamond, Estevão Ribeiro, Roberta Nunes, Stephanie Marino e Roberto de Sousa Causo. Arte de capa de Túlio Cerquize. Brochura. A Agência Literária Magh de Gabriela Colicigno montou um showcase dos seus autores mais novos, em torno do tema de um futuro pessimista e a partir de um projeto de financiamento coletivo via Catarse. Esta antologia original de ficção científica traz, portanto, histórias de Anna Martino, Lady Sybylla, Waldson Souza, Lu Ain-Zaila, Cláudia Fusco e Roberto Fideli. Além disso, as histórias foram ilustradas por Renata Aguiar, Deoxy Diamond, Estevão Ribeiro, Roberta Nunes, Stephanie Marino e R. S. Causo (com colorização de Marino). A arte de capa é de Túlio Cerquize e a diagramação cheia de colorido é de Paula Cruz. Eu tive a honra de escrever o prefácio, que você encontra nesta postagem aqui.

O prefácio comenta o sentido geral da antologia e trata de cada história individualmente, de modo que estas anotações podem ser mais curtas. Mas eu gostaria de mencionar que as histórias que mais me chamaram a atenção foram, na ordem em que aparecem no livro, “Antônio do Outro Continente”, de Anna Martino; “O Pingente”, de Cláudia Fusco; e “SIA Está Esperando”, de Roberto Fideli. Quanto às ilustrações, têm estilos bem diferentes, mas a delicadeza e competência técnica de Deoxy Diamond se destacam. Também gostei de ver Estevão Ribeiro no livro.

 

Pilgrimage to Earth, de Robert Sheckley. Nova York: Bantam Books, 3.ª edição, 1964 [1957], 168 páginas. Paperback. Quando entrei no Clube de Leitores de Ficção Científica em 1986, o escritor americano Robert Sheckley era um favorito dos leitores mais velhos, sendo uma influência sobre o escritor Ivan Carlos Regina. Em 1987, cheguei a fazer a ilustração de capa do seu Ômega, o Planeta dos Condenados, publicado pelas Edições GRD. Como o meu contato com a ficção curta dele havia sido esporádico, resolvi ler esta coletânea da sua primeira fase, reunindo histórias publicadas entre 1952 e 1956. A maioria delas foi publicada na Galaxy, a revista com a qual ele mais se identificou. Este exemplar pertenceu ao escritor Clóvis Garcia, da Primeira Onda da FC Brasileira.

A história que dá título ao livro apareceu na Playboy em 1956: um interiorano dos confins da galáxia chega à Terra, cuja derivação para o futuro a transformou em um planeta de hábitos esquisitos, tema recorrente na FC. O rapaz vem em busca de algo ausente na sociedade de sexo livre do seu planeta: o amor. Mas sem saber que o sentimento se tornou só mais uma commodity… assim como a fidelidade feminina. Algo que me surpreendeu foi como algumas histórias soam repetitivas em estilo e estrutura. Em geral, um protagonista ingênuo ou arrogante se depara com situações de FC que expõem a insensatez humana, muitas vezes com um fundo de crítica à adesão do gênero aos parâmetros da literatura colonial do passado — em uma época, a década de 1950, em que o mundo sofria um movimento de descolonização. “Human Man’s Burden” é a história em que isso está mais explícito. Apresenta, em tom farsesco, um colono proprietário de um planeta. Ele é muito solitário, vivendo só com seus auxiliares robôs que falam com o dialeto dos escravos americanos. Ele encomenda uma esposa de uma empresa especializada, mas ao invés do modelo de mulher simples e trabalhadora escolhido, vem, por engano, uma elegante beldade. Os dois, é claro, aprendem a se amar apesar das diferenças, a superar seus vícios de origem, e a cuidar dos seus escravos com afeição.

“All the Things You Are”, “Early Model” e “Milk Run” têm os protagonistas envolvidos com erros crassos ao tratar com culturas alienígenas/estrangeiras. A última história é seguida de “The Lifeboat Mutiny”, que apresenta a mesma dupla de heróis, dois amigos que operam uma empresa de transporte espacial driblando diferentes momentos de esperteza capitalista e de teimosia robótica. Inventos, máquinas e serviços robotizados que enfiam os heróis em situações difíceis formam uma outra constante. Mas “Fear in the Night” é um conto de horror psicológico, a única história protagonizada por uma mulher. “Disposable Service” provavelmente também se insere no horror, lembrando inclusive alguns contos de Stephen King, a partir da premissa de um homem que descobre um serviço de eliminação de pessoas e o contrata para sumir com sua mulher, com quem está estranhado, mas é surpreendido por ela ter se antecipado a ele na contratação da mesma empresa. O desencanto bastante cáustico de Sheckley com a condição humana e sua preocupação com o futuro da sociedade moderna é resumido no conto distópico “The Academy”, no qual um diagnosticador automático de sanidade empurra o herói desajustado a uma terrível conclusão:

“O Status Quo não poderia durar para sempre. E o que a humanidade faria, com toda a dureza, a inventividade, a individualidade extirpada da raça?” —Robert Sheckley.

 

Fazenda Modelo: Novela Pecuária, de Chico Buarque. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 3.ª edição, 1975, 140 páginas. Brochura. Esta é uma novela distópica brasileira, estudada por M. Elizabeth Ginway no capítulo sobre o Ciclo de Utopias e Distopias do seu importante Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (2004). O livro segue a deixa de A Revolução dos Bichos (Animal Farm, 1945), de George Orwell, mas incorpora muitas técnicas daquilo que foi chamado no Brasil de literatura pop, uma das tônicas da década de 1970. O autor, claro, é o cantor, compositor e romancista premiado. Adquiri o livro, usado, na banca Combo Café & Cultura, aqui em São Paulo, em 15 de fevereiro, quando essa banca recebia o lançamento de Vislumbres de um Futuro Amargo.

Uma fazenda modelo — como aquela que eu visitava com meus pais nas vizinhanças de Campinas, para ver uma das minhas tias do lado paterno, que morava e trabalhava lá com o marido e os filhos — é alegoria do Brasil sob o planejamento e a direção tecnocrática e autoritária da ditadura. A densidade absurdista da novela a afasta da obra orwelliana, e deve ter ajudado o livro a escapar da atenção pouco instruída da censura. Abre com um pseudo-prefácio de tom sério, afiançando a importância histórica da experiência da Fazenda Modelo, relatada no que vem a seguir. Mas o componente absurdista logo se afirma: o narrador memorialista se inclui entre os animais da fazenda, ao reportar como as coisas eram antes, a vida boa, o sossego e o amor livre — o “sonho brasileiro”, como tenho chamado. Insatisfeitos com a balbúrdia e com a baixa lucratividade, a direção internacional da fazenda, composta só de gente com nome gringo iniciado com K, promulga Juvenal como o “Bom Boi, conselheiro-mór da Fazenda Modelo”, virtual ditador do lugar, que escolhe como fetiche virilizante e reprodutor número 1 o touro Abá. (Reprodução e controle da sexualidade é um tema constante do nosso Ciclo de Utopias e Distopias, inclusive no cinema.)

Com recursos de montagem e diferentes registros, os recursos pop incluem mapa, poemas, formas concretistas, anotações em diário, listagens, pseudo-escrituras, pseudo-matérias jornalísticas e onomatopeias. Tudo para expressar o ufanismo fora de lugar e a tragédia cotidiana na ascensão e a queda de Abá e da Fazenda Modelo, país imaginário, alegórico, em que a humanidade e a vida pacata, mesmo que fundada em ignorância, que é o traço do sonho brasileiro na novela, foram arregimentados e reprimidos em favor de um projeto fracassado de saída. As linhas finais parecem valer tanto para aquela época quanto para o nosso agora:

“[E]ntão Juvenal mandou liquidar o gado restante, ele compreendido, decretando o fim da experiência pecuária, da Fazenda Modelo, e destinando seus pastos, a partir deste momento histórico, à plantação de soja tão-somente, porque resulta mais barato, mais tratável e contém mais proteína.” —Chico Buarque, Fazenda Modelo.

 

Outras Obras do Ciclo de Utopias e Distopias

Adaptação do Funcionário Ruam , de Mauro Chaves. 1975.

Um Dia Vamos Rir disso Tudo, de Maria Alice Barroso. 1976.

O Fruto do Vosso Ventre, de Herberto Sales. 1976.

Umbra, de Plínio Cabral. 1977.

Asilo nas Torres, de Ruth Bueno. 1979.

Piscina Livre, de André Carneiro. 1980.

Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão. 1981.

Depois do Juízo Final, de Silveira Júnior. 1982.

 

Vapt-Vupt, de Álvaro de Moya. São Paulo: Clemente & Editora, 2003, 180 páginas. Introdução de Maurice Horn. Brochura. Shazam! (1970), o estudo da história, estrutura e linguagem dos quadrinhos escrito por Álvaro de Moya (1930-2017), foi um dos primeiros livros sobre o assunto — e sobre o mundo nerd/geek — que eu li na vida. Naquela época eu costumava ver de Moya na TV falando sobre a arte das histórias em quadrinhos. Ele se manteve ativo, e  estive com ele em um par de ocasiões, inclusive em 2013, poucos anos antes da sua morte. Uma figura admirável da cultura nerd nacional. Esta reunião de artigos publicados originalmente na Revista Abrigraf (a Associação Brasileira da Indústria Gráfica), eu adquiri no Sebo Riachuelo, no centro de São Paulo. Uma publicação adorável, que, como livro de arte e apesar de um problema gráfico ou editorial aqui e ali, é motivo de admiração. Ganhou o Troféu HQ Mix 2003 de “Melhor Livro Teórico” (aspas porque há pouco de teórico aqui; o termo “não ficção” bastaria).

Uma entrevista com o americano Will Eisner funciona como prólogo e um artigo sobre a imprensa brasileira e as HQs como preâmbulo, antes das diversas seções do livro: “Autores”, “Personagens”, “Miscelânea” e uma seção sobre a Comic Con organizada pela Escola Panamericana de Arte em 1994, com várias listas de super-heróis nacionais e estrangeiros, além dos principais convidados do evento funcionando como anexos. A primeira traça o perfil de nomes como J. Carlos, Alex Raymond, Milton Caniff, Burne Hogarth, Jules Feiffer, Moebius, Hugo Pratt, Jerry Robinson. Muitos suspeitos usuais, que dão espaço para a erudição que de Moya construiu a respeito do campo. Mas eu me perguntou se ele não teria sido um dos primeiros, no Brasil, a reconhecer o talento extraordinário de Neil Gaiman. Dentre os grandes personagens das HQs, ele prestigia o Gato Felix, o Pato Donald, o Fantasma, Tintin, o Príncipe Valente, Mandrake, Recruta Zero, Tex, Mafalda, Asterix e os principais personagens cômicos, em três artigos seriados. Um ensaio sobre o romance gráfico Maus, de Art Spiegelman, está deslocado nessa seção. A lista deixa claro que os sindicalizados americanos têm um grande relevo na memória e no apreço do autor, compreensivelmente, e é importante que o livro garanta que o leitor mais jovem conheça mais sobre eles. Na verdade, a visão do autor é bastante internacional: ele fala dos quadrinhos italianos da Bonelli tanto quanto de mangás e de eventos na Itália e no Brasil. O formato de compilação de artigos inevitavelmente inclui recapitulações e repetição de informações, que não incomodam. Por outro lado, os artigos sobre os quadrinhos brasileiros são minoritários e carentes de informações mais palpáveis, como datas esboços biográficos dos artistas. Em especial no artigo “Quadrinistas Brasileiros Desenham para os Estados Unidos” (1993), raro registro de um momento especial na história dos artistas nacionais, que ainda se desenrola. Menciona o escritor Júlio Emílio Braz e vários artistas da “minha época”: Mozart Couto, Deodato Filho (“Mike Deodato”), Watson Portela, Vilela e Hector Gomes Alísio. Menciona a aventura do estúdio agenciador Art&Comics — da qual o nosso Vagner Vargas participou fazendo a arte de On a Pale Horse, de Piers Anthony —, mas não dá nomes nem datas ou detalhes específicos. Difícil discordar, porém, do seu veredito sobre as HQs nacionais:

“[O] calcanhar de Aquiles dos quadrinhos brasileiros se revela. Seus roteiros são pueris. Previsíveis, derramados. Sem desenvolvimento, sem idéias boas em princípio. O mesmo problema do cinema nacional, do teatro, da televisão. A escrita, a narrativa, a história, enfim, deixam a desejar.” —Álvaro de Moya. “Quadrinistas Brasileiros Desenham para os Estados Unidos”. In Vapt-Vupt.

Com certeza, as coisas mudaram da década de 1990 para cá, mas os sinais de uma sociedade grandemente iletrada persistem nesses meios. Interessante que algumas das tiras que ele destaca nos seus levantamentos centrados nas publicações brasileiras Tico-Tico, O Globo Juvenil e Gibi, tinham elementos de aventura, mistério e FC: A Garra Cinzenta (1937), de Francisco Armand; O Audaz (1938), de Messias de Melo; e Roberto Sorocaba (1934), de Monteiro Filho (que mereceu um obituário incluído no livro), artista que também fez as capas da edição da EBAL de Flash Gordon no Planeta Mongo. Por tudo isso e pelas ricas reproduções de páginas, painéis e capas, Vapt-Vupt me fez viajar na nostalgia e na sua fortuna de informações, dispostas de modo fluido na voz de um homem que claramente conhecia muito e amava ainda mais o mundo das histórias em quadrinhos.

 

Quadrinhos

Arte de capa de Rafael Albuquerque.

Eight: Forasteiro (Eight), de Rafael Albuquerque [arte] & Mike Johnson [texto]. Barueri-SP: Panini Comics, 1.ª edição, 2015, 130 páginas. Apresentação de Sean Murphy. Tradução de Rafael Scavone. Brochura. Projeto muito interessante, esta HQ de ficção científica foi concebida pelo artista brasileiro Rafael Albuquerque e publicada originalmente pela americana Dark Horse Comics, com texto escrito por Mike Johnson. Eu o comprei na Geek.etc.br, juntamente com o livro de arte Star Wars: Comics. Trata-se de uma FC de viagem no tempo, com direito a dinossauros e com um clima de história de ação — mais uma HQ que parece buscar um lugar ao sol como adaptação para o campo superaquecido do audiovisual.

A arte de Albuquerque tem uma intensidade descabelada, semelhante à de Lorenzo de Felici, mesmo com um traço solto e econômico. A história tem o crononauta Joshua alcançando o ponto de chegada sem lembranças da sua missão. Tem apenas algumas pistas, mas ele é logo abduzido por um grupo de patrulheiros que o tomam por inimigo, levando-o a apanhar de uma garota especialmente caxias. Ele é levado a um aldeamento meio tribal e de gambiarra com sucata futurista, onde é adotado pela caçula dessa garota. Com toques hábeis, aprende-se algo sobre essa comunidade que luta contra tigres-dentes-de-sabre e dinossauros, e voa nas costas de répteis voadores pré-históricos… Aos poucos, o herói vai montando a lembrança dos objetivos da sua missão, com a ajuda eventual dos locais. Ao mesmo tempo, ele se envolve no  conflito deles com um império com pinta de fantasia científica — e a presença de um outro crononauta.

A história é elevada pelo intrincado enredo de Johnson, e o desenho de Albuquerque pelo seu uso de espaço negativo e de um esquema de duas cores por página, variando engenhosamente o jogo tonal contra o verde-acinzentado de base, que dá sombra e volume às formas. Os personagens não possuem a mesma criatividade: o herói atarantado, o mentor cientista, as garotas duronas e a menininha gentil e esperta, o vilão arrogante e imperial. As reviravoltas e revelações perto do final dão esperança, porém, de que o próximo volume trará um desenvolvimento ainda mais instigante.

—Roberto Causo

Sem comentários até agora, comente aqui!

Leituras de Dezembro de 2019

O ano fechou com muita leitura de ficção científica ecológica e de outros tipos, e de obras que aproximam ficção mainstream e ficção de gênero, além de um interessante livro de não ficção sobre cinema de FC.

 

Arte de capa de Marty Blake.

A Friend of the Earth, de T. Coraghessan Boyle. Nova York: Viking, 1.ª edição, 2000, 272 páginas. Arte de capa de Marty Blake. Hardcover. Conheço o respeitado autor mainstream T. Coraghessan Boyle da revista The New Yorker. Ele já apareceu no Brasil com o romance América (The Tortilla Curtain; 1995). Este A Friend of the Earth é uma ficção científica, por ser ambientado em futuro próximo no qual o crise climática vai com ventos de furacão. Um militante conservacionista rememora as encrencas do passado, enquanto administra o zoológico particular bancado por um astro da música pop. Há algo de Bruce Sterling — autor de Tempo Fechado (1994), romance cyberpunk sobre o agravamento do clima — na premissa, na linguagem elaborada e no protagonista idiossincrático. De fato, Boyle tem um texto que, felizmente, escapa da tendência ao minimalismo. Mas foi a primeira vez que me recordo de ter encontrado tantos momentos de hiper-realismo que terminam sendo chatos.

O presente da narrativa é o ano 2025, em plena crise climática, mas o romance frequentemente retorna aos anos 1980 e 1990, quando o herói, Tyrone Tierwater, era um militante ambientalista radical, envolvendo a filha Sierra nas suas aventuras. Os capítulos do presente são narrados na primeira pessoa, os do passado, na terceira, reforçando a noção subjacente de que Tierwater reavalia a sua vida a partir de uma distância temporal e existencial, já que ele agora tem mais de setenta anos de idade e se depara com o ressurgimento de sua ex-esposa e ex-colega militante, Andrea. De fato, nas duas vozes o romance acaba sendo mais um exame da personalidade irascível do herói, do que um mergulho multifacetado ou aprofundado do ambientalismo e conservacionismo americanos (que ele pouco detalha), com muitos momentos patéticos e outros ferozmente irônicos. Chamado pela imprensa de “Homem Hiena” por ter colocado a filha em risco, Tierwater é tratado como um cara irado e confuso, que encontrou na causa uma válvula para a raiva indefinida que sente contra a sociedade. Não é dos protagonistas mais instigantes e seus traços de personalidade pouco ressoam com o assunto ambiental. Mais que isso, a abordagem do romance se ressente da sugestão implícita de que apenas alguém profundamente ressentido teria tamanha dedicação a uma causa que se revela, na própria lógica do romance, a mais importante em um mundo que afunda rapidamente num estado ainda mais deplorável de existência.

 

Arte de capa de Fernando Costa.

Os Filhos do Rio, de Paulo Condini. São Paulo: Carthago & Forte Editoras Associadas, 1994, 240 páginas. Arte de capa de Fernando Costa. Brochura. Acho que foi Gilberto Schoereder, autor do guia Ficção Científica (1987), que me indicou este livro do jornalista e editor Paulo Condini, com passagens pela Folha de S. Paulo, pelo Diário Popular e pela Editora Melhoramentos. Eu o peguei no Dia da Ficção Científica Brasileira (11 de dezembro, data de nascimento do prolífico pioneiro da FC nacional, Jeronymo Monteiro), exaltado por uma postagem de Nelson de Oliveira no Facebook. Ganhador do prêmio de ficção da Associação Paulista dos Críticos de Arte de 1994, o livro de Condini é um romance curto que lembra em tom e em tema a FC do nosso Ciclo de Utopias e Distopias (1972 a 1982). Imagina, em denúncia adequada também ao momento atual, a Amazônia transformada, no século 25, em deserto. Essa imagem também dá o tom de A Porta de Chifres, de Herberto Salles, um romance de 1986. A população sobrevivente de índios e caboclos, chamada de “remanescentes” pela burocracia do futuro, concentra-se em reservas ou “núcleos”. Um homem caminha sozinho, partindo do seu núcleo, em direção ao mar. Chama-se Mucura e é movido por um impulso pessoal misterioso, fato estranho que chama a atenção da liderança de um outro núcleo, cuja fronteira ele atravessa inadvertidamente. Também alerta uma dupla de burocratas localizados em um centro urbano moderno. Nesse segundo núcleo, Mucura conhece Anaí, uma jovem com cheiro de mel com quem forma um relacionamento.

Uma outra linha narrativa acompanha um dos burocratas localizado bem longe dali, Rodrigues, metido em uma intriga com um colega rival, e que passa a se interessar pelo destino daqueles remanescentes esquecidos. Em uma ação acelerada perto do fim, ele descobre a verdade sobre eles e a conjuntura do mundo — o que resta das elites e do seu aparelho de estado está pronto para abandonar a Terra e seguir para mundos ainda saudáveis localizados em um sistema planetário a seis anos-luz do nosso. Semelhante ao que acontece, digamos, em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (Do Androids Dream of Electric Sheep?; 1968), de Philip K. Dick. É claro, os sempre dispensáveis remanescentes serão deixados para trás, sem auxílio ou supervisão.

A investigação de Rodrigues levanta fatos histórico-jornalísticos colados no texto, bastante contemporâneos e com algum foco na problemática brasileira da devastação ambiental. De maneira um tanto confusa, ajudam o leitor a entender como fomos do início da década de 1990 até o século 25. Os Filhos do Rio flerta com a solução incomum de transformar o burocrata em herói, também ele envolvido em uma situação de descoberta do amor romântico, assim como a de Mucura e a bela Anaí no deserto amazônico. Mas Condini se esquiva dessa solução, com a tônica dos paralelismos indo para a impotência melancólica, os dois casais tropeçando em mesquinharias políticas e sociais, conservando um mínimo de impulso utópico nos seus destinos.

 

O Ovo do Tempo, de Finisia Fideli. Pontes Gestal, SP: Plutão Livros, Coleção Ziguezague, 1.ª edição eletrônica, dezembro de 2019 [1994], 477kb. Prefácio à coleção por Ana Rüsche. Finisia Fideli, minha esposa, começou a publicar contos de ficção científica em 1983, com o clássico “Exercícios de Silêncio”, um dos finalistas do concurso Conto Paulista da Editora Escrita. No fim da década ela fez uma pausa, vindo a retornar apenas em 1991, com o gozador “Quando É Preciso Ser Homem”, na Isaac Asimov Magazine N.º 21 e na antologia O Atlântico Tem Duas Margens: Antologia da Novíssima Ficção Científica Portuguesa e Brasileira (1993), organizada por José Manuel Morais para a coleção portuguesa Caminho Ficção Científica. Esta noveleta de viagem no tempo/dinossauros apareceu na antologia Dinossauria Tropicália (1994), que organizei para as Edições GRD de Gumercindo Rocha Dorea.

Uma das marcas da Finisia como autora dessa fase, conforme assinalado inclusive por M. Elizabeth Ginway, é a protagonista feminina ponderada, firme de caráter e de uma certa espirituosidade e disposição aventureira dirigida ao enfrentamento de mistérios e fatos insólitos — como a heroína do mais sombrio “A nós o Vosso Reino” (1998). A protagonista de O Ovo do Tempo, Mariana, adquire um geodo muito especial, que parece se comunicar exclusivamente com ela. O objeto a leva a uma aventura na zona rural do Rio Grande do Sul, com direito à entrada em uma caverna misteriosa e um momento de viagem no tempo. Uma outra das marcas de Finisia é uma certa jovialidade feminina, bem marcada no final da noveleta, que reaparece agora como parte da notável iniciativa da Plutão Livros do editor André Caniato, a Coleção Ziguezague, que publica em e-book tanto novidades quanto obras significativas do passado da FC brasileira, contando com um inspirado e informativo prefácio para a coleção como um todo, escrito por Ana Rüsche. Entre os títulos já publicados estão novas edições do romance clássico de Jeronymo Monteiro, 3 Meses no Século 81 (1947), e da coletânea pioneira de Dinah Silveira de Queiroz, Eles Herdarão a Terra (1960).

 

Forbidden Planet, W. J. Stuart (Philip MacDonald). Nova York: Bantam Books, 1956, 184 páginas. Paperback. Este é o romance tie-in do filme do mesmo título, Planeta Proibido em português, que eu li em preparo para a minha participação no Cine Clube Sci-Fi do Centro de Pesquisa e Formação do SESC São Paulo. Foi uma leitura prazerosa e surpreendente, considerando que W. J. Stuart, pseudônimo do roteirista e escritor de ficção de crime Philip MacDonald, foi engenhoso no modo como estruturou o romance. As situações são acompanhadas por três personagens diferentes, que narram, cada um, em primeira pessoa: o Major C. X. Ostrow, médico de bordo da nave exploradora C-57-D; o Comandante J. J. Adams; e o Dr. Edward Morbius.

A astronave  é desviada para o planeta Altair-4, onde deve fazer contato com os remanescentes de uma malograda expedição científica. É lá que se encontram Morbius e sua filha, Altaira. O cientista recebe os seus salvadores com frieza e os alerta de que não devem pousar. Quando os homens insistem, ele envia Robby, um poderoso robô, para recebê-los. Os motivos do alerta e das reticências de Morbius são um mistério que vai sendo desvelado aos poucos. A revelação inclui o fato de ele ser detentor de uma tecnologia superior à conhecida. Uma parte mais dramática está nos ataques fatais promovidos por uma espécie de monstro invisível. Enfim, Morbius revela ter acesso à tecnologia dos Krells, alienígenas que uma vez controlaram Altair-4, mas que agora estão desaparecidos.

Tanto filme quanto livro desenvolvem por meio de ícones da FC um argumento evolucionário, preocupação muito própria do gênero: o disco voador e o robô apontam imediatamente para uma tecnologia superior à nossa, assim como conceitos radicais como a viagem e a comunicação mais rápidas que a luz. Quando a tecnologia dos Krells, capaz de multiplicar a inteligência e criar matéria complexa pela força do pensamento, é visualizada, ela imediatamente se mostra ainda mais distante em uma linha de evolução civilizatória. A escala é, talvez, “stapledoniana” (referência ao autor britânico Olaf Stapledon), e inteiramente fascinante. Assim como a conclusão e as revelações em torno do “Monstro do ID”, em uma “mensagem” que se casa perfeitamente com a era das maravilhas sombrias do pós-guerra, que incluíam grandes avanços nos transportes, na medicina e na computação, mas também a ameaça das armas nucleares. A sabedoria científica e o poder técnico avançam de maneira desigual, em relação ao avanço moral da espécie. Os Krells fatalmente carregaram com eles, na sua utopia técnica, um inconsciente tão primitivo e violento quanto o Dr. Morbius — e nós mesmos. Algo do mise-en-scène e dos McGuffins lembra Jornada nas Estrelas, e é sabido que Planeta Proibido foi uma influência sobre a criação de Gene Roddenberry. O filme foi consideravelmente além daquilo que o cinema de FC de então era capaz de realizar. A par com isso, o livro de Stuart vai, tanto na estrutura quanto na atenção aos detalhes, além do que se esperaria de um simples romance atrelado ao filme.

 

Patrulha para o Desconhecido, de Roberto de Sousa Causo. Pontes Gestal, SP: Plutão Livros, Coleção Ziguezague, 1.ª edição eletrônica, dezembro de 2019 [1991], 519kb. Prefácio da coleção por Ana Rüsche. Posfácio do autor. No posfácio deste e-book da Plutão Livros, recordo as situações em torno do Prêmio Jeronimo Monteiro, realizado em 1990-91 pela Isaac Asimov Magazine, e que resultou na minha colocação em terceiro lugar e a publicação desta noveleta de ficção científica no número 14 da revista. Esse foi o primeiro concurso nacional de histórias de FC, recebendo 444 trabalhos de 17 estados brasileiros. Roberto Schima ficou em primeiro lugar, com o conto “Como a Neve de Maio”, e Cid Fernandez em segundo, com a noveleta “Lost”, uma space opera. Outros trabalhos que foram submetidos ao Prêmio Jeronymo Monteiro acabaram aparecendo nas páginas da revista, embora como submissão direta, sem vinculação com o concurso. Os jurados foram Jorge Luiz Calife, José dos Santos Fernandes e Luiz Marcos da Fonseca, então presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica.

Em Patrulha para o Desconhecido, que tem aqui a sua primeira publicação em livro — e a sua primeira republicação desde que apareceu na IAM — uma patrulha de pracinhas brasileiros se depara com uma aldeia isolada nos Apeninos, durante as operações da Força Expedicionária Brasileira na Itália, como parte dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. É um lugar habitado por uma estranha população silenciosa, que os brasileiros resolvem proteger quando, na mesma ocasião, surge ali uma força de soldados alemães. A noveleta ganhou o Prêmio Nova de Melhor Ficção Curta Nacional no ano seguinte.

 

Arte de capa de Charles Andres.

The Bruiser, de Jim Tully. Nova York: Bantam Books, 1946 [1936], 294 páginas. Arte de capa de Charles Andres. Paperback. É duro de acreditar, mas os esportes já foram um gênero literário, com revistas pulp próprias, de contos e romances serializados. Mais tarde, acabou reabsorvido pelo mainstream — mas sobrevive como gênero no mundo vibrante da cultura popular japonesa, aparecendo em mangás e animes. Essa tensão entre o mainstream e a percepção de gênero já estava presente na era das pulp magazines. Ernest Hemingway, por exemplo, conta que foi convidado para aparecer nas revistas especializadas depois de publicar contos sobre esportes, mas recusou pra não ficar marcado. Na lógica da ficção de gênero, é fácil ver nas diversas modalidades desportivas os subgêneros desse gênero maior.

O boxe é o meu esporte favorito, e ao longo dos anos li histórias sobre ele escritas por Hemingway, Jack London, Arthur Conan Doyle, John O’Hara, Thom Jones, Joyce Carol Oates, Ignácio de Loyola Brandão, Henrique Matteucci, Lucius Shepard e vários outros, tendo até publicado o meu próprio: “O Bêbado de Pancada” (na revista Playboy N.º 255, com o título de “A Moça que Veio Depois do Último Round”, 1993). Mas como seria ler um romance de boxe da época das revistas pulp? A resposta veio quando achei num sebo da vida este The Bruiser, cuja edição de 1946 coloca o livro bem no início da paperback revolution, mas que teve edição em capa dura de 1936. Tudo indica que não foi serializado antes disso, fato que me pareceu raro até eu descobrir que Tully já era um nome importante da literatura americana, quando o livro saiu pela primeira vez. Sua vida é a de um homem de origem pobre, filho de emigrantes, com passagem por orfanato e pela vagabundagem pelas estradas de ferro — situações que dramatizou em seus romances —, até se tornar um respeitado colunista de Hollywood (coisa rara) e um romancista de sucesso.

Arte de capa de Fred Rodewald.

A competente arte de capa de Charles Andres não tem uma técnica apurada, mas tem boa atmosfera e uma composição de movimento contido que casa bem com o conteúdo do livro: o louro troncudo avança dentro do golpe desferido pelo adversário para aplicar um “direto de oito polegadas”. Técnica perfeita. A arte da edição original em hardcover, feita por Fred Rodewald (1905-1955 — artistas pulp morriam cedo…), também é básica e bonita, extraindo sua força da angulação das figuras.

Na abertura do livro, um rapaz branco e um negro enfrentam um dia chuvoso, numa série de pequenas situações que hoje seriam vistas  politicamente incorretas — talvez até abafando junto a um leitor judicioso demais, a profunda solidariedade existente entre eles. Ambos vivem na estrada, pegando carona em trens de carga, uma atividade sempre reprimida com violência (quem se lembra do filme de Robert Aldrich, O Imperador do Norte, com Lee Marvin e Ernest Borgnine?). O jovem negro é um lutador chamado Torpedo Jones, mas a história acompanha o outro, Shane Rory e como ele foi construindo uma carreira usando um truque ou outro — como forjar clippings de jornais sobre suas “vitórias” — para conseguir lutas em diversos pontos dos EUA. Chama a atenção de um treinador veterano que o prepara, em termos técnicos e empresariais, para ser um pugilista de melhores oportunidades.

Sua escalada inclui uma refrega especialmente dura com Torpedo Jones, também transformado em lutador de classe mundial. A certa altura Rory sofre uma derrota e uma mandíbula quebrada, e conhece um lutador que esteve no topo mas hoje sofre sequelas cognitivas. Isso assusta Rory mais do que tudo. Meio que atordoado, volta para a estrada e para as suas origens, reencontrando-se com a filha do homem que lhe deu uma primeira chance de trabalho, antes de ele cair na estrada. O amor se infiltra em sua vida, e é duramente reprimido pelo empresário. Retornando ao camp em que treinava, Rory se dedica à retomada e à luta pelo título, sem saber que, tendo acompanhado o seu dilema, um jornalista especializado arranjou o reencontro com a garota. Essa é a principal reviravolta do romance, seguida de uma segunda — Rory declara imediatamente que vai pendurar as luvas. Cede o título ao amigo dos tempos de vagabundagem, o negro Torpedo Jones. Nem sei se as regras do boxe da época permitiam ao campeão abdicar em nome de um colega específico, mas Jones devia estar no topo do ranking da categoria. De qualquer modo, o mito da “grande esperança branca” (expressão criada anos antes por Jack London) é atenuado em Bruiser, assim como o do sonho americano e do self-made man. Rory conseguiu o que queria mas preza a sua massa cinzenta e o trabalho honesto o suficiente para voltar à fazenda da amada. Jim Tully lutou boxe como peso leve, mas eu suspeito que o jornalista sentimental (outro clichê enfraquecido: o jornalista cínico) é mais o seu alter ego do que o vitorioso Rory. Parte do encanto do boxe vem de possuir uma história que os fãs costumam conhecer, das suas vinculações proletárias, e de uma espécie de autodisciplina de constituição do corpo e da mente que não tem formulação filosófica, mas que está lá. Tudo isso Tully evoca com um estilo despretensioso que alterna, num ritmo todo próprio, uma prosa telegráfica de jornalismo esportivo com diálogos extensos ou descrições elaboradas, quase poéticas, que surpreendem pela emoção que despertam. Os poucos especialistas em sua vida e obra veem em Tully o precursor do estilo hard-boiled, antes dos suspeitos usuais: Dashiell Hammett e Hemingway. Uma descoberta.

 

Campeão mundial dos pesados, Jack Dempsey teve revista com o seu nome, aqui publicando Robert E. Howard, que teve uma série de histórias sobre boxe centrada no Marinheiro Costigan. A capa mostra a versatilidade do artista Earle K. Bergey (1901-1952) que pintou pin-ups e fez muita arte de ficção científica.

 

Art de capa de Ron Manoney.

Tad Williams’ Mirror World, anônimo, ed. Nova York: HarperPrism, 1.ª edição, 1998, 170 páginas. Arte de capa de Ron Mahoney. Hardcover. Mais um livro da linha “Illustrated Novel” (romance ilustrado) da HarperPrism, que soava mais como pitching para conceitos que pudessem se tornar properties substanciais no cinema, TV ou jogos. Nem por isso deixou de trazer resultados interessantes e sugestivos. Tad Williams é o autor de O Trono de Dragobone (The Dragonbone Throne), romance de alta fantasia publicado no Brasil pela Editora Siciliano em 1989 — bem antes da fantasia alavancar o mercado editorial. Este Mirror World é baseado em uma série de quadrinhos escrita por ele e publicada nos States pela TechnoComics. Talvez por isso muitas das situações pareçam remeter a fatos anteriores. O livro foi adquirido na saudosa Terramédia, antes de ela se tornar a Omniverse.

A premissa é a da descoberta de um mundo que se comunica com o nosso através de portais transpostos por indivíduos especialmente selecionados por suas capacidades físicas, mentais e paranormais induzidas por uma tecnologia biológica. A seção “Biotrooper Dossier” traz a descrição daqueles que figuram no livro, sob forma de fichas que convidam a imaginar esse universo ficcional desenvolvido como videogame ou RPG. Como acontece no outro “romance ilustrado” que já comentei, Margaret Weis’ Testament of the Dragon, há no livro uma novela, uma noveleta e um conto, intercalado com seções explicativas, tudo bem ilustrado. Escrita por Mark Craighbaum, “Mirror in Time” abre o livro, ilustrada por Ron Mahoney, artista cujos desenhos têm, em geral, mais força que suas pinturas. A novela coloca o herói Dancer contra um colega biotrooper de outros carnavais, alguém que perdeu o controle dos seus dons paranormais e se tornou um tirano, com o interesse amoroso de ambos imprensada entre eles. A força da narrativa de Craighbaum está no seu poder descritivo e na dinâmica dos relacionamentos.

“Serpent in the Garden” foi escrito por John Helfers e ilustrado por Robin Cline, um virtuoso do grafite que produziu artes monocromáticas consistentes e sedutoras. A história começa com um jovem sendo resgatado da tortura do regime, para, aos poucos, reencontrar-se com sua condição de biotrooper e ajudar a comunidade que o abrigou a livrar-se de um colega animalizado e homicida. A cadência narrativa é mais lenta e o foco está na comunidade. Também ilustrado por Cline, “Childhood’s End”, escrito por Michelle West, parece se nutrir do mesmo foco da história anterior, para tratar, com mais sentimento, de uma figura estranha em outra comunidade. É obviamente um biotrooper que também perdeu seu sentido de missão, e precisa controlar seus impulsos violentos a fim de proteger as crianças que o encantaram e que representam sua inocência perdida, e o seu lugar na comunidade. “Pilgrim’s Progress”, a seção final, finge ser um diário de explorações, com direito a anotações e desenhos de naturalista (não creditados). Como nada que é tecnológico ou artificial pode passar pelos portais (até mesmo obturações e implantes odontológicos), o que temos efetivamente em Mirror World é uma fantasia de transferência ou de portal.

 

Screening Space: The American Science Fiction Film, de Vivian Sobchack. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 3.ª edição, 1999 [1997, 1980], 346 palavras. Trade paperback. M. Elizabeth Ginway inspirou-se muito neste livro da estudiosa de cinema Vivian Sobchack, então na University of California em LA, para escrever o seu Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (2004). Publicado o seu livro, Libby me presenteou com o seu exemplar do livro de Sobchack. É, na verdade, a edição aumentada de The Limits of Infinity: The American Science Fiction Film (1980), reescrito depois que a autora entrou em contato com o trabalho do crítico marxista Fredric Jameson. Eu já o vinha consultando ao longo dos anos, mas agora resolvi ler tudo, para me preparar para a conversa no Cine Clube Sci-Fi do Centro de Pesquisa e Formação do SESC, coordenado por Sabrina Paixão. Forbidden Planet, o assunto da atividade, está até na capa do livro.

No primeiro capítulo, Sobchack traça as fronteiras do gênero a partir de definições propostas por escritores, editores e críticos do cinema de FC. Também discute a aproximação, tão própria do cinema americano, entre os gêneros horror e ficção científica, vistos por ela como expressão de uma perturbação da ordem natural (o horror) e de uma perturbação da ordem social (a FC). O insight é interessante e a autora o explora com consistência admirável, ao discutir um rol impressionante de produções e argumentar que muitos filmes de monstro são mais propriamente filmes de FC. O segundo capítulo trata do que as imagens da FC expressam, ângulo que oferece muito da crítica específica de cinema, com ideias que Libby Ginway certamente explorou na sua argumentação sobre a iconografia da FC. Na mesma linha, o capítulo seguinte explora o fator som nos filmes. Extenso, o último capítulo é um adendo a esta edição. O título, “Postfuturism” (pós-futurismo), e o texto exploram o embricamento entre a projeção ficcional do futuro da tecnologia, a presença da tecnologia na realização dessa projeção nos filmes, e a presença da tecnologia nas nossas vidas. É o capítulo mais influenciado por Jameson, e há de se lamentar que Sobchack sentiu a necessidade de imitar o estilo retorcido dele. O livro foi um intenso regresso a muita coisa que vi na infância e adolescência (os últimos filmes que ela aborda estão na era de ouro dos anos 1980), estimulado pelas muitas fotos em preto e branco com comentários agudos e pertinentes, e iluminado por um conhecimento erudito e arguto sobre a sétima arte.

—Roberto Causo

Sem comentários até agora, comente aqui!

Leituras de Outubro de 2019

O planeta Marte é um dos focos das minhas leituras de outubro de 2019, que também incluíram ficção científica experimental brasileira e um raro thriller nacional. Faltou a leitura de história em quadrinhos, neste mês…

 

Arte de capa de Tony Greco & Associates.

Perish Twice, de Robert B. Parker. Nova York: Berkley Books, 2001 [2000], 334 páginas. Arte de capa de Tony Greco. Paperback. A história por trás da série Sunny Randall de romances de ficção de crime é a de que, depois de ter ganho o Oscar de melhor atriz por Melhor É Impossível (As Good as It Gets; 1997), Helen Hunt quis que o escritor de ficção de detetive Robert B. Parker criasse uma heroína que ela pudesse interpretar no cinema. O filme e a possível franquia baseada na personagem não aconteceram, mas Parker, o criador do detetive Spenser (cuja série de TV passou por aqui na década de 1990), foi em frente e escreveu uma série de seis romances com a jovem detetive particular. Mais tarde, a moça foi integrada ao contexto da segunda série de Parker, Jesse Stone — esta sim, resultante em uma sequência de oito ótimos telefilmes estrelados por Tom Selleck.

O primeiro livro da série Sunny Randall foi Family Honor (1999). Este Perish Twice (título extraído de um verso de Robert Frost) é o segundo. Nele, a heroína é apresentada como uma jovem de trinta e poucos anos, com um tempo de serviço no departamento de polícia de Boston, agora dedicada a investigações particulares e à faculdade de artes plásticas. Essas características lembram muito Spenser, um ex-investigador da promotoria da mesma cidade e que virou detetive particular; embora seja um ex-soldado e ex-pugilista profissional, Spenser é uma alma sensível que cita poesia e o teatro de Shakespeare. Os dois, Spenser e Sunny, têm cachorros e parceiros amorosos problemáticos e com quem não dividem o mesmo teto. Nas duas séries, Parker faz uma forte defesa da psicanálise.

Perish Twice começa com Sunny sendo contratada para proteger uma “feminista profissional” (tem uma firma de consultoria de questões de gênero) que vem sendo seguida por um intimidador. Logo, porém, uma de suas funcionárias aparece morta no trabalho, e o homem que perseguia a patroa aparece morto na sequência, acompanhado de uma mensagem de suicídio. Sunny não se convence de que a mulher foi morta por engano, por se parecer com a outra (toda feminista lésbica é igual?); nem que o sujeito teria se suicidado. A sua investigação particular (no sentido de ser ela mesma tentando chegar ao fundo da questão) a leva a uma proximidade perigosa com o submundo do crime, e o romance até o assunto da prostituição — algo que Parker já havia feito com Taming a Sea-Horse (1982) e outros livros de Spenser. O seu sidekick é outra figura de interesse: Spike, um homem gay que não leva desaforo pra casa e se defende bem com as mãos. A nova heroína tem algo de uma fragilidade bem-vinda, que com Spenser vinha a muito custo. Vinha, infelizmente, com algum desequilíbrio, improdutivo, da consistência moral do personagem. Algo semelhante se dá com Sunny em Perish Twice.

 

Arte de capa de Teo Adorno.

Amália atrás de Amália, de Marco Aqueiva. São Paulo: Patuá Editora, Coleção Futuro Infinito, 2019, 88 páginas. Texto de orelha de Ramiro Giroldo. Arte de capa de Teo Adorno. Brochura. A coleção Futuro Infinito, coordenada por Luiz Bras, lança com esta novela de Marco Aqueiva o seu quarto título em 2019, o ano da estreia da coleção — uma das mais interessantes em evolução no momento. Antes vieram títulos de Braulio Tavares, Fábio Fernandes e Claudia Dugim. Esta é basicamente a primeira investida na ficção científica por Aqueiva, autor de Sob os Próprios Pelos: Seres Extraordinários (novela, 2014), Germes entre Dias Brancos (poesia, 2016) e 1917-2017: O Século sem Fim (contos, 2017) — todos pela Patuá, de São Paulo.

Na orelha do livro, o pesquisador Ramiro Giroldo, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, define esta novela como uma distopia; i.e., ambientada em um futuro opressivo. A narrativa sem enredo, na qual a personagem título busca a sua filha desaparecida, é fragmentada e evoca temas da ficção científica tão variados quanto realidade sintética e jogos de identidade, tecnologia indutora de sonhos, alienígenas ocultos entre nós, sexualidade estranha e duplicação de seres humanos. Os temas se alternam nos capítulos curtos, assim como a pessoa narrativa, e são empregados com a liberdade característica de um William S. Burroughs. Amália atrás de Amália é um texto pós-modernista ousado, que confirma a prosa experimental como a tendência dominante da Coleção Futuro Infinito, seguindo a personalidade do seu coordenador. O próximo lançamento deverá ser a coletânea dupla de histórias do experimentalista Ivan Carlos Regina, O Fruto Maduro da Civilização/O Éter Inconsútil.

 

Arte de capa de Angelo Allevato Bottino.

Missão Pré-Sal 2025, de Vivianne Geber. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015, 252 páginas. Arte de capa de Angelo Allevato Bottino. Brochura. Thriller internacional e ficção militar escritos por mulher é coisa rara, senão inédita, no Brasil. Mas aqui está Vivianne Geber, que faz parte do quadro auxiliar da Marinha do Brasil, na área jurídica, com seu romance de estreia — um thriller internacional e ficção militar. Como cabe à literatura de gênero (que é mais do que FC, fantasia e horror, diga-se de passagem), o livro mede o pulso da época em que foi escrito. Trata da questão da defesa dos campos do pré-sal, problemática muito discutida nos anos Lula-Dilma, e da corrupção (idem). Mas nas duas questões, há um ângulo diferenciado.

O Capitão de Corveta Rodolfo Ruppel está em Londres com a esposa Carla, para a apresentação de sistemas de guerra submarina de uma empresa multinacional do setor. Ele tem a esperança de que seu casamento balançado se beneficie com a viagem. Mas Ruppel é um agente secreto da Marinha, e deve manter sigilo da sua verdadeira missão. Ele se encontra com um contato em Londres, que lhe explica qual é a missão: recuperar dados de um projeto secreto da MB de construir um submarino híbrido diesel/nuclear, tecnologia revolucionária que projetaria a força num plano estratégico, de modo a proteger pela dissuasão as reservas de pré-sal do Brasil. O projeto teria sua conclusão em 2025, daí o título. Tudo isso está dentro das discussões da época em que o romance foi escrito, e é assunto do livro de não-ficção As Garras do Cisne: O Ambicioso Plano da Marinha Brasileira de se Transformar na Nona Frota mais Poderosa do Mundo (2014), de Roberto Lopes. O contato de Ruppel em Londres é uma mulher: Victoria Borges, ex-oficial engenheira da Marinha, agora trabalhando em uma empresa de defesa na Alemanha, e casada com um estudante de pós-graduação com bipolaridade. Aos poucos, os dois agentes secretos vão sendo isolados pelos seus respectivos superiores e controladores, precisando aprender a confiar um no outro, enquanto a intriga se retorce sobre ele, com traições, ameaça de homens armados e famílias intimidadas. A atração entre os dois é palpável. É interessante que, por exemplo nos romances de Tom Clancy, às vezes parece que todos os personagens de caráter são ou foram militares, o que é uma proposição problemática. No livro de Geber, todo militar é casado, e a autora sempre discute algo da situação de cada casamento — o que fornece uma perspectiva talvez mais feminina e certamente refrescante nesse gênero. Geber conduz a narrativa com firmeza, marcada por toques leves, atenção ao detalhe específico e frases curtas e objetivas. Ela claramente conhece o assunto. Em termos de técnica de escrita, às vezes é um pouco difícil diferenciar quem diz o quê. Também em termos de técnica narrativa, a autora retém muita informação para gerar suspense, e o romance ganha força justamente quando ela começa a fornecer mais informação sobre o que se passa de fato e o que está em jogo. Também acredito que mais textura nas descrições tornaria o romance mais encorpado e a sua leitura ainda mais estimulante. Do jeito que está, as frases curtas e a ligeireza da narrativa dão algo de juvenil ao livro.

As Forças Armadas gozam da simpatia de grande parte da população brasileira, em parte, eu imagino, por terem uma certa opacidade em relação à política e ao empresariado corruptos. Geber tem a coragem de nos lembrar que existe corrupção também nas Forças Armadas. No fim, esse é o assunto do romance, que reserva outras reviravoltas genuinamente surpreendentes. É como se Geber não acreditasse muito no ambicioso projeto da Marinha do pré-sal, estando dentro da força e conhecendo os empecilhos orçamentários e políticos muito concretos que o plano enfrentava. Missão Pré-Sal 2025 é o primeiro de uma série, que deve ser prosseguida com o ainda inédito Missão Terra Firme, também com Rodolfo Ruppel. O site da autora informa que há um e-book estrelado por Victoria Borges, em uma narrativa mais curta. Virei fã de Vivianne Geber, e com certeza pretendo ler o novo romance.

 

Mars, de Stuart Murray. Nova York: DK Publishing, Eyewitness, 2004, 72 páginas. Hardcover. Eu havia adquirido este livro da série Eyewitness há muitos anos, porque ele, ao tratar do planeta Marte em seus aspectos astronômicos e astronáuticos e também culturais, reproduz duas ilustrações do brasileiro Henrique Alvim-Corrêa para a sua edição ilustrada de 1906 de A Guerra dos Mundos de H. G. Wells. Reproduz, mas o editor Edward S. Barnard não o credita, assim como não credita várias outras ilustrações que aparecem no livro.

Quando eu soube que o Somnium, o clubzine do Clube de Leitores de Ficção Científica, preparava uma edição com o tema da colonização de Marte e de inteligência artificial, peguei-o para me inspirar na composição de uma história das Lições do Matador, Ciclo Serviço Colonial, ambientada no Planeta Vermelho. O livro é um guia visual, com texto frugal mas cheio de informações, totalmente ilustrado. Começa com Marte na mitologia e na observação das primeiras civilizações, e vai até as explorações via sensoriamento remoto por satélite e in loco por sondas veículos telecomandados de superfície, sem se esquecer de mencionar não só as hipóteses erradas da astronomia do passado quanto às condições do planeta, mas também das inúmeras missões espaciais fracassadas. Especialmente interessante são as seções que falam das tempestades globais de areia, da formação de crateras de impacto, e os principais acidentes geográficos do planeta. A conexão do planeta Marte com a minha série As Lições do Matador está no fato de o seu protagonista, o Capitão Jonas Peregrino, ter estudado na “Academia Militar de Olympus Mons”, referência ao mais alto vulcão do Sistema Solar, situado em Marte.

 

Arte de capa de Pamela Lee.

Mars, de Ben Bova. Nova York: Bantam Books, 1992, 502 páginas. Arte de capa de Pamela Lee. Hardcover. O planeta Marte foi o foco de um ciclo de romances que cobriu boa parte da década de 1990 e conquistou alguns dos principais prêmios da FC em língua inglesa. Além deste romance de Ben Bova, o ciclo incluiu a Trilogia Marte, de Kim Stanley Robinson (que, se a memória não falha, a editora brasileira Meia Sete aventou publicar por aqui), Moving Mars (1993), de Greg Bear, Red Planet Run (1995), de Dana Stabenow, e The Martian Race (1999), de Gregory Benford. Muitos desses livros imaginam como seria a primeira missão espacial ao planeta vermelho, seguindo a fala de George Bush (pai) aventando essa empreitada pelos Estados Unidos, embalados também pela fortuna em dados levantados pelas sondas científicas enviadas a planeta vizinho. Bova foi editor da revista Analog e da famosa Omni. Sua área é justamente a FC hard e espacial.

O Mars de Bova é interessante para o leitor do Brasil porque toda a agitação para a missão espacial teria sido feita, no futuro próximo, por uma figura brasileira chamada Brumado. O que se tem aí não é apenas um brasileiro influente e interessado em ciência, mas essa figura tão ausente da nossa FC e das nossas discussões políticas e culturais: um brasileiro visionário. A filha de Brumado, a tímida bióloga Joanna, vai na missão marciana. O protagonista do livro, porém, é o geólogo nativo-americano (navajo) Jamie Waterman. Ele é competente e motivado, mas vive em uma espécie de limbo político que o torna pouco utilizável pelas potências que montam a expedição a Marte. Aí também, o romance é interessante para o nosso momento de consciência da representatividade de minorias e nos recorda que a FC busca, em diversos graus, essa perspectiva já há algum tempo. Waterman é inicialmente preterido, ainda na fase das triagens e treinamentos na Antártida (o continente mais próximo das condições ambientais de Marte), mas acaba entrando na tripulação final porque um outro geólogo, europeu, acabou sendo rejeitado pelos colegas por questões de assédio (mais uma questão de gênero sexual e representatividade) e de personalidade. Uma situação política se forma quando, ao pisar no Planeta Vermelho pela primeira vez, Waterman ignora a fala aprovada pelo controle da missão e exclama algo obscuro em navajo, despertando a ira da vice-presidente americana (lá, tradicionalmente é o vice que lida com o programa espacial). Desse modo, Bova vai costurando as questões científicas, interpessoais, midiáticas e políticas envolvidas em uma possível missão a Marte, e recorrendo constantemente a flashbacks. É tudo feito com competência e tendo por base projetos aventados, estudados e até financiados em alguma metida, em estágios de teste e de pesquisa. Robert Zubrin, cabeça da The Mars Society, um importante instituto e grupo de lobby pela exploração de Marte, aparece como figurante no romance. Com esse formato, o leitor demora um pouco a entrar na narrativa, também porque Waterman demora a ganhar contornos concretos. Ele parece muito passivo — até que chega a Marte e começa a definir as suas próprias prioridades de pesquisa científica. Nessa altura, a narrativa abandona os flashbacks e assume os contornos de uma problem story, com os astronautas em campo ameaçados por uma doença misteriosa que acaba se revelando como tendo uma origem (e solução) muito simples. A competente arte de capa de Pamela Lee ilustra um das principais questões e um dos momentos cruciais do romance — o empenho para decifrar um mistério vislumbrado por Waterman, no maior cânion marciano.

Com o que Bova acena, para contrabalançar as questões científicas, interpessoais, midiáticas e políticas que pesam na missão a Marte? Com um pouco de aventura, certamente, mas, principalmente, com os mistérios científicos do planeta — em especial, a presença de vida em Marte. O que torna o ambicioso romance de Ben Bova realmente memorável, contudo, é um toque da espiritualidade indígena que Waterman conservou, e que foi capaz de projetar sobre o desértico Marte.

—Roberto Causo

Sem comentários até agora, comente aqui!

Plutão Livros Publica Finisia Fideli e Roberto Causo

A Plutão Livros de André Caniato, uma editora especializada em e-books de ficção científica, publicou em fins de dezembro de 2019 uma série de títulos incluídos na Coleção Ziguezague, voltada para a publicação de FC brasileira sem fronteiras, isto é, obras pertencentes a todos os períodos da evolução da FC no Brasil.

 

A Ziguezague engrossa um outro diferencial que também se afigura como tendência bastante interessante para 2020: a republicação de obras significativas da ficção científica brasileira. Em 2019 nós vimos, por exemplo, duas coletâneas importantes reaparecendo: As Baleias do Saguenay, de João Batista Melo, e O Fruto Maduro da Civilização, de Ivan Carlos Regina.

Esse processo sublinha um fato novo — a aceitação de que o gênero tem história no país. A Ziguezague publica obras de todos os períodos da nossa FC: o Período Pioneiro (1857 a 1957), a Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira (1957 a 1972), o Ciclo de Utopias e Distopias (1972 a 1982), a Segunda Onda (1982 a 2015) e a Terceira Onda (a partir de 2004). Os seus primeiros títulos foram lançados, em rápida sucessão, nos meses finais de 2019: Três Meses no Século 81 (antes publicado como 3 Meses no Século 81), um clássico da FC nacional escrito por Jeronymo Monteiro e publicado anteriormente apenas em 1947; Eles Herdarão a Terra, de Dinah Silveira de Queiroz, uma coletânea de histórias publicada primeiro pelas Edições GRD em 1960; O Ovo do Tempo, noveleta de Finisia Fideli publicada pelas Edições GRD em 1994, na antologia Dinossauria Tropicália; e a noveleta Patrulha para o Desconhecido, de Roberto Causo, publicada primeiro na Isaac Asimov Magazine em 1991, quando foi uma das três finalistas do primeiro concurso nacional de contos brasileiros de FC, o Prêmio Jeronymo Monteiro.

A dinâmica ensaísta e ficcionista Ana Rüsche fez o prefácio da coleção: “A Coleção Ziguezague faz um convite entusiasmado: celebrar a ficção científica brasileira. Esse movimento corajoso inaugura a nova década do século XXI, ressaltando uma literatura que enfatiza os usos possíveis da tecnologia e reflete a respeito das decorrências de alterações técnicas em nosso cotidiano, promovendo uma análise sobre questões éticas, morais e sociais.” Rüsche também acredita que o acesso a alguns desses títulos poderá auxiliar a crescente pesquisa de FC brasileira.

Escrito com vivacidade e humor, O Ovo do Tempo apresenta uma discreta heroína paulistana, a bióloga Mariana. Cercada de sensatez — como outras personagens da autora —, mas sem por isso se esquivar de ir ao fundo de um fenômeno estranho iniciado com a compra de um geodo em particular, em uma loja de cristais apresentada por uma amiga esotérica. A sua busca a conduz a uma viagem até o Sul do Brasil, à procura de uma caverna explorada por empresários inescrupulosos que contrabandeiam itens minerais para fora do país. A preocupação com essa questão contemporâneas é temperada pelo maravilhamento e pela descoberta de fatos fabulosos, incluindo o encontro com um viajante do tempo. A antologia Dinossauria Tropicalia, na qual a noveleta foi primeiro publicado, apareceu no auge da “dinomania” provocada pelo filme de Steven Spielberg, O Parque dos Dinossauros.

A Plutão Livros guarda outra noveleta de Fideli para publicação oportuna, A nós o Vosso Reino, de 1998.

 

 

Narrada em primeira pessoa, a noveleta Patrulha para o Desconhecido apareceu primeiro na Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Científica N.º 14, em 1991, e é uma FC militar em que pracinhas brasileiros metidos na Segunda Guerra Mundial, durante uma patrulha de reconhecimento se deparam com estranhos habitantes isolados em uma vila entranhada nos Montes Apeninos, na Itália. Foi a terceira colocada no Prêmio Jeronymo Monteiro. O posfácio do autor, também presente no livro, traz reminiscências da FC brasileira da época e dos bastidores do concurso.

Roberto Schima foi o primeiro colocado, com o conto “Como a Neve de Maio”, e Cid Fernandez o segundo, com a noveleta de space opera “Lost”. O concurso atraiu a quantidade impressionante de 444 submissões por escritores de 17 estados brasileiros. Os escritores Jorge Luiz CalifeJosé dos Santos Fernandes, com Luiz Marcos da Fonseca, na época presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica, foram os jurados. A publicação dos vencedores marcou o início da participação de textos nacionais de ficção na Isaac Asimov Magazine.

Sem comentários até agora, comente aqui!